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123 Revista Ecos vol.15, Ano X, n° 02 (2013) ISSN: 2316-3933 ANTONIO CARLOS NÓBREGA EM SEU LUNÁRIO PÉRPETUO: UM OLHAR INTERMIDIÁTICO Luís Adriano Mendes Costa 1 Resumo: No ano de 2002, quando estreou o espetáculo Lunário Perpétuo, o músico pernambucano Antonio Carlos Nóbrega chegou à marca de trinta anos de convívio com a cultura popular. O título do disco e de uma de suas canções é versão abreviada do livro que circulou no Nordeste brasileiro até meados do século passado: Lunário e Prognóstico Perpétuo para Todos os Reinos e Províncias, de autoria do valenciano Jerônimo Cortez, cuja primeira edição remonta aos anos 1703. Tomando como base os estudos em torno da teoria da intermidialidade, essas obras são aqui percebidas enquanto mídias que se apresentam de forma articulada, numa relação a ser decifrada entre códigos abertos, multiplicados através dos tempos. Nesse sentido, este artigo busca ampliar a reflexão em torno da obra do artista Antonio Nóbrega, personagem importante na cena cultural brasileira nos seus mais de quarenta anos dedicados ao convívio com a cultura popular, além de possibilitar um mapeamento em torno da rearticulação da tradição e unidade cultural do seu trabalho. Palavras-chave: Antonio Carlos Nóbrega; Lunário Perpétuo; Intermidialidade; Rearticulação da tradição; Cultura popular. Abstract: In 2002, when it was the premiere of the spectacle Perpetual Lunar Calendar, the musician, from Pernambuco, Antonio Carlos Nóbrega reached the mark of thirty years of living with popular culture. The disc title and one of his songs‟ title is an abbreviated version of the book which circulated in the Brazilian Northeast by the middle of the last century: Perpetual Lunar Calendar and Prognosis for All Kingdoms and Provinces, authored by Valencian Jerônimo Cortez, whose first edition dates back to 1703. Based on the studies around the theory of intermediality, these works are perceived here as media that presents itself in an articulated way, a relationship to be deciphered between open codes, multiplied over time. In this sense, this article seeks to broaden the reflection on the work of the artist Antonio Nóbrega, major character in the Brazilian cultural scene in his more than forty years spent living with popular culture, besides enabling a mapping around the rearticulation of cultural tradition and unity of his work. Keywords: Antonio Carlos Nóbrega; Perpetual Lunar Calendar; Intermediality; Re- articulation of tradition; Popular Culture. Quando estreou o espetáculo Lunário Perpétuo em 2002, o músico pernambucano Antonio Carlos Nóbrega chegou à marca de trinta anos de convívio com a cultura popular. O título do disco e de uma de suas canções é versão abreviada do livro que circulou no Nordeste brasileiro até meados 1 doutorando em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB).

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Page 1: ISSN: 2316-3933 ANTONIO CARLOS NÓBREGA EM SEU LUNÁRIO … · 2013-12-04 · essa nomenclatura foi o Almanach Perpetuum, em 1496, pelo astrólogo judeu Abraham Zacuto. Segundo Almeida

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Revista Ecos vol.15, Ano X, n° 02 (2013)

ISSN: 2316-3933

ANTONIO CARLOS NÓBREGA EM SEU LUNÁRIO PÉRPETUO:

UM OLHAR INTERMIDIÁTICO

Luís Adriano Mendes Costa1

Resumo: No ano de 2002, quando estreou o espetáculo Lunário Perpétuo, o músico

pernambucano Antonio Carlos Nóbrega chegou à marca de trinta anos de convívio com a

cultura popular. O título do disco e de uma de suas canções é versão abreviada do livro que

circulou no Nordeste brasileiro até meados do século passado: Lunário e Prognóstico

Perpétuo para Todos os Reinos e Províncias, de autoria do valenciano Jerônimo Cortez,

cuja primeira edição remonta aos anos 1703. Tomando como base os estudos em torno da

teoria da intermidialidade, essas obras são aqui percebidas enquanto mídias que se

apresentam de forma articulada, numa relação a ser decifrada entre códigos abertos,

multiplicados através dos tempos. Nesse sentido, este artigo busca ampliar a reflexão em

torno da obra do artista Antonio Nóbrega, personagem importante na cena cultural

brasileira nos seus mais de quarenta anos dedicados ao convívio com a cultura popular,

além de possibilitar um mapeamento em torno da rearticulação da tradição e unidade

cultural do seu trabalho.

Palavras-chave: Antonio Carlos Nóbrega; Lunário Perpétuo; Intermidialidade;

Rearticulação da tradição; Cultura popular.

Abstract: In 2002, when it was the premiere of the spectacle Perpetual Lunar Calendar,

the musician, from Pernambuco, Antonio Carlos Nóbrega reached the mark of thirty years

of living with popular culture. The disc title and one of his songs‟ title is an abbreviated

version of the book which circulated in the Brazilian Northeast by the middle of the last

century: Perpetual Lunar Calendar and Prognosis for All Kingdoms and Provinces,

authored by Valencian Jerônimo Cortez, whose first edition dates back to 1703. Based on

the studies around the theory of intermediality, these works are perceived here as media that

presents itself in an articulated way, a relationship to be deciphered between open codes,

multiplied over time. In this sense, this article seeks to broaden the reflection on the work

of the artist Antonio Nóbrega, major character in the Brazilian cultural scene in his more

than forty years spent living with popular culture, besides enabling a mapping around the

rearticulation of cultural tradition and unity of his work.

Keywords: Antonio Carlos Nóbrega; Perpetual Lunar Calendar; Intermediality; Re-

articulation of tradition; Popular Culture.

Quando estreou o espetáculo Lunário Perpétuo em 2002, o músico

pernambucano Antonio Carlos Nóbrega chegou à marca de trinta anos de

convívio com a cultura popular. O título do disco e de uma de suas canções

é versão abreviada do livro que circulou no Nordeste brasileiro até meados

1 doutorando em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB).

Page 2: ISSN: 2316-3933 ANTONIO CARLOS NÓBREGA EM SEU LUNÁRIO … · 2013-12-04 · essa nomenclatura foi o Almanach Perpetuum, em 1496, pelo astrólogo judeu Abraham Zacuto. Segundo Almeida

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do século passado: Lunário e Prognóstico Perpétuo para Todos os Reinos e

Províncias, de autoria do valenciano Jerônimo Cortez, cuja primeira edição

em língua portuguesa remonta aos anos 1703. Nesse espetáculo, os temas

cancioneiro, romanceiro tradicional e a música para rabeca e violino são

explorados de forma intensa e dividem espaço com os frevos e com as

figuras incorporadas pelo artista. Assim como em outros trabalhos, Nóbrega

cria em Lunário Perpétuo um constante diálogo entre universos distintos: o

festivo e o rígido, o dramático e o lírico, o sóbrio e o desparato, o

espalhafatoso e o sagrado, caracterizando assim um processo de

comunicação constante entre personagens de temperamentos opostos,

criados pelo artista a partir de tipos populares.

Tendo por base os estudos em torno da teoria da intermidialidade a

partir das perspectivas de alguns estudiosos como Clüver (2006) e Rajewsky

(2005), pensada enquanto encontro entre elementos diversos, que, reunidos,

produzem novas configurações, ampliando seus significados, o presente

artigo tem como objetivo analisar as configurações intermidiáticas que se

estabelecem a partir da obra Lunário Perpétuo. Dessa forma, seguindo o

proposto pela autora Rajewsky (2005), temos a obra Lunário e Prognóstico

Perpétuo para Todos os Reinos e Províncias, de Jerónimo Cortêz, percebida

aqui enquanto texto-fonte; e a letra da música Lunário Perpétuo, do artista

Antonio Carlos Nóbrega, presente no disco homônimo, tomado enquanto

texto-alvo.

Seguindo os pressupostos da abordagem intermidiática, essas obras

são entendidas enquanto mídias, e se apresentam articuladas, numa relação a

ser decifrada entre códigos abertos, multiplicados através dos tempos. Ao

lançarmos mão dessa abordagem, aspectos outros vão emergir,

possibilitando novos olhares a partir de um debruçar atento aos detalhes,

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proporcionando assim um sentido maior ao conjunto da obra, uma vez que

essas inferências não acabam nos limites de cada parte analisada, antes

disso, compreendem novas perspectivas que vão influenciar no sentido

maior da obra. Reunidos, esses aspectos apontam para uma maior

compreensão em torno da atuação do artista Antonio Carlos Nóbrega,

personagem importante na cena cultural brasileira nos seus mais de quarenta

anos dedicados ao convívio com a cultura popular, além de possibilitar um

mapeamento em torno da rearticulação da tradição e unidade cultural que

seu trabalho expressa.

Intermidialidade: por uma perspectiva de abordagem

O grande número de publicações interdisciplinares e congressos

dedicados aos estudos intermidiáticos caminham no sentido de

esclarecimento e diferenciação entre as diversas abordagens de pesquisas

quanto às configurações intermidiáticas, o que pode ser percebido a partir de

uma rápida verificação quanto ao reconhecimento internacional da teoria.

Muito além de pensar a intermidialidade enquanto uma teoria

unificada, o que seria um caminho sem volta diante dos contornos

rizomáticos que se formam tendo em vista as abordagens diversas, estudos

variados têm provocado uma proliferação não somente de conceitos, mas do

modo em que o termo tem sido aplicado. Recompensador por um lado, uma

vez que aponta para a diversidade em torno da teoria, essa profusão de

conceitos pode também ser motivo de falta de clareza, de labirintos que

podem levar a incompreensão ou não entendimento.

Diante desse cenário abreviado em torno de alguns aspectos

problemáticos que cercam o uso da teoria da intermidialidade é que o

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presente trabalho se apresenta, numa sequência de estudos, numa tentativa

de apresentar mais especificamente em que medida será feito uso da

abordagem intermidiática. Como uma bússola para orientar viajantes para os

lugares mais variados, sejam eles de primeira viagem ou os mais

experientes, pretendemos apontar um mapa norteador diante do contexto

plural em que os estudos em torno da intermidialidade se formam.

Faz-se necessário, portanto, trazer para a sequência das ideias que

serão apresentadas o entendimento de intermidialidade à luz da autora Irina

Rajewsky (2005, p.4), que propõe o intermidiático enquanto “aquelas

configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as

mídias”. Nesse sentido, a autora propõe o uso da intermidialidade como

categoria para a descrição e análise dos fenômenos para que, agrupados, tais

aspectos possam ser percebidos de maneira distinta.

Centrada nas configurações midiáticas concretas e nas qualidades

intermidiáticas específicas, Rajewsky (2005) entende que essas qualidades

se modificam entre os diversos grupos, de modo que passam a exigir outras

concepções mais restritas de intermidialidade. Em certa medida, ao reduzir

essas abordagens, a autora amplia as alternativas analíticas em torno da

teoria ao propor três subcategorias: a) transposição midiática, relacionada

ao modo de criação de um produto, ou seja, com a transformação desse

produto de mídia em outra mídia; b) combinação de mídias, qualidade essa

que permite a combinação de pelo menos duas mídias convencionalmente

distintas; c) referências intermidiáticas, num sentido mais restrito essa

concepção de intermidialidade compreende estratégias de constituir sentido

que proporcionam a significação total do produto, buscando referências de

uma mídia em outra.

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Seguindo na esteira dos estudos intermidiáticos, para tratar do texto

Lunário Perpétuo ressaltamos as proposições de Rajewsky (2005) ao

abordar a intermidialidade numa direção sincrônica, sem deixar de lançar

mão do aspecto histórico. Sincrônico, nesse sentido, por verificar e abordar

um olhar em torno de uma manifestação de intermidialidade, estabelecendo

suas especificidades. Quanto ao aspecto da historicidade, segundo Rajewsky

(2005, p. 8), passa a ser relevante em sentidos diversos, seja

em relação à historicidade de uma configuração

intermidiática particular, em relação ao

desenvolvimento (técnico) das mídias em questão,

em relação às concepções historicamente mutantes

das artes e mídias por parte dos receptores e dos

usuários das mídias e, finalmente, em relação à

funcionalização das estratégias intermidiáticas

dentro de um determinado produto de mídia.

Nesse sentido específico, a proposta ora apresentada focaliza a

intermidialidade enquanto elemento analítico concreto para textos ou tipos

outros de produtos midiáticos. (RAJEWSKY, 2005) Tais questões serão

alteradas de acordo com os diferentes grupos de fenômenos, exigindo

olhares diversos e mais restritos da intermidialidade.

Para o presente trabalho percebemos a intermidialidade num

sentido mais restrito, o de referências intermidiáticas, o que se caracteriza

como uma subcategoria nos dizeres de Rajewsky (2005). Segundo ela,

as referências intermidiáticas devem então ser

compreendidas como estratégias de constituição de

sentido que contribuem para a significação total do

produto: este usa seus próprios meios, seja para se

referir a uma obra individual específica produzida

em outra mídia [...], seja para se referir a um

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subsistema midiático específico [...], ou a outra

mídia enquanto sistema [...]. Esse produto, então, se

constitui parcial ou totalmente em relação à obra,

sistema, ou subsistema a que se refere. [...] Em vez

de combinarmos diferentes formas de articulação de

mídias, esse produto de mídia tematiza, evoca ou

imita elementos ou estruturas de outra mídia, que é

convencionalmente percebida como distinta, através

do uso de seus próprios meios específicos.

(RAJEWSKY, 2005, p. 10-11)

Ao lançarmos mão dessa abordagem, perspectivas são ampliadas a

partir de um debruçar atento aos detalhes, que inicialmente são reduzidos

para, num segundo momento, serem ampliados, proporcionando um sentido

maior ao conjunto da obra, uma vez que essas inferências não acabam nos

limites de cada parte analisada. Antes disso, compreendem novas

perspectivas que vão influenciar no sentido maior da obra.

Ao fazer uso da sub-categoria referências intermidiáticas,

focalizamos nas referências intramidiáticas, uma vez que tratamos de uma

obra que permanece numa mesma mídia, nesse caso, o texto literário. Muito

embora possamos perceber outros aspectos na música Lunário Perpétuo,

trazendo para nosso estudo um olhar complementar que se forma a partir do

processo de referências intermidiáticas, uma vez que implicam um

cruzamento das fronteiras das mídias, gerando uma diferença intermidiática.

Lunário Perpétuo em sua origem

A origem do Lunário Perpétuo remonta ao século XV, quando

algumas publicações chamadas de almanaques passaram a se popularizar,

recebendo o nome de calendários, lunários ou prognósticos. Szesz (2008)

considera que o primeiro almanaque publicado na Península Ibérica com

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essa nomenclatura foi o Almanach Perpetuum, em 1496, pelo astrólogo

judeu Abraham Zacuto.

Segundo Almeida (2012), muitas dessas publicações encontraram

suas origens nos antigos almanaques astrológicos manuscritos da Idade

Média, publicações que foram ganhando em número e versões a partir do

advento da imprensa. Dentre esses almanaques destaca-se o Lunário

Perpétuo, do astrólogo valenciano Gerónimo Cortés (1555 - 1615),

publicado na Espanha em 1594 com o título “Lunario perpetuo, el cual

contiene los llenos y conjunciones perpetuas de la Luna, declarando si seran

de tarde o de mañana, con la pronosticacion natural y general de los

tiempos”. (ALMEIDA, 2012)

A obra teria tido sua primeira tradução para o português no ano de

1703, em Lisboa, sendo editado com o título “O Non Plus Ultra do Lunário

e Prognóstico Perpétuo, Geral e Particular para Todos os Reinos e

Províncias” (SIMAS, 2013), de autoria do mesmo autor espanhol, tendo seu

nome dessa vez escrito com “J” ao invés do “G” original. Desse modo, o

Lunário atravessou o Atlântico e já nos séculos XVIII, XIX e na primeira

metade do século XX, encontrou nos espaços rurais brasileiros o ambiente

propício para se perpetuar ao longo dos tempos.

A palavra „lunário‟ seria relacionada a um calendário que divide o

tempo através das fases da lua. Já a expressão „perpétuo‟, por sua vez, diz

respeito ao pensamento de que os prognósticos relatados na obra seriam

eternos para todos os reinos e províncias. (MIRANDA, 2013). Nesse

sentido, vale destacar o uso diversificado desse tipo de almanaque,

conforme Medeiros Filho & Faria (apud ALMEIDA, 2012, p. 4-5):

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O Lunário contava o ano por luas. Começa tratando das

divisões do tempo e do mundo. Mostra a importância dos

quatro elementos e dos astros (signos, planetas, sol e lua). Dá

ensinamentos sobre plantas, árvores, animais, e sobre a vida

dos homens e dos povos em cada mês, e sobre todos os

planetas. Fala dos quatro humores do corpo. Dá atenção

especial às idades da lua, suas conjunções com os signos do

zodíaco e seus efeitos sobre o mar e sobre a produção dos

mantimentos. Explica o que os signos têm a ver com o destino

dos homens e das mulheres. Fala dos eclipses. Faz

prognósticos sobre o tempo para todo sempre. Dá orientações

práticas sobre purgas, sangrias e aplicação de ventosas. Dá

explicações sobre saúde e doenças. Relata sinais de peste, de

terremotos, de carestia; sinais de chuva, vento e seca. Ensina

muitos remédios. Dedica algumas páginas ao Responso de S.

Antônio e ao Agnus-Dei. O Lunário já foi muito usado no

Brasil. Ainda se encontram exemplares do lunário entre o povo.

Foi o livro mais lido nos sertões do nordeste durante uns

duzentos anos. Era um dos livros mestres para os cantadores

populares, na parte que eles denominavam „ciência‟ ou „cantar

teoria‟ gramática, história, doutrina cristã. É responsável por

muitas frases curiosas, ditas pelo sertanejo, e que provém de

clássicos dos séculos XVI ou XVIII. O Lunário tinha para o

sertanejo a força das „escrituras santas‟.

As edições dos lunários eram anuais, sendo atualizadas com muita

frequência a partir dos avanços científicos, considerando ainda as datas das

„festas mudáveis‟ que não se faziam em datas fixas no calendário anual.

Dessa forma, o livro teve ao longo dos anos suas edições subsequentes

atualizadas e ajustadas, retirando alguns equívocos e absurdos verificados

posteriormente. É o que diz o texto “Advertência aos leitores”, de Antônio

Coutinho, no que parece ser uma das suas últimas edições da obra de

Jerônimo Cortez (s.d., p. 5-6):

O Lunário Perpétuo, impresso pela primeira vez há mais de

duzentos anos, estava sendo um livro quase inútil para os

desejosos de fazerem a computação dos tempos com acerto e

exactidão. Os cálculos das luas novas e conjunções, cheias ou

oposições e quartos crescentes ou minguantes, contidos no

Áureo número ou Ciclo lunar do velho LUNÁRIO, andavam

tão afastados da verdade, que víamos realizarem-se as fases do

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astro da noite em dias, horas, signos e graus diversos dos

indicados por ele; resultava disto que as pessoas que se

guiavam pelo seu cômputo, erravam a um tempo as luas e as

festas mudáveis, colocando-as muitos dias antes ou depois

daqueles em que elas deviam ter lugar. Além dos erros

apontados notavam-se muitas faltas no velho LUNÁRIO, entre

as quais mencionarei a Epacta, que tanto ensina a idade da Lua,

quando entra cada um ano, e a quantos de cada mês ela deve

ser nova, como indica os dias em que a Santa Madre Igreja

estabelece as festas móveis; o Ciclo solar; as Letras do

martirológio; a Indicção romana; e as festas fixas – coisas

essenciais e necessárias para esclarecer e facilitar a computação

dos tempos, assim na ordem civil como na religiosa. Enfim,

não só as faltas referidas vão preenchidas, mas também os

erros e absurdos, que se notavam no velho LUNÁRIO, foram

emendados ou expurgados desta edição, que, além disso, vai

acrescentada de muitas coisas, tanto para utilidade como

recreio dos leitores e satisfação de quem as escreveu.

Ao longo dos anos as versões foram, portanto, sofrendo mudanças,

alterações diante de temas diversos e curiosos, desde prognósticos

meteorológicos até remédios caseiros, além de assuntos vários, como

horóscopos, doutrinas, dicas culinárias, jogos de cartas e jogos enigmáticos

com as mesmas cartas; adivinhações, conselhos veterinários, nomes de

estrelas, informações sobre os planetas, práticas agrícolas, entre outros

assuntos vários.

Muito do que se publicou na versão original de 1594 se perdeu,

fosse por uma adequação num processo de evolução das práticas e saberes,

fosse por interferência da “Santa Inquisição”, a exemplo do que acontece

com a edição de 1707, como afirma Almeida (2012). Segundo o Sarrión

Mora (apud ALMEIDA, 2012, p. 41), a edição espanhola do Lunário de

1768 passou por um expurgo feito pela Inquisição, de forma que no ano de

1707, um dos seus pontos acabou censurado, o qual “recomendava defumar-

se a casa com „romero‟ para afastar os „espíritos imundos‟”. O autor destaca

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que nas edições posteriores (1768, 1823, 1859 e na edição portuguesa de

1912) os usos do “romero” e de outras ervas foram excluídos.

Outras informações foram extraídas ao longo dos anos. Na edição

de 1906, por exemplo, o livro ensinava uma simpatia para se conquistar a

pessoa amada:

Leva-se um coração de boi, inteiro e cru, até o cruzeiro das

almas de um cemitério. Ao cair da noite, o coração deve ser

envolto em pano virgem e enterrado ao lado de alguma tumba

próxima ao cruzeiro. Após o terceiro dia, o coração deve ser

desenterrado; logo após deve-se pronunciar três vezes a

seguinte frase: - O coração de fulano (nome da pessoa) será

eternamente meu, como este coração de boi será agora. Feito

isso, o coração deve ser inteiramente comido, da forma como

estava ao ser desenterrado. É a garantia do amor eterno.

(SIMAS, 2013)

Não menos curioso é o que consta numa outra edição do mesmo livro, de

1921, no que seria uma orientação médica, como relata a escritora cearense

Ana Miranda (2013):

Para tirar qualquer bicho que tenha entrado no

corpo. Quando o bicho ou cobra entrar no corpo de

alguma pessoa, que estiver dormindo, o melhor

remédio é tomar o fumo de solas de sapatos velhos,

pela boca, por um funil, e o bicho sairá pela parte de

baixo: coisa experimentada.

Segundo Szesz (2008), foram muitos os almanaques que circularam

no Nordeste brasileiro. É o caso do “Almanaque de Pernambuco”, de autoria

de João Ferreira de Lima, lançado em 1936, tendo circulado até 1979; além das

publicações “Almanaque do Nordeste Brasileiro”, de Manoel dos Santos;

“Almanaque o Juízo do Ano”, de Manoel Caboclo e Silva; “Calendário

Brasileiro”, de José Costa Leite; “Almanaque do Nordeste”, de Vicente

Vitorino Melo; e o “Almanaque do Cariri”.

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Os lunários foram, portanto, sendo atualizados, acrescentados,

cumprindo a função de informar ao público em geral, leitores e não leitores,

que garantiam os conhecimentos adquiridos através desses livros que

circulavam na região e eram reproduzidos oralmente nas suas comunidades,

de modo que as informações eram repassadas e, assim, mantidas através dos

tempos.

Antonio Carlos Nóbrega e seu encontro com a cultura popular

Filho de classe média, Antonio Carlos Nóbrega, nascido em Recife,

no ano de 1952, teve sua infância em várias cidades do interior

pernambucano, mas, curiosamente, só veio ter contato com o imaginário que

seu trabalho expressa aos 12 anos de idade, quando numa viagem com o seu

pai à cidade de Patos, no Sertão paraibano, teve a oportunidade de escutar,

pela primeira vez, um cantador.

Mas, foi na Escola de Belas-Artes, em Recife, com o professor

catalão Luis Soler, que Nóbrega teve sua formação de violonista

solidificada. Já no final dos anos 60 participava da Orquestra de Câmara da

Paraíba e da Orquestra Sinfônica do Recife. Seu ingresso no mundo

armorialistai deu-se em 1972 quando, tocando um concerto de violino de

Bach, com a orquestra sinfônica, conheceu Suassuna. Convidado pelo

precursor do Movimento Armorial a integrar o Quinteto por ele criado, o

jovem de 18 anos, que já tinha uma formação musical cristalizada

(SUASSUNA, 2002, p. 20), passou do violino para a rabeca e mergulhou no

rico universo da cultura popular, que nem lhe havia sido ensinado nas

escolas de música nem muito menos apresentado através do rádio.

Seu primeiro contato com a rabeca foi com um tocador do Ceará

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chamado Cego Oliveira. Com a aproximação com essa música passou a

freqüentar grupos de artistas que estavam mais próximos de Recife e foi aí

que conheceu, por exemplo, o Boi Misterioso de Afogados, do Capitão

Antônio Pereira, figura já estudada por vários pesquisadores brasileiros,

como Ariano Suassuna, Ascenso Ferreira e Hermilo Borba Filho.

Aos poucos, Nóbrega ia tomando conhecimento do rico universo da

cultura popular. Foi assim que teve contato com o grande passista de frevo,

Nascimento do Passo, passando a acompanhar suas aulas de dança;

conheceu também os Caboclinhos, que são grupos de espetáculos populares

de reminiscências indígenas; fez amizade com os mestres e brincantes,

aprendendo suas danças e seus toques; entre outras várias manifestações que

passaram a enriquecer o trabalho do artista.

A partir de sua entrada para o Quinteto Armorialii, Nóbrega passou

a desenvolver seus próprios projetos, fundando inicialmente o Boi Castanho

Reino do Meio-Dia, seguido dos espetáculos Bandeira do Divino (marco da

sua estreia como teatrólogo) e Mateus rabequeiro mágico e professor

(1976). Ambos os espetáculos traziam toda a bagagem proposta pelo

Movimento Armorial, introduzindo elementos do nosso espetáculo popular.

Nesse sentido, a boneca Minervina se funde, ao mesmo tempo, com o

espírito de figuras de bumba-meu-boi como a Caterine, com mamulengos

nordestinos, que aí já tem uma relação com os bonecos ventríloquos

populares, como é o caso do Benedito, bastante conhecido nas feiras e pátios

de mercados do Nordeste. Ou seja, elementos pertencentes ao popular que

dialogam com elementos eruditos, a exemplo do mamulengo, que remonta a

um tempo imemorável e consta em quase todos os países civilizados, com

sua temática e sua representação vinda dos Autos Medievais. O mamulengo

chegou ao Brasil via Portugal, no tempo do vice-reinado (séc. XVIII). É

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assim também com o bumba-meu-boi, que é uma rememoração das

Tourinhas portuguesas, brincadas com bois simulados, sem dança e sem

música. No caso da Minervina, trata-se de um romance de origem ibérica,

que chegou ao Brasil no século XVII e, ainda hoje, é encontrado na região

nordestina. (COSTA, 2011)

Já em 1981, veio a criação de A arte da cantoria, projeto pautado

na encenação e interpretação brasileiras a partir da cantoria de repente e dos

espetáculos populares. (CADENGUE, 1999). Daí em diante, seguia-se uma

sequência de espetáculos que confirmavam toda a estética de criação das

artes armoriais: O Maracatu misterioso (1982), Mateus Presepeiro (1985),

O Reino do Meio-Dia – A dança das onças (1989) e Figural (1990). Nesse

último espetáculo, Nóbrega chamou a atenção da crítica ao expor suas

facetas de cantor, dançarino, instrumentista, ator, mímico (pantomima),

bonequeiro e malabarista. Foi também em Figural que surgiu Tonheta,

personagem criado por Nóbrega a partir do velho “Faceta”, palhaço

animador do pastoril profano, presente nos espetáculos populares do

Nordeste e figura frequente nos vários espetáculos de Nóbrega, sendo seu

personagem brincante fixo. (COSTA, 2011).

Essa proposta estética teve continuidade em Arlequim (1991),

Brincante, Romance e Circorama (1992), e Segundas Histórias (1994);

além de seus espetáculos recitais: Na pancada do ganzá (1995), Madeira

que cupim não rói (1997), Pernambuco falando para o mundo (1998), O

Marco do Meio-Dia (2000), Lunário Perpétuo (2002), e os dois volumes do

seu Nove de Frevereiro (2006).

Nesse período, o artista ainda apresentou outros dois trabalhos: em

1998, a aula espetáculo Sol a Pino e, no ano de 1999, o espetáculo

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Pernambouc, exibido no Festival D‟Avignon, na França. Já entre os anos de

2008 e 2010, Nóbrega criou os espetáculos Passo e Naturalmente. Também

em 2010, estreou o espetáculo Minha Festa, oportunidade em que voltou a

trabalhar na união da música, canto e dança. Em 2011, o artista deu

continuidade a essa concepção de espetáculo ao apresentar Matria.

Recentemente, em comemoração ao centenário de Luiz Gonzaga, Nóbrega

fez mais uma incursão musical com o espetáculo Lua (2012), interpretando

clássicos e músicas menos difundidas de Gonzaga. Já em 2013, Nóbrega

inaugura um novo momento na sua carreira ao criar a Companhia Antonio

Nóbrega de Dança, com a qual estreia o espetáculo Humos no mês de maio

desse ano, em São Paulo, no teatro do Ibirapuera.

Lunário Perpétuo: um olhar intermidiático

Para efeito de apresentação dos procedimentos utilizados na análise

a partir da perspectiva intermidiática, lançamos mão do livro Lunário e

Prognóstico Perpétuo para Todos os Reinos e Províncias, de Jerónimo

Cortêz, aqui tomado enquanto texto-fonte (RAJEWSKY, 2005). Nesse

sentido, tomamos como texto-alvo (RAJEWSKY, 2005) a letra da música

Lunário Perpétuo, de autoria de Antonio Nóbrega, presente no disco de

mesmo nome. Ou seja, o texto “original” é fonte para o novo texto, o texto-

alvo.

Tais questões foram ampliadas ainda a partir do levantamento de

dois dos elementos identificadores dos estilos na música: instrumentação e

ritmo. Inicialmente, foi observada a configuração instrumental presente na

música Lunário Perpétuo a partir da organologiaiii

. Para isso, dividimos os

instrumentos nas categorias: metais e madeiras (aerofones), cordas

(cordofones), e percussão (idiofones de altura indefinida). Os aerofones são

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os instrumentos cujos sons são extraídos através do ar; os cordofones têm

seus sons extraídos através de cordas; e os idiofones são aos instrumentos

percussivos. A partir daí, foi verificada a utilização desses instrumentos

dentro da execução da música.

No caso da versão tomada aqui como texto-alvo, composta por

Antonio Nóbrega e dois dos seus parceiros mais frequentes, Wilson Freire e

Bráulio Tavares, tem na sua letra a representatividade e utilidade do livro

notadamente associado ao contexto popular, fazendo referência ao

significado do livro que se espalhou no Nordeste brasileiro, encontrando

nesse espaço geográfico um solo fértil para germinar seus ensinamentos

junto ao contexto popular da nossa cultura.

Meu Lunário tem antigas

alquimias de almanaque.

Já enfrentou intempéries,

roubos, incêndios e saques:

dos homens, das traças, das garras das eras.

Carrega segredos, decifra quimeras,

venceu todos os ataques.

O meu Lunário Perpétuo

sob o sol é luzidio.

Meu Lunário foi forjado

num fogo de desafio,

que vibra, esquenta, atiça, aperreia,

faísca, enlouquece, que pega na veia.

Pelos séculos a fio.

...

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O trecho que abre a música aponta inicialmente para a permanência

do almanaque frente ao tempo, às intempéries, roubos, incêndios e saques,

resistindo aos tempos, ou mesmo ao chamado “Tribunal da Santa

Inquisição”, como conta a história em torno do livro Lunário Perpétuo. É o

almanaque também uma referência da época a procedimentos, receitas

diversas e uso de alimentos adequados para a cura de alguns males, como

inflamações diversas, feridas, problemas dentários, gripes e resfriados, para

ficar somente em algumas das suas indicações. Ou, ainda, temas como o

melhor período para plantio, fases da lua, natureza dos ventos, mapa dos

signos e informações de toda a espécie sobre a natureza, do universo aos

planetas e da lua aos trovões.

[...]

O meu Lunário Perpétuo

guarda as vozes seculares

do profeta de Canudos

e do Mártir dos Palmares,

sonhando com o reino do Espírito Santo

na terra, no céu, em todo recanto.

Nos terreiros e altares.

O meu Lunário Perpétuo

é meu livro precioso,

minha Cartilha primeira,

minha Bíblia de Trancoso.

João Grilo, Chicó, Malazartes, Mateus,

os órfãos da terra, os filhos de Deus,

heróis do Maravilhoso.

[...]

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No que se refere ao primeiro trecho transcrito acima, percebemos a

temática “reino” que se destaca como um aspecto que ganha contornos

diferentes uma vez associado ao contexto popular. Tal aspecto caracteriza-se

como uma herança do romanceiro popular nordestino, já que a temática

“reino” encontra uma forte ligação com a tradição popular. “Nos folhetos de

cordel, as fazendas são quase sempre reinos, e os fazendeiros são reis,

condes, duques ou barões. Suas filhas são princesas, e os vaqueiros e

cangaceiros são quase sempre os cavaleiros desses reinos imaginados pelos

poetas populares” (NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 210).

No segundo trecho, verifica-se o Lunário como sendo o primeiro

livro, o de cabeceira, a “Cartilha primeira”, a “Bíblia de Trancoso” por seu

conteúdo pertencente ao universo do real e do fantástico. Faz referência

ainda aos personagens João Grilo, Chicó, Malazartes e Mateus como sendo

“órfãos da terra, os filhos de Deus, heróis do Maravilhoso.” Tais

personagens carregam em si traços populares. Entendidos como pícarosiv

,

esses personagens seguem uma linhagem que tem origem na segunda

metade do século XVI e a primeira do XVII na Espanha (COSTA, 2011), se

caracterizando como um processo de recorrência de histórias e casos que

foram sendo passados para as mais diversas culturas, chegando até o

Nordeste brasileiro.

São exemplos clássicos desses personagens o Arlequim, da

Commedia dell‟Arte européia; o Pedro Malazarte, talvez entendido como o

herói espertalhão mais conhecido e que na Península Ibérica tinha o nome

de Pedro Urdemalas; o Lazarillo de Tormes, famoso por guiar cegos; do

Cancão de Fogo, dos folhetos de Leandro Gomes de Barros; o “Sabido Sem

Estudo”, de Manoel Camilo dos Santos (SUASSUNA apud BITTER, 2000);

chegando mais recentemente até o personagem Tonheta, de Antonio Carlos

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Nóbrega; o Trupizupe, o Raio da Silibrina, de Bráulio Tavares; e o Zé

Cangaia, da obra Hoje é dia de Maria, de Carlos Alberto Soffredini, que

ganhou o país sob a direção de Luiz Fernando Carvalho. Na trama, o Zé

Cangaia, interpretado pelo ator Gero Camilo, é apresentado como um sujeito

tolo, ingênuo, que vê o mundo com olhos lúdicos e inconsequentes de uma

criança. Vive num vilarejo e consegue sobreviver da venda de apitos de

barro que mal lhe proporciona a comida do dia. Sua dificuldade é tamanha,

que o faz trocar sua sombra por um sanduíche, só recuperando depois com a

ajuda da personagem protagonista Maria. (COSTA, 2011)

Meu Lunário é a memória

de um país que vai passando

diante dos nossos olhos,

rindo, mexendo, cantando.

Mestiço, latino, caboclo, nativo.

É velho, é criança, morreu e tá vivo...

presente, mas até quando?

Meu Lunário é conselheiro,

é meu folheto, é meu missal,

atravessando os milênios,

cada ponto cardeal.

De Norte a Sul, de Pai para Filho,

de lá para cá, meu livrinho andarilho,

fabuloso Romançal.

O lunário foi mantido assim, como parte de uma tradição, passando

de geração a geração através dos tempos, das fronteiras, estando presente

em lugares distintos, „contaminados‟ num processo de apropriação próprio

das culturas populares. Vale destacar nesse trecho final o termo “Romançal”,

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neologismo que remonta ao ano de 1975, inaugurando a fase “romançal” do

Movimento Armorialv. A expressão se origina de “romance” que

... designa, em primeiro lugar, este amálgama de dialetos do

baixo-latim, língua popular que foi a origem das línguas

românicas; é também o termo utilizado, por extensão para as

poesias orais cantadas „em romance‟, em oposição à cultura

letrada, escrita em latim. Pouco a pouco, a palavra torna-se

mais específica e passa a designar uma forma popular

privilegiada desse tipo de poesia, o poema em versos

heptassílabos, com assonância nos versos pares e ímpares

livres. O termo amplia seu campo e designa, mais tarde, toda a

literatura narrativa em prosa, concorrendo com o termo

„novela‟. Enfim, „romance‟ remete para o imenso romanceiro

popular brasileiro, a esses romances e folhetos, orais e escritos,

cuja estrutura narrativa herdada da Europa adaptou-se tão

perfeitamente aos temas e às vozes nordestinas. (SANTOS,

1999, p. 31).

No caso da música Lunário Perpétuo, executada ao ritmo de um

baião, percebemos a presença de instrumentos de cunho popular, assim

como o próprio ritmo em si. É o caso do acordeom na categoria aerofone;

rabeca e viola na categoria cordofone; e o pandeiro, zabumba e ganzá na

classe dos idiofones de altura indefinida. Existe aí, portanto, a

predominância de instrumentos de cunho popular na execução da música.

Independente das origens desses instrumentos, todos estão ligados ao

contexto popular e se tornam elementos próximos, servindo de referência

nas relações que se formam e no conjunto maior da obra.

Na interpretação de Nóbrega surge, ainda, um outro forte elemento

que reforça a presença do universo popular que a obra expressa. Trata-se do

personagem Tonheta, criado por Nóbrega a partir do velho “Faceta”,

palhaço animador do pastoril profano, presente nos espetáculos populares

do Nordeste e figura trabalhada por Nóbrega durante um longo período nos

seus vários espetáculos, sendo seu personagem brincante fixo. (COSTA,

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2011) Tonheta pode ser visto como um misto de pícaro, bufão, palhaço,

arlequim e vagabundo, percebido pelo próprio Nóbrega “como uma espécie

de colcha de retalhos desses tipos populares que povoam as ruas e praças do

meu país, que me tocam profundamente deixando-me num estado de

desordem interior cujos contrários dor e alegria se confraternizam

misteriosamente”. (NÓBREGA, 2004, s/p)

Através da versão de Nóbrega, percebemos um processo de

reescrição, reelaboração, possibilitando, junto a essas modificações, outras

possíveis análises. Ao incorporar elementos diversos, ampliando a

perspectiva do texto-fonte, com uso ampliado de instrumentos relacionados

ao contexto popular, Nóbrega faz uma interconexão entre elementos e

facilita a assimilação e identificação por parte do público.

A partir das observações em torno de referenciais intermidiáticos e

intramidiáticos, a letra, o ritmo e instrumentos, além de outros aspectos

mencionados, são assimilados como um ato de tomar posse no momento em

que são referendados no texto-alvo, o que implica numa prática de

apropriação que torna-se imperceptível aos olhos do leitor/espectador.

Imperceptível aqui é sinônimo de mídia transparente diante da abordagem

de Clüver (2006), que ao tratar das sub-categorias intermidiáticas, aponta

para o fato de que a forma em que um determinado texto é apresentado pode

tornar a mídia opaca ou transparente. Enquanto a primeira refere-se à

percepção da técnica por parte do leitor/espectador diante do texto, a mídia

transparente é imperceptível ao leitor/espectador, que imerso no sentido da

obra, num efeito de “catarse”, não percebe a técnica por trás das imagens e

dos sons.

A partir de todos esses elementos reunidos, percebemos ampliado o

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Lunário Perpétuo de Antonio Nóbrega e o Lunário e Prognóstico Perpétuo

para todos os reinos e províncias de Jerónimo Cortês, numa aproximação

entre obras separadas por mais de duzentos anos, mas que se encontram em

torno do contexto popular que as obras expressam, numa rearticulação de

tradições, mitos e símbolos afastados pelo tempo, mas aproximados pelo

imaginário popular e, assim, eternizados.

Referências

ALMEIDA, Argus Vasconcelos de. Saberes e práticas de cura no

“Lunário Perpétuo” de Gerónimo Cortez (1555 - 1615) e sua influência

no Nordeste Brasileiro. Olinda: S. l., 2012.

BITTER, Daniel. Da polifonia poético – visual nas artes armoriais. In: Arte

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EBA. UFRJ; ano VII, n. 7. p. 20 – 27; Rio de Janeiro, 2000.

CADENGUE, Antônio. Educação pela máscara: recortes de uma

genealogia de Antônio Nóbrega. Folhetim Teatro do Pequeno Gesto; n. 5.

p. 44 – 59, Set. Out. – Nov. Dez. de 1999.

CLÜVER, Claus. On Intersemiotic Transposition. Poetics Today. Duke

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CORTÊS, Jerónimo. Lunário e Prognóstico Perpétuo para todos os

Reinos e Províncias. Porto: Lello & Irmão – Editores: s.d..

COSTA, Luís Adriano Mendes. Antonio Carlos Nóbrega em acordes e

textos armoriais. Campina Grande: EDUEPB, 2011.

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<http://www.antonionobrega.com.br>. Acesso em 27 jan. 2004.

RAJEWSKY, Irina O. Intermediality, Intertextuality and Remediaton: A

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2005. p 43-64.

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em: http://forumeja.org.br/go/sites/forumeja.org.br. Acesso em: 5 out.

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Multicultural, Recife: CEPE, v.2, n. 14, fev. 2002, p. 19-20.

SZESZ, C. M. Os almanaques populares: leituras e apropriações em

Ariano Suassuna. Disponível em: http://eeh2008.anpuhrs.org.br. Acesso

em: 6 out. 2013.

i A palavra armorialista vem de Armorial, e diz respeito ao Movimento cultural criado pelo

escritor Ariano Suassuna em 1970 tendo como objetivo a realização de uma arte a partir de

elementos da cultura popular. O Movimento Armorial representou uma luta contra o

processo de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira. Dessa forma, Suassuna

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tomava o Nordeste enquanto espaço privilegiado na manutenção e preservação de símbolos

pertencentes à cultura do povo brasileiro. (COSTA, 2011)

ii O Quinteto Armorial seguia na música os anseios de Suassuna na formação de uma

cultura nacional a partir das nossas raízes populares. (COSTA, 2011)

iii Responsável também pelo estudo da configuração dos instrumentos, a organologia

desempenha um papel fundamental na música, servindo para categorização de instrumentos

utilizados e outros aspectos que envolvem a música, como, por exemplo, à aplicação da

física.

iv O pícaro ou anti-herói apresenta histórias de vida marginalizadas e seu desfavorecimento

no contexto social em que vive o faz utilizar de artifícios diversos para superar suas

dificuldades. Sua conduta, no entanto, por vezes fruto da esperteza, também reflete uma

certa ingenuidade e espontaneidade nos seus atos. Seja como for, um dos pontos de

destaque esse tipo de personagem é o tom crítico em relação à estrutura social, uma

denúncia a determinadas classes ou grupos privilegiados dentro dessa estrutura.

v Com a estréia da Orquestra Romançal Brasileira no dia 18 de dezembro de 1975, no

Teatro Santa Isabel, iniciava-se a fase romançal que se tornaria uma das mais produtivas do

Movimento.