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Isto não é um livro

Cláudio B. Carlos

selo gueto editorial

poesia anárquica, micronarrativas, fragmentos e afins colcha de retalhos manuscritos descarregada na rede

© Cláudio B. Carlos, 2017 http://balaiodeletras.blogspot.com.br/ Coleção #breves | Livro 5 Selo Gueto Editorial ® 2017 Edição e projeto gráfico Jerome Knoxville Edição e revisão Amanda Sorrentino Contatos https://revistagueto.com https://twitter.com/revistagueto https://www.facebook.com/revistagueto | [email protected] |

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livro cinco ʘ

o sorriso do avô Arthur Foi o primeiro domingo que o avô Arthur passou em nossa casa nova. Foi bom. Brincamos o dia todo. À noite fui ao quarto dar um beijo no vovô. Foi a primeira vez que vi o sorriso dele mergulhado num copo. Chorei.

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anandaiê Havia um bolo sobre a mesa. Redondo e pequeno. Eles cantaram parabéns e eu soprei as velinhas. Mamãe cortou o bolo. A primeira fatia pra mim, a segunda pro papai e a terceira e última pra ela. Papai comeu de pé, escorado na parede de madeira, ao lado da cristaleira, e bebeu cerveja. Mamãe comeu à mesa comigo e tomamos guaraná. Depois eles foram pro quarto e trancaram a porta. Acho que sentiam dor. Gemiam. A dor devia ser muito forte. Se contorciam na cama. Dava pra escutar o ranger das molas do colchão. Eu fiquei sentada olhando pro bolo com as mãos como que em oração, postas no regaço do vestidinho florido. Havia cinco velinhas no bolo. Era março de 1977.

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a concessão Minha concessão pra sorrir se perdeu por anos a fio entre papeladas, nas repartições, à espera de carimbos e rubricas, que agora já não me tem serventia nenhuma: fiquei banguela.

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a desculpa É que o homem-bomba tinha pavio curto.

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o primeiro morto Meu primeiro morto abriu-me os olhos para a vida.

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o louva-a-deus Não gosto do louva-a-deus Me incomoda o fato de que ele parece estar sempre em genuflexão Remete-me a uma teoria minha de que humildade demais é defeito E faz-me lembrar que quase nunca rezo

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para não sujar as mãos Deixou de matar muita gente: por higiene.

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a espera A vela, se esvaindo em lágrimas mornas, pingava cera sobre a mesa. A mãe com panos quentes, o pai com vistas grossas. A espera silenciosa.

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a história da minha vida quase.

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acidente de trabalho Se, por descuido, o torturador matasse o torturado, dar-se-ia um acidente de trabalho?

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deus O sol é ferro em brasa marcando-me as costas arqueadas o ventinho que enverga macegas um sopro és assim o que fere e depois assopra Oprimido entre a manhã e a noite eu na polvadeira do magro chão capinando o eito...

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civilidade Vamos agredir o agressor. Ele precisa aprender ci-vi-li-da-de.

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currículo Sou palhaço de um circo sem graça.

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biografia [1] Beija-flor sem flor.

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sem volta Sabe quando rebenta o cordão do ioiô? Pois então, é assim.

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da agoridade A despreocupação com a brevidade das horas meus dias são a agoridade das coisas

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lição Nem tudo é o que parece, ser.

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biografia [2] Sou verme que sonha goiaba...

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a chama Esse bicho sem aquela chama que chamam amor não anda nem nada...

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a geringonça Deu entrevero de gente. Todos queriam ver o resultado de mais de trinta dias de trabalho. Foi um tal de cavouca daqui, cavouca dali... Homens, mulheres e crianças, de olhos arregalados, formavam um imenso círculo. No centro, um dos engenheiros desatarraxava a cabecinha da geringonça. Eu era guri e fiquei impressionado: como podia caber tanta água dentro daquilo que os doutores chamavam de torneira...

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fragmentos de um poema triste Pra sorrir faltavam dentes Pra chorar sobravam lágrimas Sentado no chão com a cabeça enfiada entre as pernas...

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sobre a circunstância e seus muitos apelidos no cu do mundo, no oco da boca banguela da magra terra (a loba faminta que a todos engole), plantaram o zé, que a vida apelidou ninguém e que o tempo chamará lembrança. ficaram: maria, que a morte apelidou viúva, que a viuvez apelidou coitada, e as gurias, que a situação apelidou putas.

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a primeira perda Quando, naquela noite, o pai entrou no rancho com o filhotinho dentro duma caixa de sapatos, não era apenas um cusco que me dava: era minha primeira perda, três meses depois...

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corrente Um forte elo entre ela e ele.

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o bicho como se chama esse bicho? deus. come muito? depende de você. de que tamanho ele fica? do tamanho da gaiola que você destinar a ele. e se eu deixá-lo livre? será o diabo.

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dionísio Quando não está bêbado é um porre.

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temporais Nunca abro portas e janelas para que a tempestade não me pegue desprevenido Foram tantos os temporais que aprendi a ver o mundo por frinchas

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biografia [3] Faca na bota.

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Cláudio B. Carlos é poeta da nulidade, filósofo do nada, cantor de cabaré, patafísico e editor de livros marginais. Nasceu em 22 de janeiro de 1971, em São Sepé, RS. Tem diversos livros publicados.

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este projeto digital é destinado a correr livre na rede levando versos, antiversos, protoversos, metaversos e multiversos para o reviramento do mundo