itatiaia, ouro branco-mg: apontamentos de uma … · um elemento-chave para o reatar da discussão...

15
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 ITATIAIA, OURO BRANCO-MG: apontamentos de uma paisagem em construção SILVA, FERNANDA DOS SANTOS. (1); REZENDE, MARCO ANTÔNIO PENIDO (2). 1. Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável, Escola de Arquitetura MACPS-EA. [email protected] 2. UFMG. Departamento de Tecnologia da Arquitetura e do Urbanismo Rua Paraíba, 697 cep 30 130 140 Belo Horizonte [email protected] RESUMO Itatiaia, que hoje é distrito de Ouro Branco, certamente tem sua origem ainda no final do século XVII, uma vez que já, em 1712, há o primeiro registro de batismo na atual igreja de Santo Antônio, matriz do distrito. Sua origem está ligada, portanto, aos primeiros registros de ocupação do território mineiro. Inserida ao pé do Monumento Estadual do Itatiaia (na Serra do Espinhaço) o local era uma das principais opções de trajeto de paulistas e cariocas para chegar a Vila Rica, pela Estrada Real. Mas não é só a matriz que preserva a herança colonial no lugarejo. Ainda é possível identificar algumas edificações mais antigas como o moinho d´água de fubá, inúmeras ruínas, muros e calçamentos, e alguns exemplares da arquitetura vernácula com utilização de cantaria, adobe e pau-a-pique. As técnicas vernaculares tem ganhado cada vez mais relevância nos estudos sobre o patrimônio cultural, pois englobam as esferas materiais e imateriais, na medida em que trabalham tanto com o substrato como com o saber-fazer, registrando exemplares da arquitetura e seus processos de técnicas e tecnologias envolvidos. Assim, tornam-se um objeto de estudo rico diante das novas abordagens do patrimônio, que buscam romper com a dicotomia existente, que normalmente tende a separar tais esferas. Além de abarcarem o valor histórico, os exemplares da arquitetura vernácula permitem uma série de discussões que envolvem a sustentabilidade econômica, social, ambiental, cultural e política, e tornam-se referenciais de identidade coletiva em uma comunidade específica. Ademais, essa tipologia contribui para o entendimento da ordenação do crescimento urbano, e consequentemente das transformações da paisagem, além de permitirem uma análise dos valores culturais e ideológicos produzidos pela sociedade e da relação entre o homem e a natureza. Tendo em vista que Itatiaia não apenas concentra exemplares da arquitetura colonial vernácula, mas também novas edificações utilizando as mesmas técnicas, através dos saberes dos mestres artífices locais, o presente artigo se propõe a fazer uma abordagem das construções tradicionais remanescentes no lugarejo, bem como das novas, buscando refletir sobre as transformações da paisagem, das narrativas desses mestres artífices em interface como a nova abordagem da paisagem cultural, que traz uma série de conceitos que podem ser aplicados para o amadurecimento dessa reflexão, como a relação entre o homem e a natureza e a indissociável relação entre bem material e imaterial. Palavras-chave: Paisagem cultural; Arquitetura vernacular; Saber-fazer.

Upload: truonganh

Post on 10-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

ITATIAIA, OURO BRANCO-MG:

apontamentos de uma paisagem em construção

SILVA, FERNANDA DOS SANTOS. (1); REZENDE, MARCO ANTÔNIO PENIDO (2).

1. Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável, Escola de Arquitetura – MACPS-EA.

[email protected]

2. UFMG. Departamento de Tecnologia da Arquitetura e do Urbanismo Rua Paraíba, 697 – cep 30 130 140 – Belo Horizonte

[email protected]

RESUMO

Itatiaia, que hoje é distrito de Ouro Branco, certamente tem sua origem ainda no final do século XVII, uma vez que já, em 1712, há o primeiro registro de batismo na atual igreja de Santo Antônio, matriz do distrito. Sua origem está ligada, portanto, aos primeiros registros de ocupação do território mineiro. Inserida ao pé do Monumento Estadual do Itatiaia (na Serra do Espinhaço) o local era uma das principais opções de trajeto de paulistas e cariocas para chegar a Vila Rica, pela Estrada Real. Mas não é só a matriz que preserva a herança colonial no lugarejo. Ainda é possível identificar algumas edificações mais antigas como o moinho d´água de fubá, inúmeras ruínas, muros e calçamentos, e alguns exemplares da arquitetura vernácula com utilização de cantaria, adobe e pau-a-pique. As técnicas vernaculares tem ganhado cada vez mais relevância nos estudos sobre o patrimônio cultural, pois englobam as esferas materiais e imateriais, na medida em que trabalham tanto com o substrato como com o saber-fazer, registrando exemplares da arquitetura e seus processos de técnicas e tecnologias envolvidos. Assim, tornam-se um objeto de estudo rico diante das novas abordagens do patrimônio, que buscam romper com a dicotomia existente, que normalmente tende a separar tais esferas. Além de abarcarem o valor histórico, os exemplares da arquitetura vernácula permitem uma série de discussões que envolvem a sustentabilidade econômica, social, ambiental, cultural e política, e tornam-se referenciais de identidade coletiva em uma comunidade específica. Ademais, essa tipologia contribui para o entendimento da ordenação do crescimento urbano, e consequentemente das transformações da paisagem, além de permitirem uma análise dos valores culturais e ideológicos produzidos pela sociedade e da relação entre o homem e a natureza. Tendo em vista que Itatiaia não apenas concentra exemplares da arquitetura colonial vernácula, mas também novas edificações utilizando as mesmas técnicas, através dos saberes dos mestres artífices locais, o presente artigo se propõe a fazer uma abordagem das construções tradicionais remanescentes no lugarejo, bem como das novas, buscando refletir sobre as transformações da paisagem, das narrativas desses mestres artífices em interface como a nova abordagem da paisagem cultural, que traz uma série de conceitos que podem ser aplicados para o amadurecimento dessa reflexão, como a relação entre o homem e a natureza e a indissociável relação entre bem material e imaterial.

Palavras-chave: Paisagem cultural; Arquitetura vernacular; Saber-fazer.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

1. Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar uma abordagem dos exemplares da arquitetura

vernacular existentes em Itatiaia, distrito de Ouro Branco-MG, buscando observar as

transformações na paisagem que decorrem do envolvimento da comunidade com essa

tipologia.

Itatiaia, que hoje é distrito de Ouro Branco, certamente tem sua origem ainda no final do

século XVII, uma vez que já, em 1712, há o primeiro registro de batismo na atual igreja de

Santo Antônio, matriz do distrito. Sua origem está ligada, portanto, aos primeiros registros de

ocupação do território mineiro (FIG. 1).

FIGURA 1 – Itatiaia, Ouro Branco-MG

Fonte: Google Earth. Elaboração de Joicidele Pedrosa, 2016.

Os poucos exemplares edificados em pau-a-pique e os pontuais vestígios de ruínas de adobe,

pau a pique e cantaria, além da histórias contadas pelos moradores do distrito apontam a

relevância que esse modelo tem enquanto referencial da identidade coletiva e também

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

permitem refletir sobre o significado que possuem hoje diante da retomada das técnicas

tradicionais resgatadas por mestres artífices locais.

Além disso, objetiva-se fazer uma conexão entre a paisagem cultural como instrumento que

melhor acomoda essa abordagem quando é lida como patrimônio e entre a etnografia como

método de investigação.

Finalmente coloca-se alguns apontamentos, fruto do contato com a comunidade local, pelos

quais se procurou compreender os sintomas da mudança do ambiente construído em diálogo

com as narrativas as quais alguns moradores interpretam essa tipologia.

2. Paisagem cultural e a arquitetura vernacular

A paisagem daqui, eu não me canso de olhar e admirar. Dá uma tranquilidade, uma calma. Lá em casa mesmo, eu sento no terreiro e fico admirando (depoimento [Jul. 2016]. Produção de áudio. Entrevistador: Silva, Fernanda).

No final do século XX a Paisagem Cultural foi aplicada como categoria na identificação e

preservação do patrimônio cultural. Esse conceito, carregado de complexidade, só foi

possível ser pensado após a clara necessidade de se relacionar os patrimônios nas suas mais

variadas formas: naturais e culturais, materiais e imateriais. A percepção de que as maneiras

tradicionais de viver estão intimamente ligadas à apropriação do espaço e suas

manifestações (sejam elas materiais ou imateriais) foi o que permitiu que tal categoria se

tornasse um instrumento a serviço do patrimônio.

Situação similar ocorre com a arquitetura vernacular que passou a ser valorizada como

patrimônio pela capacidade de registrar os saberes e os processos das técnicas empregadas,

registrando as identidades culturais e os exemplares cada vez mais raros dessa tipologia.

A relação entre esses dois conceitos perpassa a outros vários conceitos como a

sustentabilidade, a relação do homem com a natureza, e entre os bens materiais e imateriais.

Assim, nesse primeiro momento, vamos procurar tratar desses conceitos.

A paisagem cultural enquanto instrumento de proteção do patrimônio cultural ganha força em

1992, quando a UNESCO a implanta como categoria de inscrição de bens na lista de

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

patrimônio mundial. As motivações que impulsionaram essa ação eram a de aproximar os

bens naturais e culturais, visto que essa associação era cada vez mais evidente e intrínseca.

No Brasil, vale lembrar que em 1937, com a criação do IPHAN e dos livros de tombo, a

paisagem já era utilizada, mas sob o instrumento do tombamento, através do decreto-lei

25/1937, que criou, entre outros, o Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico,

mas ainda com uma atuação distante do conceito atual que a paisagem cultural incorpora

hoje.

Foi buscando responder a esse desafio que o IPHAN lançou a chancela da Paisagem

Cultural. Foi regulamentada através da Portaria n° 127 de 30 de Abril de 2009. A chancela

vem agregar-se como mais um instrumento de proteção, que pode ser utilizado para áreas

mais extensas, compostas por ambientes construídos e paisagem natural, nas quais, segundo

a definição: “o homem e a ciência humana imprimem marcas ou atribuem valores” (IPHAN,

2009, p.13).

É justamente por conter essas relações que a arquitetura vernácula pode ser analisada como

um contributo à paisagem cultural. Caracterizada como uma expressão arquitetônica

particular de comunidades, ela representa o modo de habitar. Traduz a ocupação e

apropriação da paisagem e da natureza, e imprime uma maneira de ordenar o território.

Segundo Oliveira e Galhano (1992), isso se deve ao fato dos variados condicionantes aos

quais está sujeita: particularidades geográficas, climáticas, econômicas, históricas, sociais e

culturais. Tudo isso faz da arquitetura vernacular um dos mais significativos e marcantes

aspectos da intervenção humana na paisagem e resulta em uma tipologia regional em que os

recursos naturais do entorno são utilizados e passíveis de adaptações na técnica de construir.

Revisando autores portugueses que tratam do assunto, como Ribeiro (2008) e Aavy (1999),

Fernandes (2011) diz:

A arquitetura vernácula é um exemplo de um tipo de construção do passado que importa analisar. Baseada na repetição de soluções, e aprimorada ao longo de sucessivas gerações de artífices, é o reflexo de um tempo mais sustentável em que ainda se sabia como lidar com os parcos recursos de que se dispunha, o que permitia tirar partido dessa aparente desvantagem. [...] Numa época de globalização – iniciada com a Revolução industrial e agudizada com Movimento Moderno – que contribui para uma homogeneização insípida das culturas e, por consequência, dos seus modos de construir, a arquitetura vernacular afirma-se cada vez mais como sendo um elemento-chave para o reatar da discussão sobre a identidade e sobre a pertinência de se voltar a construção intrínseca ao lugar. Esta poderá contribuir para a redução do desperdício e dos consumos energéticos através da utilização de técnicas tradicionais e materiais locais, desenvolvidos com

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

base na necessidade de adaptação a um território e clima específicos (Fernandes e Mateus, 2011, p.206).

Em oposição a arquitetura convencional, que utiliza materiais industriais, essa tipologia ainda

salvaguarda um modo de saber-fazer, na medida em que se baseia na transmissão do

conhecimento da técnica envolvida. É o caso, por exemplo, do pau-a-pique, que tem suas

especificidades em cada região, seja pela utilização de diferentes tipos de madeira (utilizadas

nas tramas), pela adição, ou não, de outros materiais na terra (que faz a função de vedação),

pela própria mineira de selecionar a terra ou na escolha das fibras que farão a amarração da

trama.

Ademais, esse modelo tem um aproveitamento energético maior. Essa eficiência associada

ao baixo desperdício dos recursos empregados vão ao encontro da sustentabilidade

econômica e ambiental, o que tem contribuído para a retomada dessas técnicas,

reaproximando também a relação entre o homem e a natureza, que em função dos processos

de industrialização vinha se distanciando.

Mas, essa retomada com a arquitetura vernacular é um fenômeno relativamente recente, e

percebe-se que, se por um lado esse distanciamento causou efeitos como o preconceito com

os exemplares desse modelo e mesmo seu abandono em detrimento do uso das alvenarias

convencionais, por outro lado, ele passou a significar a afirmação dos valores culturais e

ideológicos locais e o veículo do contato com as tradições e modos de saber-fazer. É que

podemos observar em Itatiaia.

3. A etnografia como método de abordagem

A tentativa de apreender a relação entre os exemplares da arquitetura vernacular e seu

significado recai diretamente sobre a narrativa construída por parte da comunidade envolvida.

Desse modo é necessário definir a metodologia pela qual será feita a abordagem dessa

narrativa. Considerando ainda os desafios de analisar os valores envolvidos e a leitura que a

comunidade faz desse substrato na paisagem, a tarefa requer ainda mais cuidado.

Tendo isso em vista, o método etnográfico é uma interessante maneira de desenvolver essa

análise. Por se consistir em uma produção de estudos dos costumes, crenças e práticas

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

sociais de uma cultura particular, em que a observação do pesquisador se desenvolve de

forma coadjuvante, dando protagonismo a participação dos sujeitos investigados, esse

método não garante mas viabiliza a menor manipulação dos dados e da própria interpretação

enviesada das variáveis, por parte do pesquisador.

Além disso, por se tratar, nesse caso, de uma leitura do espaço construído, o método é

interessante porque parte da premissa que tal investigação deva ser feita in locu,

centralizando o ambiente natural da comunidade. Segundo Martinez (1997), o meio social

deve ser intensamente explorado e vivenciado pelo pesquisador, pois o contexto espacial

exerce influência determinante na formação cultural dos indivíduos, como defende Benedict:

A história da vida individual de cada pessoa é acima de tudo uma acomodação aos padrões de forma e de medida tradicionalmente transmitidos na sua comunidade de geração para geração. Desde que o indivíduo vem ao mundo os costumes do ambiente em que nasceu moldam a sua experiência dos factos e a sua conduta. Quando começa a falar ele é o frutozinho da sua cultura, e quando crescido é capaz de tomar parte nas atividades desta. Os hábitos dela são os seus hábitos, as crenças dela as suas crenças, as incapacidades dela as suas incapacidades (Benedict, s/d, p.15).

Assim, adotamos a etnografia como metodologia e investigação. E tão logo isso se coloca é

impendente que se apresente também as estratégias de abordagem. Foram realizadas

entrevistas abertas e semiestruturadas, individuais e coletivas, com seis pessoas da

comunidade. Esses nomes foram sugeridos por outros vários moradores, e por isso

justifica-se a seleção inicial desses participantes. Considerando ainda uma série de questões

éticas as quais o processo de entrevistas está sujeita, é importante garantir a preservação do

anonimato. Ainda que haja vista autorização prévia dos participantes e esclarecido o destino e

objetivo dos dados coletados, optou-se por não expor aqui a natureza individual e pessoal dos

envolvidos.

Após três anos de visitas no distrito, estudando sobretudo a história da Matriz de Santo

Antônio, e observando desde então as transformações drásticas envolvendo a arquitetura

vernacular, o que se buscou nesse contato foi levantar questões que apontassem para a

percepção e grau de pertencimento entre a comunidade e a tipologia mencionada. Tratemos,

portanto, a seguir, dessas narrativas.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

4. O progresso e a nostalgia: os impactos na transformação da

paisagem e a narrativa memorialista

Segundo o cadastro do posto de saúde local, atualizado recentemente, Itatiaia têm hoje 84

residências. Dessas, restam 7 que são oriundas de técnicas tradicionais (FIG.2). Apenas 2

são construções mais recentes, e uma segue em fase de projeto.

FIGURA 2 – Exemplares da arquitetura vernacular de Itatiaia

Casa de adobe

Moinho d’água de pedra Casa de pau a pique

Paiol de pau a pique

Biblioteca com técnica de cantaria

Casa de pedra com paredes

internas de pau a pique

Fonte: Arquivo pessoal dos autores, 2016.

A população oscila entre 350 e 400 moradores. Isso se deve ao fato do local ser foco de um

movimento pendular que o caracteriza, para alguns moradores, como “cidade” dormitório:

durante a semana vivem nos espaços urbanos de entorno, como Ouro Branco, Ouro Preto e

Conselheiro Lafaiete, e nos finais de semana retornam ao distrito. Nos finais de semana o

fluxo de turistas é mais intenso também. Fato que tem contribuído para a diversificação da

economia local: vê-se restaurantes, lojas de artesanato, bares, bailes, feira popular e

pousadas que suprem perfeitamente as demandas do viajante.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Segundo os moradores ouvidos nesse primeiro contato de entrevistas, Itatiaia, ainda que de

forma desacelerada, sempre acompanhou as mudanças provocadas pela industrialização,

que chegavam paulatinamente e transformavam a paisagem do lugar.

Segundo uma das entrevistadas, o calçamento da rua principal (Rua Santo Antônio)

aconteceu em 1990 e 1991, possibilitando maior acesso, principalmente para Ouro Branco.

Esse fator permitiu que mercadorias chegassem com maior facilidade e mais crianças

puderam dar seguimento nos estudos, visto que havia apenas uma escola infantil ali. A

chegada do sistema de distribuição de água e luz também é lembrada por ela. Ocorreu no

mesmo período do calçamento pelas ações do prefeito Silvio Maia que é lembrado como um

político que colaborou muito para Itatiaia: “Todo mundo fala do Silvio Maia. Foi prefeito bom”,

lembra um dos entrevistados. “Antes a gente buscava água nas minas, lá embaixo, e era

muito difícil”.

Essas transformações contribuíram para o aumento das técnicas convencionais de alvenaria

nas construções. Mas como se ressalva em um dos depoimentos, mesmo antes da chegada

da água e do asfalto já havia um esforço em usar novas técnicas de construção: “Antigamente

era tudo de pau-a-pique, depois foi melhorando. A brita, que hoje chega pra gente, antes eles

buscavam cascalho, e a gente quebrava aquilo com as marretinhas. Eu mesmo trabalhei

muito quebrando cascalho nas primeiras construções. Só que as primeiras casas de tijolo que

foram construídas a gente penou muito porque não tinha água. A gente tinha que buscar água

na mina. Buscava água nas cabeças das vacas pra poder fazer a massa, pra poder construir

né. Ai depois as coisas foram melhorando, as pessoas foram saindo pra trabalhar. Porque

antigamente era só roça né, o pessoal só plantava, então todo mundo trabalhava só na roça, e

com condição de ir trabalhar fora a qualidade de vida das pessoas foi melhorando”.

Sobre essa memória relacionando o pau-a-pique como tipologia dominante outro entrevistado

diz: “tem um sabido aí, que veio aqui estudar Itatiaia, que diz que tinha 200 casas de pau a

pique, e parece que tinha mesmo porque tem muito alicerce, e tem muito pra todo mundo ver.

E o rapaz disse que tinha mesmo, que maravilha que devia ser, já pensou?”

Certamente a técnica do pau-a-pique era bastante difundida. Primeiramente é bastante

comum que saibam sobre a técnica. Boa parte da comunidade é capaz de descrever os

principais passos do processo de construção e os mais velhos guardam memórias de

algumas construções que participaram. Ademais, é possível observar ruínas de muros em

alguns pontos, tanto no perímetro mais urbanizado quanto nos pontos mais afastados (FIG.3).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

FIGURA 3 – Pontos de vestígios de pau a pique

Fonte: Arquivo pessoal dos autores, 2016.

O abandono da técnica parece ser algo relativamente recente. Uma das moradoras diz: “todas

as casas eram de pau a pique, tirando a de pedra, que e aquela lá em baixo e a biblioteca né.

Fora, o resto era tudo pau a pique”. Sua casa de pau a pique ainda permanece junto à praça

pública do lugarejo (FIG.04).

FIGURA 4 – Exemplares com técnicas de pau a pique

Fonte: Arquivo pessoal dos autores, 2016.

Outra morador procura explicar um dos motivos do abandono dessa tipologia: “Foram caindo,

porque ás vezes o dono falecia né. Ou igual algumas que foram jogadas no chão, mais

recente, pra construir porque não tinha outro lugar de construir e tinha que jogar aquilo que

tava lá antes no chão pra poder tá levantando uma outra e hoje não tem mais nenhuma assim,

das antigas mesmo. A última que tinha é daquele lote vago que tem ali na metade da rua com

a plaquinha de venda coma base de pedra, e acabou jogando no chão... e lá na minha rua

ainda tem uma parede, e ai tão fazendo a construção no fundo e depois que terminar joga no

chão a frente também, derruba. Outras vezes desmanchava pra poder aproveitar as

madeirinhas né, pra queimar no fogão a lenha” (FIG.5).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 5- Transformações na paisagem causadas pela demolição da arquitetura vernacular

Casa de pau a pique antes da demolição, 2014;

Espaço vazio após demolição.

Vestígio de muro de pau a pique

Fonte: Arquivo pessoal dos autores, 2014/2016.

Observa-se a nostalgia presente na narrativa com relação as casas antigas, mas também

uma aceitação tranquila com a introdução da alvenaria. O pau a pique é capaz de trazer à

memória os tempos de infância. Mas esses tempos também são associados a um período

mais sofrido. As casas eram pequenas e a pobreza era maior. A questão da qualidade de vida

está mais acomodada a alvenaria convencional do que ao pau a pique, de forma muito

contraditória: a técnica tradicional é colocada como provedor de maior conforto climático, mas

por outro lado, simbolizam também o primitivismo, o obsoleto e rudimentar.

“Hoje também as pessoas querem uma qualidade de vida... ter uma casa maior, porque as

casas de pau a pique era muito pequenininha, até mesmo pela dificuldade que tinha de buscar

madeira no mato.”, relata uma entrevistada. Enquanto outro morador, que habita uma casa de

pau a pique diz: “Como é fresquinho morar numa casa de barro...”

Os novos exemplares que usam a técnica tradicional são aceitos pela comunidade que

ressalta-os como são símbolos da memória coletiva do distrito, criando o elo com a paisagem

do passado: “O meu sobrinho...ele construiu aquela casa e ficou muito boa. Ah, mas o pessoal

mais novo hoje em dia, os jovens de hoje, não vai querer uma casa de pau a pique pra morar,

você acha?! Não vai querer! Porque dá trabalho né ...é muito difícil. Ele mesmo levou tempo

pra fazer aquela construçãozinha ali. Eu acho muito interessante aquela casa. Combina com a

cidade e da saudade quando vê. Minha sogra também morava numa casa de pau a pique e o

chão dela era tão limpinho. Eles fazia aquele chão batido né. Socava bem a terra e pegava

terra de formigueiro né, e fazia aquele barrozinho e passava por cima da parede, no fogão,

perto do fogão, e ficava aquela coisa lisinha. Porque não tinha material de alvenaria, mas era

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

muito limpinha. Na casa da minha mãe também era assim, eu lembro muito bem e tenho

saudade”, conta uma entrevistada.

Outro depoimento lembra: “todo mundo aqui já teve contato com pau a pique, com certeza.

Era o que se existia nos nossos anos. Eu lembro muito das pessoas construindo com pau a

pique. Aí fazia aqueles mutirão né, pegava água...os homens ficavam por conta de pegar a

terra e amaçar o barro pisado. Se não, não fica na parede né. Porque primeiro trança a

madeira né e faz os quadradinhos né, e pra não gastar muito barro, porque antigamente o

problema era a água né, porque tinha que buscar lá nas minas, e pra ajudar a não gastar tanto

barro eles ia colocando pedra nos buraquinhos e jogava o barro e alisava, e era gostoso

demais. Até a gente fazia, mexia no barro, todo mundo participava. E não era com prego que

amarrava, era com cipó. Era um processo muito gostoso. Eu lembro que a gente saía com o

pai da gente pra buscar o cipó, tinha o cipó próprio né, que falava que era o cipó caboclo, um

cipó avermelhado, e tinha lugar que andava longe pra achar e ia cortando e fazendo rolinho e

fazia um monte pra usar pra amarrar”.

Já outro morador relata de outra forma: “Esse pal aqui é fincado na pedra, faz um corte, fura,

encaixa e faz as madeiras nele. Faz os marcos tudo certinho né...e depois coloca uma linha,

uma travessa, ai depois vem pregando os pal tudo em pé e depois vem com as varinhas e

amarra, com cipó, ou taquara, e depois vem barreando, barreia, barreia, até cobrir tudo”.

Buscando a reaproximação com esse saber, alguns obreiros passaram, recentemente, a

desenvolver a técnica na região e proximidades. O mestre artífice mais popular, de 35 anos,

que teve a iniciativa de recuperar a técnica há doze anos, com 23 anos de idade e conta que

sempre trabalhou com obras, mas com as técnicas mais convencionais. Quando teve a

oportunidade de construir sua própria casa definiu que queria utilizar a técnica do pau a pique,

e como seus companheiros de trabalho também dominavam o processo passaram a trabalhar

com a técnica tradicional. Desde então trabalha com as duas: “a gosto do freguês”.

Sua casa foi a primeira a utilizar a técnica tradicional na região, desde que fora superada com

a chegada da alvenaria no lugarejo, e tornou-se referência para toda a comunidade. Basta

levantar a questão do pau a pique com qualquer morador que logo indicam sua edificação,

sendo um nome essencial para a construção dessa pesquisa. A conversa com o mestre, na

varanda principal da casa, foi interessante. As histórias sobre a construção mostraram como,

para além do saber, o processo envolve sentimentos que afirmam o pertencimento e o zelo

com o objeto.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

O mestre diz que sempre soube fazer o pau a pique: “Aprendi com os meninos daqui. Mas

minha família que mexia com fazer pau a pique na roça né...e a gente vai gostando, acha

brinquedo né, na época era novo pra gente. É brinquedo mexer com barro, com água, e vai

aprendendo. Porque aqui, por exemplo, vamos supor, eu barreei de dentro pra fora, ai quem

ficava aqui fora, porque tem que ir pondo a mão pra poder segurar o barro, um de cada lado.

Aí na hora que você põe a mão, as vezes, o cara do lado de lá fala: – Vou fazer sacanagem

com ele! Jogava o barro, o cara não tava preparado ainda, vinha tudo no rosto da pessoa, ai

era brincadeira. Na parte de barrear era eu e mais um seis. Achava que era brinquedo, ai

falava: – Ah não, vamo lá brincar”.

E sobre o processo e a escolha dos materiais ele relata: “É terra de formigueiro lá do cafezal,

porque não tem pedra né. Aí dá pra amaçar no pé né, e não machuca. Aí essa não precisa de

peneirar. E a madeira diz que não pode tirar tudo de um lugar só. Aí eu fui tirando sortido e fiz.

E pega ela na lua minguante, em maio, junho, que diz que a madeira é boa. Não dá caruncho”.

Já sobre o traço da massa ele conta ter dado um toque diferente: “Eu coloquei grama.

Antigamente era capim gordura e bosta de boi fresca, e até que tem hoje, mas o trabalho que

tem pra cortar e por...Aí eu já tava cortando grama aqui mesmo, aí peguei só pra dar um

enfeite, dar característica. Levou 3 anos pra ficar pronta, mas fazendo só final de semana,

sábado e domingo”.

A casa que não tem reboco externo e apenas parcialmente foi rebocada internamente,

também foi uma escolha dele. “Na parte de dentro, três paredes ficaram sem reboco e fora

quis deixar a vista pra ficar bonito. Ali tem o trançado pra ver como que é” (FIG. 6).

FIGURA 6 – Construção contemporânea de pau a pique

Detalhe da trama e vista da fachadas principal da casa. Fonte: Arquivo pessoal dos autores, 2016.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Sobre a trama, ele lembra: “Tem a opção de deixar mais junto porque aí gasta menos barro,

mas aí gasta mais madeira. E amarra com cipó São João ou taquara. A taquara tem que pôr

na água pra amarrar, porque tem que ficar mais mole e não quebrar, mas aqui na região só um

senhor que mora ali na frente que pode tirar porque ele tem carteirinha e pode tirar, e tem um

limite igual lenha”. Em contato com o citado senhor, no entanto, disse que a taquara á muito

rara na região porque tem um crescimento muito lento e foi amplamente utilizada levando o

material a extinção. Ele disse que trabalhava com o forro de taquara – presente em muitas

casas do distrito – mas que teve que abandonar a prática em função da escassez da matéria.

Finalmente, o mestre apontou os motivos pelos quais acredita que a técnica foi abandonada:

“Fica mais caro. A mão de obra é mais cara porque tem que ser tudo encaixado. E todo mundo

optou pela casa nova, convencional, mais bonita”. Mas prefere a sua: “Eu gosto de morar

assim. É mais confortável, mais aconchegante, Época de calor tá fresquinho lá dentro, de frio

tá aquele calorzinho e casa de tijolo não. E é gosto também né”. Além disso, segundo ele, os

novos moradores, diferente da comunidade nativa, desconhecem que há na região quem

domine a técnica, e por isso, muitas vezes acabam fazendo casas de alvenaria: “Agora eu tô

mexendo numa convencional né, e ela queria fazer uma casa desse jeito, mas não sabia

quem fazia, e acabou comprando os materiais, aí vai ter que ser assim mesmo. Mas tem uma

paulista que chegou agora que já pediu pra fazer de pau-a-pique”.

Outra residente que vive em Itatiaia a seis anos conta que foi atraída para o lugarejo pela

beleza da paisagem natural, pela tranquilidade do distrito e pela simplicidade, mas que

acompanha desde que se mudou um processo acelerado de transformação da paisagem.

Para ela, o distrito tem perdido de forma intensa suas características mais autênticas. As

construções novas, com o revestimentos industriais, contribuem para a perda de identidade

do local. Acredita que não deve demorar para que os poucos exemplares que restam se

percam de vez e restará apenas a matriz e as ruínas como depoentes do que foi um dia o

patrimônio mais bonito do lugar.

5. Considerações finais

A arquitetura vernacular em Itatiaia, sobretudo as edificações de pau a pique, marcam a

memória do espaço, e são exemplares característicos do passado. A substituição pela

arquitetura convencional não parece incomodar a maioria dos moradores. São fruto do

processo de continuidade e absorção do mercado da indústria da construção civil. Alguns

poucos moradores que conservam suas casas com tal tipologia desfrutam de um sentimento

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

de resistência, como orgulhosamente disse um dos entrevistados: “A minha não

desmancharam não...vai ficar pros netos, pra história, vai ficar pra tudo aí. Eu ouvi falar, mas

não tenho certeza não, que aqui tá tombado pelo patrimônio até ali em cima, esse trecho aqui,

porque tá perto da igreja né. E não vai mexer. Vai mexer assim pra dar um retoquezinho, igual

a telha que eu vou fazer capa cangaia, mas derrubar eu não deixo”.

Relato como esse indica que há um grau de conhecimento e informação sobre a relação que

a arquitetura vernacular tem com a questão do patrimônio cultural, e como podem ser

símbolos da paisagem característica que o distrito teve no passado. Ademais a presença da

Matriz, tombada em nível federal, aproxima ainda mais os moradores da questão do

patrimônio.

Vê-se também, ao analisar os processos de manufatura como a relação do homem com a

natureza trabalha de forma respeitosa e sustentável. Por estar inserida na Serra do Itatiaia –

área de reserva ambiental – foi possível notar que há uma grande preocupação em cuidar e

preservar a mata e as nascentes, sem explorar além do necessário ou permitido os materiais

utilizados.

A paisagem cultural, como categoria de preservação do patrimônio, por sua vez, é capaz de

relacionar todas as abordagens as quais a arquitetura vernacular abarca: os processos da

técnica, os métodos de aquisição dos materiais, as narrativas de memória e identidade que

são capazes de oferecer ao distrito, os valores culturais envolvidos, e a leitura das

transformações do espaço. É, sem dúvidas, uma marca do homem na paisagem carregada de

valor. Assim, fica sublinhado a necessidade de valorar os poucos exemplares que restam e

incentivar a continuidade da técnica através dos mestres da região.

Referências

BENEDICT, Ruth. (s/d). A ciência do Costume. In: Ruth BENEDICT. Padrões de Cultura. Lisboa: Ed. Livros de Brasil.

Bragança L., Mateus R. Arquiteura vernacular: uma lição de sustentabilidade. In: Mateus, R.; Fernandes, J.; Bragança, L.; et.al. Livro de Actas: Sustentabilidade na Reabilitação Urbana - o novo paradigma do mercado da construção. IISBE: Portugal, 2011.

IPHAN. Livreto da Paisagem Cultural. 2009. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Livreto_paisagem_cultural.pdf>. Acesso em 19 de outubro de 2015.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

MONTANER, J. M. Depois do movimento moderno: Arquitectura da segunda metade do séc. XX. In: Gustavo Gili, SA.Oliveira, E. V.; Galhano, F. Arquitectura Tradicional Portuguesa. Barcelona Editorial Dom Quixote. Lisboa, 2011.