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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE n. 43-44, jul.2012/jun.2013 O amor e a erótica ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Porto Alegre

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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREn. 43-44, jul.2012/jun.2013

O amor e a erótica

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREPorto Alegre

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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTEPublicação Interna

n. 43-44, jul. 2012/jun. 2013

Título deste número:O amor e a erótica

Editores: Maria Ângela Bulhões e Deborah Nagel Pinho

Comissão Editorial:Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Glaucia Escalier Braga,

Joana Horst Rescigno Baldo, Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira, Otávio Augusto W. Nunes, e Renata Almeida

Colaboradores deste número:Álvaro B. Olmedo, Ana Costa, Mário Corso, Maria Lucia M. Stein,

Sidnei Goldberg e Comissão de Aperiódicos da APPOA

Editoração:Jaqueline M. Nascente

Consultoria linguística:Dino del Pino

Capa: Clóvis Borba

Linha Editorial:A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém es-tudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

Associação Psicanalíticade Porto AlegreRua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS

Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922E-mail: [email protected] - Home-page: www.appoa.com.br

ISSN 1516-9162

R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)CDD 616.891.7

Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.brImpressa em junho 2014. Tiragem 500 exemplares.

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EDITORIAL .................................. 07

TEXTOSA carta 52 e a teoria da memória em FreudThe letter 52 and the memory theory on FreudAlfredo Jerusalinsky .......................... 09

Um estudo sobre o amorA study about the loveMaria Ângela Bulhões ....................... 19

Pérolas maternasMaternal pearlsEda Tavares ...................................... 27

A doença do amor(te)The disease of love Maria Rosane Pereira ....................... 40

Erotismo e seus extremosEroticism and its extremesRosane Monteiro Ramalho ................ 50

O hábito e o mongeThe habit and the monkMarta Pedó ........................................ 65

Existências entre masculino e femininoExistences between masculine and feminineLúcia Alves Mees ............................... 72

O que os faz falar, homens e mulheres?What makes them speak, men and women? Cristian Giles ..................................... 81

As modalidades de gozo: do corpo à fantasiaThe modalities of jouissance: from body to fantasyEduardo Mendes Ribeiro ................... 88

As práticas de furar o corpo e a mácula pubertáriaBody piercing practices and the puberty smirch Ana Costa ......................................... 97

Alguns destinos do olhar e da voz na sexuaçãoAbout the gaze and the voice in the sexuation processLuciano Matuella ............................ 105

A escrita atapetada da voz: tempo e espaço na experiência do despertarWriting carpeted by the voice: time and space in the experience of awakeningLuciana Brandão ............................. 116

Uma outra ética: entre a escrita e o gozoAnother ethics between writing and jouissanceMaria Lucia Homem ........................ 139

Eros e autismoEros and autismSilvana Rabello ............................... 151

Sintomas sexuais: uma escrita deslocada da relação sexualA disconnected writing of the intercourseGérard Pommier ............................. 161

ENTREVISTASomos antes de tudo clínicosInterview:Before anything we are clinics Gérard Pommier ............................. 173

RECORDAR, REPETIR, ELABORARQuestões sobre o Seminário EncoreIssues regarding the Seminar Encore Contardo Calligaris ......................... 179

SUMÁRIO

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VARIAÇÕESOs números de LacanThe numbers of LacanLigia Gomes Víctora ........................ 207

Ditirambos psicanalíticosPsychoanalytic ditirambos Denise Maurano .............................. 220

Elementos para uma crítica do uso do significante novo em psicanáliseElements for a critic of the use of significant new in psychoanalysisAlfredo Gil .................................... 231

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EDITORIAL

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Apsicanálise afirma que o corpo tem seu traçado erótico demarcado des-de muito cedo, quando o bebê recebe a acolhida no mundo, marcando-

o para a vida. Os cuidados da primeira infância acarretam uma geografia das superfícies e dos orifícios corporais que, mais tarde, permitem o exer-cício do desejo dentro de determinadas fronteiras. Mas é próprio ao amor que elas pareçam transponíveis. Às vezes, mesmo que sempre parcial, a satisfação erótica se encontra com o amor, ambos reunidos na busca em ultrapassar os limites próprios de cada um. Pois, se o erotismo tem determi-nações marcadas no corpo, o amor tende a ser incorpóreo, idealizado, e se pretende total. Ao mesmo tempo, amor e erótica afirmam a diferença entre ambos e apontam a falta que cada um carrega.

Freud inaugurou os ensaios sobre a sexualidade, subvertendo posições moralistas e avançando a investigação psicanalítica no campo do erotismo e das escolhas sexuais, tema que segue nos ocupando na clínica e na cultura. As transformações pelas quais passamos hoje permitem pensar sobre a se-xualidade desde outro lugar – a hegemonia vitoriana dos tempos freudianos perde em vigência ou, pelo menos, declina generalizadamente, e buscam-se encontrar outros modos de nomear e inserir na língua aquilo que insiste em fazer sintoma. Sintoma que é não somente um modo de dizer, mas também um modo de gozar. Lacan, continuando a subversão de Freud, agrega ao tema a afirmação de que sob o corpo estão os restos, os objetos a. O corpo, sede das pulsões oral, anal, escópica e invocante, abriga os gozos que lhe correspondem, levando-nos a indagar sobre a relação desses e a sexuação.

No seminário Mais, ainda, Lacan procura formalizar as posições mas-culina e feminina em sua relação com o gozo, não necessariamente sexual.

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As diferentes constituições do sujeito masculino e do feminino definem os modos diversos de laço com o gozo. Se o masculino se orienta por balizas culturalmente definidas e seu gozo é circunscrito a elas, o feminino se rela-ciona com as ausências de garantias e sua modalidade de gozo aponta a um mais além do determinado, conferindo caráter de enigma sobre o dese-jo. O quê, então, pode reunir a divergência das buscas? O que impossibilita o encontro entre masculino e o feminino?

Dessas proposições é possível, e necessário, investigar alguns de seus desdobramentos, como as diversas modalidades de articulação entre identidades de gênero, sexo biológico e escolha de objeto, o que implica deslocar a referência da distinção anatômica para a dimensão da fanta-sia. Por esse caminho, abre-se também a possibilidade da superação das polarizações homem/mulher, feminino/masculino, ativo/passivo, etc., e do reconhecimento de uma diversidade de formas de gozo. Por outro lado, as fórmulas da sexuação fornecem um fundamento lógico às leis da linguagem que estruturam o laço social, que podem organizar a vida coletiva de dife-rentes maneiras, delimitando lugares que possibilitam ou impossibilitam ao sujeito e ao desejo, prescrevendo diferentes formas de gozo e modos de funcionamento institucional.

Mesmo numa cultura em que são aceitas posições sexuais diferen-tes da identidade de gênero e das escolhas eróticas, mulheres e homens seguem com o desafio de se situarem frente ao estranhamento do sexual. Reconhecemos que esse estranhamento ao sexual produz consequências no real, simbólico e imaginário, promovendo desacomodação, retrocessos e avanços. Os textos aqui reunidos, efeitos do percurso de trabalho e estudo são atravessados por esses interrogantes.

EDITORIAL

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p.09-18, jul. 2012/jun. 2013

Resumo: O autor apresenta a carta 52, da correspondência entre Freud e Fliess, como um dos textos em que Freud elabora os primórdios dos conceitos funda-mentais da psicanálise; conceitos que permitiram a passagem das observações que não davam como causa o sujeito para uma outra posição, que lhe outorga a condição de causa de sua história, de sua narrativa. Essa passagem é que dá nascimento à teoria do inconsciente e à psicanálise. Nessa carta, Freud trabalha as representações de palavra, as matrizes de elaboração e interpretação da rea-lidade, assim como a sensibilidade excitatória da palavra. Reúnem-se aí os ele-mentos que serão posteriormente enunciados por Lacan na formulação o humano é falasser – parlêtre.Palavras-chave: carta 52, teoria da memória, Freud, falasser, representação.

THE LETTER 52 AND THE MEMORY THEORY ON FREUDAbstract: The author presents the letter 52, of the correspondence between Freud and Flies, as one of the texts in which Freud develops the beginnings of the funda-mental principles of psychoanalysis; concepts that allowed the passage of obser-vation that did not conceived the subject as a cause to another position, that grants the condition of cause of its history, of its narrative. This passage is what gives birth to the theory of the unconscious e to the psychoanalysis. In this letter, Freud goes over the representation of words, matrices of elaboration and interpretation of reality ,just as the excitatory sensibility of the word. Gathers then the elements that will posteriorly be enounced by Lacan at formulation the human is talkbe- parlêtre.Keywords: letter 52, memory theory,Freud, talkbe, parlêtre, representation.

Alfredo Jerusalinsky3

A CARTA 521 E A TEORIA DA MEMÓRIA EM FREUD2

1 Da correspondência entre Freud e Fliess, datada de Viena, 6 de dezembro de 1896.2 Aula proferida no seminário Casos Clínicos, Eixo Inconsciente, no Percurso de Escola da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), turma XII, em 27 de junho de 2012.3 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); do Instituto AP-POA; do Centro Lydia Coriat – Porto Alegre; do Núcleo de Estudos Sigmund Freud e da Associa-tion Lacaniènne Internationale; Doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universi-dade de São Paulo (USP). Autor dos livros: Psicanálise do autismo (Porto Alegre: Artes Médicas, 1994), Psicanálise e Desenvolvimento Infantil (2.ed., Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999), Semi-nário I, Seminário II, Seminário III, Seminário IV e Seminário V (São Paulo: USP) e Saber falar: como se adquire a língua? (Porto Alegre: Vozes, 2008). E-mail: [email protected]

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Alfredo Jerusalinsky

Em 1895, a psicanálise não existia; mesmo que Breuer e Freud tivessem atendido algumas pacientes, escutando-as com atenção, não quer dizer

que a psicanálise existisse. É claro que, a posteriori, Freud vai recolher al-guns casos clínicos desde 1890, que, no modo como eram escutados por ele e por Breuer, anunciavam o advento da psicanálise. Mas, não havia método analítico específico. O que havia era uma disposição desses dois médicos de escutar com atenção e não julgar as pacientes histéricas nos padrões em que até então eram julgadas. Especialmente, digamos, pela vanguarda psiquiátrica daqueles tempos, a saber, Charcot e seus discípulos. Certa-mente, Freud e Breuer não eram os únicos psiquiatras, ou neuropsiquiatras, ou neurologistas que, naquela época, abordavam as questões psíquicas. Tinha havido certo deslocamento no que tange à clínica da doença mental, desde a década de 1870 a 1890, já que a influência do anatomismo tinha sido marcante naqueles anos.

O anatomismo foi uma corrente relevante na medicina, e também no que tange à psiquiatria, pelas descobertas de correlações entre alterações anatômicas e doenças que se registravam. Isso era realizado post mortem, nas autópsias, no que se chamava a prática da anatomia patológica, ou seja, ir encontrar a patologia anatômica no organismo, para correlacioná-la com a doença que o sujeito tinha sofrido. E como há doenças que matam – e matavam –, e provocam alterações anatômicas, então, há alterações anatômicas que se correlacionam com as doenças. Às vezes, elas são a causa das doenças, e às vezes são a consequência da doença. Mas, quase invariavelmente, há alterações anatômicas, passíveis de serem registradas post mortem, sem que se saiba se essa alteração anatômica é causa ou é consequência.

O anatomismo naquelas épocas tinha chegado a tal ponto que existia uma corrente da medicina que se chamava osteopatia. Ela está sendo ree-ditada, nos últimos dez anos. Supunha e supõe, ainda hoje, que as doenças são causadas por alterações, malformações ou distorções esqueléticas. Ou seja, que uma boa postura – lhes recomendo –, é preventiva das doenças. Não andem tortos, sentem-se adequadamente. Como, aliás, preconizava o pai de Schreber...

Havia anatomistas de extrema expressão naquela data, como Lombro-so, que era um psiquiatra que propunha que as feições das pessoas reve-lariam seu caráter. Portanto, era possível detectar e diagnosticar um caráter assassino ou delinquente, simplesmente vendo a feição da pessoa. Claro que ele descreveu minuciosamente os traços que eram denotativos dessas características. Assim como da bondade, da boa disposição, da amabili-dade, do caráter, etc. Para isso, ele se dedicou a fotografar delinquentes

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A Carta 52 e a teoria da memória em Freud

que estavam presos, nos cárceres. Ele não levou em conta que fora dos cárceres há muito mais delinquente que dentro. Tomou como válida essa amostra e, então, fez toda uma tipologia que se denominou por extensão da caracterização das classes zoológicas: taxonomia.

Assim, houve toda uma corrente psiquiátrica que levou o anatomismo ao extremo, ao considerar que, na anatomia, o destino está marcado. Na anatomia das pessoas estaria contida a condição de ser de cada um, e com isso, o anatomismo teve elevada a sua importância. Isso fez com que a especialidade da psiquiatria passasse a ser denominada neuropsiquiatria. Assim, os neurologistas tomaram conta da psiquiatria, justamente porque os neurologistas eram os que estudavam a anatomia do sistema nervoso e as alterações anatômicas produzidas pelas doenças, ou que produziam as do-enças do sistema nervoso. E, então, os doentes passaram a ser chamados “doentes dos nervos”.

Durante a segunda metade do século XIX, os doentes mentais não eram “doentes mentais”, eram “doentes dos nervos”. E Freud foi neurologis-ta. Então, seus primeiros casos, de 1890, têm o carimbo dessa formação. É por isso que ele escreve um ensaio que se chama Projeto de uma psicolo-gia para neurologistas. Ou seja, por que não para psiquiatras? Justamente porque o neurologista tinha tomado conta do campo psiquiátrico. E o melhor que podia aspirar, em termos da psiquiatria, era ser neuropsiquiatra. Não psiquiatra. Psiquiatra era alguém que não tinha uma boa formação. Alguém que tinha uma boa formação era um neuropsiquiatra. Era uma formação completa, digamos, que estudava anatomia do sistema nervoso.

Freud estudou anatomia do sistema nervoso e ele esteve a um triz de descobrir o neurônio. Ganhou o espanhol Cajal, que foi quem descobriu o neurônio. Ramón y Cajal foi o descobridor do neurônio e ganhou de Freud por um mês. Foi uma grande desilusão para Freud. E foi uma sorte para nós, porque, se não, a psicanálise não existiria. Seguramente ele aspirava ser famoso, teria se feito famoso como neurologista.

Mas o problema que havia para um neurologista como Freud, para fazer clínica, era: como fazer clínica do sistema nervoso, da anatomia do sistema nervoso? Não existiam estudos de imagens, de transparências. Ne-nhum. O único que existia, com objetivo de estudo em relação ao sistema nervoso, era a medição da transmissão elétrica, inclusive, muito rudimentar, que tinha sido produzida por Watson, estudando rãs. Watson dava uma inje-ção de potássio no nervo, que mudava a sua polarização. Então, a eletrici-dade no nervo, embora o bicho estivesse morto, era transmitida.

Mas, então, como faria clínica um neurologista? Bem, os neurologistas faziam clínica de observação. Em que consistia ser doente dos nervos? Ser

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Alfredo Jerusalinsky

doente dos nervos consistia em ter mau domínio das expressões vindas do sistema nervoso. Ser nervoso! Veja só como predominou a nomenclatura: ser nervoso, ser doente dos nervos – tu estás muito nervoso! É um dito po-pular até hoje em dia, em qualquer ambiente popular leigo; essa expressão é usada e tem mais ou menos uns 150 anos de existência.

Os neurologistas abordavam clinicamente, como Charcot, aqueles que tinham manifestações muito visíveis, muito observáveis, de alterações ner-vosas, de descompassos nervosos. Claro, as histéricas ganhavam de longe a parada! Além do mais, o grito das histéricas é bem mais insuportável do que o dos histéricos, porque mais agudo... (é uma brincadeira!).

Freud, claro, participou dessas práticas neurológicas. Vocês sabem que os primeiros pacientes que Freud atendeu eram paralíticos cerebrais. Sa-biam? Atendeu muitos paralíticos cerebrais. E ele, Freud, dizia, quando era residente e praticante, treinando-se como neurologista, ele se queixava de que tinha que atender pacientes todos iguais. Era uma queixa que ele confes-sa nas suas cartas a um amigo de adolescência. Não a Fliess, mas a Silbers-tein, um amigo judeu leigo. Ele simplesmente lhe escreve que está entediado de atender tantos paralíticos cerebrais, porque são todos iguais. O problema deles é sempre o mesmo: não conseguem se mexer como gostariam.

Digamos que aqueles pacientes, aquelas pacientes que eram mais estrondosas nas suas alterações nervosas, passam a ser minuciosamen-te observadas, na esperança de que, quando morressem, a sua anatomia patológica revelasse alguma coisa. Entretanto, Freud passa a supor, junto com Breuer, que é na trama de seu drama falado que podem se encontrar segredos ou revelações interessantes a respeito de sua patologia nervosa. Vai demorar até 1898/99 para pensar, para chegar a escrever, que essa trama relatada podia ser causa. Até aí não lhe ocorria que podia ser causa. O relato dos casos clínicos, dos historiais clínicos de 1890 em diante, são reconstruções a posteriori. Não são inicialmente tomados assim. Ele se dá conta em 1898/1899 que aqueles casos já revelavam uma causalidade que estava do lado da palavra.

Como se deu a transição dessa prática de observação para a da escu-ta atenta na trama linguística? Nessa trama narrativa que os pacientes tra-ziam havia alguma explicação das contradições, dos conflitos que podiam afetar o sistema nervoso? Ela poderia revelar no que o sistema nervoso estava deformado? Porque até aí, a ideia era de que condições sociais ou psicossociais, emocionais, se encontravam com as condições constitucio-nais desfavoráveis do sujeito, e a junção dessas coisas era o que produzia a histeria. Era o mais próximo do rompimento do dualismo a que tinha se chegado até então.

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A Carta 52 e a teoria da memória em Freud

A obra de Freud foi fundamental, foi o que permitiu a dobradiça: a pas-sagem das observações que não davam como causa o sujeito, para uma outra posição que lhe outorga a condição de causa de sua história, de sua narrativa. Essa passagem é que dá nascimento à teoria do inconsciente e à psicanálise, isso já em 1898/1899.

Se não tivesse havido essa dobradiça, que permitiu a passagem, a psicanálise não existiria como método, e a descoberta do inconsciente não teria acontecido. O inconsciente teria continuado a ser subconsciente. Ou seja, uma consciência menor, com os mesmos princípios que já existia como conceito.

O subconsciente como conceito já existia na literatura desde o século XVI. Dom Quixote é uma mostra de que o subconsciente existia como con-ceito. O literato Saavedra, o Manco de Lepanto, já sabia do subconsciente. E, digamos, antecipou algo de que o subconsciente podia funcionar com uma lógica diferente da consciência.

Essa dobradiça é a carta 52. Vejam que importância tem essa carta. Essa carta contém três conceitos fundamentais, criados por Freud, para denominar três operações que são próprias – vou dizê-lo de modo impró-prio, mas, depois, vamos corrigi-lo –, próprias da “mente humana”. Essa im-propriedade é cometida por Freud. Inicialmente, ele chama isso de “mente humana” – o mental! E esses três conceitos são, a saber, os seguintes:

Em que consistem as representações na mente humana?Como se configuram as matrizes de elaboração e interpretação da re-

alidade na mente humana? E a terceira: uma tese fundamental que é a da equivalência entre a sen-

sibilidade excitatória perante um objeto assim como perante uma palavra. Esses são os três conceitos fundamentais, cruciais, que permitem pas-

sar de uma posição a outra. Para dizê-lo claramente: de uma posição em que as condições constitucionais são as causantes, para uma posição na qual o causante é o sujeito, embora Freud não use essa palavra.

Esses três conceitos pressupõem ou implicam necessariamente uma teoria da memória totalmente inovadora. Ou seja, que, até então, a ninguém tinha ocorrido semelhante teoria da memória. Então, vamos fazer um rápido percurso por esses três conceitos e a teoria da memória.

O primeiro conceito que eu trouxe aqui para vocês, a respeito da carta 52, é acerca das representações.

Freud diz a Fliess, na carta 52, que há algo que ele descobriu – e não se sabe como. Ele não diz como descobriu, mas ele o fez pensando; segura-mente, como Einstein descobriu a teoria da relatividade, como Newton des-cobriu a teoria da gravidade, como tantas descobertas na história da huma-

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Alfredo Jerusalinsky

nidade, que não requereram nenhuma experimentação, como Galileu Galilei descobriu que a terra gira. Como descobriram isso? Pensando! Vocês sabem que a teoria da relatividade somente conseguiu ser experimentada cinquenta anos depois de ter sido formulada. Quer dizer que não é a experimentação o que governa nosso saber. Isso é uma enganação que o positivismo quer nos vender: de que tudo depende do objeto e da experimentação.

O que Freud propõe não é nada positivista. Ele diz que o modo em que a mente humana funciona é representando as coisas, sem as coisas. Quer dizer, mais antipositivista que isso impossível! Como “sem as coisas”? Isso causou um escândalo! Esse cara está louco! Ou seja, ele escreveu em uma carta íntima. Porque não se atreveu a dá-la a público. Essa carta se publi-ca em 1924 pela primeira vez, quando a psicanálise já tinha, pelo menos, vinte e quatro anos de existência. E se publica para o círculo psicanalítico. Não sei exatamente quando saiu a publicação para o grande público. Pro-vavelmente, quando se fez a tradução do alemão para o inglês das Obras completas de Freud, ou seja, 1943/1944.

Ele compartilha intimamente, com seu amigo, que descobriu que a re-presentação da qual nós os humanos nos valemos é uma representação sem objeto. Uma representação de palavra. E que a palavra não tem obje-to. Quer dizer, não tem fotografia, não tem imagem. Quer dizer, a palavra pode evocar, mas não é intrínseco da palavra ter imagem. A palavra mes-ma, então, adquire força de representação; de representação de objeto. Se precisar, o objeto está. Portanto, não é uma representação real; nós não trabalhamos com representações reais, e é isso que nos permite inventar histórias. É isso que lhes permitia, às histéricas, mentir, como se fossem verdades e acreditar que era verdade. Quer dizer, criar histórias.

Acontece que, como, então, o modo de representação é pela palavra, ela adquire a capacidade de provocar tanta excitação como se o objeto es-tivesse aí, embora não esteja. E ele sublinha, na carta 52, que o modo de produzir a excitação, o circuito mais sensível à excitação, que é o sexual, é, curiosamente, extremamente sensível ao campo da palavra. Quer dizer que falar de sexo é mais excitante do que fazê-lo! E que isso é o centro da neu-rose. Como nos divertimos mais falando do que fazendo, somos neuróticos. Esse é nosso problema. Lacan disse: o homem é falasser! Ou seja, parletre, falante. É um ser falante por algo que aconteceu a nossa sexualidade. O que lhe aconteceu, nós sabemos bem. Mas sabemos que a sexualidade não está mais aí, quer dizer, no lugar do real. E, então, nós sabemos com palavras. Ela fica tão condicionada à ordem das palavras que não há rela-ção sexual. Isso que Lacan diz. Ele não diz que não há relação sexual, no sentido de que não há coito. Coito há.

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A Carta 52 e a teoria da memória em Freud

Lacan simplesmente está assinalando que, na ordem da representa-ção, não há relação sexual. Que o objeto não está aí. Para um tigre isso é impossível sequer de enunciar. Para um tigre, há relação sexual, a palavra da sexualidade não lhe diz nada, a gente pode contar a um tigre, “olha! Tem uma tigresa a uns 5 km daqui!” Se ele não sentir o cheiro, não passa nada. De outra forma para um humano, nós podemos lhe dizer, por exemplo, uma piada que fazia um professor meu – Oscar Masotta –, dizia: “os homens que mais transam, estão no Tibet” e, então, em seguida dizia: “meninas, fica muito longe. Esta noite não vão chegar lá! ”

Justamente, então, essa é a segunda grande questão, ou seja, a capaci-dade excitatória que a palavra tem. Porque se tem uma capacidade excitatória, tem uma capacidade patogênica também. Quer dizer, de produzir sofrimento. De causar falta. É por isso que nos queixamos de: “quanto tempo faz que não me dizes que me amas!” Por que isso é importante? Entre os macacos isso não é importante. Entre as rãs, tampouco. Por que isso é tão importante para nós, como para fazer e desfazer nosso destino. Vejam só! “Não me dizes que me amas desde o último ano. Vou me separar! – Oh! Só por isso?”

A terceira questão, o terceiro conceito é o conceito de matriz, matriz significante. Freud disse, na carta 52, que os problemas psíquicos mais gra-ves mais problemáticos, mais difíceis, mais sofridos, acontecem porque o sujeito não atina, não consegue transformar sua matriz interpretativa, seu modo de interpretar a realidade com as palavras. Que as palavras, as sig-nificações que até então lhe serviam para entender e interpretar o mundo e viver aí, quando algo muda na vida dele, no sentido de que quando muda a época da vida das pessoas, quando uma criança se torna adolescente e, depois, adulta, as matrizes têm que mudar. E é aí que o sujeito pode trope-çar e tropeça com dificuldades, produto de que as matrizes anteriores esta-vam mal constituídas ou falhas e que, então, a passagem de uma a outra se torna sofrida, trabalhosa, difícil e se produz a regressão, ou seja, o retorno – Freud ainda não usa a palavra regressão – à matriz anterior.

Está aí toda a teoria da neurose: a questão da regressão, a questão da passagem e a transformação da escolha de objeto, de definição da identida-de sexual, a passagem da oralidade para a analidade e para a genitalidade ou a regressão. Por isso eu digo, trata-se de uma dobradiça fundamental.

E digo então, para concluir, sobre a teoria da memória. Até então, a teoria da memória era apresentada de forma que os acontecimentos fica-vam registrados na medida de sua incidência espetacular, digamos, quando eram acontecimentos muito explosivos ou esplendorosos e-ou quando o sujeito estava em boas condições de registro, ou seja, descansado, bem disposto, bem dormido, bem alimentado. Até o ponto que, por exemplo, re-

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Alfredo Jerusalinsky

comendava-se que os estudantes fossem aprender pela manhã, depois de dormir, de estarem bem dormidos.

Media-se a consistência da memória, do registro, a consistência do registrado na memória, submetendo os estudantes a um extremo cansaço. E é ali que eles eram testados, sobretudo quando tinham que se doutorar.

Na Universidade de Salamanca, que existe desde o ano 600 depois de Jesus Cristo, é a universidade mais antiga da Europa, nela estava – ainda existe – o local onde os doutorandos davam testemunho de sua competên-cia para serem doutores. Para isso, eles eram submetidos ao que se chama – em espanhol ainda existe o termo en capilla, ou “a capela”.

Ainda quando eu prestava exames, existia a figura de “en capilla” ou “a capela”: havia uma fila de estudantes pela lista, para prestar exame oral. Na minha época, além do exame escrito, era exame oral e, então, às vezes exame prático, dependendo da matéria. E, quando se calculava que falta-vam duas horas para a gente prestar o exame, se era chamado e isolado, sentado num canto da sala, onde a gente podia escutar o que os outros estavam apresentando, como os outros eram reprovados, e não se podia falar com mais ninguém...

Na Universidade de Salamanca há ainda o banco dos que seriam, “ca-pillados”, ou seja, “capelados”, que eram sentados 24h antes nesse banco. O que eles podiam fazer era descer desse banco, se ajoelhar e rezar. Eram alimentados somente com água. Ainda estão as marcas dos pés, das botas, dos sapatos, que gastaram o apoia-pé. Claro, estavam nervosos, estavam em crise nervosa. Que quer dizer crise nervosa? Eles estavam em crise ner-vosa e extenuados, sem dormir, porque estavam num banco frio, alimenta-dos a água? Eles tinham que dar provas de que ainda tinham memória dos conhecimentos que os transformariam em doutores. Isso existiu até o ano 1904. Ou seja, a teoria da memória ainda persistia. Do ano 600 a 1904, uma teoria que resistiu. E, além do mais, a teoria da memória era que: quanto mais distante no tempo era o acontecimento, mais se esquecia.

Freud demonstrou que isso não era assim. Que a memória dependia – o registro e a persistência do registro de-

pendiam do caráter traumático que insistia no que se chamavam falsas re-cordações. Ou seja, invenção de acontecimentos que teriam sido neces-sários para explicar alguma coisa ou para completar a estrutura de alguma posição psíquica, e que então, eram criados a posteriori. Por exemplo, a falsa recordação do abuso sexual sofrido pelas histéricas. As histéricas, ele descobre, finalmente, que os relatos que ele recebeu de terem sido abusa-das sexualmente na infância, eram falsos. Mas isso não quer dizer que não fossem eficazes em termos de produção da histeria.

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A Carta 52 e a teoria da memória em Freud

Quer dizer que mudou completamente a teoria da memória, porque havia, então, uma memória inconsciente, a que registrava o traumático, que não era necessariamente pelo fato de o acontecimento ser estrondoso ou por ser surpreendente, ou por ser impossível, senão, simplesmente, porque não cabia dentro das significações da consciência. E, na medida em que não coubesse, era traumático. O traumático passa a ser aquilo que não pode adquirir representação de palavras.

Essa é a teoria da memória de Freud, que ele apresenta na Carta 52.Lucy Linhares da Fontoura (intervenção da plateia): Hoje em dia, nas

pesquisas no campo das neurociências existe certo reconhecimento das elaborações freudianas a respeito da memória. Sei que vens trabalhando essa interface, poderias nos trazer algo desse diálogo?

As hipóteses freudianas sobre o sistema nervoso central (SNC) são objeto de um certo respeito por alguns pesquisadores, no campo das neu-rociências. Mas não é unânime o respeito por essas ideias, porque efetiva-mente elas são rudimentares no que tange à situação atual da pesquisa, comparando-as. Pode-se estabelecer uma certa continuidade entre o proje-to e as descobertas mais recentes, sobretudo no campo da neuroplasticida-de e da epigenética. Mas, acontece que a neuroplasticidade e a epigenética, embora sejam incontestáveis no que diz respeito a seus princípios e a suas descobertas, não têm ganho a simpatia e a implementação no campo da psiquiatria, nem sequer da neurologia clínica.

Os conceitos que a neurologia e a genética usam clinicamente hoje são brutalmente resistenciais contra as últimas descobertas, porque eles precisam de categorias estáveis. E por quê? Porque ter categorias psico-patológicas estáveis permite definir um campo de marketing farmacológico estável. Como a indústria vai programar quantos comprimidos de Rivotril 0,20 vai fabricar, se não houver uma população estável que consumirá?

Os princípios que se descobriram nos últimos quinze anos demons-tram que não há nenhuma categoria psicopatológica estável, nunca, em lugar algum, em sujeito nenhum. Jamais. Nunca houve e nunca haverá.

Então, como vão acolher com simpatia essas descobertas? Fui convi-dado, faz sete ou oito anos, a um congresso mundial de neuropediatria, uma vez que eu era – não sei se ainda sou (por eles) ̶̶ reconhecido como grande especialista em autismo. Me convidaram para o capítulo sobre autismo. Par-ticipavam 1.700 pessoas, de diversas profissões. Em geral, neuropediatras, pediatras, médicos, neurologistas, psiquiatras e um certo grupo de psicólo-gos. Psicanalista, eu era o único – o único –, convocado a falar. Me deram quinze minutos, numa mesa de inimigos. Eu sei aproveitar os minutos que me dão. Usei bem esses quinze minutos. E demonstrei os erros metodoló-

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Alfredo Jerusalinsky

gicos que, na definição da categoria de autismo, estavam se cometendo.Fui aplaudidíssimo. Mas, o presidente da Comissão Científica disse

que eu tinha insultado a Comissão Científica. Eu retruquei que havia so-mente discrepado da Comissão Científica. Os conceitos do DSM IV – e os do DSM V –, também não levam em conta para nada essas últimas desco-bertas da neurociência. Há um grande neurocientista chamado Bonhomme – que escreveu, em 2009 ou 2010, um artigo relevante de como estão as questões em psicopatologia, a respeito da neurociência. Ele mostra que é um escândalo! A falsa implementação e negação da descoberta. Entre outras coisas, ele coloca em relevo o que se passou, quando se reuniu o co-mitê preparatório do DSM V, em 1998 – se reuniu pela primeira vez em 1998 – ou seja, quatro anos depois de sair a versão revisada do DSM IV/1994 –, se reuniu o comitê com um grupo de referentes. Grupo de referentes quer dizer, de convidados cientistas de diversas ciências, entre outros, neuro-cientistas, para programar como iriam proceder para as revisões, correções ou modificações que dariam como resultante o DSM V, que vai sair – segun-do está programado –, em maio de 2013. Nessa reunião, uma das primeiras perguntas que se fez foi: “quais são os indicadores, os marcadores biológi-cos que se produziram desde 1992 – época da primeira aparição do DSM IV – até nossos dias, ou seja, até 1998. Tratava-se de tomar esses marca-dores biológicos como referentes para a nova classificação das doenças. E, entre os neurocientistas – havia muita gente que estudava com Bonhomme –, se levantou um e disse: “nenhum dos marcadores biológicos que têm se encontrado, desde 1998 até agora, é confiável, para lhe atribuir qualquer categoria psicopatológica. Vão ter que pensar em outra coisa: marcadores biológicos são justamente o contrário do que vocês pretendem, marcam a variabilidade e não a constância.

Então, o estado das coisas a respeito dos aportes freudianos é esse. Os neurocientistas sérios respeitam os aportes da psicanálise. Mais ainda, em geral, se analisam. Como Eric Kandel – Prêmio Nobel de Medicina, o maior neurocientista dos últimos 50 anos, prêmio Nobel do ano 2000. Ele, no seu livro sobre a memória, conta de sua análise pessoal. Ele diz: “graças à psicanálise eu fui melhor pai, melhor homem e melhor cientista. E eu não teria ganho o Nobel se não fosse pela psicanálise”.

REFERÊNCIASFREUD, Sigmund. Carta 52 [1896]. In: ____. Obras completas. 3 ed. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990. v. 1.

Recebido em 18/10/2013Aceito em 29/11/2013

Revisado por Renata Almeida

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p.19-26, jul. 2012/jun. 2013

Resumo: O texto aborda a temática do amor a partir da ideia de que esse sen-timento é condição necessária para que haja subjetivação da cria humana. Os encontros que se seguirão estarão marcados por esse processo inicial. Assim, o amor estará perpassado pela lei e pela falta que insere o humano no seu cole-tivo. O texto também apresenta os encontros amorosos à luz da teoria psicana-lítica e os considera poderosos aliados emocionais na quebra do individualismo isolador.Palavras-chave: amor, subjetivação, pulsões, falo, nome-do-pai.

A STUDY ABOUT THE LOVE Abstract: The text approaches the theme of love from the idea that this feeling is a necessary condition for a subjectivity of the human young to happen.The en-counters that will follow will be marked by this initial process.Thereby,the love will be permeated by the law and by the lack that inserts the human in its collective.The text also presents loving encounters through the light of the psychoanalytical theory and considers those strong emotional allies on the break of the isolator individualism.Keywords: love, subjectivity, drives, name-of-the-father.

UM ESTUDO SOBRE O AMOR1

Maria Ângela Bulhões2

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O amor e a erótica, realizada em Porto Alegre, março de 2012. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA; Psicóloga; Coordenadora do ambulatório do Hospital Psiquiátrico São Pedro; Super-visora do estágio de psicologia clínica. E-mail:[email protected]

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Maria Ângela Bulhões

Muitos estudos filosóficos se dedicaram a discutir o sentimento do amor, muitos poetas cantaram o amor, nós psicanalistas, em nossa Jorna-

da de Abertura deste ano, também iniciaremos tratando desse tema. Neste trabalho apresentarei a temática do amor alicerçada na sua condição de subjetivação da cria humana, já que consideramos esta a base para a vivên-cia de encontros amorosos ao longo de uma vida. Apresentarei também os encontros e desencontros amorosos dos casais à luz da teoria psicanalítica. E situo que, ao longo deste estudo, o sentimento do amor é apresentado na sua condição de resposta à falta estrutural que insere cada um na travessia singular de uma vida no coletivo.

Busco inicialmente o filme Late bloomers – O amor não tem fim, da diretora Julie Gavras (2011), como forma de ilustração. Essa película trata da história de um casal que na atualidade passa por uma crise conjugal quando, cada um a seu modo, percebe os sinais de seu próprio envelheci-mento. Nesse momento, homem e mulher reagem de formas diferentes ao reconhecimento da passagem do tempo: ela antecipa os cuidados com os possíveis ossos quebrados, coloca barras em vários lugares da casa e quer que ele a siga nesse mesmo caminho; ele é convidado a construir um asilo, pois é um arquiteto, e se percebe convocado ao lugar de velho precocemen-te, já que considera que essa é uma posição que ainda não lhe cabe, como bem mostra um moleton juvenil que começa a usar. O desencontro somente amplia o eco do que não está sendo passível de elaboração.

Na última parte do filme, quando já estão reconciliados amorosamen-te, depois dos desencontros que a noção do envelhecimento produziu, no cemitério, após o enterro da mãe dela, eles se jogam na grama, lembrando que é ali onde ambos vão terminar. Nesse momento, juntos, podem rir do que lhes causa medo. Naquele lugar, vem a lembrança de que eles ainda têm o que fazer antes da chegada da morte, e a cena seguinte abre para uma cama onde, embaixo do lençol, o jogo sexual acontece. Morte, amor e sexo: uma trilogia que vai produzindo os movimentos da vida. O amor ali tece, com a gentileza que lhe é possível, os fios que vão sendo tramados ao longo de encontros e desencontros, inícios e finais da existência humana.

Robert Solomon3 nos diz que o indivíduo contemporâneo perdeu os suportes tradicionais de doação de identidade, e que o sujeito é levado a se redescrever constantemente para se reassegurar do que, em si, é digno

3 Autor do campo da filosofia trabalhado por Jurandir Freire Costa, em seu livro Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico(1998).

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Um estudo sobre o amor

de inclusão na imagem do eu. Considera ainda que essa insegurança cons-titutiva da subjetividade moderna encontra no amor um lugar de repouso. Na sua concepção, na relação amorosa, mais do que em qualquer outra, ganhamos um tipo de certeza que pacifica a inquietude da reconstrução de si, que parece sem garantia de futuro.

O amor e o jogo das pulsões

Desde o início, é o amor parental que pode proteger o infans da pulsão de morte. Ao nascer, o bebê está muito mais próximo de uma posição de “não ser”, e depende de um cuidado singular, um interesse particularizado, e que podemos chamar de amoroso, para levá-lo a uma posição de “ser”. Posição de ser que não estará nunca garantida, já que padecemos da falta de essência do ser.

O jogo pulsional que Freud chamou de pulsão de morte e pulsão de vida estará permanentemente jogando com as posições de ser e não ser. O mal-estar será mantido do início ao fim da existência de cada um de nós, já que nosso destino de seres desnaturados nos impõe, a partir do real (sem sentido), o desamparo mais radical. Nossa construção psíquica se dará a partir da possibilidade de jogar com o sentido (imaginário) e com o duplo sentido (simbólico) para fazer frente a esse real (sem sentido) da existência.

O imaginário sustentado pelo reflexo do semelhante ao semelhante produz o sentido da unidade; sentido com o qual um indivíduo se serve, na ilusão existência substancializada. Na linguagem, o sentido deixa de ser único e passa a apresentar uma gama de possibilidades. A palavra viva se apresenta sempre com sua dimensão de equivocidade e, assim, o duplo sentido (simbólico) deixa de ter o caminho único de uma existência e insere o sujeito num coletivo. A sociedade, através de seus ideais, insere cada um na rede de sustentação inscrita pelo falo simbólico. O inconsciente torna-se relacional, fazendo o laço entre corpo e linguagem.

Num primeiro momento, tomados na posição de objeto de amor de um Outro (primeiros cuidadores), estamos na dimensão da alienação do amor. Sua dimensão imaginária está em fornecer ao bebê uma unidade ao corpo despedaçado pela pulsão. Gérard Pommier (1992), falando do amor como resposta à falta de ser que é o destino comum de todos, nos diz: “amar terá tido como função representar o irrepresentável do corpo que supostamente resido” (p.48). O amor, dessa forma, produz a unidade necessária para a base de uma existência. A vida somente se manterá se houver essa ligação. Mas também é por amor que o pequeno rebento é entregue ao grupo ao qual pertence. O pequeno bebê não veio ao mundo apenas para locupletar

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Maria Ângela Bulhões

seus pais, sedentos de reflexos narcísicos, mas também como resultado da relação desses pais com a dívida simbólica. Assim sendo, faz do amor um sentimento perpassado pela lei e pela falta que barra o Outro. Tanto em sua face imaginária quanto em sua face simbólica, o amor está a serviço da pulsão de vida, pulsão que produz ligação.

Freud, quando nos apresentou seu conceito de pulsão, destacou seu caráter conservador, lembrando que ela visa manter sempre seu estado an-terior. A pulsão de morte, trabalhando para conservar o não ser inicial, e a pulsão de vida, trabalhando para preservar o ser que se criou e que deve ser preservado em sua existência. As pulsões de morte e vida são, desde seu início, amalgamadas e podem ser pensadas, inclusive, como uma única pulsão com diferentes qualidades.

Coutinho Jorge (2010) nos diz:

A fantasia amorosa do Outro parental e o desejo que ela susten-ta, ao erogenizar o corpo do bebê e nele investir maciçamente sua libido, produz um aplacamento da pulsão de morte e traz uma grande porção desta para o âmbito do princípio do prazer (p.165).

Podemos considerar que esse processo inicia-se com o nascimento e abre as portas para que a vida possa ser mais erotizada do que a morte. O Outro parental, atravessado pela função paterna, produz o amor na sua face relacional e lança o bebê para um destino dos encontros parciais e múltiplos que a vida pode proporcionar.

Todavia, muitas vezes também é classificado como amor um sentimen-to que se apresenta de forma mortífera. Este parece existir quando a con-tingência do encontro fica substituída pela necessidade da presença. Entre-tanto, talvez seja mais correto utilizar o termo paixão quando já estamos no horizonte da necessidade, na condição do fusionamento do sujeito e objeto. Georges Bataille (1988) nos diz:

A essência da paixão é a substituição da persistente descontinui-dade por uma maravilhosa continuidade entre dois seres. Essa continuidade é, no entanto, particularmente sensível na angústia, na medida em que é inacessível, na medida em que é uma procura em impotência e em temor (p.18).

O gozo contínuo buscado pela paixão talvez somente possa encontrar seu limite no amor e no prazer. De outra forma, podemos considerar que essa paixão esteja tomada apenas pela face imaginária e mortífera do amor

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Um estudo sobre o amor

narcísico, correndo o risco de encontrar na morte seu último limite. Temos como exemplo os grupos que intitulam-se mulheres que amam demais, to-madas pela compulsão de uma união que não admite a borda. Outro exem-plo são as mães que não suportam a existência de filhos separados de si próprias e que acabam por produzir a morte do sujeito filho. Ou mesmo, os homens que não aceitam o rompimento de um relacionamento e que aca-bam por matar suas ex-companheiras, incapazes de se imaginarem separa-dos delas. Seria correto utilizar o termo amor para tratar de uma relação tão mortífera? Seria justificável chamar de relação um encontro tão sustentado na homogeneidade?

O amor e o desejo

Pommier (1992) escreve, em seu livro A ordem sexual, um capítulo chamado: a equivocação do amor. Mesmo tendo escolhido esse título e considerando o encontro amoroso como certo mal entendido, ele acaba nos apresentando a possibilidade de uma estabilidade, se não idílica, pelo menos uma que conduz ao que chama de dialética da irrelação.

Ele nos apresenta o amor como fazendo parte de um processo subli-matório, já que a partir deste podemos responder ao vazio que nos habita pela via da produção do objeto amado. Como exibir o que falta? Não viria a pessoa amada dar corpo a esse irrepresentável? Não viria o olhar amoroso dar-me contorno e deixar-me menos desamparado frente ao enigma do que querem de mim e ao qual não sei responder? De qualquer forma, esse autor vai desfiando passo por passo o que faz uma relação entre um homem e uma mulher (não necessariamente falando de gêneros, mas do par ativo e passivo no sentido freudiano) poder encontrar um ponto de equilíbrio.

Pommier (1992) nos oferece como hipótese sobre esse equilíbrio a formulação de que a sustentação da relação se daria por uma espécie de troca dos Nomes do pai. Considera que a mulher só é o Nome do pai na me-dida em que um homem a deseje e, em contrapartida, ela dá ao homem um outro Nome, que atando-se ao símbolo (falo), traz uma regulação à loucura do desejo do homem.

Para esse autor, a mulher está na mesma categoria que uma obra (em sua vertente sublimatória) para um homem. O homem faz, apartir de seu desejo, a mulher como obra. Se o desejo do homem cria a mulher, faz-se desse um criador singular, pois o artista que assina é também criado como consequência de sua obra. Ela faz seu Nome. Portanto, obra e criador encontram-se amarrados pela criação. A obra vem dar contorno ao vazio, assim como o vaso se faz a partir de seu buraco. Enquanto ela goza, para

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ele, a essência da existência dele ficaria assegurada. Ao mesmo tempo, é com a castração que o homem se depara quando uma mulher se volta e corresponde ao seu desejo, na medida em que isso exige o relançamento desse desejo. Muitas vezes, é nesse momento que acontece a fuga mascu-lina, pois o amor de uma mulher põe à prova o Nome, o simbólico, o mais além da vida em que se apoia sua existência. Assim, o amor de uma mulher produz a lei para um homem.

Do lado da mulher, é a partir de seu vazio que ela se oferece ao desejo de um homem. É com o falo que ela estará identificada, e nesse momen-to muito próxima desse, pode buscar a esquiva. Esquiva que ironicamente pode produzir mais desejo do lado do homem e esse, ao se lançar em sua caça, une-se por sua ereção ao símbolo falo que persegue.

E o jogo continua, pois, na produção do desejo, ela se faz falo na pró-pria ereção que produz no amante. A mulher pode desejar o falo com o qual se vê identificada e/ou o Nome do homem que ama. O desejo pelo pênis pode ter relativa autonomia sem que tenha que inexistir o amor pelo Nome. A ligação ao Nome, em seu extremo, não implicaria o sexo, e a ligação ao falo em seu extremo só implicaria o sexo. Pommier nos diz: “Entre o Nome e o Falo, portanto, existe uma distância que o amor espera reduzir” (p.56). Então, o amor pela via do ideal viria fazer a negociação, mediação, entre sexo e Nome. O autor constrói um texto que nos possibilita acompanhar e compreender as artimanhas dessa enigmática dança do casal, ao desfiar fio por fio como se dá o encontro e o desencontro do amor e do desejo.

O circuito de gozo da vida sexual, ainda segundo Pommier, encontraria então sua ancoragem e ponto de paragem nessa troca cruzada de Nomes do pai. Esse empréstimo que cada um faria de sua ancoragem produziria essa contingência do amor. Talvez por isso o amor muitas vezes seja cha-mado de porto seguro. Nosso barco se aventuraria pelo desejo em alto mar e nos levaria de porto em porto pela via do amor.

Outro autor que trabalha o tema do amor, Coutinho Jorge (2010), de-senvolve a hipótese de que a fantasia, que para ele é que faz a ligação entre o inconsciente e a pulsão, apresenta um polo de amor e um polo de gozo. Ele diz: “a fantasia se organiza sempre em torno de uma falta que sustenta o desejo a ser preenchida pelo amor ou pelo gozo” (p.109). Ainda afirma que o polo do lado do amor seria o polo paterno, responsável pela clínica das neuroses, e o polo do lado do gozo seria o polo materno, responsável pela clínica das perversões. Segundo ele, a fantasia neurótica é uma fan-tasia de completude amorosa; o neurótico almeja resgatar a completude supostamente perdida através do amor. Para ele, a clínica psicanalítica que opera pela transferência é fundamentalmente uma clínica da neurose.

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Um estudo sobre o amor

Mesmo tecendo tratamento diferente ao mesmo tema, os autores Pom-mier e Coutinho Jorge nos apresentam os elementos Nome, falo, sujeito e gozo no desenvolvimento da teoria que trata da divisão estrutural do sujeito, e ambos consideram o amor como uma possibilidade de resposta a essa vivência da falta.

O amor como resposta

Lacan (2003) afirma: “toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo” (p.362). Podemos pensar então no amor, como esse sentimento humano que tem como função, refrear o gozo e apa-ziguar a alma?

As palavras do poeta, cantor e compositor Zeca Baleiro4, falam com clareza sobre o laço e o efeito que o sentimento do amor pode produzir em quem o vive. Ele canta: “você me faz parecer menos só, menos sozinho, você me faz parecer menos pó, menos pozinho”. Sem deslizar para a ide-alização do amor romântico, por considerar que existem inúmeras formas de viver o sentimento do amor, ainda assim, consideramos que vivenciar encontros amorosos pode ser um poderoso aliado emocional na quebra de um individualismo isolador.

No final de seu seminário Encore, Lacan ([1972-1973] 2010) vai se perguntar sobre a contingência da existência do que “cessa de não se es-crever”, sabendo que o que “não cessa de não se escrever” é a relação sexual. Pois homens e mulheres não estabelecem complementaridade. E disso ele trata ao longo de todo seu seminário. No final, então, ele pergunta: “se o amor não produziria essa ilusão de que alguma coisa não só se arti-cule, mas se inscreva no destino de cada um, pela qual durante um tempo, um tempo de suspensão, esse algo que seria a relação encontre, no ser que fala, seu rastro e sua via de miragem?”(p.275). Continuando ainda, ele vai dizer que o amor almejaria que essa contingência fosse substituída pela necessidade, e que essa impossibilidade faz o destino e o drama do amor. Portanto, soframos ou não com isso, é da natureza do amor ser contingente.

Mesmo levantando sua condição de contingência e o considerando meio claudicante, Lacan vai dizer que nossa escuta de analistas deveria possibilitar que nossos analisantes pudessem chegar mesmo assim a dar uma sombra de vida a esse sentimento dito amor.

4 Cantor de música popular brasileira. Os versos aqui referidos estão na música Azeviche (menos só).

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O amor deve saber e também suportar que não há continuidade, já que somente podemos falar em relação amorosa quando estamos no terreno da outricidade, isto é, se o outro é realmente outro para mim e, ainda assim, se produz um encontro de ligação. Aí está a verdadeira beleza do amor!

Minha ideia com este trabalho era resgatar a força do sentimento estar com, num tempo em que o individualismo tornou-se marca obrigatória. E retomar o termo amor no campo psicanalítico como expressão de uma força verdadeiramente transformadora.

REFERÊNCIASBATAILLE, Georges. O erotismo. 3. ed. Lisboa: Edições Antígona, 1988.COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor: um estudo sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Ed.Rocco, 1998.JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia v.2. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.LACAN, Jacques. Outros escritos. Alocução sobre as psicoses da criança [1967]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 360-368.LACAN, Jacques. Encore [1972-1973]. Rio de Janeiro. Edição não comercial desti-nada exclusivamente aos membros da Escola Letra Freudiana, 2010.POMMIER, Gérard. A ordem sexual: perversão, desejo e gozo. Tradução, Vera Ri-beiro; revisão, Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1992.

Recebido em 10/10/2012

Aceito em 12/05/1013Revisado por Simone Goulart Kasper

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TEXTOS

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Resumo: O texto aborda os impasses e as possibilidades da relação mãe-filha. Discute, a partir da teorização de Freud e Lacan, os momentos constitutivos – resolução edípica e traço identificatório – que ocorrem na passagem da filha/menina à mulher, a partir da falta de um significante que designe especifica-mente a feminilidade. Trabalha, também, o papel do pai diante do par mãe-filha. Palavras-chave: relação pré-edípica, complexo de Édipo, relação mãe-filha, fe-minilidade, identificação feminina.

MATERNAL PEARLSAbstract: The text approaches the impasses and possibilities of the mother-daughter relation. Discuss, from the theorization of Freud and Lacan, the con-stitutive moments-oedipal resolution and the identificatory trace ̶ that occur in the passage of the daughter/girl to woman, from the lack of a significant that designate specifically the fiminity. Works, also, the role of the father to the pair mother-daughter.Keywords: pre oedipal relation, Oedipus complex, mother-daughter relation, femininity, feminine identification.

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O amor e a erótica, realizada em março de 2012, Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto AP-POA. E-mail: [email protected]

PÉROLAS MATERNAS1

Eda Estevanell Tavares2

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 27-39, jul. 2012/jun. 2013

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Adolescente, Ana desejava ardentemente, ser uma mulher de 38 anos vestida de cetim negro com um colar de pérolas, saltos altos. Ela lembra de sua mãe preparando-se para sair com o pai, para levar sua misteriosa vida de mulher [...]. Essa imagem materna a fizera sonhar desde menina e a levara a esconder-se no guarda-roupa da mãe, encantada com a textura de seus vestidos e a im-pregnação de seus perfumes, ensaiando uma condição feminina a ser adquirida para si própria (Zalcberg, 2003, p.149).

Ocolar de pérolas, com o qual as mulheres adornam seus corpos, é um nobre representante dos infindáveis objetos “acessórios” que uma mu-

lher coleciona incansavelmente durante sua vida, para com eles fetichizar seu corpo e torná-lo desejável. O termo pérolas também alude, metaforica-mente, às palavras, aos ditos preciosos, capazes de condensar sentidos.

Assim é o colar da feminilidade feito de pérolas/fetiches, pérolas/pa-lavras unidas no fio da identificação primordial materna É sobre esse colar e seu papel, no destino amoroso e erótico da menina, que me proponho a pensar neste artigo.

Como sabemos desde Freud ([1931] 1974), o complexo de Édipo da menina não se dá da mesma forma que para o menino. Podemos recapitular brevemente: o menino já tem a relação de amor com a mãe em decorrência do papel desta desde seu nascimento, assim sairá do complexo de Édipo pela ameaça de castração. Identificar-se ao pai e, então, possuidor das in-sígnias paternas, o preparará para suas conquistas amorosas no futuro. A menina, não tendo o que temer frente à ameaça de castração, entrará no Édipo justamente em função dela. Abandonará a mãe que a fez castrada e se voltará para o pai, para lhe pedir um filho, como compensação para o pênis que não recebeu. Diante da negativa do pai, esperará que, no futuro, outro homem possa lhe dar a devida compensação.

A intervenção do pai no Édipo deixa tanto o menino, quanto a meni-na, com uma identificação viril ao pai, o que é estruturante da sua posição de sujeito. Para o menino, ficará resolvida sua questão identificatória, bem como a separação da mãe. Mas para a menina, a intervenção não será resolutiva: ela precisará encontrar uma identificação feminina, o que a leva a procurar na mãe, mulher como ela, buscando os traços que guardam o segredo desse modo de ser que a faz feminina. Esse retorno à mãe faz com que haja um resto, uma separação que não se efetua de modo completo. Como sustentava Freud, tanto a relação pré-edípica com a mãe, quanto a edípica com o pai, não são totalmente suprimidas com a dissolução do complexo de Édipo.

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Então, Freud, na conferência A feminilidade ([1933] 1974), diz que, para se aproximar do enigma feminino, será necessário valorizarmos a fase da vinculação pré-edípica da menina com sua mãe.

Pela intervenção do pai, a menina deve abandonar a mãe como objeto de amor, mas conservá-la como pivô de sua identificação (André, 1987), embora não exista um significante que sustente essa identificação feminina com a mãe. Lacan ([1972-1973] 1985), no seminário Mais, ainda, sustentará que a mulher não está toda inscrita na função fálica. A mulher não existe, dirá ele provocativamente, não existe um significante que a represente es-pecificamente, como mulher, como o falo o é do lado masculino. A mulher existe apenas uma a uma, sem estar totalmente sob o abrigo do simbólico. Não há um significante no Outro que nomeie o que é uma mulher. A menina vai tentar, então, encontrar na sua mãe uma resposta ao enigma de ser mulher. Esse retorno à mãe implicaria que ser mulher, então, obriga a filha a carregar sua mãe durante a vida toda?

A sabedoria milenar condensada na mitologia grega, fonte em que a psicanálise sempre se inspirou, traz essa questão no mito de Deméter e Cora. Deméter era uma mãe muito zelosa e intensamente ligada à sua filha, Cora. Hades, rei do Tártaro (do reino dos mortos), desejava uma esposa, mas sem muitas candidatas entusiamadas (quem é que quereria ser rainha de tal reino?), resolve seu problema no velho estilo: rapta a bela Cora. De-méter, desesperada, busca incansavelmente a filha sem encontrá-la sobre a terra, que fica coberta de desolação, reflexo de seu sentimento de despojo (ela deusa da terra cultivada). Informada do destino de sua filha, Deméter pede a Zeus (pai de Cora) que repare a injúria e que a filha lhe seja devol-vida. Zeus assente, desde que Cora não tenha comido o fruto dos mortos (uma semente de romã). Tarde demais, Cora já era Perséfone, amada de Hades e rainha do Tártaro. Para tentar contentar as partes envolvidas e restituir a fertilidade à terra desolada pelo inverno, Zeus estabelece que Perséfone passará alguns meses com seu marido no inferno, época em que na terra nada se planta, e alguns meses com sua mãe, na terra dos vivos, tempo de plantio e colheita (Robles, 2000).

Metáfora mitológica que nos leva a perceber o quanto se impõe uma negociação a ser feita com a mãe, para que uma mulher possa aceder à vida erótica e amorosa com um homem.

Retomando: a mãe, enquanto Outro primordial, é quem diz à criança quem ela é, na medida em que é no olhar materno que ela obtém a sua imagem. É por isso que a menina novamente vai buscar o olhar materno na tentativa de encontrar resposta para uma segunda pergunta: o que é ser mulher? Aqui, a mãe não é apenas o Outro primordial, a mãe fálica, mas

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é a mãe-mulher que a menina busca. A mãe desdobra-se em duas para uma menina: a mãe que exerce a função materna de Outro primordial e a mãe-mulher, que tem uma função feminina, como define Malvine Zalcberg (2003). Diríamos: uma mãe aquém do Édipo e uma mãe além do Édipo. In-teressante tomarmos a polissemia que o “aquém” permite em nossa língua: significando um antes, mas também uma posição que deixa a desejar.

O enigma da feminilidade não tem uma resposta, não há um signifi-cante para a mulher, é um além palavras, nada pode ser dito. Consequen-temente, ela buscará um amor eterno que a reconheça, para encontrar um lugar no Outro, e a indagação, a inquirição constantemente endereçada às outras mulheres ̶ nada mais feminino ̶ de qual delas teria esse algo a mais que a ela lhe falta. É a partir do preenchimento figurado dessa falta que a mulher vai fazer sua mascarada na comédia dos sexos, e sua relação com o gozo Outro.

A busca de um significante do feminino que forja uma identificação feminina é, então, um processo trabalhoso, contínuo e inevitavelmente sofri-do. A busca, na mãe, de uma resposta será em vão: a mãe-mulher não tem como lhe oferecer essa resposta. Dirá Malvine Zalcberg:

Nesse registro do mais além do alcance das palavras é onde se encontra tudo o que há de particular na sexualidade feminina, o que explica por que a relação mãe-filha guarda seu caráter es-pecial: sendo ambas mulheres, mergulham profundamente suas raízes no campo do mais-além do que as palavras podem recobrir (Zalcberg, 2003, p.119).

Mas a filha se queixa à mãe por uma impossível resposta e, diante desse desamparo, se produz o ressentimento “[...] como tu que és mulher e seduzes meu pai, não me dizes como se torna mulher?” (Melman apud Laznik, 2003, p.99).

Para Freud ([1933] 1974) era, então, a relação pré-edípica com a mãe que determinava o futuro da menina como mulher. O caminho para voltar-se para o pai e, posteriormente, para um homem, só seria possível se não tivesse ficado obstruído pela ligação primária com a mãe (Zalcberg, 2003).

Freud tentou elencar todos os motivos que alimentam a queixa infin-dável de uma filha para com sua mãe. Assoun (1993) as resume em duas razões para o caráter interminável dessa queixa: a primeira, a castração; a segunda, o amor desmedido demandado à mãe pela filha, que exige ex-clusividade, é desprovido de alvo e, portanto está condenado à desilusão e à hostilidade. Inventam-se os meios para justificar um término de relação,

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numa “DR”3 infindável. “Amor sem futuro: é realmente esse o ponto em que se estabelece a tragédia da relação mãe-filha” (Assoun, 1993, p.104). É a partir dessa desilusão amorosa que elas podem se separar, e a filha se tornar mulher. Enfim, resta algo de amor na relação mãe-filha? A questão é justamente um excesso amoroso que se torna insuportável e precisa en-contrar seu fim.

A desilusão amorosa está enlaçada à condição de refém da relação anterior com a mãe. É aí que surge a catástrofe, como Freud definia, ou a devastação, na definição lacaniana, da relação mãe-filha. Tanto mais res-sentida ficará a filha quanto mais prisioneira de uma mãe poderosa – en-quanto Outro primordial – em que a ilusão de um poder de doação infinito esteve no horizonte, tanto mais a mãe é percebida como doadora de amor e vida; mais, em consequência, também possível doadora de morte (Zalc-berg, 2003).

O efeito da metáfora paterna para a mulher deixa um resto que a apro-xima do real, a uma proximidade da posição do objeto de gozo que ela teria sido na fantasia de sua mãe quando bebê. Por outro lado, é nessa posição que, na fantasia de um homem, ela virá a ser colocada, o que a deixa no temor de um retorno a esse Outro primordial do qual a mãe ocupou o cargo. Isso faz com que permaneça o temor de que seu corpo não lhe pertença, e que possa ser propriedade do Outro para dele gozar.

Eliane Brum (2013) disseca a relação mãe/filha no livro Uma/duas. Num determinado momento, a filha dirá: “Para mim, nunca houve um cor-dão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe” (p.15). Muitas vezes, a tentativa de separação ocorre no próprio corpo, cortes que cortam a carne tentando se-parar esses corpos tão iguais, tão próximos.

Continua a filha em Uma/duas: “Estou tentando me salvar, ainda que tenha que cortar as próprias cicatrizes se já não houver carne ainda não aberta. E um dia terei uma nova pele, um corpo inteiramente recortado por mim” (Brum, 2013, p. 90).

A tentativa de separação pode desembocar na impossibilidade da ma-ternidade para a filha. Como diz Cíntia Moscovich (2006):

3 Forma abreviada para a expressão: discutir a relação.

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Talvez por isso, por testemunhar o escandaloso poder materno, por saber que a demonstração de amor exigida de um filho não conta, por sofrer na própria carne a dor infeliz por quem chamo com o nome de mãe, decidi não incorrer no erro. Não tive filhos, não dei sequência aos absurdos (p.34).

Em contrapartida, a saída poderá ser justamente pelo viés da ma-ternidade, oferecendo à mãe a própria filha, tentando que a substituta lhe sirva de passagem de partida. Diz a filha em Uma/duas: “A outra filha que eu escondia e que minha mãe aspirava com seu faro de bicho. Se eu entregasse essa outra, será que ela me deixaria viver fora dela?” (Brum, 2013, p.91).

Tal perspectiva instala entre mãe e filha um clima de guerra feito de queixas de tamanho assustador (como visto anteriormente), um temor de ser engolida, apagada no qual, não raramente, se entreveem traços para-noicos. Assim, a menina, na relação com a mãe, vai lutar e manifestar um ódio mais visível para poder separar-se dela e, então, se voltar para o amor do pai e, posteriormente, de um homem.

Relata a filha em Uma/duas: “Aquela mãe que insiste em seguir vi-vendo como uma realidade para ela. Mais viva ainda porque odeia e ama aquela mãe com a mesma intensidade, embora só tente odiar” (Brum, 2013, p.11).

Prisioneira da demanda do Outro, pela necessidade da compensação para sua falta-a-ser enquanto sujeito e enquanto mulher, a menina busca uma resposta em ser amada pela mãe. A relação primária com a mãe, pelo seu poder de amor, é extremamente ambivalente, na qual o ódio se faz ma-nifesto. Assim também o é para o menino, mas, como lembra Serge André (1987), ele poderá liquidar a sua quota de ódio dirigindo-a ao pai e reservan-do à mãe a fatia de amor da relação primária.

Dessas tentativas fragorosas de separação há um caso muito para-digmático na história da psicanálise. Melanie Klein teve uma filha, Melitta, que se tornou psicanalista como ela. Com o tempo, Melitta foi divergindo das posições teóricas da mãe, e foi justamente ela a denunciar as intrigas nos bastidores da Sociedade Britânica de Psicanálise, onde sua mãe foi a principal protagonista (Fendrik, 1991). As duras relações entre elas, cada vez com mais fervor destrutivo, terminaram em rompimento com detalhes apimentados. Melitta faltou ao enterro da mãe, reservando esse momen-to para proferir uma palestra em Londres, vestindo fulgurantes botas ver-melhas numa época que exigia rigoroso luto negro em tais circunstâncias (Grosskurth, 2000).

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Malvine Zalcberg (2003) nos lembra que:

[...] se o ressentimento de uma filha em relação à mãe a ajuda a separar-se da mesma, trata-se de um sentimento que precisa, como toda paixão, ser permanentemente reeditado. O ressenti-mento separa, mas não pacifica a relação [...] Queixas e rancores que se reeditam, tantas vezes por toda a vida das duas e, não poucas, além túmulo (p.47).

Enfim, uma relação lapidar.Se há um ressentimento que não encontra seu apaziguamento por par-

te da filha, a mãe, por seu lado, se queixará de uma injustiça que a filha lhe faz pagar à pena. No romance Uma/duas, protesta a mãe: “Desde pequena você sempre teve medo de assumir o desejo como seu. A covardia e a mal-dade que eram também suas [...]. Eu não deixarei que você coloque mais uma violência na minha conta” (Brum, p.71). Nesse exemplo, vemos como é mais suportável demandar à mãe amor e reconhecimento, numa queixa infindável, do que dar conta do próprio desejo.

Da mesma forma, a expectativa endereçada à mãe de receber uma palavra conclusiva sobre o que é ser mulher, somada à posição de oráculo ̶ pelo fato de estar situada na conjunção de ter sido Outro primordial e ser mulher ̶ faz com que toda palavra dirigida à filha possa ser tomada como uma sentença sem apelação. Não há palavra vazia possível para uma mãe, sequer uma. E disso, as mães se queixam bastante.

Mãe e filha se veem assim prisioneiras da queixa mútua de não en-contrar um significante para o ser mulher. A mãe não tem como dar o que a filha pede, não tem como dar o que não pode ser dito sobre o gozo feminino.

A queixa se sustenta pela impossibilidade de privar a mãe do prazer que lhe proporciona, ao ser uma boneca maleável ao gozo materno, e que ela, como filha, também obtém seu quinhão de prazer em tentar ser a bone-ca fálica da mãe. Perder o amor da mãe pode então significar se perder e, assim, se mantém no porto “seguro” da dominação amorosa e erótica ma-terna, mesmo tendo um parceiro ao lado. São os frequentes trios: marido, mulher e sua mãe. A famosa sogra das piadas masculinas.

A maternidade da filha a fará revisitar seus traços identificatórios com a mãe e sua condição feminina diante da castração e, certamente, a da própria mãe, e esse poderá ser um momento fecundo de reelaboração do laço materno.

Com otimismo, mesmo que tardiamente, Madeleine Gueydan (apud Laznik, 2003) levanta a hipótese de que a menopausa ̶ diante da impos-

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sibilidade de sutura da ferida da castração através da maternidade do filho como equivalente fálico ̶, reintroduz a castração e uma reabertura do in-consciente. Haveria então “a possibilidade de uma elaboração secundária: um remanejamento do material psíquico em função de um novo objetivo. Esse remanejamento do Édipo permitiria – enfim – às mulheres renunciar ao materno e à mãe” (p.51), reabrindo a possibilidade de um gozo propria-mente feminino. Longuíssimo o percurso para tal conquista; mas antes tarde do que nunca...

A história de Melanie Klein e os efeitos que teve, na sua produção teóri-ca e de vida, nos mostram que, na história passional de mães e filhas, o pai tem um papel central. Justamente, nessa história de desfecho pouco feliz, o pai foi coadjuvante, um papel pouco definido, apagado no aglomerado mãe-pai-filhos.

Se a função terceira do pai, enquanto corte de separação do filho de sua mãe, não depende do senhor pai, no destino da vida amorosa e sexual da filha, o pai, o homem da mãe, pode ter um papel essencial. O corte intro-duzido pelo terceiro faz uma separação que deixa a menina sem saber onde se reconhecer. É o olhar desejante do pai, como homem, dirigido à filha, como obsceno, definição de Alfredo Jerusalinsky (2000), o que pode lhe permitir à filha buscar no seu olhar, e não no da mãe, o espelho onde possa constituir seu sinthome (de estrutura) feminino. Se o que falta não encontra alguma versão imaginária, é na reunificação ao corpo materno que a filha voltará na busca de uma.

Retomando, em Uma/duas (2013) – a filha dirá: “Na manhã seguinte, o homem que nunca esteve lá não estava lá. Tinha me abandonado no estô-mago do dragão negro onde eu continuaria a ser digerida noite após noite” (Brum, p.40).

As queixas de abuso sexual por seus pais, das histéricas freudianas, como traz Pommier (1992), colocam a perspectiva de que é melhor ser abu-sada pelo pai do que não ter dele nenhum desejo, o desamparo é muito pior.

O desejo paterno passa pela mãe: “Por uma parte de si mesma, a mãe enquanto mulher, marca para o filho um lugar em posição terceira” (Julien, 2000, p.48). O desejo paterno quando tem eco na mãe, que é mulher, pro-duz efeito desse desejo sobre a filha, é o que vai moldar a posição feminina no erotismo dela. Se o pai dirige um olhar desejante à filha, desejo que não é avalizado pelo desejo da mãe por esse homem, se permitirá a pequena mulher, que é a filha, vislumbrar um desejo próprio pelos homens? Não deixará de ter sequelas na vida erótica da filha, como a dificuldade de partir na busca do poder fálico na vertente do homem (Zalcberg, 2003), se seu primeiro amor foi um homem desvalorizado e não desejado pela mãe.

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Como diz em Uma/duas a filha: “Ela gostava de me botar na cama dela. Na cama de casal onde deveria dormir o meu pai, mas em que dormia eu” (Brum, 2013, p. 32).

Para onde se dirige o olhar do pai? Muito se sabe da importância de a mãe reconhecer o pai, do valor de sua palavra ter que ser reconhecido pela mãe, para ter efeito de introduzir o terceiro na relação. Mas, também é de crucial importância o reconhecimento que o pai faz da mãe, lhe outorgando um lugar de valor no discurso social. Se a mãe ocupa um lugar socialmen-te desvalorizado (a prostituta, ou a empregada da casa que também deve servir sexualmente o patrão como um objeto de uso, por exemplo), isso terá consequências na sexualidade da filha: a sexualidade poderá, assim, ser vista como vergonhosa, uma sexualidade não reconhecida, que então encontra dificuldade em se manifestar.

Se a mãe é rebaixada no seu valor fálico no discurso social, por dese-jar um homem/pai indigno, isso não terá melhores efeitos no destino erótico da filha.

Diante do affair pai-filha, a mãe poderá se mostrar uma rival encarne-cida, não suportando a relação amorosa entre eles. Rivalidade eternizada nos contos de fadas, como bem nos apontaram Diana e Mário Corso (2006).

A insuportabilidade para a mãe de que haja uma relação amorosa en-tre pai e filha pode ser o obstáculo no caminho da filha em direção ao pai. Como fica explícito no romance Uma/duas – a filha:

Ele me olhava com amor e parecia querer me tocar, mas havia sempre a minha mãe atenta. Sempre pronta a abocanhar o gesto de carinho do meu pai no ar. Minha mãe aparecia na porta da co-zinha com olhos acusadores e arranjava algo para eu fazer longe dele (Brum, 2013, p.33-34).

Paradoxalmente, o olhar da mãe que vê na filha uma rival, reconhece nela o advir de uma mulher capaz de seduzir um homem. O olhar dese-jante do pai, seduzido pela sua pequena princesa, e o olhar incomodado e ameaçador da mãe, diante dessa pequena intrometida, ajudam a menina a encontrar o espelho onde antevê uma possível imagem de mulher capaz de seduzir os corações masculinos.

A rivalidade ajuda a afastar mãe e filha e protege a filha do incesto, esse homem já tem uma mulher. Assim, também não é indiferente se a mãe deseja, como mulher, esse pai, ou se ele é apenas o genitor, desqualificado, sem representação no desejo materno. Por outro lado, é o amor pelo pai que faz a menina se afastar da mãe e, por esse amor ao pai, entrar na femi-

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nilidade. Mas, como lembra Pommier (1992), o preço da feminilidade gera um aumento da dívida em relação à mãe, pois será contra a mãe. Esse en-dividamento pode gerar um sentimento de ser uma menina má e não poder separar esse peso ligado ao seu sexo e a uma busca incompreensível do perdão materno por um amor legítimo.

Em Uma/duas – a mãe que um dia foi filha diz: “Tínhamos uma boa vida, eu e ele, dentro de casa. E às vezes eu pensava que era bom não ter mãe. E esse pensamento me deixava um pouco culpada” (Brum, 2013, p.80).

Freudianamente, é um filho homem que satisfaria completamente a mãe, permitindo a restituição fálica: pênis-falo-bebê. O nascimento de uma filha poderá reavivar na mãe uma séria turbulência psíquica. A menina que nasce evocará a menina que ela foi, todas as suas dificuldades, o quão prisioneiro o falo ficou do pênis, e alimenta a inveja; temores e débitos da relação com sua própria mãe.

Essa relação estará marcada por como a mãe lida/suporta sua falta e como ela se significa no ser mulher. Muitas vezes, a mãe vive sua condição de mulher como uma ferida e não suporta sua imagem refletida na filha, ou faz da filha o instrumento de vingança e restituição fálica, numa apro-priação narcísica abusiva, como define Zalcberg (2003). A filha teria que “cumprir um destino de exceção que compensaria a mãe de suas próprias frustrações narcísicas” (Zalcberg, 2003, p.169). Ama a filha ou se ama a si mesma? Para dois seres tão semelhantes, fácil confundir quem é quem no destinatário do amor. Quanto mais a mãe ama a si mesma, na imagem ide-alizada endereçada à filha, mais a filha a transforma em pouca estima por si, demanda insaciável de reconhecimento e exigência de amor insatisfeito (Zalcberg, 2003)

Paradigmática é a história de Hildegart Rodríguez. Sua mãe, Aurora, criou-se em uma família espanhola, da elite, com ideais revolucionários. Sua formação intelectual, mas sem brilho, a levou a conceber uma maneira especial de educação, que utilizou com o sobrinho, que se transformou num grande pianista. Esse filho adotivo acabou sendo levado pela mãe biológica e nunca retomou seus laços com a tia. Depois dessa ruptura, decide que vai inaugurar uma classe de indivíduos. Planejou ter uma filha que seria a primeira dessa linhagem de superdotados. Assim, nasceu Hildegart – jardim da sabedoria. Tinha que ser uma filha mulher, pois, nas palavras da mãe, “ninguém precisa com maior urgência ser redimida que a mulher. É, por mais doloroso que resulte confessá-lo, o pior da espécie humana” (Montero, 2003, p.216) Pensamento corrente na época, inícios do século XX, e nin-guém era tomado por louco por isso.

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O empenho de Aurora não foi pouco e, com 3 anos, Hildegart falava e escrevia corretamente; aos 8 dominava quatro idiomas; aos 14 já tinha vida pública: escrevia no Jornal El Socialista e era vice-presidente da Juventude Socialista; aos 17 concluiu o curso de Direito, também estudava Medicina e ainda teve tempo para escrever um par de livros. Logicamente era famosa. Sua mãe, uma aderência inseparável.

Aos 18, é convidada por H. G. Wells e Havellock Ellis para ir à Inglater-ra. Cansada da onipresença sufocante da mãe, lhe comunica que pretende ir sozinha. Inconformada, três dias antes da partida, a mãe dispara três tiros contra a cabeça da filha (Montero, 2003).

Marie Christine Laznik finaliza seu livro, Complexo de Jocasta (2003), com um alerta: para nossas filhas, antes que seja tarde. Para a autora, as mães pós-68 transmitiram três registros de realização possível no ser mu-lher: a realização social, a desejabilidade do ser mulher e a maternidade. Assim, tal como os homens, elas têm direito à realização social; esse campo também é de circulação para elas; podem ser belas, desejáveis e se deixa-rem cortejar; e podem viver o apaixonamento de ser mãe.

Mas, segundo Laznick (2003), por estarem tão tomadas em obter a paridade, a igualdade de direitos entre os sexos, essas mães acabaram esquecendo de ensinar às filhas o jogo do semblante, no qual se joga é com a disparidade fálica. Diz:

Não lhes ensinamos que, ao parceiro masculino, não se trata de ofe-recer nem o brilho de suas insuperáveis realizações, nem sua au-tonomia a toda a prova, mas justamente, uma falta. E junto com essa falta, a indicação de que ele, o parceiro, é quem possuiria o que pode provê-la (Laznick, 2003, p.275).

Falta que abre o caminho para o gozo possível na femininilidade, as-sim como um gozo outro na maternidade que não seja o fálico (Jerusalinsky, 2011). Ele implica uma passividade que remete não apenas à posição passi-va em relação ao pai no Édipo, mas à primeira posição passiva de um bebê na relação com o Outro primordial. Poder então transmitir às filhas uma falta com a qual elas podem ter acesso a um gozo propriamente feminino.

Assim, diante dessa impossibilidade de um significante que dê conta do que é ser mulher, a feminilidade passa a ser o véu que cobre esse nada, a “mascarada” como uma feminilidade possível, como propôs Lacan ([1958] 1998, p.184), em A significação do falo.

A pérola é a reação da ostra, seu “sintoma” diante da invasão de algo estranho a seu corpo, que ela não pode expulsar, apenas cobrir com madre-

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pérola (madre/mãe) e criar esse invólucro encantador, desejável. É como a mãe sustenta a sua mascarada, com que véus recobre sua falta, como sua mãe vive a sua castração enquanto mulher, o que a filha observará na mãe, para nessa imagem se espelhar. “Mãe, como é para ti ser mulher?”

A mãe poderá, as duas estando em falta de um significante do femi-nino, ajudar a filha na construção de uma “identificação feminina numa es-trutura de ficção” como propõe Malvine Zalcberg (2003, p.186). Aí é que se joga uma transmissão possível, entre mãe e filha, da feminilidade. É o colar de pérolas com que a mãe se enfeita para sair com o pai que a filha almeja ter, mas sabemos que as pérolas são também palavras, são também os ditos que acompanham as imagens.

A catástrofe freudiana ou a devastação lacaniana presente na relação mãe-filha poderá ter maiores ou menores consequências dramáticas (nos desdobramentos que me propus abordar), mas não pode ser considerada como uma infelicidade a ser evitada, ou como os efeitos de uma má rela-ção entre mãe e filha. Essa devastação será a descoberta entre ambas de uma impossível harmonia, a impossível erótica corporal entre mãe e filha, a impossibilidade de prolongamento de uma na outra, da partilha de experiên-cias, de se conhecer inteiramente. A devastação é o processo necessário, segundo Marie-Magdeleine Chatel (1995), pelo qual a filha poderá reduzir o perigo do “gozo da mãe”. Esse gozo que coloca um fora de si, gozo que não é o da mãe, nem o da filha, mas o da Mãe no absoluto, aquela que não existe, mas que, dramaticamente, nenhuma das duas sabem.

É ao passar pela devastação, na descoberta de que a mãe é também mais uma mulher, que permitirá a separação e a descoberta que encami-nhará a filha a desdobrar uma construção para, então, ser também mais uma mulher. Construção, não com a mãe, mas não sem a mãe.

Se essas são várias das pérolas do colar de tornar-se mulher, não são as únicas e talvez não se trate de todas elas. Diante da falta-a-ser, que a es-trutura como sujeito, e da falta de um significante para a feminilidade, cada mulher, solitariamente terá que construir seu próprio colar com quantas pé-rolas e voltas lhe forem possíveis e necessárias para fazer o seu. Pérolas uma a uma como uma mulher o é: uma a uma.

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Pérolas maternas

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Recebido em 03/04/2013Aceito em 10/05/2013

Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 40-49, jul. 2012/jun. 2013

Resumo: Neste trabalho, trata-se de explorar a importância, na direção do trata-mento psicanalítico, do neologismo hainamoration, que Lacan introduz em 1973 para dar conta – superando a noção de ambivalência – da complexa coexistência essencial do amor e do ódio na estruturação do sujeito. As relações mãe-filha servindo de paradigma para o fenômeno, a autora busca na clínica e na literatura, através da obra de Marguerite Duras, uma possibilidade de articulação com a noção de devastação (ravage), proposta por Lacan em 1972. Essa articulação poderia servir para intensificar o caráter operatório do termo hainamoration.Palavras-chave: amor,ódio,hainamoration,feminilidade,devastação, tratamento.

THE DISEASE OF LOVEAbstract: In this work its explored the importance ,in the direction of the psycho-analytical treatment , of the neologism hainamoration, that Lacan introduced in 1973 to account-overcoming the notion of ambivalence -the complex essencial co-existence of love and hate at the organization of the subject.The relations mother-daughter serving as paradigms to the phenomena,the author searches at the clinic and at literature ,through the work of Marguerite Duras,a possibility of articulation with the notion of devastation(ravage),proposed by Lacan in 1972.This articulation could serve to intensify the operative character of the term hainamoration.Keywords: love, hate, hainamoration, femininity, devastation, treatment.

Maria Rosane Pereira1

A DOENÇA DO AMOR (TE)

1 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Autora de Es-tranhos, noturnos... e amantes – Retrouvailles on-line (romance), Porto Alegre, Editoras Asso-ciadas, 2009 e A invenção do sentimento (contos), Porto Alegre, Editora Ideias a Granel, 2013. E-mail: [email protected]

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A doença do amor(te)

E este amor tão forte. Eu sei , este amor tão forte. O mar é o que não vejo. Sei que ele está ali, além do visível do homem e da mulher.

Marguerite Duras

Quando Lacan ([1973-1975] 1985) introduz o neologismo hainamoration, ele critica o uso do termo ambivalência, apontando-o como insuficien-

te2 para recobrir os fenômenos que pretende encerrar em sua definição, e atribuindo seu uso a uma presumível boa-vontade ou modéstia da psicaná-lise do seu tempo:

O que, para vocês eu gostaria de escrever hoje como a haina-moration, uma enamoração feita de ódio (haine) e de amor, um amórdio, é o relevo que a psicanálise soube introduzir para nele inscrever a zona de sua experiência. Era, de sua parte, um teste-munho de boa vontade. Se pelo menos ela tivesse sabido chamá-lo com outro nome que não esse, bastardo, de ambivalência, tal-vez ela tivesse tido mais sucesso em revelar o contexto da época em que ela se insere. Mas isto talvez seja modéstia de sua parte3

(Lacan,1985, p.122).

Com essa nova formulação, Lacan ratifica o que vinha fazendo ao lon-go de toda sua obra, ou seja, situando o amor no registro da paixão. O ódio é então situado na essência do arrebatamento que a paixão amorosa traz consigo. A partir de então, não se trata mais de pensar simplesmente

2 Cf. Lacan, J. O saber e a verdade. In: ______. O seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Ja-neiro: J. Zahar, 1985, p.122.3 Como podemos ver, Lacan qualifica como “bastarda” a noção de ambivalência. Tanto na língua francesa (bâtard) quanto na língua portuguesa, (bastardo) este termo indica alguém ou algo que estaria deslocado, que não possui um caráter muito claro, e que é originário de genes muito diferentes dos que ali já se encontram. E uma vez que não pertence àquela linhagem, estaria cumprindo uma função para a qual não teria as qualidades fundamentais exigíveis, po-dendo assim ser qualificado de ilegítimo. São essas as definições que encontramos no Dicioná-rio Aurélio da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p.238) e do Le petit Robert alphabétique et analogique de la langue française (Paris: Les Dictionnaires Robert, 1985, p.167). De onde podemos concluir que a migração do termo “ambivalência” para a psica-nálise traria consigo uma origem discutível. Talvez seja pelo fato de este termo ter sido acolhido como se tivesse origem na psicanálise que Lacan supõe nesta última uma “boa-vontade” e uma “modéstia” em empregá-lo como operador clínico.

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Maria Rosane Pereira

que dois sentimentos opostos coexistiriam em relação ao mesmo objeto, de modo que quando o sujeito acredita estar amando, ele está odiando, e vice-versa, os dois sentimentos sendo subjacentes um ao outro, sem que o sujeito nada saiba disso. Com o termo hainamoration, Lacan extrai con-sequências maiores de uma formulação já bem mais antiga, que ele vinha elaborando havia mais de vinte anos: a de que não existe amor sem ódio.

Que o ódio está no amor, Lacan ([1945] 1966) efetivamente já nos havia advertido, nos esclarecendo que isso tem origem em um princípio separador, em um elemento de repulsão, de distanciamento do outro, o semelhante. A partir da identificação ao outro, no estádio do espelho, as condutas do sujeito (infans) deixam evidente um conflito estrutural: escravo identificado ao déspota; ator, ao espectador; seduzido, ao sedutor. Ódio e amor são estreitamente solidários no registro do imaginário. A agressividade inerente ao ódio é correlativa da identificação narcísica na qual se funda o amor. Porém, Lacan acrescenta, no mesmo texto, que é através da identifi-cação edipiana que o sujeito transcende a agressividade constitutiva de sua primeira individuação subjetiva. Ou seja, é pela identificação ao pai que o menino integra e ultrapassa a agressividade primeira de sua rivalidade com ele. E essa identificação vai sustentar, a partir de então, sua identidade viril. Para a menina, o desfecho é ainda mais evidente. O ódio pela mãe vem de par com seu ressentimento de filha contra aquela que não lhe transmitiu um pênis. Mas o amor originário persiste na medida em que ela não pode prescindir de um suporte de identificação para sua feminilidade. O ódio no amor se inscreve assim sob o primado da função fálica, do poder separador do falo. Ele é a consequência normativa e igualmente pacificadora da cas-tração. Pois não há que esquecermos que tal consequência é, ela mesma, o efeito metafórico da função paterna, de onde seu caráter pacificador e ci-vilizatório. E não haveria como pensarmos em um processo civilizatório sem os conflitos que nele se encerram4. É tudo isso o que faz a tessitura do que Lacan chamou, em 1973, de hainamoration, para renomear o amor. Sendo constitutiva do sujeito, podemos entrever, em meio aos efeitos simbólicos da hainamoration, uma pesada carga de restos imaginários nada negligenciá-

4 A clínica nos mostra o quanto o sujeito, na sua irrevogável condição de parlêtre, está mergulhado nas leis da linguagem e não sem conflitos faz a travessia edípica. É quando a função paterna – agenciadora da castração – alcança seus efeitos no sujeito que ela torna-se metáfora, e um apaziguamento do conflito pode ter lugar.

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veis para a experiência humana. Por conseguinte, constatamos sem dificul-dade sua incidência tanto nos laços sociais quanto na clínica. O neologismo criado para traduzir hainamoration em língua portuguesa foi amórdio.

Para examinar uma parte dessa incidência clínica, podemos interrogar a possibilidade de uma articulação desse termo com a noção de ravage, da qual Lacan (1972) se serve para dar conta do que Freud chamou de catás-trofe das relações entre mãe e filha, na travessia edipiana e mesmo para além dela. Em nossa língua, a tradução corrente para ravage é devastação.

De saída, notemos que ravage é inusitado na terminologia psicanalíti-ca até que Lacan o empregue e o eleve quase ao estatuto de um conceito. Esse termo é originário, na língua francesa, do verbo ravir, cuja etimologia, rapere, significa “arrancar à força”, mas que, no sentido figurado, vai sig-nificar “transportar de admiração, de alegria, arrebatar”. O dicionário Littré (2004) dá como definição: “Desgaste feito com violência e rapidez”, e tam-bém “destruição por algo que se propaga como um fluxo impetuoso”. No século XI, “fluxo impetuoso” e “ravage” eram equivalentes. Podemos então declinar diferentes figuras de ravage, que vão de ravissement (em nossa lín-gua: deslumbramento, arrebatamento) até o ser tragado por um fluxo impe-tuoso, passando pelo rapto e pela devastação. A locução coloquial na língua francesa contemporânea faire des ravages (provocar devastações)significa se fazer amar e fazer sofrer e dá conta do parentesco entre ravage e ravir. É importante destacar que, a partir dos anos 50, o adjetivo ravagé (devastado) é empregado na língua coloquial como sinônimo de louco.

Assim, mantendo presente a articulação que buscamos entre o termo devastação e o neologismo amórdio, nos deteremos por um instante em uma vinheta que pode ser paradigmática de várias outras manifestações clínicas que nos convocam a refletir sobre essas duas formulações.

Recentemente, uma paciente narrou em sessão uma conversa que teve com sua mãe, cuja estrutura é a seguinte: ela diz à sua mãe: “Hoje faz muito calor, vou ter que colocar um dos meus vestidos longos pra sair (sair para dar aulas – ela é professora de inglês)”. A mãe lhe responde: “Está bem, você pode colocá-lo, mas não coloque aqueles sapatos ridículos, seria muita feiúra ao mesmo tempo”. Ela nada diz à sua mãe, e conta que ape-nas um nó na garganta se colocou, mas ela continuou calma e sorrindo. Em seguida, ela diz à mãe: “Vou chegar mais tarde, pois vou encontrar um antigo colega de faculdade. Ele me ligou convidando para um chope e uma conversa”. A mãe: “Não inventa! Assim já é demais! Sair de vestido e encon-trar um homem! Você ainda não entendeu que isso não serve pra nada?” Ela acabou saindo de calças jeans e cancelando o encontro, apesar do nó na garganta. Nas primeiras sessões, essa paciente tinha uma espécie de

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“tique”. Ela ria muito de suas próprias palavras. Nessa sessão, depois de chorar bastante, ela acrescenta: “Até que enfim posso falar sem ter que contar a ninguém o que digo aqui, nem o que sinto quando isso acontece. Durante toda a minha vida contei tudo a minha mãe, e carreguei esse nó na garganta. Talvez um dia eu possa rir e chorar por coisas somente minhas”.

Essa narrativa de um diálogo entre mãe e filha, nós a ouvimos com muitas variantes, todos os dias no nosso trabalho. E é certo que, por vezes, podemos aí escutar verdadeiras catástrofes subjetivas, com avalanches de gozos completamente destruidores. E nem sempre as cenas narradas são sem declaração como essa. Muitas vezes são cenas de verdadeiros em-bates declarados. Com ou sem declaração, elas desvelam, com contornos mais ou menos definidos, disposições amorosas que em nada seriam estra-nhas ao sadomasoquismo. Não raramente, o pai é um espectador regular, fazendo as vezes de voyeur que goza de não intervir. Que se trate de uma menina em sua plena infância, puberdade, adolescência, ou de uma mulher na sua vida adulta ou idade madura, a cena pode igualmente se colocar.

E uma vez que é de amor que estamos falando, para interrogar esses fenômenos clínicos, além do texto de Freud, de Lacan e de outros psicana-listas que investigam o assunto, vale recorrer aqui, mais uma vez5, a um dos meus amores literários. Mais especificamente, a um amor que posso parti-lhar com Lacan, pois também foi um de seus amores: a obra de Marguerite Duras, a quem Lacan ([1965] 2003) fez sua Homenagem pela publicação de O deslumbramento de Lol V. Stein (Le ravissement de Lol V. Stein). Ho-menagem que é uma declaração de amor, pois, além de se confessar ravi, arrebatado, captado pela escrita dela, ele afirma que ela sabe, sem ele, o que ele ensina. O que mais seria necessário, para falar de amor, do que ver tanto de si mesmo no outro?

No meu caso, é mesmo um amor antigo, que começou pela persona-gem Lol V. Stein – uma vez que faço parte da geração de psicanalistas que fizeram suas formações nos anos 80 e que liam O deslumbramento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras. Desde então, esse amor ganhou proporções cada vez maiores, na medida em que fui encontrando e reencontrando as mulheres que povoam o universo feminino de Duras6.

5 Conforme o artigo que escrevi em 2012 sob o título A ambivalência do feminino: uma con-sequência freudiana na obra de Marguerite Duras. Correio da APPOA, n. 219, dez 2012.6 Razão pela qual escrevi Reencontrando Lol V. Stein. Correio da APPOA n. 152, outubro 2006.

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Assim como Lol, a personagem da jovem de O amante (1984), um dos livros mais autobiográficos de Duras, me pareceu lançar luzes sobre muitos pontos obscuros da clínica com mulheres. Verdadeiro paradigma do que se define como uma devastação nas relações mãe-filha, a narrativa de O amante termina com a personagem se tornando escritora e, desse modo, criando seu lugar de discurso. A partir desse lugar, ela elabora seus lutos, transformando sua intimidade com a dor e com a morte em uma prática da letra que “converge com o uso do inconsciente” (Lacan, [1965] 2003, p.200). É enquanto alguém que pratica a letra que Duras diz, em uma entrevista, que “somente a escrita é mais forte do que a mãe” (Duras, 1985).

De fato, a obra de Duras é a construção de uma narrativa que mistura de maneira indissociável a ficção e a vida. Sobretudo, ela ilustra a contra-dição e o caráter conflituoso das relações afetivas. Em suas tramas, Duras pinta um quadro sombrio de dor, de perda, de destruição, de melancolia e morte. Ao mesmo tempo, seu projeto literário vai no sentido de falar do de-sejo, do gozo e do amor. Quando ela escreve a sinopse de Hiroshima, meu amor para o filme de Alain Resnais, em 1960, ela afirma que quis enlaçá-los, o amor e a morte, o amor e a destruição, porque, assim enlaçados, a beleza do amor ficava resplandecente. Não se tratava mais de narrar o horror pelo horror mas, sim , de extrair do horror daquelas cinzas a possibilidade de pintar o amor mais forte do que a morte.

Porém, não há que esquecer que o amor, em Duras, é uma espécie de amor às avessas, que se inscreve no registro das paixões e, nesse sentido, também a morte – real ou metafórica – pode sempre espreitá-lo e abordá-lo. Quase todos os amores desembocam em separações e perdas brutais. Então, ou falamos de paixão amorosa ou de amor-paixão, embora Duras diga simplesmente amor.

Será que podemos pensar o amor às avessas de Duras, que é a pai-xão amorosa, como um equivalente do neologismo lacaniano amórdio?

Aliás, seria um amor às avessas, o arrebatamento de Lol V. Stein na famosa cena do baile? Seria isso o que a deixou imobilizada, olhando para a personagem Anne-Marie Streeter, que ali encarnava um ideal de mulher, causa absoluta de desejo, e com quem seu noivo acabou partindo? Trago as palavras de Duras:

Lol, completamente tomada por uma imobilidade, havia visto avan-çar, como ele (Michael Richardson), esta graça abandonada, flutu-ante, de pássaro morto. Ela era magra. Ela devia sempre ter sido magra. Ela havia vestido essa magreza com um vestido preto com duas sobressaias de tule, igualmente preto, bem decotado. Ela se

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queria assim feita e vestida, e ela estava, segundo seu querer, ir-revogavelmente vestida assim. A ossatura admirável de seu corpo e de seu rosto se adivinhava. Assim como ela aparecia, assim, a partir daquele momento, ela morria, com seu corpo desejado (Du-ras [1964]1985, p. 15-16).

Poderíamos dizer que é essa mesma figura da mulher absoluta, aque-la que nada deveria ao falo, que Duras [1981] coloca na busca fracassada do personagem homem da Doença da morte (2007). Nessa novela, que não deixa de ser um poema em prosa, Duras mostra uma mulher que é o avesso da figura feminina de Anne-Marie Streeter: enquanto esta última sustenta uma mórbida postura de objeto absoluto, a primeira deixa explícito que essa mulher, é impossível de existir. A narrativa se resume na aflitiva busca do homem por um lugar de saber absoluto sobre o amor, que ele quer encontrar naquela mulher. Ele a contrata para que, durante as noites pagas, ela lhe revele o que ele não sabe. Ele quer amar, quer que ela lhe diga o que é o amor. Em uma das noites, ela lhe diz que ¨o amor, ele talvez venha de uma falha súbita na lógica do universo, jamais de um querer¨. E no corpo daquela estrangeira, na cama, o personagem homem via , angustiado, ao mesmo tempo, uma potência infernal, a abominável fragilidade, a fraqueza, a força invencível da fraqueza sem igual. A angústia dele fez com que ela o advertisse da doença que o atingira: a doença da morte, a doença da im-possibilidade de amar.

Um dia, ela não está mais lá, ela partiu. E é enquanto ausente e per-dida que ele vai poder amá-la. Ele vai “...então ter vivido seu amor do único jeito que lhe foi possível: perdendo-o antes de ele acontecer” (Duras [1981] 2007, p. 57).

Poderíamos dizer que A doença da morte (2007) foi a doença da qual morreram muitos amantes, na obra de Duras. Buscando o objeto de gozo absoluto, eles parecem ter sucumbido ao perigo de se convencer de que o haviam encontrado. De onde o estranho “gozo de morrer (une jouissance à en mourir) dos amantes sem amor” (Duras,1984, p.111). Mas são principal-mente as heroínas de Duras que aparecem com frequência em confronto desafiador com essa impossibilidade do gozo absoluto. Isso as coloca em uma posição eminentemente trágica.

Duas mulheres levaram Duras a escrever: A primeira foi Anne-Marie Streeter, embaixadora da França na colônia onde ela cresceu (na Indochi-na). Mulher rica, poderosa e bela, mas (como Duras a trata nos romances) é conhecida por sua coleção de amantes, e pelo suicídio ao qual um de seus jovens amantes foi levado pelo desespero amoroso, depois de ter sido

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abandonado por ela. Duras, menina, ficava ravie (arrebatada), completa-mente deslumbrada com essa figura feminina, ao ponto de espioná-la o tempo inteiro, inclusive em suas orgias amorosas. Desse ravissement de Duras surgiu a personagem Anne-Marie Streeter, espécie de retrato inverti-do de sua mãe.

A segunda foi Marie Donnadieu, sua mãe, mulher fragilizada por sua viuvez precoce, professora primária que precisa trabalhar muito para criar seus três filhos. Depois de perder todas as suas economias adquirindo ter-ras incultiváveis, sucessivamente inundadas pelas águas do Pacífico, ela se desestabiliza profundamente e perde também o controle sobre seus filhos, deixando que o primogênito, seu preferido, exerça seu despotismo com os irmãos e a explore. Duras teve com sua mãe uma relação tempestuosa, devastadora, e experimentou por ela um verdadeiro amórdio. A partir de sua escrita, podemos constatar o quanto, na tessitura desse amórdio, há um amor profundo e sincero, justamente porque trazia em sua composição o ódio do qual se sustentar. Esse amórdio de Duras pela mãe talvez venha justamente da loucura dela, da insensatez e do desnorteamento que, no final das contas, diz Lacan, faz as verdadeiras mulheres: “As verdadeiras mulheres sempre têm algo de desnorteadas” (Lacan, [1958] 1998, p.195).

Nesse sentido, podemos concordar com a ideia de que Duras tenha sido a escritora do feminino.

Ela coloca no mundo, e isso de maneira inédita, a subjetividade feminina em estado puro – puro no sentido de verdadeiro, femi-nilidade que ela encarna tão bem. Era uma dessas verdadeiras mulheres que faziam com que Lacan dissesse que elas são todas loucas, ou seja, nem um pouco loucas (Floch, 2009, p.189)7.

Isso posto, a questão clínica que se coloca é a de como fazer deslizar a devastação em direção a um amórdio. Ou seja, a uma forma de devasta-ção que também inclua uma diluição da onipotência imaginária da mãe, sem que para isso seja necessário destruí-la ou se deixar destruir por ela, e que, ao mesmo tempo, possa servir, para uma filha, de acesso à feminilidade.

7 Tradução nossa.

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A devastação nada mais é, para uma filha, do que a impossibilidade de constatar a castração materna – o que muitas vezes significa deixar o território devastado da mãe, esta última frequentemente não suportando ela própria reconhecer sua castração – para se virar em direção ao pai. É isso o que a clínica nos mostra todos os dias. Pickmann (2001) nos demonstra com clareza de que modo a devastação está em estreita e simultânea liga-ção com o ódio, pela necessária constatação da castração materna e pela impossibilidade paterna de dizer o que é uma mulher, de dizê-la toda.

Essa impossibilidade pode arrastar uma mulher ao retorno à mãe, que, ela já sabe, não é mais detentora do falo do que o pai. De onde um desapon-tamento que toma os contornos de uma traição e que resulta, para o sujeito, em uma recusa irrevogável e furiosa desse Outro que lhe aparece como um impostor desmascarado. É esse o ponto no qual se inscreve a devastação.

É preciso lembrar que, para Lacan, esse termo – devastação – dá con-ta não tanto de algum fracasso sintomático das relações mãe-filha quanto do efeito do fato de que uma mulher não é toda, ou é não toda inscrita na função fálica, uma vez que ela tem também relação, na medida em que ela é uma mulher, à falha no Outro. A devastação é então ligada a esse desdo-bramento de sentido e ausência que a torna não toda sujeito da castração, tendo por consequência que sua inscrição na função fálica vai ter origem na contingência e não permitirá nenhuma universalidade.

Conforme Pickmann (2001), muitas vezes, na cura da histeria, a de-vastação é colocada em primeiro plano, ela se faz fixion desde sempre já sabida. Ela funciona então como o único material para o trabalho analítico, mas em resistência ao saber, de tal modo o destino da paciente parece fixa-do em uma história na qual não teria havido senão mulheres, como em um romance familiar que se transmitiria de geração em geração pelas mulhe-res, sem o conhecimento dos homens, e principalmente dos pais.

Uma escuta do amor na transferência, que colocasse as coisas na direção da interpretação da devastação e da restauração das relações mãe-filha, seria o equivalente a condenar a paciente a jamais abandonar seu lugar de filha, a jamais ter acesso à feminilidade. O corolário disso seria uma cristalização do ódio como muralha de defesa contra a possibilidade do amor, cujos efeitos podem ser avassaladores para o sujeito, podendo chegar a colocá-lo em situações de risco. A clínica nos mostra o quanto essa posição seria drasticamente irredutível, muito próxima da posição trágica.

Pois é justamente de sua radical diferença em relação à sua mãe que se trata de escutar uma mulher em análise, já que a mãe não pode dizer a uma filha o que é ser mulher, cabendo a cada uma inventar seu modo de existir feminino. Nesse sentido, não há transmissão da feminilidade de mãe

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A doença do amor(te)

para filha, a menos que a patologia da mãe sustente um tipo de devastação na qual jamais o amórdio possa ter lugar, que a filha esteja como que con-denada à imobilidade diante da mãe plena. Ou seja, condenada à abolição de seu desejo e de sua possibilidade de amar. Pois, para amar, há que odiar. Odiar a mãe a ponto de tornar-se radicalmente outra para ela, condição para que o amor de filha possa ser exercido por uma mulher.

Consideremos enfim, que a devastação e o amórdio participam da es-truturação do sujeito. Minha hipótese é a de que, enquanto tal, clinicamente esses dois termos se articulariam também como demarcadores para uma barragem contra as avalanches do gozo absoluto que podem invadir o sujei-to, com o risco de levá-lo a uma busca da plenitude. Assim, da devastação ao amórdio, a travessia de uma análise levaria o sujeito em direção ao não todo (o que aliás, vale para homens e mulheres). Isso equivale à renúncia da ilusão fálica, renúncia que é atravessada por uma saga da relação do su-jeito com o saber, e que o leva ao caminho do inferno da falta, onde o amor se inscreve com todas as suas letras.

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Recebido em 05/05/2013Aceito em 15/08/2013

Revisado por Maria Ângela Bulhões

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 50-64, jul. 2012/jun. 2013

Resumo: A partir da análise de situações extremas vividas por mulheres em dois filmes – Desejo e perigo, de Ang Lee, e A professora de piano, de Michael Haneke –, o texto propõe a discussão sobre os limites do erotismo, abordando, para isso, a especificidade do gozo feminino – a disponibilidade a ocupar o lugar de objeto da fantasia do parceiro, característica da posição feminina –, para pensar a diferença entre se fazer objeto e sê-lo efetivamente. Palavras-chave: erotismo, sexualidade feminina, gozo, posição feminina, cine-ma e psicanálise.

EROTICISM AND ITS EXTREMESAbstract: Building on the analysis of extreme situations experienced by women in two films – Lust and caution, by Ang Lee, and The piano teacher, by Michael Haneke – the paper discusses the limits of eroticism, addressing the specific-ity of female jouissance – the willingness to stand in the place of the partner’s fantasy’s object, a characteristic of the feminine position – in order to think the difference between pretending to be an object and effectively being it.Keywords: eroticism, female sexuality, jouissance, feminine position, cinema and psychoanalysis.

Rosane Monteiro Ramalho2

EROTISMO E SEUS EXTREMOS1

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O amor e a erótica, realizada em Porto Alegre, em março de 2012.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto AP-POA; Mestre em Psicologia Clínica – PUC/SP; Professora da Residência Médica em Psiquia-tria e da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, do Instituto Municipal Philippe Pinel, no Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Erotismo e seus extremos

Octavio Paz, em seu livro A dupla chama: amor e erotismo, escreve:

a chama é a ‘parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura pirami-dal’. O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra, azul e trêmula: a do amor. Erotismo e amor: a dupla chama da vida (Paz, 1994, p.7).

S im, amor e erotismo, ou amor e desejo é o que a dupla de amantes chama, pede. Porém, como são coisas distintas, a relação entre eles

não é unívoca: amor e erotismo podem se aproximar e se distanciar um do outro. As alegrias e os impasses entre a dupla que compõe o casal de amantes decorrem frequentemente desses encontros e desencontros.

No amor, a questão em jogo são os ideais. O sujeito espera do par-ceiro, tomado como um espelho, que ele lhe devolva uma imagem de si. Quando se ama alguém, se idealiza o objeto de amor, atribuindo a ele sig-nificantes do seu próprio ideal de eu, de forma a se fazer amável aos seus olhos, e, por conseguinte, ao seu ideal de eu. Ou seja, procura fazer-se amável aos olhos do seu ideal de eu, restaurando assim seu narcisismo. No amor, especialmente no amor apaixonado, contrariando a matemática, um mais um formam o Um, e não dois. Há a ilusão da completude, do encaixe perfeito, enfim, do recobrimento da disparidade inevitável entre o um e o Outro. Lacan (1985) dizia que o amor vem em suplência à re-lação sexual, em suplência ao impossível encontro entre os sexos. Há a tentativa de um recobrimento da castração, do desencaixe inevitável entre linguagem e corpo.

O desejo, por sua vez, justamente decorre da castração, é consequ-ência da falta. O objeto do desejo é o que, uma vez tendo sido para sempre perdido, move o sujeito, que, porém, não cessará de tentar “reencontrá-lo”. E, por se tratar de um objeto, é, portanto, parcial. Não se trata, então, de um ideal, mas de um resto (resto da operação da castração – no caso, objeto a). Assim, o que comanda o desejo pode ser uma voz, um olhar, enfim, um objeto que, atrelado a uma fantasia, pode ir, inclusive, na contramão dos ideais do sujeito, dos seus valores. Os textos freudianos sobre a psicologia do amor (Freud, [1910/1912]1980) ilustram muito bem as oposições entre amor e desejo. É próprio do desejo o caráter disruptivo, transgressivo. Freud ([1905/1927]1980) já dizia que a sexualidade humana é perverso-polimorfa, tais as diferentes e variadas formas que o desejo pode apresentar. As possi-bilidades eróticas são variadas, consequência das distintas inscrições, das marcas que acabaram ficando impressas no sujeito pelo Outro – marcas

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essas que, como uma segunda pele, revestem o seu corpo, libidinizan-do-o, inscrevendo nele o mapeamento das zonas erógenas, e possibili-tando, assim, as vias do desejo.

Após esse pequeno preâmbulo, e para abrir a nossa discussão sobre o erotismo e seus limites, suas fronteiras, trago dois filmes sobre situações extremas. O primeiro é Desejo e perigo, com direção de Ang Lee, que re-cebeu o Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza de 2007. O filme Desejo e perigo é baseado numa novela de Eileen Ghang, prestigiada escritora chinesa. Ela começou a ser escrita nos anos 50, pouco depois da II Guerra, tendo levado quase 30 anos para ser publicada, em 1979. A história contém muitos elementos autobiográficos. Nascida em uma aristo-crática família chinesa, a autora foi casada com um colaborador do gover-no de ocupação japonesa na China. Assim como a personagem principal do filme, Wong, ela precisou interromper seus estudos na Universidade de Hong Kong e voltar a Xangai quando os japoneses ocuparam o país. E é justamente na China que a história se passa.

A narrativa começa quando estudantes da Universidade de Hong Kong, cidade tomada pelos militares japoneses durante a II Guerra Mun-dial, formam um grupo de teatro amador para arrecadar fundos para a resistência. Wong comove a plateia com sua atuação e é convidada pelas lideranças do movimento para entrar em ação. Ela aceita o convite movi-da pelo fato de o idealizador do grupo ser o rapaz por quem ela tinha um sentimento amoroso (sentimento esse que, aliás, era recíproco). Ela será utilizada como instrumento para chegarem até o sr. Yee, um chinês, militar e torturador, que se tornou um colaborador do governo de ocupação, e a quem eles devem matar. Para chegar até ele, o que era muito difícil, uma vez que ele vivia rodeado de seguranças, a forma encontrada pelo grupo foi transformar Wong, jovem e bonita, em uma isca, capaz de seduzir Yee e atraí-lo a uma emboscada. Ela aceita a arriscada missão, e se transfor-ma em Mak Tai Tai, a fictícia esposa de um mercador, com o objetivo de se tornar a amante de Yee. Para isso, Wong precisou fazer uma iniciação nos caminhos do sexo e da sedução, pois ainda era virgem. Ela faz isso então com um colega, o único do grupo que já tinha alguma experiência sexual com prostitutas.

De forma a se aproximar de Yee, Wong torna-se amiga da sua esposa, a quem ajuda a se adaptar à nova vida em Hong Kong – uma vez que Yee e a esposa haviam se mudado há bem pouco tempo para a nova cidade. Wong paulatinamente vai se aproximando da rotina do casal e começa a existir um clima de sedução entre ela e Yee. Repentinamente, porém, ele e a esposa são enviados de volta a Xangai e a missão é cancelada.

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Três anos depois, após várias outras tentativas fracassadas, os líderes da resistência resolvem novamente apelar a Wong, enviando-a a Xangai e colocando-a, mais uma vez, em contato com Yee e sua esposa. Ela é gentil-mente hospedada pelo casal, e passa a conviver com a mulher e as amigas desta, com quem frequentemente joga Mahjong (um jogo de dados chinês) e conversa sobre futilidades, enquanto procura se aproximar de Yee.

Wong, determinada a seduzir seu inimigo, acaba de fato realizando seu intento. Após um primeiro encontro, vai se estabelecendo entre eles uma relação cada vez mais intensa, havendo um jogo de poder entre os dois. O oficial exerce seu poder pela violência, enquanto a moça utiliza a sedução para se impor. A princípio, ela começa a tomar gosto pelo poder que é capaz de exercer, mas, ao longo do filme, vai progressivamente ocor-rendo uma inversão, e é ela que se vê dominada por ele. As várias cenas de sexo, carregadas de intensidade e violência, ilustram esse movimento entre ambos, em que ele a domina e ela se percebe gostando de ser dominada, deixando-se arrebatar por esse homem violento.

Wong acaba desejando justamente seu inimigo. Seu desejo acaba indo na contramão dos seus ideais e valores mais caros. Contudo, isso não se dá de forma desavisada. Ao longo dos encontros com seus companhei-ros e superiores, não faltaram avisos por parte dela, de que ela poderia não aguentar. Seus avisos, porém, não conseguiram ser escutados pelos colegas. Wong percebia e tentava falar ao seu grupo de resistência que a situação, para ela, estava ficando muito difícil, perigosa, pois percebia que estava se envolvendo com Yee para além do planejado. Seu grupo, todavia, continuava a incentivá-la a continuar na causa, uma vez que esses homens viam a sexualidade de Wong somente como uma arma de que um soldado pode dispor, na guerra.

Quando o rapaz guerrilheiro por quem Wong tinha um sentimento amoroso tentava dizer ao chefe que Wong não aguentaria a pressão, o lí-der enfaticamente rebatia, ordenando que não a subestimasse, pois ela se comportava como Mak perfeitamente, de um modo que impressionava aos superiores da resistência. Haviam mandado, antes dela, duas agentes bem treinadas para seduzir Yee, mas ele as havia descoberto e assassinado. Enfatizava que Wong o havia fisgado e que deveria mantê-lo assim por mais tempo, para obter mais informações. Dizia, para ela: “para um agente só há uma coisa: lealdade. Ao partido, ao nosso líder, ao nosso país”. Disciplina-da, ela lhe disse que iria fazer o que lhe mandassem, mas quando o chefe acrescenta que ela só precisaria manter Yee na armadilha, ela o questiona, enfaticamente: “de que armadilha está falando? Meu corpo? O que acha que ele é? Ele sabe fingir melhor do que vocês. Yee não só entra em mim,

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deixa sua trilha no meu coração, como uma cobra... Lá no fundo... Até o fim. Eu o aceito como uma escrava. Faço o meu papel fielmente... para chegar ao coração dele. Toda vez... ele me machuca até eu sangrar... e gri-tar. Daí ele se satisfaz. Daí ele se sente vivo. No escuro... só ele sabe que é tudo real”. Yee, sim, percebia Wong como desejante e era a sua subjetivida-de que ele queria submeter, não o seu corpo.

O que Wong intuía que já podia estar acontecendo acaba de fato se consumando. Seu desejo fala mais alto que sua vontade, que sua razão. Ela é tomada pelo desejo justamente em relação ao homem a quem deveria aniquilar antes que a descobrisse e a mandasse matar. No exato momento em que leva Yee à emboscada fatal, a determinação de Wong é superada pelo seu desejo. Ela, então, avisa Yee, que sai correndo e mais uma vez escapa. Numa inesperada reviravolta, ela livra o inimigo e condena à morte todo seu grupo de guerrilha e a si mesma. Impotente contra a força impe-riosa do desejo, ela traiu seus valores mais caros, seus ideais políticos, a pátria, seus amigos.

No centro da trama apresentada no filme encontra-se, portanto, esta espinhosa e complexa questão: pode-se desejar o inimigo, pode-se desejar alguém a quem se considera moralmente abjeto3? O que permite que uma mulher deseje o seu algoz, ou mesmo o algoz de seu povo ou de suas con-vicções? Para tentar responder a essa questão, tomemos algumas conside-rações sobre a sexualidade feminina. Para além do desejo de desejo, que caracteriza todo o sujeito humano – e que é frequente na erótica feminina através do se fazer desejar, da sedução –, podemos pensar na inscrição mesma da castração, no processo pelo qual passa uma menina para ace-der à feminilidade, na sua inserção na via do desejo. As marcas que muito precocemente se inscrevem, que são impressas no corpo do sujeito, têm origem desde as primeiras relações, em que a mãe, o Outro primordial, a partir do seu desejo oferece ao seu bebê uma imagem. Desejo esse decor-rente da sua castração, que promove uma diferença entre ela e o filho, e abre espaço para a emergência de uma via desejante para este. Algo bem diferente ocorre quando, ao invés de desejo, o que há é uma demanda im-

3 Outro filme que também apresenta esta delicada questão é O porteiro da noite, de 1974, dirigido por Liliana Cavani. Este filme aborda o reencontro de um ex-oficial nazista e sua ex-prisioneira do campo de concentração. Depois da guerra, ele passara a trabalhar, clandestina-mente, como porteiro de um hotel em Viena, em que ela vem a se hospedar com seu marido. No entanto, ao invés de denunciá-lo, ela acaba se tornando sua amante, retomando a relação que haviam mantido na época em que ela era sua prisioneira.

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perativa por parte da mãe, na qual o bebê é tomado como objeto dela, como sua extensão, não havendo, portanto, uma diferença entre eles.

Assim, para que seu bebê se torne de fato um sujeito, é preciso que a mãe permita uma separação, uma diferenciação em relação a si mesma, autorizando a entrada de um terceiro nessa relação, e abrindo um caminho para que o bebê se torne um homem ou uma mulher. Em relação a esses diferentes destinos, Freud aborda os distintos caminhos, as diferentes for-mas de inscrição da castração na feminilidade e na masculinidade4. Assim, a menina, diferentemente do que se passa com o menino, entra no Édipo ao se deparar com a castração, com o fato de sua diferença, ao passo que o menino sai do Édipo ao se confrontar com a possibilidade da castração. Para ela, então, é como se o ver-se castrada, o ver-se diferente do menino, a levasse a imaginar que algo lhe foi cortado, levando-a a voltar seu amor para o pai. Mais tarde, ela deslocará esse amor para um outro sujeito, seu parceiro amoroso. É importante enfatizar que a questão da diferença sexual não diz respeito ao pênis, mas ao falo. Assim, a questão não é binária, em que um sexo tem e outro não; mas ternária, na medida em que remete a diferentes posições sexuadas em relação ao significante fálico, ou seja, em relação à instância paterna. Portanto, na castração, não se trata de um corte real, mas simbólico, uma vez que não se trata de um corte no real do corpo, mas, sim, de um corte do gozo de completude com o Outro primordial, de um corte na relação fusional com o Outro, enfim, de uma interdição5.

É importante ressaltarmos ainda que as posições sexuadas, feminina e masculina, não correspondem aos sexos biológicos, e que as possibilida-des de identificação e as escolhas de objeto sexuais são diversas, variando conforme as inscrições e marcas que foram sendo impressas ao longo do processo de subjetivação e da história do sujeito.

Mas, retomando a questão sobre o que permite que uma mulher dese-je o seu algoz, podemos nos reportar às considerações psicanalíticas acer-ca do masoquismo na sexualidade feminina. Freud, no clássico texto de 1919, Uma criança é espancada: uma contribuição ao estado de origem das perversões sexuais ([1919]1980), fala sobre a fantasia masoquista femini-

4 É o que podemos encontrar principalmente nos seus textos, entre eles: A dissolução do com-plexo de Édipo (1925), Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925), a Sexualidade feminina (1931) e a conferência Feminilidade (1933[1932]), em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise.5 Estas questões são desenvolvidas por Lacan em seu Seminário A relação de objeto ([1956-1957]1995).

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na de ser espancada pelo pai, e a remete a uma posição de passividade em relação ao pai, havendo uma equivalência entre ser batida e ser amada por ele. Tal fantasia é encontrada tanto em meninas quanto em meninos. Mais tarde, em seu artigo O problema econômico do masoquismo ([1924]1980), Freud vai desenvolver suas considerações sobre o masoquismo feminino. Porém, marca, neste outro texto, uma diferença entre o masoquismo primor-dial, comum a ambos os sexos, que teria relação com o estado de desam-paro e passividade do bebê em relação ao Outro. Helene Deutsch (1990) também considera o masoquismo como a expressão princeps da fantasia feminina, no caso, a “tríade masoquística” (castração, violentação e parto). Nesse sentido, o pai faria de sua filha uma mulher batendo no seu corpo. Essa seria, então, para ela, a origem da fantasia que anima o erotismo fe-minino, ligado fundamentalmente ao masoquismo. Porém, é importante en-fatizar que se trata aqui de uma fantasia e não da ocupação efetiva de uma posição masoquista – o que, por vezes, alguns autores confundem. Assim, encenar uma fantasia masoquista é algo bem distinto de ocupar efetiva-mente uma posição masoquista. Na primeira, o sujeito se faz de objeto, na outra, ele o é.

A autora fala também do pai do dia e do pai da noite (Deutsch, [1952] 1990): o pai do dia seria, na fantasia feminina, aquele que a faria filha pela filiação simbólica, enquanto o pai da noite, imaginariamente, a tornaria filha tocando no seu corpo (na sua fantasia, seduzindo-a, violentando-a). Have-ria, assim, uma ambivalência na relação da mulher com o pai, pelo fato de que a operação da castração, para ela, não é somente simbólica. É possível que a fantasia feminina de espancamento seja uma forma de erotização do que é, para uma mulher, a castração6.

As considerações de Lacan acerca do gozo feminino, no seminário 20, Mais, ainda, ou seja, “ainda no corpo”, parecem apresentar alguma relação com isso. O fato de a mulher ser não-toda na castração simbólica (uma vez que não há o conjunto das mulheres, por não haver uma exceção à castra-ção, ou seja, não haver ao menos um que não seja castrado, diferentemente do que acontece do lado dos homens) faz com que o gozo feminino seja além do fálico (gozo este decorrente da castração, e por isso, simbólico, fora do corpo). Por isso, ele denomina o gozo feminino de gozo outro, outro

6 Sobre isto, ver o livro História de O, de Pauline Réage (1985), um dos mais lidos e polêmicos romances eróticos franceses.

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que o fálico, mas não gozo do Outro (gozo este ligado à psicose, no qual mais do que uma posição de sujeito, tratar-se-ia de uma posição de objeto, uma posição de total passividade em relação ao Outro). Para o sujeito na posição feminina, parte fica ligada ao simbólico, e parte fica fora, no real. Essa relação mais direta com o real, com o não simbolizável, caracteriza, assim, a posição feminina.

Colette Soler, acerca da posição feminina, tece considerações que po-dem iluminar a significação do ato de Wong, que, numa situação extrema, é levada a trair seus valores, a sua pátria, seus amigos, levando a si e a seus companheiros à morte:

[...] não é a traição que constitui a marca própria da mulher. É claro que ela trai, mas não um objeto por outro, um homem por outro, antes, trai todos os objetos que respondem à falta inscrita pela função fálica, em prol do abismo. Este traço de aniquilação, quase sacrificial, é a marca própria do que designa o limiar, a fronteira da parte ‘não’ do todo fálico, do não-todo [...] (Soler, 2005, p.22).

Para ambos os sexos, em seu encontro com o Outro, no seu processo de constituição subjetiva, a passividade da criança é primordial. Mas por ser insustentável e despedaçante, num segundo momento ela é seguida pela entrada na atividade, que representa o falicismo. É só num terceiro tempo que se coloca a eventualidade de uma passividade propriamente feminina7. Nesse sentido, um sujeito na posição feminina apresenta uma maior dispo-nibilidade para se deixar ocupar o lugar de objeto na fantasia do parceiro. Essa é a tônica das fantasias que constituem o repertório da feminilidade. Ou seja, a feminilidade corresponde à passividade, a uma certa capacidade de entrega. No entanto, não a uma posição passiva de alienação ao Outro, mas de uma passividade ativamente buscada, na qual ela se faz objeto e não o é – posições totalmente diferentes. Essa diferença entre o se fazer objeto e sê-lo realmente é o que também diferencia o gozo outro (próprio à posição feminina) e o gozo do Outro (característico da psicose, em que o psicótico fica reduzido a objeto do Outro, principalmente na crise). Esse en-tão seria o limite, a fronteira do erotismo: a existência ou não da castração. A castração seria essa linha divisória, mesmo em se considerando a posição feminina como estando não toda na castração simbólica.

7 Conforme também considera Pommier (1987).

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Como já foi dito, os sexos biológicos não correspondem às posições sexuadas masculina e feminina. Assim, por exemplo, uma mulher pode ter uma saída fálica, do lado masculino, e não estar numa posição femi-nina.

Poderíamos ainda levantar a questão da perversão ou da montagem perversa, da qual neuróticos participariam. Acontece que mesmo na perver-são há a castração como referência, mesmo que apenas para ser burlada, transgredida. Atentemos para o fato de que, ainda assim, estamos transi-tando dentro do campo do simbólico, daí a possibilidade do erotismo. Todo o desejo implica uma transgressão, ou seja, é consequência de uma interdi-ção, mas que vislumbra a sua transgressão. Além do quê, as possibilidades de formas de gozo podem ser inúmeras, as formas de erotismo podem ser várias. A questão fundamental reside na diferença entre real e simbólico, ou seja, da existência ou não da castração. Este, sim, seria o limite, a fronteira para o erotismo.

Assim, considerando essas fronteiras, o dentro e o fora, vamos pensar, então, na impossibilidade do erotismo. Retomando a questão inicial acerca do erotismo e seus extremos e, para avançarmos na discussão, tomemos um outro filme: A professora de piano, com direção do austríaco Michael Haneke, de 2001, baseado no romance A pianista, da também austríaca El-friede Jelinek (ganhadora do Nobel de literatura em 2004). Haneke, além de cineasta, é psicólogo e filósofo, e dirigiu também Violência gratuita, Cachê, A fita branca e, neste ano (2013), Amor – que recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. No filme A professora de piano, Isabelle Huppert, que ga-nhou o César de melhor atriz, interpreta a personagem de Erika Kohut, uma gélida mulher amargurada e solitária, em torno dos seus quarenta anos, cuja vida se resume ao ensino de piano no Conservatório de Viena e ao convívio sufocante com a mãe possessiva e controladora.

O filme se inicia com uma briga entre mãe e filha, devido ao atraso da filha ao retornar para casa. A mãe arranca-lhe a bolsa, descobre um vestido (que Erika havia comprado e escondido) e o rasga, insultando a filha por gastar dinheiro, ao invés de poupá-lo. Insulta-a também, chamando-a de promíscua. Havia uma evidente censura, por parte da mãe, a qualquer mo-vimento da filha em relação a um encontro sexual. A demanda imperativa da mãe era de que a filha se tornasse uma pianista famosa, ao que Erika não pode corresponder (e em relação à qual podemos pensar que seja uma defesa para não enlouquecer, pois aí se tornaria literalmente o objeto de sua mãe). Erika se torna uma professora de piano, porém assume uma postura com seus alunos muito similar à de sua mãe com ela, que consistia numa exigência, rispidez e autoritarismo enormes, sempre acompanhados

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de uma expressão facial gélida. A mãe controla todos os passos e horários da filha. Dormem juntas na mesma cama.

As únicas referências sobre o pai de Erika são de que ele era louco e morreu. No livro consta que ele havia sumido de casa e da vida delas quando Erika nasceu. Fica evidente que ele não conseguira estabelecer um corte, uma mediação na relação fusional entre mãe e filha. Os únicos esca-pes de Erika (obviamente às escondidas da mãe) eram suas idas a coffee shops, onde assistia a filmes pornôs e cheirava o esperma dos homens nos lenços de papel que eles largavam no lixo. Esse era o seu prazer secreto. Mas, mesmo esse era cerceado pela mãe, uma vez que ela vigiava todos os passos da filha. Frente a esse encapsulamento materno, Erika costumava refugiar-se no banheiro – único espaço da casa que conseguia considerar seu, ao poder trancar a porta – do restante do apartamento ocupado pela mãe. Trancada no banheiro, ela costumava infligir secretamente cortes em seu corpo. Usando uma lâmina (no livro, há a indicação de que era do seu pai, aliás, único legado paterno guardado com muito cuidado), fazia cortes em seus genitais e ficava vendo escorrer o seu sangue. Depois, limpava tudo.

Certa vez, conhece Walter – um rapaz que insistia em se aproximar dela não só como aluno, mas como homem. Erika acaba se sentindo atraída por ele. Entretanto, a professora de piano tenta, de todas as formas, evitar uma aproximação do rapaz. Quando, finalmente, acaba cedendo às ten-tativas dele, ela lhe escreve uma carta, dizendo das “regras” para os seus encontros. O estabelecimento dessas regras parece ter relação com o con-trato que é frequente existir nas práticas sadomasoquistas, como assinala Deleuze (1983), na sua apresentação de Sacher-Masoch, em A Vênus das peles. Nesses contratos, as regras são propostas pelo masoquista.

As regras estipuladas por ela previam que ele a amarrasse e, caso ela lhe implorasse para parar, que ele lhe apertasse ainda mais as cordas. Con-tinuavam indicando que ele deveria lhe enfiar uma meia na sua boca, bem fundo até que ela não conseguisse emitir nenhum som. Que ele lhe batesse. Que as mãos e os pés dela deveriam estar trancados nas suas costas, tran-cados a chave, uma chave, porém, inacessível à sua mãe. Que ele levasse todas as chaves do apartamento, não deixando nenhuma com ela. E se caso ele a pegasse desobedecendo às suas ordens, que lhe batesse, até com as costas da mão em seu rosto. Erika lhe diz que o desejo de apanhar existia há anos e que esperava por ele. Diz ainda que de agora em diante seria ele que mandaria nela, de forma absoluta.

Ao ler a carta de Erika, Walter supõe, a princípio, que se trata de uma gozação, uma brincadeira. Aos poucos, porém, percebe que ela falava a

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sério e se choca com o que lê. Acaba indo embora, horrorizado, aliás, como um bom neurótico. Sim, pois caso fosse um homem que topasse os pedidos dela, talvez pudesse ter possibilitado um outro caminho para Erika. Quando o rapaz vai embora, a abandona, Erika fica muito mal. Quando vai para a cama com a sua mãe, sobe em cima dela e tenta beijá-la na boca, choran-do e dizendo que a ama. A mãe, chocada, tenta se desvencilhar da filha, chamando-a de louca.

Algum tempo depois, Walter a procura, e tenta uma aproximação, se-guindo os seus pedidos. Então, invade a casa de Erika de forma violenta, bate nela e a penetra. Mas acaba desistindo, tal a postura imóvel, inerte e gélida de Erika durante o ato sexual.

O filme termina num recital em que Erika iria substituir uma aluna, que havia cortado os dedos e, por isso, não poderia tocar. Acontece que fora justamente a sua professora que havia colocado cacos de vidro num dos bolsos do seu casaco. Sem que ninguém soubesse que era a autora da agressão, Erika consegue tomar o lugar da sua aluna no recital. O espec-tador, porém, sabe que o que pode ter contribuído para essa agressão foi o fato de Walter ter ajudado a colega, que estava muito ansiosa para a apre-sentação, atenção essa que abalou profundamente Erika.

Na ocasião do recital, a mãe dessa aluna, ao ser apresentada para a mãe de Erika, lhe disse que, certamente, ela deveria se orgulhar muito de sua filha. A mãe de Erika, porém, lhe responde: “Por que me orgulhar? É só um concerto de escola. Ela só vai substituir uma aluna”. E vai embora. É evidente a frustração da mãe de Erika, pelo fato de sua filha não ser a pia-nista que esperava que fosse. Na cena seguinte, Erika, antes do concerto, procura com o olhar saber se Walter tinha ido assisti-la e o vê passando, sorrindo com outros jovens, e abraçado com outra garota. Nesse instante, pega a faca, que havia colocado na sua bolsa ao sair de casa, a crava no próprio peito, e sai caminhando do Conservatório, com a mão no peito, ten-tando estancar o sangue que escorre.

Muitas questões são suscitadas pelo filme. Havia em Erika uma ten-tativa desesperada e fracassada de aceder à sexualidade, de conseguir se separar da relação asfixiante com a mãe. Porém, na impossibilidade de se dar uma separação entre mãe e filha, de haver um corte nessa relação, Erika fazia cortes no seu próprio corpo, nos seus genitais. Enfim, na falta de um corte simbólico, se infligia um corte real. Ela pedia ao seu jovem aluno, embora sem sucesso, que ele conseguisse libertá-la da prisão materna e da geleira que era a sua vida. Por que ela queria ser submetida por ele? Por que imobilizada? Parece pedir para ser sequestrada do Outro materno por um desejo tão imperioso que não lhe desse possibilidade de reação.

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Erotismo e seus extremos

Os cortes que fazia no corpo são, paradoxalmente, para aliviar uma dor ainda mais aguda e insuportável, de um corte simbólico que não podia se dar. Podemos, então, interpretar esse ato de se mutilar, de se cortar, como uma tentativa desesperada de inscrever uma separação, uma diferen-ciação, que lhe permitisse, então, aceder a uma posição de sujeito e à pos-sibilidade de uma vida erótica. Interessante notar que Erika usava a lâmina do pai para se cortar, tentando inscrever um corte que seu pai não conse-guira fazer. Pedia a Walter que também fizesse o corte que a libertasse do corpo materno e a autorizasse a aceder a um corpo de mulher, permitindo a ela o erotismo. A mulher, nesse caso, precisa ser sequestrada do vínculo simbiótico com a mãe, arrancada da relação de completude em que não há lugar para o erotismo. Pois a entrega erótica não é uma forma de alienação, uma vez que na relação sexual os parceiros estão protegidos pelas próprias fantasias, que se interpõem entre eles.

A partir do significativo número de casos de mulheres que tenho re-cebido no consultório e que apresentam tais formas de mal-estar, isto é, a impossibilidade (ou a grande dificuldade) de aceder a uma vida erótica, e o costume de se mutilarem, se cortarem, seria pertinente examinar ainda outro aspecto da mesma questão: em que medida nossa cultura acaba con-tribuindo para tais manifestações. Numa sociedade em que os referenciais simbólicos são frágeis, em que, mais do que uma interdição ao gozo, há o contrário, um imperativo de gozo, encontramos como sintomas sociais justamente a depressão, o vazio, a falta de desejo, a solidão. Na falta ou na dificuldade de o sujeito poder contar com referenciais simbólicos que lhe possibilitem uma identificação – característica de nossa cultura narcísica e individualista – ele se reporta ao semelhante, que lhe diga dele, que lhe forneça alguma identidade. Assim, o valor de um sujeito é pautado pelas relações imaginárias, amorosas, pela imagem que o outro lhe devolve.

Essa fluidez dos referenciais, dos valores simbólicos, também faz com que o sujeito, para dizer de si, acabe lançando mão do seu próprio corpo. As preocupações e cuidados com o corpo nunca estiveram tão em alta8, as-sim como, as bodymodifications. Essas manifestações, aliás, ocorrem com frequência, independentemente das estruturas psíquicas. Podemos pensar que a fragilidade da função paterna, ou seja, da castração, em nossa cul-tura – uma cultura em que sobra narcisismo e falta castração – em casos extremos poderia levar o sujeito, ao tentar se fazer por si próprio, produzir

8 Como também considera Jurandir Freire Costa (2004).

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um corte ao pé da letra, isto é, no real do seu corpo. Através desse ato, de um corte real, parece haver uma tentativa de existir como sujeito, uma busca de acesso ao desejo. A questão, na clínica desses casos, consiste então em possibilitar que essa dor possa ser colocada em palavras, que as palavras possam substituir os cortes, enfim, que a metáfora venha no lugar do sangue9.

Por outro lado, na nossa cultura parece haver também maior abertura para novas formas de possibilidades do erotismo, enfim, para invenções de outras modalidades para a vida erótica. Os inúmeros sites na rede, com as mais diversificadas ofertas eróticas, as casas noturnas ou clubes – em que “o sexo é liberado”, possibilitando aos frequentadores a realização de suas fantasias sexuais –, a diversificação dos produtos nas sexshops, entre tan-tos outros, são exemplos de que nossa cultura está criando espaços para o exercício das mais variadas formas de erotismo, a partir da multiplicidade das fantasias possíveis. Como nunca, o mundo virtual tornou-se uma via de encontro com o outro, onde muitas pessoas, especialmente os mais tí-midos, os mais esquisitos, bem como os mais fragilizados psiquicamente, conseguem estabelecer uma relação. Alguns, inclusive, criam um outro com o qual se relacionam, sendo o recurso inventado para uma vida erótica, es-pecialmente para os mais solitários.

Quando nos deparamos com certas situações extremas em relação ao erotismo, como vimos no caso de Erika, vemos que os limites se obnubilam, as fronteiras ficam borradas. O dito popular à noite todos os gatos são par-dos expressa essa região nebulosa em relação aos limites do erotismo, ao mesmo tempo em que vemos o quanto o leque de possibilidades de formas do erotismo, bem como de tentativas para inscrevê-lo, pode ser vastíssimo. Em nossa contemporaneidade, são crescentes as transformações simbóli-cas, antropológicas e tecnológicas que produzem uma abertura ontológica inédita nas possibilidades de existência, de estar no mundo, assim como nas possibilidades de exercícios do erotismo. Tais mudanças trazem tanto uma dimensão libertária – que permite que as minorias possam ser aceitas, havendo, portanto, maior tolerância com as diferenças – quanto novos de-safios. Esses desafios se situam tanto na clínica quanto no campo ético, e nos impelem a rever as categorias que temos para pensar, principalmente as figuras de fronteira, os casos extremos.

9 Esta questão é desenvolvida no livro Uma/duas, de Eliane Brum (2011).

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Erotismo e seus extremos

Numa situação extrema, Wong, buscando seduzir seu violento inimi-go, se faz de objeto para ele. Ao fazê-lo, porém, é tomada pelo desejo. O fato de ela se permitir ocupar o lugar de objeto na fantasia desse homem a faz gozar, um gozo, porém, extremamente perigoso. Ela literalmente dorme com o inimigo, mas, nesse caso, ele se relaciona com o desejo dela, que veste o papel de prostituta com mais autenticidade do que admite, e é essa encenação, que revela a verdade da fantasia de Wong, que ele procura subjugar, revelar. Ele a tortura, bate na sua encenação, revela um segredo que a faz se sentir mulher. Aqui não há a mãe a ser superada, trata-se do lugar dela entre os vários papéis que os homens lhe dão, da sua disponibili-dade para ocupar o lugar do objeto da fantasia masculina e de gozar nessa posição. Faz-se de objeto, na fantasia – o que é bem diferente de realmente sê-lo. Erika, por sua vez, na extrema dificuldade, senão impossibilidade, de se separar de sua mãe, não cessava, porém, de buscar a possibilidade de uma vida erótica – por meio dos filmes pornôs a que assistia, dos restos de esperma que cheirava e até, numa tentativa desesperada, dos cortes que fazia no seu corpo. Erika pedia que Walter a libertasse de sua mãe, que a fizesse mulher. Porém, não percebia em Walter uma outra subjetividade, fa-zia dele um corpo que modificaria o seu, possuindo-o violentamente. Parece tratar-se de um pedido de uma radical bodymodification, que a transformaria numa mulher. Embora fracassasse em suas tentativas, Erika buscava de-sesperadamente sair de sua vida gélida e existir como mulher, acedendo, assim, à feminilidade.

Para finalizar, vemos que, em situações extremas, Wong e Erika, nas suas diferentes histórias, dizem um pouco do desejo feminino. Como nos diz a bela canção de Chico Buarque10, em toda relação erótica, há um pedido para “ficar no seu corpo feito tatuagem”, “cicatriz risonha e corrosiva, marca-da a frio, a ferro e fogo, em carne viva”...

REFERÊNCIASBRUM, Eliane. Uma/duas. São Paulo: Leya, 2011.COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura – corpo e consumismo na moral do es-petáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.DEUTSCH. Helen. Masoquismo “feminino” e a sua relação com a frigidez. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 2, p. 10-13, 1990.

10 Tatuagem (letra de uma música de Chico Buarque).

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______. Masoquismo Feminino, In: ______. Psicologia de la mujer. Buenos Aires: Losada, 1952.FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. VII.______ Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições à psicologia do amor I) [1910]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XI.______ Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II) [1912]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XI.______. Uma criança é espancada: uma contribuição ao estado de origem das per-versões sexuais [1919]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XVII.______. O problema econômico do masoquismo [1924]. In: ______. Obras comple-tas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIX.______. A dissolução do complexo de Édipo [1925a]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIX.______. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos [1925b]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIX.______. Fetichismo [1927]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXI.______. Sexualidade feminina [1931]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXI.______. Feminilidade – conferência n. [1935-1936]. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXII.JELINEK, Elfriede. A pianista. São Paulo: Tordesilhas, 2011.LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto [1956-1957]. Rio de Ja-neiro: J. Zahar, 1995.______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.PAZ, Octavio. A dupla chama – amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.POMMIER, Gérard. A exceção feminina – os impasses do gozo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1987.RÉAGE, Pauline. A história de O. São Paulo: Brasiliense, 1985.SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

Recebido em 27/05/2013 Aceito em 28/06/2013

Revisado por Joana Horst R. Baldo

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 65-71, jul. 2012/jun. 2013

Resumo: O artigo aborda o estatuto do feminino na psicanálise, segundo Sig-mund Freud e Jacques Lacan, a partir do conceito do Um, em diálogo com o Ser e o corpo. Para isso, busca elementos, cenas, da clínica e do cinema contempo-râneo, em que o feminino aparece como criação do desejo masculino. Afirman-do que o Outro materno dá lugar de sujeito a uma criança, enlaçando corpo e linguagem a um conjunto de significantes através do jogo pulsional, nomeando e assim estabelecendo o Um, a autora sugere que o artista e o homem criam o Ser feminino de forma análoga. Das cenas trazidas à discussão, observa que o Um feminino assim criado é não-todo, é fugidio e habita a fantasia do criador, o que interessa à clínica, pois admite diferentes respostas. Palavras-chave: feminino, psicanálise, não-todo, criação, fantasia.

THE HABIT AND THE MONKAbstract: The article approaches the feminine in psychoanalysis, according to Sigmund Freud and Jacques Lacan, from the concept of Un (One), dialoguing with the Being and the body. For that, finds elements, scenes, from the clinic as well as from the contemporary movies, in which the feminine appears as a crea-tion of the male desire. Pointing that the maternal Other gives room to a child as a subject enlacing body to language to a set of Significants, through the pulsion interplay, naming and thus establishing the Un (One), the author suggests that the artist and the man create the feminine Being likewise. From the scenes brou-ght to discussion, observes that the feminine Un (One) thus created is not-whole and inhabits the creator’s fantasy, what is of interest to the clinic, as it admits different responses.Keywords: feminine, psychoanalysis, not-whole, creation, fantasy.

O HÁBITO E O MONGE1

Marta Pedó2

1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Ainda mais sobre o gozo, realizadas em Porto Alegre, novembro de 2012.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA; Especialista em Psicologia Clínica; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFR-GS). E-mail: [email protected]

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Oque se pode dizer do feminino? Terreno obscuro e instigante para Freud, como para Lacan, o feminino provocou a psicanálise na sua

origem. Lacan dirá que algo do insabido e infinito habita as mulheres, ain-da hoje. Às vezes se fazendo passar por homens, disfarçadas, às vezes perigosas, algumas mulheres ousaram e conquistaram espaços na cultura, escrevendo, buscando dar contorno ao que até então era silêncio, sem con-tudo deixar de dizer de algo que segue fugidio – o feminino como posição em que se está, mais do que se é.

Para estas Jornadas, recortei, do cinema e da clínica, cenas que nos possam permitir trabalhar sobre o feminino, a partir de elementos que Lacan ([1972-1973] 1982) aponta no seminário Encore, a saber, de sua proximida-de com o Um, no diálogo com o Ser e o corpo.

A primeira cena vem do filme Um corpo que cai3. Vertigo, como original-mente intitulado, é o clássico de Hitchcock que expôs a paixão do diretor por um determinado modelo de mulher, que se repete em tantos outros4. Nele, acompanhamos a paixão desdobrada e trágica do protagonista entre duas mulheres: Madeleine e Judy. A história é de um policial aposentado que sofre de acrofobia, tem medo de altura, e é chamado por um antigo colega, um magnata, para proteger sua esposa, Madeleine, de si mesma, já que ela é obcecada por ideias autodestrutivas. Relutante, Scottie aceita o trabalho e passa a acompanhar Madeleine, essa mulher loura, linda e misteriosa, por quem ele se apaixona e é correspondido. O romance progride, mas Scottie é incapaz de protegê-la, e ela morre ao cair do campanário, onde sua avó também teria se suicidado. Ele, pela vertigem, fracassara em protegê-la, fica muito abalado e precisa ser hospitalizado por um longo tempo.

Voltando a circular pela vida, Scottie perambula pelos lugares onde tinha estado com Madeleine e a vê em cada rosto, até se deparar com Judy, muito parecida com ela, diferente apenas pelos cabelos castanhos e por ser menos elegante. Logo os dois iniciam um romance, e ela, apaixonada, vai pouco a pouco cedendo aos pedidos dele, seja de que pinte seus cabelos de loiro, que os prenda em coque, e assim por diante. Aos poucos, vai-se parecendo mais e mais com Madeleine, até revelar-se igual. Nesse momen-to, se descortina, para Scottie, o enredo do crime em que Scottie fora metido – contratada pelo colega, Judy se fizera passar por Madeleine, simulando

3 Vert igo (1958), no Brasil Um corpo que cai, filme de suspense, dirigido por Alfred Hitchcock, baseado na novela D’entre les morts, de Boileau-Narcejac.4 Por exemplo, em Janela indiscreta, 1954; Disque M para matar, 1954; O homem que sabia demais, 1955; Ladrão de casaca, 1956; Os pássaros, 1963; Marnie – confissões de uma la-dra,1964.

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o suicídio do corpo jogado já morto; ou seja, seu antigo colega tramara o encobrimento do assassinato contando com a cumplicidade de sua fobia. Quando se dá conta, Scottie, desnorteado de ira, arrasta Judy a todos os lugares que visitaram juntos, até chegar à torre do suicídio. Lá, já curado da vertigem, ameaça jogá-la para obter a confissão, que vem, junto com o acidente – Judy cai do campanário e morre. Scottie perdeu-a, mais uma vez.

Revelando o quixotismo do protagonista, Hitchcock expõe o impossível da empreitada da idealização romântica e também um pouco de si: a histó-ria é também um pouco a do diretor, obcecado pelas atrizes de seus filmes – moldadas em louras, elegantes, sofisticadas e enigmáticas, condição mí-nima a ser preenchida para estrelar um filme seu.

A imagem da mu-lher moldada, criada pelo homem em sua paixão, aparece também, mais recentemente, no filme de Almodóvar, A pele que ha-bito (2011). Dele, recorto a cena da mulher enquanto faz yoga – numa sala pou-co decorada, com bastan-te luz; o foco está na ima-gem do corpo esguio, que se alonga coberto por um macacão claro e aderente, como se uma segunda pele. A cena leva um tempo, e podemos reconhecer ali o brilho de um falo em forma de mulher.

Mais adiante, no filme, descobrimos que seu corpo e seu rosto tinham passado pela criação do protagonista, o cirurgião plástico que lhe deu essa forma, esse contorno – e olha detrás da parede, embevecido, a criatura.

“A plástica é algo que se veste” disse um cirurgião plástico a um ami-go meu, que me contava, bastante contente com essa explicação, que lhe parecia tranquilizadora. Qual a extensão desse dizer, e mesmo do filme? A princípio, a fala do cirurgião plástico parece dizer respeito a uma redu-ção do valor dessas transformações no corpo, redução necessária porque subentende que a transformação permanente, os cortes do nosso habitat, não raro evocam o traumático, terror abusivo da imagem permanentemente diferente, estranha a si mesma.

Neste sentido, o filme de Almodóvar ganha o qualificativo, de acordo com algumas sinopses – de um filme de “terror frio”. Terror, porque a trans-formação no corpo de uma mulher foi um castigo, imputado pelo médico ao

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jovem que supostamente abusara sexualmente da filha – que acabou se suicidando depois. E também pela experimentação no recortar a pele e fa-zer à revelia o objeto da fantasia mais louca. Como na história de Frankens-tein, que, por sinal, retrata também o amor do médico pela criatura.

O que o médico cria? Uma bela mulher, mas a insinuação na cena da yoga vai adiante – a forma, a cor e a posição alongada, somadas ao olhar meio perdido e enigmático, ao infinito, seduzem, despertam o fascínio e evocam o falo imaginário.

Na contradança do encontro entre os sexos, nossa cultura situa o feminino como lugar da sedução, ou melhor, de provocar o desejo do homem. Fazer-se amar, fazer-se desejar e ser buscada como objeto define um lugar muito diver-so da posição viril, sempre posta à prova, masculina. Freud ([1931] 1976), em especial no texto sobre a sexualidade feminina, descreve a dissimetria das po-sições sexuais já no início do complexo edipiano, e lembra que os efeitos dessa diferença incidem ainda mesmo quando a análise está terminada.

Lacan ([1972-1973] 1982) segue o que foi proposto por Freud, mas avança, sendo que um aspecto que ele nos apresenta com um dos pontos centrais da argumentação reside nesse “lançamento ao infinito” – esse olhar que sugere gozo. Haveria um outro gozo além do fálico? O título do semi-nário XX em francês, Encore – traduzido como Mais ainda, pode-se dizer índice do infinito. Encore, índice do infinito, e, por homofonia, no francês, en-corps, em português no corpo.

Logo no início do seu seminário, Lacan anuncia que trabalhará sobre o gozo e indica que o gozo passa pelo corpo, mas pouco adiante adverte que esse mesmo corpo, para o ser falante, implica a linguagem, que o determi-na. As palavras determinam, delimitam e contornam, o corpo e o gozo. Esse gozo, fálico, por referir-se à fala e ao falo, possibilita ao humano a satisfação pela linguagem e o acesso ao desejo5. Mas algo, ainda, insiste – poderia haver um gozo Outro?

Acaso não se insinua algo a mais nesse índice do infinito das mulhe-res? A explicação para a insistência na pergunta é mais lógica do que poéti-ca e tem origem nesse a mais do qual elas não falam.

Retornamos às cenas: No corpo que cai, Judy vai ao extremo da repe-tição – pelo amor a Scottie, veste-se de Madeleine – usa a mesma roupa, clareia os cabelos e, finalmente, cai para a morte no mesmo lugar. Em A pele que habito – vemos o corpo do jovem, feito mulher, em modos suaves

5 Desde que referido ao ser falante, é bem diferente do gozo do Outro, de assujeitamento, entrega total.

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e em silêncio, cedendo ao que lhe for solicitado. O diretor Almodóvar nos deixa então em suspenso, na interrogação sobre o que será da criatura – será que vai se identificar com a fantasia do algoz e ali se fazer objeto, a-sujeitado a um gozo (que Lacan denomina gozo do Outro) escravizante? Contudo, ao final assistimos o sujeito que se reconhece, foge e se faz reco-nhecer como o rapaz de antes.

Em 1976, Lacan entrevistou Mademoiselle B, numa apresentação de doentes. Era a terceira internação dela, embora os diagnósticos a cada en-trada no hospital fossem diferentes. Na sua fala, nada ganha destaque – fi-lho, família, trabalho ou sua história. Lacan pergunta pelo seu métier, e ela diz: “Meu papel, através dos estudos que eu fiz, é de encontrar um lugar na sociedade, desempenhar um papel... eu sou os papéis, eu os jogo fora, eu gosto muito do papel...” Durante o tempo dessa conversa, vai descrevendo personagens que passaram pela sua vida, sem nenhum a que se fixasse, mas descrevendo como parecer com alguém era sua condição para viver. Em outra fala, diz: ... “o que eu procurava na minha ideia é ser parecida com alguém, é a condição de vida, e é por isso que tomo a vida deles.” Tratava-se de uma pessoa que vagueava entre as diferentes roupas que vestia, sem que se pudesse localizar alguém sob as vestes. E Lacan diz que Mademoi-selle B sofre uma doença da mentalidade, e, desta, comenta que é a doença de ter uma mente – e, como ela mesma diz, “nem falsa, nem verdadeira doente”... “algo que vamos encontrar por aí”.

“Dize-me com quem andas e te direi quem és” e “o hábito faz o mon-ge” são desses ditos populares que constatam e provocam. “O hábito faz o monge” enseja a constatação de que qualquer um se faz representar pela roupagem, quiçá pelos seus hábitos, bem como um convite a refletir sobre a passividade com que, a partir da vestimenta, da imagem, não apenas nos reconhecemos, mas nos fazemos. Em Lacan ([1972-1973] 1982), encontrei o dito ligeiramente modificado – ele diz: “o hábito ama o monge”, assim alargando a provocação, convidando a interrogar o modo pelo qual somos amados, mais que amamos; somos habitados, mais que habitamos. Hábito enquanto roupagem, habitat e corpo, implicam o sujeito e seu semblante; implicam parecer, ou pare-ser.

O hábito faz o monge – será que, desfolhada a roupagem da cebola, encontraremos “miolo”? De outro modo, podemos dizer que o corpo, real, se apresenta como impossível, aquilo que não cessa de não se escrever – como circunscrever esse real e aí fazer um Ser?

A primeira resposta a essa pergunta é relativa ao contorno que a mãe oferece à criança quando, muito antes de pensar sobre uma posição mas-culina ou feminina, deve encontrar na imagem que se reflete no espelho o

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reconhecimento de um eu que possa comandar o movimento do corpo que aparece. O real do corpo, contornado e invocado, responde a um nome que o Outro materno lhe dá. Assim, como ponto de partida, diremos que no cen-tro há um vazio, a preencher a partir do reconhecimento do Outro. O desejo do Outro materno, esse “vazio”, é onde a criança vai-se alojar como objeto-candidato ao amor, a-sujeitada aos caprichos da mãe, num jogo que enla-ça ambos, mãe e criança. Nesse jogo, pulsional, alguns pontos do corpo do bebê são demarcados, privilegiados e carregados de significação. No vai-vem dessa relação primordial, um novo sujeito advém, de modo que chegamos a formular que fundar o Ser é fazer um conjunto de significantes em que corpo e linguagem se amarrem em alguns pontos. O Ser é, portanto, o conjunto dos significantes que então se constitui, mas também é Um, que, por efeito retroativo, atribuímos como primeiro, capaz de enlaçar o corpo à linguagem.

O Ser é pois um substantivo mítico, realizado no só-depois. É Um, por-que se constitui como ponto de partida da cadeia discursiva, mas também é o almejado ponto final dessa mesma cadeia. Se pudéssemos ler de trás para a frente, encontraríamos o Um, Ser, que inicia a frase e dá sequência a uma série de predicados, adjetivos que delimitam e circunscrevem, com-pondo um conjunto de significantes que, finalmente, compõem o (mesmo) Ser. Ser, assim, está no início e no fim da cadeia – no início, ele é potencial, mítico, e no final ele é almejado (infinito... ainda... encore).

Trata-se de uma construção a partir da linguagem, que permite criar dentro de algumas leis que lhe são próprias. Interessam-nos aqui duas des-sas leis: a primeira é de que o que dá início à cadeia deve ser um subs-tantivo – de modo que o Ser, o Um, é substantivo. A outra é que é possível substantivar um adjetivo, ou seja, fazer de um adjetivo um substantivo; é assim que, por exemplo, clareza vem de claro e redondeza vem de redondo. Pode-se fazer também beleza de belo.

A posteriori, pode-se com a linguagem inventar Um anterior. O homem crê nisso e cria! Crê e cria a mulher. A mulher é assim aproximada ao Um potencial, que se sustenta, conta-se, sem ser.

Um artista que cria também nomeia e assina a obra; de modo análo-go, o cirurgião plástico do filme de Almodóvar diz: – “Te chamarás Vera”6. Ainda, também à maneira do artista, o amante cria. A mesma operação – de representar o irrepresentável e assiná-lo – está na base do amor. A pessoa amada dá corpo a esse infinito que escapa, e, se tomarmos freudianamente,

6 Não deixa de chamar atenção o fato de o nome escolhido, Vera, em italiano, significar “ver-dadeira”; ela, a criatura, é “verdadeira.”

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O hábito e o monge

a mulher dá corpo ao amor masculino, indicando que o desejo do homem cria a mulher.

Do lado dela, há passividade em deixar-se fundar pela fantasia mascu-lina; do lado dele, criar uma mulher é uma operação pela qual tem a possi-bilidade de firmar seu nome. A solução tem seu interesse geral, bem como guarda as peculiaridades nas versões singulares. De um lado, a possibili-dade de fazer uma mulher pelo amor vem acompanhada da convocação a fazê-lo, algo sobre o que o homem deverá prestar contas – ele é posto à prova (talvez como Hitchcock e seu personagem, Scottie, instado a repetir o modelo de atriz mulher, nem que seja com a violência do trauma e da per-da). E, de outra feita, numa posição feminina, deixar-se fazer pela fantasia do parceiro comporta o risco da proximidade de ser o falo (como Judy, que, pela paixão, faz-se Madeleine e se encontra com a morte).

Ainda, pare-ser se revela um artifício necessário, porém que tende rapi-damente a “comandar a cena”, seja na versão de Mademoiselle B., à deriva dos papéis que lhe sejam designados, seja na versão neurótica, em que o efeito de alargamento do imaginário provoca o predomínio das contradanças de evitação e fuga em um baile de máscaras, tão conhecidos de nossa clínica cotidiana, pois se o baile de máscaras nos diverte, há também o momento, o ponto, em que paramos e nos perguntamos se um dia ele chega ao fim.

No fim, tudo dá em fantasia, diz Lacan7. A máscara tem o efeito de véu, que cobre e descobre o desejo ao mesmo tempo – ou seja, trai o desejo enquanto evasivo, repleto de falta e provocante, lançado ao infinito.

REFERÊNCIASFREUD, Sigmund. Sexualidade feminina [1931]. In:______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XXI. LACAN, Jacques. O caso de mademoiselle B.: relato de uma apresentação de paciente. Boletim da APPOA, Psicose, ano IV, n. 9, nov 1993.LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar Editores, 1982.

Recebido em 13/09/2013Aceito em 05/12/2013

Revisado por Gláucia Escalier Braga

7 No fim, tudo dá em fantasia, diz Lacan, jogando, de algum modo, com o equívoco possível do termo fantasia, possível de se desdobrar entre a fantasia da máscara proposital e usada pon-tualmente, para um baile, por exemplo, e a fantasia continente do enredo necessário à erótica na neurose, na qual lemos que o sujeito somente faz relação com o objeto a.

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 72-80, jul. 2012/jun. 2013

Resumo: Através das fórmulas da sexuação escritas por Lacan no seminário Mais, ainda, o texto disserta sobre os pontos de atravessamento da barra da impossibilidade que divide os campos do masculino e feminino.Palavras-chave: sexuação, gozo feminino, fórmulas da sexuação, masculino, feminino.

EXISTENCES BETWEEN MASCULINE AND FEMININEAbstract: Through the sexuation formulae written by Lacan in the Seminar “En-core”, the text discourses about the points of crossing of the impossibility bar wich divides the fiels of the masculine and feminine.Keywords: sexuation, feminine jouissance, sexuation formulae, masculine, feminine

EXISTÊNCIAS ENTRE MASCULINO E FEMININO1

Lúcia Alves Mees2

1 Texto apresentado nas Jornadas Clínicas: Ainda mais sobre o gozo, realizadas em Porto Alegre, novembro de 2012.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porte Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA. E-mail: [email protected]

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objetodo meu mais desesperado desejo

não seja aquilopor quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beijaoriente que me reja

azul amor belezafaça qualquer coisa

mas pelo amor de deusou de nós dois

seja(Paulo Leminski)

Apartir do seminário Encore, podem-se deduzir algumas novas proposi-ções de Lacan sobre a constituição dos sujeitos, seus laços, sexuações

e gozos. Lê-se nessa produção de 1972-73 que a escolha de objeto não determina a identidade sexual, mas, sim, o modo de gozo. A modalidade de gozo é que situará o sujeito no lado masculino como todo fálico, ou feminino como não todo fálico. Ou ainda, acompanhamos Lacan numa mudança de ênfase da determinação do significante e suas combinatórias para a defini-ção advinda dos gozos e da operação de castração da linguagem que os causa, induzindo efeitos subjetivos diferentes no masculino e no feminino. Na esteira das formulações psicanalíticas sobre o ato e o fim de análise, Lacan ([1967-68] 2001) busca o para além do falo, retirando a condenação sobre o feminino de só chegar a deslocar a procura pelo falo para os outros objetos que o representam, assim como transpõe o limite à análise proposto por Freud ([1937] 1975). Portanto, além da “rocha viva da castração”, marco final de uma análise ou ao desprendimento de um sujeito ao falo, Lacan anuncia um outro gozo além do fálico, propriamente feminino, suplementar. Diz Lacan:

Se não há, pois, mulher senão excluída pela natureza das coisas, como A barrado mulher, de todo modo, se ela está excluída pela natureza das coisas é justamente por isso: por ser ‘não toda’, ela se afirma como A barrado mulher. Porque com relação ao que eu designo como gozo, na função fálica, elas tem, se posso assim di-zer, um gozo suplementar. Vocês notarão que eu disse suplemen-tar, porque se tivesse dito complementar [...] cairíamos de novo no todo ([1972-73] 2010, p.151).

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Chama-o ainda de místico para frisar sua relação com o Outro: “eles experimentam a ideia, em todo caso, de que em algum lugar poderia haver um gozo que estivesse além. É o que se chama de místicos” ([1972-73] 2010, p.154). Diz que crê nesse gozo, o que faz questionar o que haveria de ato fé na consideração sobre ele.

Vocês todos vão estar convencidos de que eu creio em Deus. Eu creio no gozo da A barrado mulher, na medida em que ele é ‘a mais’, com a condição de que esse ‘a mais’, vocês coloquem aí uma cortina [...] É talvez isso que nos faça perceber o que tem a ver com o Outro, esse gozo que se experimenta e do qual nada se sabe. Mas não será isso que nos põe no caminho da “ex-sis-tência”? E por que não interpretar uma face do Outro, a face de Deus [...] uma face de Deus como sustentada pelo gozo feminino? (Lacan,[1972-73] 2010, p.155).

O gozo místico, pautado por um Deus ou Outro incorpóreo, alude ao gozo com o qual a mulher se relaciona. Essa modalidade de gozo, ao mes-mo tempo em que é indizível, revela um gozo suplementar e a ausência de um saber que poderia ser construído sobre ele, o que não quer dizer que ele não possa ser experimentado por algumas mulheres. Ou, como diz Lacan, “há um gozo ‘dela’, dessa ela que não existe, que não significa nada [...] gozo do qual talvez ela mesma não saiba nada, a não ser que o experimenta, isso ela sabe. Ela sabe, é claro, quando isso acontece. E isso não acontece com todas” ([1972-73] 2010, p.152). Não há garantias de que uma mulher o encontre. Não tem como ser anunciado de antemão, antes da experiência, assim como o final de uma análise também não pode. Esse gozo é posto na relação ao significante da falta do Outro, ausên-cia de qualquer traço que referende um lugar, vazio que os psicanalistas experimentam na não proposição de qualquer significante que não os do analisante e na subtração de qualquer desejo que diga do sujeito analista. O desejo do analista, enquanto desejo da pura diferença, portanto, pode ser considerado aparentado com esse gozo que não se materializa, que se relaciona com a falta e que predispõe ao empréstimo como semblante do objeto que é o do outro. Apesar do parentesco, entretanto, as relações e impossibilidades entre o campo do masculino e o do feminino também têm suas singularidades.

Nas fórmulas da sexuação propostas no seminário – além dos cam-pos de cada uma das sexuações – duas flechas furam a barra de separa-ção entre os dois terrenos do masculino e feminino; barra essa que separa

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as sexuações, de modo que o encontro seja marcado por uma impossibilidade, aque-la da relação sexual que não existe. Não existe a sonhada complementaridade dos dife-rentes que formariam o todo. As fórmulas escrevem a inde-lével separação entre ambos. Habitando universos diferen-tes, masculino e feminino po-dem se tocar, entretanto, em dois pontos: com o masculino, a flecha liga o sujeito barrado de seu lado ao objeto de desejo no lado feminino. Com o feminino, a flecha que fura o intransponível dos campos é aquela que parte da inexistência da mulher completa, A mulher barrada, para o falo simbólico do lado masculino (além da flecha que permanece em seu campo, a que a relaciona com o S (Ⱥ), significante da falta do Outro).

A flecha do feminino para o masculino se refere à já formulada por Freud busca do feminino pelo falo. Porém, observe-se que o falo da fórmula é o simbólico, aquele que refere o laço de um sujeito com a transmissão, com a relação do masculino com o Outro passível de transmissão de um significante que dê conta de um lugar, de uma inscrição fálica, portanto. Quer dizer, a flecha liga o masculino ao feminino sob a condição de o sujeito desse campo se relacionar com a responsabilidade de portar o significante que o constitui, mas que também o liga com a morte, com o nada mais ser senão esse traço que ele carrega e de que se torna veículo.

Ou, nas palavras de Lacan:

desse homem que eu inscrevi aqui com S barrado e com esse phi maiúsculo que o sustenta como significante [...] justamente esse significante do qual não há significado que, quanto ao senti-do, simboliza seu fracasso [...] E esse S barrado só tem de lidar, enquanto parceiro, com o a inscrito como tal, do outro lado da barra. Só lhe é dado alcançar esse parceiro que é o Outro, com maiúscula, por intermédio disso: que ele é a causa de seu desejo ([1972-73] 2010, p.169).

No lado do feminino, o furo na barra supõe a ela a posição de alguém às voltas com sua falta e a do Outro, com a inconsistência de um lugar, com

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a falta de um significante que a represente, condição para que busque no masculino algo do significante que ele porta.

Na relação que escreve a fórmula do fantasma, de S barrado do mas-culino ao objeto a do lado feminino, outras condições se colocam. Vale re-lembrar que o fantasma é a versão que cada um constrói a partir do desejo do Outro. O sujeito na linguagem é um sujeito dividido ($), determinado pelos significantes do Outro, e, no que se refere ao gozo do corpo, ele se reduz a um objeto parcial para o desejo do Outro. O masculino, afetado e tributário do significante, desencontra-se do corpo que se empresta ao gozo; e o feminino, carente do significante que diria de si, oferta seu corpo à designação do outro. O fantasma é o que permite abordar essas duas vertentes do inconsciente: a do desejo a ser decifrado e a do gozo a ser extraído do corpo afetado passivamente pelo significante. No fantasma, o grande Outro enquanto desejante é rebaixado, reduzido a ser objeto fanta-sístico e desejável. O fantasma que liga o masculino e o feminino se refere, portanto, à encenação na qual o Outro é aniquilado, puro objeto à mercê do sujeito, quer dizer, trata-se na trama da fantasia da castração do Outro. O feminino, assim, representa a degradação do Outro ao se situar no lugar de objeto, de acordo com sua relação com a falta do Outro. Quem melhor do que ela para encenar a diminuição do Outro senão ela que “sabe” de sua falta? Tal disponibilidade feminina para essa cena de diminuição, porém, é confundida com a posição masoquista que cabe aqui diferenciar. Quer dizer, o feminino na posição de objeto no fantasma masculino subentende algum traço de degradação do Outro, mas será que isso corresponderia à posição masoquista?

Como bem resume Colette Soler (2005),

a mulher às vezes assume ares de masoquista, mas para se dar ares de mulher, sendo a mulher de um homem, na impossibilida-de de ser A mulher. O amor que ela convoca como complemento da castração, para nele assentar seu ser, define o campo de sua sujeição ao Outro e de uma alienação que reproduz a alienação própria do sujeito (p. 66).

Ou, ainda, resume ela as teses de Freud sobre o tema:

[Freud] ao explorar a fantasia masoquista, descobre outra coisa. Primeiro, a função da própria fantasia, no que ela transcende as estruturas clínicas dos dois sexos e, em parte fica isolada do con-teúdo sintomático da neurose. Depois, a afinidade com o sofrimen-

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to do que chamamos, a partir de Lacan, de gozo. De fato, os textos que Freud dedica ao masoquismo, preciosos em muitos aspectos, nada nos ensinam sobre a mulher em si, porém muito sobre a não relação sexual e o gozo paradoxal do ser falante (Soler, 2006, p.61).

O conto escrito por um dos personagens do livro Serena (2014), de Ian Mac Ewan, ilustra o desejo masculino de submetimento, ao mesmo tempo em que permite hipotetizar sobre o gozo feminino.

Neil Carder era um camarada sem graça e a vida dele o estava deixando ainda mais sem graça [...]. Ele estava caminhando pela Oxford Street [...] quando passou por uma loja de departamentos com imensas vitrines atrás das quais ficava uma vasta seleção de manequins em diversas posições, trajando roupas de festa. Ele se deteve um momento para olhar, sentiu vergonha, andou mais uns passos, hesitou, e voltou. Os bonecos – ele veio a odiar aquele ter-mo – estavam dispostos de maneira a sugerir uma reunião de gen-te sofisticada na hora dos coquetéis. [...] Mas Neil não estava inte-ressado em nada disso. Ele estava olhando para uma jovem que tinha se afastado de todo o grupo. Ela estava contemplando uma gravura – uma vista de Veneza – na parede. Mas não exatamente. Por causa de um erro de alinhamento que a pessoa que arrumou a vitrine tinha cometido, ou, como de súbito se viu imaginando, por um grau de obstinação da própria mulher, o olhar dela se desviava do quadro vários centímetros e estava dirigido diretamente para o canto. Ela estava seguindo uma ideia, um pensamento, e pouco ligava para a impressão que causasse. Ela não queria estar ali. [...] Ele sacudiu a cabeça para acordar [...]. Como ela poderia se liber-tar? Era uma fantasia doce e agradável, e naquele estágio Carder não tinha dificuldades para reconhecer que era uma fantasia. [...] Com o sentimento de um destino já formado, ele entrou na loja [e comprou a manequim e vários vestidos e sapatos para ela]. [...] O nome da manequim era Hermione, que por acaso era o nome da ex-esposa de Carder. Ela havia largado dele numa bela manhã, depois de menos de um ano. Naquela noite, enquanto Hermione ficava nua na cama, ele esvaziou um guarda-roupa para ela no closet e pendurou as roupas e guardou os sapatos dela [...]. Saiu e voltou para o quarto para levá-la até a esplêndida sala de jantar. Eles comeram em silêncio. A bem da verdade, ela não tocou na

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comida e não olhava nos olhos dele. Ele entendeu o motivo. A tensão entre eles era quase insuportável [...]. Que noitada! Ele era um daqueles homens para quem a passividade da mulher era uma aguilhoada, um encorajamento agudo. Mesmo no êxtase ele via o tédio nos olhos dela, o que o levava a novas alturas de deleite. [...] O que alimentava o amor de Carder – o silêncio de Hermione – seria sua destruição. Ela estava morando com ele havia menos de uma semana quando ele percebeu uma alteração no seu humor, uma recalibragem quase imperceptível do seu silêncio que conti-nha a nota vaga mas constante, quase inaudível, da insatisfação. [...] Naquela noite, quando estavam no andar de cima, uma suspei-ta lhe passou pela cabeça e ele sentiu um tremor – foi de fato um tremor – de horror. Ela estava pensando em outro. Ela estava com a mesma expressão que ele tinha observado pela vitrine da loja enquanto ficava separada dos convidados e mirava aquele canto. Ela queria estar em outro lugar. [...] A revelação veio rapidamente. Naquela noite a faca do cirurgião estava mais afiada, cortou mais fundo, torcendo-se no corte. E ele soube que Hermione sabia. Ele viu no vazio do pânico dela. O seu crime era o fato de ele tê-la dominado imprudentemente. Ele a atacou com toda a fúria de um amor desiludido, e seus dedos estavam em volta da garganta dela quando ela gozou, quando ambos gozaram. E quando ele tinha acabado, os braços, as pernas e a cabeça dela tinham se sepa-rado do torso, que ele arremessou contra a parede de quarto. Ela estava por toda parte, uma mulher destruída. [...]. (McEwan, 2012, p.152).

“Ela estava pensando em outro”, afirma o protagonista. O outro pre-sente no gozo feminino, que se faz presente por sua falta, aponta o hori-zonte do mais além do gozo fálico para alguns sujeitos sexuados do lado feminino. Se uma mulher se empresta/se presta como corpo receptáculo, cabide, manequim do fantasma de um homem, ela ganha o efeito de ser devido ao amor e ao gozo que ela obtém de quebra, porém, o gozo femi-nino alude a uma meta mais além desse semblante. Segundo Lacan, mais que objetivo, um acesso a um outro gozo que supera as descontinuidades do gozo fálico. Por isso, o feminino está volta e meia “pensando em outro”, outro além do falo.

O objeto olhar, que comanda todas as cenas, delimita o ponto de li-gação entre sujeito e Outro, entre corpo e significante, ao mesmo tempo em que demarca suas disjunções. Neil olha o olhar da manequim, ativo e

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passivo na vitrine, enquadrando os dois polos do fantasma: sujeito e objeto enganchados na cena. O Outro, detentor do olhar capaz de formar um sujei-to, reduz-se ao olhar de desejo pela (e da) mulher, agora olhada como corpo plastificado, inerte e passível de portar o objeto de que o homem quer se desembaraçar e possuir. Ela se presta e se empresta como receptáculo, em nome do laço com o homem, com o falo, mas a posição feminina a levará a outra visada, aquela que olha a falta do Outro.

Voltando às flechas das fórmulas, parece-me que elas se estabelecem sob a condição de que o masculino tolere o “outro” do qual goza o feminino, suportando a relação com o falo e permitindo sua queda, seu caráter de significante ao não traduzir potência, ereção, veneração. Ou ainda, que lide com a busca além daquelas das “capitalizações” fálicas. O falo simbólico aqui se oferece como bastião, como retorno das desventuras do outro gozo.

Como também deu a escutar um analisante que, no início de sua aná-lise, se perguntava como podia conter o desejo de sua mulher, como fazê-la sossegar, parar de querer ir a outro lugar, para, no prosseguimento do traba-lho analítico, chegar a se indagar como faria para conseguir perdê-la. Como suportaria a perda implicada no desejo viajante de sua esposa? Como to-maria esse desejo como não negador de sua condição de homem dela? Como não veria seu falo fragilizado, se ela não afirmasse, com sua entrega, sua adoração pelo membro e significante precioso? Como conseguiria re-gistrar um mundo em que nem todos perseguem o falo, quer dizer, que sua esposa poderia querer outra coisa que não outro homem3? Como suportaria o risco de que ela não mais voltasse de suas viagens, sem sufocá-la e assim provocar a maior perda de seu amor?

Ele acabou por concluir que a condição de “possuí-la” era deixá-la ir a “outro” lugar, satisfazendo-se com a chegada e a afirmação de que ele detinha o mastro – lugar definido – onde ela voltava a aportar. Nos tem-pos das chegadas, ele se satisfazia em possuir o que definia o lugar dela, submetendo-a.

Supondo-se que o “outro” lugar buscado por sua mulher se relacione com o outro gozo além do lugar definido do fálico, tem-se aí um exemplo das condições para a pequena brecha de encontro entre o masculino e o fe-

3 Ela sempre voltava e todas as vezes afirmava seu desejo e amor por esse homem. Não pare-cia estar atrás de outro falo, apenas ligada ao exercício de vagar um pouco, de perseguir outros desejos para além de seu marido.

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minino, em algum ponto reunidos no fantasma em que ele tem a posição do sujeito determinante da cena e ela se deixa “segurar” em sua partida, lugar só existente se a possibilidade de partir se renove a cada vez, se for exis-tente enquanto referência a um “outro” lugar que o feminino também habita.

REFERÊNCIAS FREUD, S. Análise terminável e interminável ([1937]). In:______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1975. v. XXIII LACAN, J. O ato analítico (1967-68). Escola de Estudos Psicanalíticos. Publicação de circulação interna, 2001.______. Encore (1972-73). Escola Letra Freudiana. Edição não comercial, 2010.LEMINSKI, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.MCEWAN, Ian. Serena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

Recebido em 05/01/2013Aceito em 30/01/2013

Revisado por Cristian Giles

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TEXTOS

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Resumo: A partir do seminário 20 de Lacan, o presente artigo aborda as noções de corpo e gozo, de alíngua/linguagem e inconsciente, assim como a noção de amor. É na articulação dessas noções que tentamos responder sobre o encontro possível entre homens e mulheres.Palavras-chave: corpo, gozo, alíngua/linguagem, inconsciente, amor.

WHAT MAKES THEM SPEAK, MEN AND WOMEN?Abstract: From Lacan’s Seminar XX, the present paper discusses the notions of body and jouissance, of lalangue/language and unconscious as well as the no-tion of love. With the articulation of these concepts we try to address the possible encounter between men and women.Keyword: body, jouissance, lalangue/language, unconscious, love.

O QUE OS FAZ FALAR, HOMENS E MULHERES?1

Cristian Giles2

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura: Quatro ensaios sobre o sexo, realizada em Porto Alegre, abril de 2013.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Mestre em psicanálise e psicopatologia pela Universidade Paris 13; Professora da UNIJUÍ. E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 81-87, jul. 2012/jun. 2013

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Cristian Giles

Iniciarei com duas situações que me foram colocadas durante a realização deste trabalho. Uma delas é uma piada que escutava na adolescência e

a outra é a fala de uma paciente, que também não deixou de ser ane-dótica.

Com relação à piada, ela possui uma história que se liga a uma mú-sica. Encontrei essa música, em espanhol, na internet. É claro que toda piada depende do lugar de onde ela é enunciada, é o que Freud nos ensina sobre o chiste; este, para ser entendido, depende do seu compartilhamento numa comunidade, ou seja, a comunidade da língua. Então vamos à piada3: são dois amantes durante uma cena de amor, ele vai perguntando a sua parceira: “De quem é essa boquinha?”, ao que ela vai respondendo seduto-ramente: “... Tuazinha, tuazinha; De quem são essas tetinhas?... Tuazinhas, tuazinhas; De quem é essa barriguinha?... Tuazinha, tuazinha; De quem são essas perninhas?”, ela muito seriamente fica em silêncio para depois se levantar irritada e dizer: “Não quero mais! Tu pulaste!”.

Uma paciente num momento da sessão, falando de sua vida amorosa, ao se referir a seu parceiro diz: “meu flo-flo...” e dá uma risada, ficando rubo-rizada. Ao ser questionada sobre essas letras, a mesma responde que flo-flo é a forma como fala a seu parceiro no momento em que estão transando. Ela diz para ele: meu flo-flo. E ele, para ela: meu kui-kui. São essas palavras sem sentido que se dizem quando fazem amor.

A piada e a fala dessa paciente me colocaram uma questão que irei desenvolver. Lacan nos ensina que não há relação sexual, assim como não há encontro entre os dois sexos. Então, como mesmo assim os parceiros se encontram?

Para responder, abordarei alguns elementos conceituais a partir do se-minário Mais, ainda, de Lacan ([1972-1973] 1982): as noções de corpo, de alíngua/linguagem e de amor. Nesse seminário, Lacan trabalha uma noção de corpo que não é a do corpo como representação, da imagem, trabalhada no estágio do espelho; assim como também articula e faz distinção entre alíngua e linguagem para nos falar do inconsciente. O inconsciente ligado à noção de real e fora do simbólico, e nos fala do amor, não do lado do narci-sismo, mas do amor como um signo enigmático, que revela, assim como o significante, a presença do inconsciente.

3 “De quien es esa boquita? ... Tuyita, tuyita; De quien son esas tetitas? ... Tuyitas, tuyitas; De quien es esa barriguita? ... Tuyita, tuyita; De quien son esas piernitas? ... Tuyita, tuyita... Ah, no quiero mas! Tu te as salteado!”.

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O que os faz falar, homens e mulheres

O corpo

Lacan afirma que o corpo é um fato de linguagem. A questão é saber como a linguagem constrói um corpo. Partimos de uma entrevista realizada para a radiodifusão Belga, em 1970, e que se encontra no seu texto Radio-fonia. Lacan ([1970] 2003, p.407) disse: “O corpo que era habitado pela fala, que a linguagem corpsificava”.

Este enunciado nos traz a ideia de dois processos na construção do corpo. O primeiro se refere ao fato de que só é corpo na condição de este ser admitido no simbólico, e o segundo, que o simbólico vem habitar o cor-po. A esses dois processos Lacan denomina corpsificação.

Com relação ao primeiro processo, temos a admissão do corpo na linguagem. É importante esclarecer que a operação da linguagem sobre o corpo passa pela fala, pelo que é dito e escutado. Nesse sentido, é a lingua-gem que nos dá o corpo, como por exemplo, “tua boquinha, tuas perninhas” e, desde que seja dito e articulado, “meu corpo, teu corpo”, o corpo que é admitido no simbólico se torna significante.

O corpo admitido pela linguagem que se torna significante, ou seja, corpo que é nomeado pelo simbólico, se distingue do morto e do vivo. Estar morto ou vivo é irrelevante com relação a esse corpo que vem a se tornar significante. Lacan ([1970] 2003, p. 406) dirá: “No que se revela que, quanto ao corpo, é secundário que ele esteja morto ou vivo”. Assim, dessa forma, temos um corpo disjunto do vivo.

O efeito desse primeiro processo ou operação de corpsificação, o cor-po admitido na linguagem, é “ganhar um pouco de perenidade, mas isto tem um preço: de perdermos o traço do vivente” (Soler, 2001-2002, 2ª aula, p.4). Ou seja, há uma forma de mortificação ou uma desvitalização. Isto condiz com o enunciado de Lacan: que o significante produz uma mortificação ou que a palavra mata a coisa.

O segundo processo se refere à incorporação desse corpo significante num segundo corpo. Desse segundo corpo Lacan ([1970] 2003) nos escla-rece como sendo o corpo comum, ingênuo, aquele que nos sustenta e do qual temos o sentimento que a natureza nos dá. Assim, esse primeiro corpo simbólico vai se incorporar e construir esse segundo corpo. O efeito dessa operação, da introdução do significante nesse segundo corpo (comum) é uma subtração de gozo. Podemos assim dizer que o “corpo do falante é afe-tado no seu gozo e uma primeira afetação é a perda de uma parte de gozo vivente” (Soler, 2001-2002, 2ª aula, p.8).

O resultado desse segundo processo de corpsificação é o esvazia-mento de gozo. Temos, assim, um corpo disjunto de seu gozo. Um corpo do

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qual o gozo foi expulso. Dessa forma, temos, por um lado, o corpo que não é do vivente e, do outro, a carne que é do vivente, que posteriormente Lacan denominará a substância gozante e da qual afirmará: “É uma propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza” (Lacan, [1972-1973] 1982, p.35).

Resumidamente, podemos dizer que o corpo/organismo, quando in-corpora esse corpo incorpóreo, porque é significante, se torna um corpo disjunto de seu gozo, ou seja, um corpo deserto, esvaziado de gozo.

A questão que se coloca a partir das afirmações anteriores é:

como um corpo deserto de gozo entra no gozo? Uma das formas é o sintoma; outra, o gozo masoquista e, ainda, o gozo sexual. Esse último se refere particularmente ao gozo feminino, já que o gozo masculino fálico é fora do corpo. O masoquista nos mostra que para o corpo poder entrar no gozo, corpo deserto de gozo, tem que se inventar uma cena para poder gozar, como nos assinala Soler (2001-2002, 3ª aula, p.3).

Mas resta ainda alguma coisa desse processo de corpsificação, e o que vai restar é um corpo incorpóreo, que Lacan denomina libido. Esse órgão incorpóreo é o que resta de vida depois desse processo de corpsifi-cação. Sabemos que a libido utiliza a pulsão para poder se vincular com o outro. A atividade pulsional só conhece do corpo aquilo que lhe resta após a corpsificação. Aquilo que lhe resta é o que Soler (2001-2002, 3ª aula, p.7), em sua leitura de Lacan, denominou: “Os insensíveis pedaços que derivam como voz, olhar, carne a devorar, ou bem seu excremento. Insensível de-signa a mortificação que os marca”. Assim, a pulsão é a única forma que faz laço com o outro, mas a partir de sua elasticidade pulsional, que é fora corpo.

Inconsciente real, alíngua

Falar do corpo nos leva a ter que fazer uma ligação entre o corpo e aquilo que Lacan denomina o inconsciente real ou alíngua.

Lacan trabalha com essa noção de inconsciente ligado à alíngua, dife-renciando-o e articulando-o ao inconsciente como estrutura de linguagem. Ele afirma no seminário Mais, ainda:

O inconsciente é o testemunho de um saber; no que em grande parte ele escapa ao ser falante. Este ser dá a oportunidade de perceber até onde vão os efeitos da alíngua, pelo seguinte, que ele apresenta toda sorte de afetos que

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restam enigmáticos. Esses afetos são o que resulta da presença da alíngua no que, de saber, ela articula coisas que vão muito mais longe do que aquilo que o ser falante suporta de saber enunciado ([1972-1973] 1982, p.190).

O inconsciente, como estrutura de linguagem, é aquele que se decifra a partir dos significantes que se extraem da fala e dos ditos dos pacientes. Significantes que levam a outros; e a outros, denominados inconsciente elu-cubração. Nesse sentido, Lacan ([1972-1973] 1982, p.190) afirma: “A lin-guagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elucubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua”.

Esse inconsciente real ligado à alíngua faz um gancho com aquilo que desenvolvemos sobre o corpo/gozo. A alíngua certamente não é um corpo, mas uma multiplicidade de diferenças, diferenças que não tomaram corpo. Nesse sentido, não há o -1 da alíngua que faz o conjunto, não há ordem na alíngua, portanto não é uma estrutura, não é um S1, S2. Ela está no real porque é feita de uns significantes fora da cadeia, fora do sentido, mas que ao mesmo tempo “é feita de uns que tem uma coalescência enigmática com o gozo, ou seja, com o corpo” (Soler, 2012, p.49).

A alíngua, então, afeta o corpo e traz a dimensão do gozo. A noção de alíngua vai ser desenvolvida por Lacan a partir da experiência da relação da mãe com seu bebê, que ele denomina a lalação, que está em referência à língua materna. Na lalação, na relação mãe e bebê, não se trata tanto do discurso da mensagem do Outro, mas da melodia do Outro, a alíngua do Outro, a alíngua ouvida do Outro.

Nesse sentido, a criança pega, agarra pedaços, detritos sonoros, e ao mesmo tempo é afetada no seu corpo, isto é demonstrado a partir dos signos de satisfação da mesma.

Então, por um lado, a alíngua opera sobre o real através do qual o cor-po se goza. De outro lado, recolhendo os signos deixados pela experiência de gozo, ela própria passa a ser objeto de gozo.

Essa alíngua singular, que vem do Outro, não deixa de trazer rastros de gozo desse Outro no corpo da criança, neste sentido é a obscenidade da alíngua. Dessa forma, a alíngua marca o sujeito com signos enigmáticos de gozo.

Lacan ([1972-1973] 1982) afirma, no seminário Mais, ainda, que:

A alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efei-tos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estru-turado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar (p.190).

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Mas retornando à questão do encontro dos parceiros, quem são esses parceiros? (p.190)

Para avançar nisso, citamos Soler (2012, p.144):

O Real fora do Simbólico, aquele que Lacan inscreve em seu nó borromeano e que inclui justamente tudo o que é chamado de vida, sem poder imaginá-la. O gozo deve-se posto na conta do Real, desse real da vida e não na conta do corpo-anatômico da forma, ou seja, do Imaginário. Quando for todo fálico esse Real traz as marcas das letras do Inconsciente. Quando não for todo fálico, ele permanece não marcado, habitando mesmo assim o corpo substância, pois para gozar é preciso um corpo vivo (p. 144).

Essa citação nos leva ao que nos ensina Lacan ([1972-1973]1982), que os seres sexuados se autorizam de si mesmos ou eles podem escolher com relação ao sexo. Este si mesmo certamente não é o sujeito (je), tam-bém não se trata do eu (moi), uma vez que há uma divisão do sujeito, aquele que é representado pelo significante, e aquele que é afetado em seu gozo pela linguagem, entre ambos há uma distância irredutível. O sujeito “não tem muita coisa a fazer com o gozo, agora o indivíduo corporal que o supor-ta, ele sim, porque ele também de alguma forma está sujeito ao ravinamento do Outro” (Soler, 2012, p.145).

Então, autorizar-se de si mesmo ou escolher não passa pelos sem-blantes, nem do Outro, nem dos ideais, nem das prescrições que veiculam o discurso, mas, antes, pelos modos de gozar. O si mesmo de que se trata são as respostas de seu gozo, este é impossível de ser comandado por par-te do sujeito, ao contrário, é o gozo que comanda os efeitos sobre o sujeito. Nesse sentido, pode-se dizer que é o gozo que nos escolhe, é ele que nos faz falar.

Mas ainda fica a questão: Como ao final se encontram esses parceiros?

O amor

Lacan ([1972-1973] 1982, p.12) nos diz “o gozo não é signo de amor”, mas, ao mesmo tempo nos traz uma noção nova de amor, que de alguma forma, podemos dizer, permite o encontro entre dois parceiros. Se não há relação sexual, há uma relação de amor possível.

Essa nova definição de amor nos diz que o amor é signo, na medida em que se dá ao outro uma mostra de um modo de gozo, quer dizer, que

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o traço mais singular de cada um, o que faz com que cada sujeito seja ini-gualável, aquilo que faz gozar alguém, faça signo para o outro. Ou seja, que isso que é da mais absoluta singularidade possa fazer sinal ao outro e, por essa contingência, se produza um encontro.

Esse amor é ligado a certo reconhecimento. O amor é reconhecimen-to de um signo de percepção do inconsciente do Outro, ou seja, o amor é reconhecimento do que no Outro é afetado pelo seu inconsciente. É reco-nhecimento de signos enigmáticos. Esse amor nos permite reconhecer no outro como ele é afetado pelo real, pela alíngua. Esse reconhecimento não é aquele “tu és minha mulher”, “pois aqui há uma fala que institui um outro, mas é um reconhecimento através de uma certa percepção, de uma certa sensibilidade, de afinidade com o outro, afinidade mesmo no contraste” (So-ler, 2012, p.184).

Lacan coloca uma força nesse novo amor, que é quase o contrário de um amor novo, aquele novo personagem repetido na cena fantasmática. O novo amor é o que se faz possível – uma vez tendo identificado essa forma singular de gozar, essas marcas de escritura que se fixam no corpo pela ex-periência do significante – um novo uso para esse amor. A disposição desse traço, marcas, para o encontro com o outro permite ao sujeito reconhecer também no outro seus próprios traços, suporta-os melhor e, então, por que não ter algum encontro?

Esse amor é um reconhecimento a partir das alínguas, reconhecimen-to a partir de inconsciente a inconsciente. Assim, esse amor é o que nos permite dizer: “meu flo-flo, minha kui-kui”.

REFERÊNCIASLACAN, Jacques. Radiofonia [1970]. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 400-447.LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.SOLER, Colette. L’en-corps du sujet. Cours de 2001-2002.SOLER, Colette. Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2012.

Recebido em 15/05/2013Aceito em 17/06/2013

Revisado por Simone Goular Kasper e Bianca Kreisner

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TEXTOS

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Resumo: A psicanálise é produto da experiência clínica de Freud e seus se-guidores, tendo ao longo de mais de cem anos elaborado conceitos e teorias que vêm permanentemente se confrontando com novas experiências, de novos sujeitos, em um processo dialético que, se sabe, está fadado a nunca estar concluído. Este artigo toma como eixo a questão do sexual para percorrer as ar-ticulações de Freud e de Lacan sobre esse tema, apontando o quanto elas são, como qualquer teoria, influenciadas pelos contextos culturais e intelectuais de suas épocas. A interrogação que move o texto é a de como enfrentar o desafio de abordar práticas e posições no campo da sexualidade que não se deixam apreender pelos paradigmas teóricos que orientaram as produções de nossos mestres.Palavras-chave: psicanálise, clínica, sexual, cultural, paradigmas.

THE MODALITIES OF JOUISSANCE: from body to fantasy Abstract: The psychoanalysis is a product of Freud’s and it’s followers clinical experience, having throughout more than a hundred years elaborated concepts and theories that have been constantly confronted by new experiences of new subjects, in a dialectic process that is doomed to never be concluded. This article has the sexual matter as its guide line to go through the articulations of Freud and Lacan about this topic, pointing how like any theory, they are influenced by the cultural and intelectual context of its periods. The question that moves the text is how to face the challenge of approaching practices and positions in the field of sexuality that don’t let themselves being seized by he theoretic paradigms that oriented the productions of our masters.Keywords: psychoanalysis, clinic, sexual, cultural, paradigms.

AS MODALIDADES DE GOZO: do corpo à fantasia1

Eduardo Mendes Ribeiro2

1 Texto apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Ainda mais sobre o gozo, realizadas em Porto Alegre, novembro de 2012.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Mes-tre em Filosofia (PUCRS); Doutor em Antropologia Social (UFRGS). E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 88-96, jul. 2012/jun. 2013

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Nos estudos psicanalíticos que tomam como referência Freud e Lacan, é interessante analisar a forma como as teorias e conceitos vão se modifi-

cando, seja em função de sua articulação com os grandes paradigmas teó-ricos predominantes em cada época, como o evolucionismo e o estruturalis-mo, seja em função do desenvolvimento da prática e da elaboração clínica.

Dentre as várias questões envolvidas nesse campo, o sexual sem dú-vida ocupa um lugar central, sendo que sua concepção, da mesma forma, vem sendo revista na medida em que as transformações nas relações so-ciais contemporâneas trazem para a clínica novas modalidades de gozo. Essa situação nos coloca a questão de tentar discernir o que há de universal e essencial na teoria psicanalítica, ou seja, aquilo sem o qual a psicanálise deixaria de ser psicanálise, e quais os conceitos e teorias que podem, e de-vem , ser revisados na medida em que as modalidades de sofrimento e de gozo vão se transformando e/ou multiplicando.

Neste artigo será proposta uma reflexão sobre a forma como vêm sen-do articuladas, por um lado, a produção teórica derivada do exercício da clínica psicanalítica e, por outro, as transformações sociais e a sucessão de paradigmas teóricos voltados a sua compreensão. Tomando como eixo a questão do sexual, o ponto de partida será o texto freudiano As consequên-cias psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (Freud, [1925] 1976), passando pelo seminário Encore, de Lacan (Lacan, [1972-1973] 2010), e acompanhando alguns debates no campo psicanalítico contemporâneo, in-corporando contribuições de outros campos, como a antropologia social e o que tem sido chamado de “estudos queer”3.

Como pano de fundo dessa discussão aparecem as relações que se estabelecem entre corpo e natureza, por um lado, e a linguagem e o que é da ordem do significante, de outro. Ou, em outras palavras, as relações que se estabelecem entre o real e determinados universos discursivos, entendi-dos como produções da articulação entre o simbólico e o imaginário.

No que se refere à subjetividade e, mais especificamente, à sexualida-de, essas relações ocorrem em dois momentos lógicos distintos: o primei-ro, de caráter universal, ocorre quando nos constituímos enquanto sujeitos, atravessados pela ordem simbólica. Nesse momento, na maior parte dos casos, os sujeitos assumem uma forma de ser, uma forma de se situar fren-

3 “Queer” é uma expressão pejorativa que quer dizer alguma coisa como esquisito, estranho, muitas vezes utilizada para insultar os homossexuais. Os estudos queer reúnem pensadores de diversos campos das ciências humanas para propor novos entendimentos acerca das rela-ções de gênero e das definições de identidade sexual.

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te ao Outro, relativamente estável, que chamamos de estrutura subjetiva. Até aí não se encontram definidas as posições de gênero, nem a escolha de orientação sexual. Será em momento logicamente posterior a esse, e que pode se estender por muito tempo, que o sujeito, a partir de uma sucessão de identificações, e de sua inserção em determinado laço social, assumirá uma posição sexual específica. Considerando, portanto, que as diferentes modalidades de subjetividade4 só podem ser compreendidas a partir de suas relações com o laço social em que se constituem , daí resulta que as teorizações psicanalíticas se encontram articuladas com os paradigmas an-tropológicos hegemônicos em cada época.

É possível observar que Freud ([1908] 1976) ao se utilizar da antro-pologia social de seu tempo, a evolucionista, entendia, por exemplo, que a pulsão sexual passava por três estágios de civilização: o primeiro, no qual as metas da reprodução são totalmente alheias à atividade da pulsão se-xual; o segundo, no qual tudo o que não serve à reprodução é suprimido; e o terceiro, no qual só se admite como meta sexual a reprodução legítima. Lembremos que Freud manteve até o fim de sua vida a aposta na homologia entre filogênese e ontogênese.

Em outro momento, Freud ([1925] 1976) afirmou sua esperança de que seus achados acerca das consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos tivessem validade geral e que fossem típicos, pois, caso contrário, segundo ele, permaneceriam não mais do que uma contribuição ao nosso conhecimento dos diferentes caminhos pelos quais a vida sexual se desenvolve. Atualmente, depois de Lacan e outros psicanalistas terem proposto novos fundamentos epistemológicos para a psicanálise, é possí-vel contextualizar e relativizar as pretensões freudianas à universalidade dos processos de evolução. Ainda assim é importante reconhecer que essa “contribuição ao nosso conhecimento dos diferentes caminhos pelos quais a vida sexual se desenvolve” não foi irrelevante, como temia Freud, tendo sido a primeira referência psicanalítica para se pensar a sexualidade, e servido de base para todos os desenvolvimentos posteriores.

É verdade que Freud ficaria decepcionado se constatasse que o per-curso do sujeito por Édipo e castração, definindo determinada forma de

4 As relações entre as diferentes modalidades de laço social e o sofrimento psíquico são mais evidentes nas neuroses, mas também podem ser encontradas nos casos de psicose, como é demonstrado no livro O homem que se achava Napoleão (Murat, 2012), em que os delírios predominantes em cada época são explicados por sua relação com os impasses sociais viven-ciados pela sociedade em que esses sujeitos se encontram inseridos.

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sexuação, não é universal. Mas, o que deve ser considerado é que suas descrições e interpretações referem-se à forma como se davam as rela-ções na sociedade de seu tempo ,e estavam subordinadas a determinada concepção de ciência, originária do positivismo iluminista. Evidentemente, isso não significa que elas deixaram de ser pertinentes para a análise dos sujeitos contemporâneos, herdeiros dessa tradição. Elas continuam valendo na medida e nos contextos em que permanece atual a ideologia5 daquela época. Podemos testemunhar isso diariamente em nossos consultórios ou, mesmo, em nossa vida privada.

Mas, por outro lado, também podemos observar que a tradicional famí-lia burguesa da época de Freud se encontra quase em extinção. Pesquisas recentes demonstram que, nos Estados Unidos, por exemplo, as famílias constituídas por pai, mãe e filhos, de casamento único, em que apenas o pai trabalha, representam menos de 6% do total de lares6.

Tributário de uma antropologia social estruturalista, Lacan assumiu po-sição muito diferente frente à importância a ser atribuída às configurações familiares. Em primeiro lugar, ele não tinha nenhum interesse pela história, o que pode ser entendido a partir de sua adesão ao paradigma estruturalista que, no final da primeira metade do século XX, se disseminava nas ciências humanas, especialmente na linguística e na antropologia social.

Além disso, no seminário Encore (Lacan, [1972-1973] 2010), ele vai reforçar o entendimento, construído ao longo de toda sua obra, de que não há nenhuma realidade pré-discursiva, e de que cada realidade se funda e se define por um discurso. E essa realidade seria, para o ser falante, a reali-dade psíquica, instaurada pela fantasia. Nesse sentido, o discurso seria um aparelho criador de realidade. E afirma ainda que o homem, como a mulher, são nada mais do que significantes, e que é daí que eles adquirem, enquan-to encarnação distinta do sexo, sua função.

Nesse mesmo seminário, Lacan mantém em suas fórmulas da sexua-ção uma distinção a priori entre os processos de sexuação dos homens e o das mulheres. É verdade que, em alguns momentos, ele faz a ressalva de

5 “Ideologia”, entendida como conjunto de ideias e valores hegemônicos em uma determinada configuração social.6 Uma análise criteriosa destes dados pode ser encontrada no segundo volume de A era da informação: economia, sociedade e cultura, de Manuel Castells, que recebeu o título de O po-der da identidade. Ver especialmente o capítulo dedicado ao fim do patriarcalismo: movimentos sociais, família e sexualidade na era da informação (Castels, 2000).

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que qualquer sujeito pode transitar entre esses “lados”, mas não há como negar que seu ponto de partida é essa distinção entre o lado homem e o lado mulher, mesmo que a diferença biológica não esteja atrelada à diferen-ça de gênero (masculino/feminino).

Sabemos que o pensamento estrutural lacaniano deve muito a Lévi-Strauss, e que uma de suas contribuições foi o entendimento de que a pas-sagem da natureza à cultura, ou seja, o nascimento da subjetividade,se daria pela instauração da interdição do incesto e, em consequência, da circulação de mulheres. Entretanto, no que se refere à relação entre essa primeira interdição (castração simbólica) e a sexualidade, o próprio Lévi-Strauss reviu suas antigas teorias e passou a considerar que as relações de aliança não precisam estar vinculadas às diferenças sexuais.

De fato, o desenvolvimento das pesquisas e interpretações antropo-lógicas já demonstrou, com pouca margem de dúvida, que tanto as repre-sentações e papéis sociais de homens e mulheres (a partir da distinção biológica), quanto os atributos de gênero (atividade-passividade, poder-submissão, etc.) variam amplamente de cultura para cultura. Além de en-contrarmos em outras sociedades comportamentos e gêneros invertidos em relação à nossa, também acontece de certas culturas não reconhecerem uma diferença de maneira de ser entre homens e mulheres, o que nos faz concluir que não há nada de natural na forma como se definem as relações entre seres de sexos biológicos distintos e, muito menos, nos efeitos dessas distinções na produção de subjetividades. Os trabalhos de Pierre Clastres, Marcel Mauss, Margareth Mead, Michel Foucault, Thomas Laqueur, dentre outros, são conclusivos a esse respeito. Partindo dessas considerações, a questão que se coloca é a de avaliar quais as consequências psíquicas, e, portanto, clínicas, das possíveis mudanças de nossas representações rela-tivas à sexualidade. Essa questão se mostra pertinente, tanto como orien-tação no campo da clínica, quanto no processo de avanço na teorização psicanalítica.

Nesse sentido, chama a atenção o fato de nós, psicanalistas de orien-tação lacaniana, mantermos um quadro conceitual e epistemológico cal-cado em referenciais biológicos, o que nos faz, com frequência, precisar esclarecer que damos outras conotações a esses significantes/conceitos: precisamos esclarecer que função paterna não tem a ver, necessariamente, com pai biológico (ou seus substitutos); que função materna não tem a ver, necessariamente, com mãe biológica (ou suas substitutas); que falo não é o mesmo que pênis; que, quando falamos de castração, se trata de algo simbólico, e não real; que gozo não é o produto do ato sexual; e que sexo é muito mais do que a distinção anatômica ou o ato sexual. Ora, se não po-

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demos escolher a língua em que nos constituímos, temos responsabilidade pelas palavras que escolhemos utilizar e pelos efeitos que elas produzem.

A questão das consequências psíquicas da distinção anatômica toma como ponto de partida, tanto em Freud, quanto em Lacan, a ameaça de castração, o que faz com que a diferença sexual apareça como algo binário: para o sujeito provido de pênis, o confronto com a ameaça de castração terá determinado efeito, enquanto para o sujeito destituído de pênis terá outro. Mas, na realidade, não se trata tanto de ter ou não ter, mas de encon-trar formas de lidar com uma incompletude que é comum a todos. Trata-se de posições diferentes a serem assumidas frente ao Outro. E é importante apontar para o fato de que são muitas as formas possíveis de se relacionar com uma falta.

O confronto com a castração, entendida como efeito da heterogeneida-de entre o campo da linguagem e o real, da mesma forma, pode resultar em respostas diferentes (forclusão, recalcamento, renegação, ou uma alternân-cia de respostas), produzindo modalidades de subjetivação distintas. Como sabemos, a falta resultante da castração faz com que se instaure um desejo voltado, não a objetos a que tenhamos um acesso imediato (da necessi-dade), mas à tentativa de resgatar um gozo pleno supostamente perdido, mas que agora deverá ser buscado através das mediações simbólicas, es-pecialmente a linguagem, que organizam as relações de alteridade. Nesse sentido, o conceito de gozo é um conceito limítrofe, que articula o lugar do Outro e o do sujeito, sendo sempre parcial, na medida em que não encontra o objeto adequado para sua realização.

Frente à perda de um gozo pleno mítico, a fantasia instaura para o sujeito uma compensação ao gozo que ele perdeu. Tem como ideal a as-piração de completude, como o de uma relação sexual possível. Podemos dizer que a fantasia é uma construção simbólico-imaginária que nos per-mite fazer face ao real , expressa na impossibilidade da relação sexual. É na fantasia que encontramos o objeto a, lugar vazio, que o sujeito tentará preencher durante toda a vida com objetos imaginários. É importante notar que, nesse sentido, também não há por que pensar a fantasia em termos de polaridades binárias.

Considerando portanto que , tanto em Freud, quanto em Lacan, o que pode ser chamado de realidade só pode se tratar de realidade psíquica, e que a sexualidade se define no âmbito da fantasia, não há por que manter-mos o pensamento fundado na realidade biológica. De qualquer forma, atu-almente, no campo das distinções de gênero, as diferenças entre homens e mulheres parecem ter perdido sua antiga fixidez, permitindo uma maior mobilidade e plasticidade para todos.

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É claro que precisamos diferenciar o que é o sexual para a psicanálise, das práticas ou comportamentos sexuais, reconhecendo seu alcance e en-raizamento inconscientes. Mas é exatamente para a lógica inconsciente de constituição das fantasias que direcionamos nossa interrogação. Ainda no seminário Encore, é Lacan quem nos dirá:

A qualquer ser falante é permitido, quem quer que ele seja , provi-do ou não dos atributos da masculinidade – atributos que restam a determinar – inscrever-se do outro lado (do quadro das fórmulas da sexuação) (Lacan, [1972-1973] 2010, p.169).

Pensando nessa possível mobilidade e plasticidade, lembramos que

sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual comportam mui-tas articulações distintas. Mesmo no que se refere ao sexo biológico, nem sempre as coisas são claras e definitivas, pois são conhecidos os casos de pseudo-hermafroditismo e, cada vez mais, ocorrem práticas de transexua-lismo. E por que não pensar que as identidades de gênero possam assumir outras formas, além do feminino e masculino, como o “drag” e o travestis-mo? E, quanto à orientação sexual, cada vez mais encontramos situações em que ocorrem deslocamentos do objeto de desejo, e não apenas na di-reção da superação da repressão e assunção da condição homossexual, mas, também na direção inversa. Ou, mais ainda, casos em que essa esco-lha não se define de forma fixa, como quando falamos de estruturas subje-tivas não-definidas7.

Em minha clínica, tenho encontrado jovens que se mostram muito me-nos preocupados com sua identidade de gênero, ou com sua escolha de ob-jeto, do que costumava ocorrer nas gerações anteriores. Não me parece ser algo que se poderia chamar de bissexualidade, mas, mais propriamente, de uma não necessidade de fixação de um objeto de desejo, ou de uma orien-tação sexual. Com a diminuição do tabu em relação à homossexualidade, ao menos em certos meios sociais, não só o recalcamento perde sua força, como também a desvinculação do desejo em relação à anatomia passa a ser vista como uma forma de exercício da liberdade.

No final do século passado, começou a ganhar relevância um campo teórico e de ativismo político chamado “estudos queer”, que pretende ser

7 Este é o entendimento proposto por Jean-Jacques Rassial (2000) a respeito dos estados-limi-te. Essa subjetividade pós-moderna de que fala Rassial, em que o sujeito experimenta um es-tado prolongado de adolescência, certamente também se manifesta no campo da sexualidade.

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uma política pós-identitária, na qual o foco é a cultura e suas estruturas discursivas, e não a identidade. Dentre suas principais referências teóricas se encontram Foucault, e o entendimento de que o campo da sexualidade é produto de relações de saber/poder, produtoras de constructos sociais que dão sentidos a essas relações; Derrida, e sua crítica aos binarismos; e Lacan, de quem tomam elementos para recusar a ideia de identidade sexual e afirmar a existência identificações múltiplas e contingentes.

Nesse sentido, os teóricos desse campo, especialmente Judith Butler (filósofa pós-estruturalista), defendem a existência de uma pluralidade in-definida de sexualidades, que se definem pelas fantasias, e não pelo sexo biológico dos parceiros, o que faz com que proponham a substituição da no-ção de “diferença sexual” pela de “diferenças sexuais”. Para Butler (2003), a diferença sexual binária não dá conta da diversidade existente nesse cam-po, em que entre as mulheres por exemplo existiriam outras distinções do feminino, como a butch/femme8. É interessante a observação feita por ela de que, mesmo que a maioria da população continue a se pensar, e às suas relações, a partir da distinção homem/mulher, se a psicanálise pretende manter sua vocação subversiva, é preciso que ela não se dedique a reificar os modelos hegemônicos existentes e, sim, permitir o discurso do singular. Mas, para que isso aconteça, é necessário que se reconheça que nossos modelos interpretativos são parciais e históricos.

Butler, Laqueur e outros críticos do estruturalismo centram suas críti-cas na questão epistemológica. Para eles, o pensamento estrutural impõe critérios de inteligibilidade a partir de relações de oposição, deixando de lado um conjunto de discursos e práticas, relativos a corpos e gêneros, que se constituem então como não- inteligíveis. Se concordarmos com Lacan, quando ele afirma que são os discursos que criam as realidades, ou seja, que criam inteligibilidades, é possível reconhecer a legitimidade da reivin-dicação de que outros discursos possam se estabelecer no universo social que partilhamos. Afinal, se sexualidade e gênero são efeitos das institui-ções, dos discursos e das práticas, eles mantêm a inconstância de tudo o que é histórico e cultural.

Alguns psicanalistas respondem às críticas de Butler, condenando o apagamento da materialidade do corpo como referente essencial da deter-

8 Trata-se de uma distinção no âmbito de uma relação homossexual feminina, entre aquela que assume a identidade masculina (buth) e aquela que assume a identidade feminina (femme). Essa distinção não é aceita por muitas militantes feministas lésbicas por, segundo elas, repro-duzirem os padrões de relacionamento heterossexual.

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Eduardo Mendes Ribeiro

minação da sexualidade. Para eles, a materialidade real da diferença ana-tômica entre os sexos localiza-se também no campo dos significantes, mas essa materialidade (do corpo) deveria ser tratada como um dado de realida-de. Eles afirmam que a realidade funda-se em última instância no real como impossível, que seria um limite à liberdade das relações entre os significan-tes. Dizem ainda que, nesse sentido, a anatomia não seria propriamente o destino, mas o fundamento da sexuação, o que haveria de mais real. Mas, esse parece ser um equívoco, pois, ao contrário de se constituir como um limite à liberdade das relações entre os significantes, o encontro com o real provoca um movimento de elaboração simbólico-imaginária, sem qualquer nível de determinação de parte de alguma realidade pré-discursiva.

Essa é a questão que fica: em um mundo cada vez mais pós-moder-no, em que convivem múltiplos códigos e discursos, como dar passagem a essas singularidades que escapam de nossas referências teóricas tra-dicionais? A tarefa se mostra ainda mais difícil considerando que, para a psicanálise, o ponto de partida será sempre a atividade clínica, o que exige de cada analista a disposição de abrir mão da segurança das teorias que lhe servem de referência, sempre que elas se mostrarem inadequadas para a compreensão e intervenção nas análises que conduz. Por outro lado, esse desafio não representa uma novidade, pois faz parte da tradição que rece-bemos de Freud e Lacan.

REFERÊNCIASBUTLER, J. Problemas de gênero-Feminismo e subversão de identidade [1990]. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2003.CASTELS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos [1925]. In: ______. Obras completas. Imago Editora, 1976, v. XIX. ______. Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna [1908]. In: ______. Obras completas: Imago Editora, 1976, v. IX.LACAN, Jacques. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010.MURAT, Laure. O homem que se achava Napoleão: por uma história política da lou-cura. São Paulo: Três Estrelas, 2012.RASSIAL, Jean-Jacques. O sujeito em estado-limite. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

Recebido em 03/03/2013Aceito em 13/08/2013

Revisado por Maria Ângela Bulhões

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TEXTOS

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Resumo: O texto trata de expressões que se situam na passagem puberdade/adolescência. Aborda o tema do feminino na relação à castração. Situa a rela-ção à questão do olhar e o horror à castração.Palavras-chave: puberdade, castração, olhar.

BODY PIERCING PRACTICES AND THE PUBERTY SMIRCHAbstract: The text deals with expressions that lie in the passage puberty/ado-lescence. The article ddresses the issue of femininity in relation to castration. It also situates the issue of the gaze and the horror of castration.Keywords: puberty, castration, gaze.

AS PRÁTICAS DE FURAR O CORPO E A MÁCULA PUBERTÁRIA1

Ana Costa2

1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Ainda mais sobre o gozo, realizadas em Porto Alegre, novembro de 2012.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Pro-fessora do PPG em Psicanálise da UERJ. Autora de diversos livros: A ficção de si mesmo (Cia. de Freud, 1998); Corpo e Escrita (Relume-Dumará, 2001); Tatuagens e Marcas corporais (Casa do Psicólogo, 2003); Sonhos (Jorge Zahar, 2003); Clinicando (APPOA, 2008). E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 97-104, jul. 2012/jun. 2013

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Ana Costa

O tema que me ocupa neste trabalho diz respeito a algumas questões clínicas que têm se apresentado recentemente. Tomarei somente uma

delas. Fui procurada para supervisionar uma equipe de CAPS3, às voltas com o caso de uma adolescente que causava alvoroço, porque se cortava. Apresentaram pontualmente esse caso, que preocupava mais, mas não era o único atendido ali, estavam recebendo muitos casos de meninas que se cortavam. Foi com base nesse acontecimento clínico que pensei uma série de questões.

Falando um pouco do caso: a garota tomou “emprestada” essa prática de se produzir cortes na pele a partir de sua relação com outra menina que, originalmente, cometera essas atuações. Temos que considerar as especi-ficidades dos casos na relação com esse tema, que difere de uma menina para outra.

Em primeiro lugar, essas práticas colocam em causa um olhar, mas não se situam do lado duma estética, de marcar o corpo para um olhar des-de esse campo, como no piercing, por exemplo. São atos que buscam pro-duzir uma borda, expressando muito diretamente a relação com um limite. A especificidade desse caso – não é o único, acontece em outros ̶ é que a garota imitou algo da amiga. Sua busca se apoiou numa questão que a ligou inicialmente à amiga, mas se tornou compulsiva, porque produzia gozo. É importante diferenciar situações como essa, a partir de uma mímesis, de outras, em que a iniciativa parte duma questão singular do sujeito. No caso dessa menina, a amiga era idealizada por ela, mas, tão logo começou a se cortar, ela caiu numa compulsão: os cortes recobriam pernas e braços, hor-rorizando quem se ocupava dela no CAPS.

A equipe relata alguns elementos da história, que compartilho. A mãe teve essa menina numa circunstância interessante: ela se relacionava com um homem que, ao mesmo tempo, tinha outra. As duas engravidaram e ele escolheu ficar com a outra, indo morar com ela, o que produziu um baque narcísico nessa mulher, do qual ela não se recuperou. Outro elemento as-sinalado pela equipe foi de que a mãe não estava muito preocupada com os cortes. Para ela, a questão é que a menina sempre foi “do pai”. Desde a gravidez ela sabia disso: quando o homem chegava, o bebê se mexia na barriga. Temos, então, essas duas questões a considerar, na relação da me-nina com a mãe: a queixa dessa mulher, de ter sido preterida, e o fantasma

3 Centro de Atenção Psicossocial.

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da “menina do pai”. Reconhecemos, aqui, que a menina atua o fantasma materno. Não me alongarei na história, tão somente destaco os elementos que fazem essa menina ser portadora de uma questão. O aparente descaso da mãe inquietava muito a equipe, que estava prevendo um destino trágico, complementar à mostração que a menina fazia e à compulsão que ali se produziu.

Esse caso me fez pensar numa especificidade que está em causa nes-sas situações, que envolvem a passagem puberdade/adolescência, dizendo respeito a atuações que não fazem sintoma. Aqui, a compulsão joga sua partida, basicamente, tentando fazer cair o olhar, enquanto objeto-excesso, objeto que tampona. A colagem entre essas atuações e o olhar do outro não produz sintoma, produz compulsão. A referência ao sintoma posiciona o sujeito na relação à castração, é uma resposta construída singularmente. Não parece ser o que está em causa nessas atuações em que nos detemos: a partida jogada no lugar da menina faz eco ao lugar do Outro materno. De-senvolverei algumas questões nesse sentido, depois voltarei ao caso.

Quero deter-me no título que dei a esta intervenção: por que denomi-nar mácula pubertária? Normalmente não se pensaria na puberdade como uma mácula. A imagem do púbere traz o oposto, algo que diz de um ima-culado, de um corpo ainda não violado, virgem. O que faz o púbere estar nessa posição é que ele ainda não se definiu na sexuação, ele é aquele que carrega os dois sexos. No entanto, o lugar desse cruzamento o interpela na necessidade de definir, de precisar perder. Há uma condição de interpelação muito própria desse momento. Assim, essa imagem que parece imaculada produz a atração do imberbe, há algo do erotismo próprio a essa passagem. Por que seria, então, mácula? Ali se coloca uma questão fundamental com relação ao corpo. Essa questão diz respeito à feminização como horror à castração. Bem entendido: o feminino, aqui, não diz respeito à diferença dos sexos. O feminino diz respeito ao que, tanto na cultura, quanto na clínica, se tematiza como horror à castração. Ora, mas se não diz respeito à diferença dos sexos, por que falar então em castração? Quero acentuar, aqui, a ques-tão do olhar e a relação entre o olhar e o horror.

Trago uma proposição para avançar: digamos que ali se apresenta um litoral na relação do púbere com o corpo, nessa passagem puberdade/ado-lescência. É quando o corpo do púbere deixa de ser uma questão da mãe. O horror à castração em causa é a perda da condição específica desse olhar que dizia do corpo, produzindo uma fenda, um gap não representável. Assim, colocam-se dois elementos privilegiados a se destacar nessa passa-gem. Por um lado, o olhar que situa uma dobradiça entre horror e fascínio. E, por outro lado, a relação com o saber. Quando trago a imagem do litoral,

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evoco essa colocação lacaniana de que o litoral faz um furo no saber. É nes-se sentido que a passagem puberdade/adolescência faz um furo no saber, um furo na atribuição do saber à mãe. Aqui, há uma perda da relação direta que existia antes, do corpo da criança com o saber materno. É um corte na relação infantil, em que as expressões no corpo se dirigiam a esse saber.

Essa passagem justamente coloca em causa o litoral como um furo no saber. Freud expressou isso na relação mais direta com a novela edípica. Parece-me que foi sua forma de abordar essa questão. Precisamos avançar um pouco mais para desdobrar o que está em causa. A novela edípica é uma narrativa que diz de uma questão que a ultrapassa, colocada em causa pelo furo no saber. Podemos situar, aqui, a correlação entre o furo no saber e um olhar que se perde. Todas as expressões de velamento, que surgem nesse momento, dizem disso: precisa haver um velamento, produzir um ponto que se esconde. É nessa medida que os cortes na pele expressam um paradoxo de serem, ao mesmo tempo, para esconder e para mostrar.

O furo no saber, o que não se sabe, é representado na cultura, ao longo dos séculos, de muitas formas. Podemos situar, por exemplo, o medo ancestral que alia feminino ao temor à castração. Por essa via, os rituais reli-giosos tomam para si a condição de fazer esse furo, indicando que somente a relação com a palavra não basta, colocando em causa a necessidade de marcar o corpo, produzindo um corte como correlativo da relação com a palavra. Ainda não se inventou uma dispensa total do corpo, nem do lado da religião, nem do lado da ciência. Nesse sentido, o que se produz como refe-rência significante incide no corpo. Os rituais religiosos evocam isso, como na prática da circuncisão: seja na religião judaica, seja nas religiões em que se pratica o corte do clitóris. Ali se coloca um paradoxo, com a palavra sen-do correlativa de uma incisão real no corpo.

Todas essas questões expressam a relação com um furo no saber que nenhum sistema discursivo pode dar conta de suturar; furo, este, correlativo com o que no corpo é impossível de representar. É isso que muitas vezes surge situado como enigmático, ou como signo do estranho. Lacan ([1972-1973] 1985) propôs chamar de amuro, quando a mudança no corpo, na puberdade, aparece como signos bizarros, não interpretados pelas repre-sentações antes disponíveis.

Recentemente, fui a uma exposição de obras de Caravaggio, em São Paulo4. É de impressionar as muitas representações, em suas obras, de

4 Caravaggio e seus seguidores, exposição exibida no Museu de Arte de São Paulo (MASP) em agosto de 2012.

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cabeças decepadas, inclusive a dele mesmo. Ele se toma como modelo para representar Golias: é a representação de sua cabeça que David segura na tela (Vodret, 2012). A imagem que quero ressaltar é a pintura da cabeça de Medusa. Esse mito é bem interessante e muito já se produziu a respeito. Freud ([1920] 1940/1973) inclusive escreveu um pequeno comentário sobre a cabeça de Medusa, situando esse tema na relação com o falo e a castração. Podemos reconhecer tanto no mito, quanto na pintura da cabeça de Medusa ̶ como representante desse horror à castração ̶, uma articulação muito precisa com o olhar. Na mitologia, Medusa não poderia ser olhada diretamente. Aqui, podemos articular olhar e saber, situada nessa passagem como um vazio ine-xorável da castração. Nesse sentido, justifica-se pensar na puberdade como uma mácula e todo o sentimento de estranhamento e bizarrice em relação ao próprio corpo, nessa passagem, ao colocar olhar e saber em causa.

Encontramos uma série de produções, tanto nas artes plásticas, como na literatura, que aludem a isso, situando relações entre vazio e excesso no lugar do olhar, como verso e reverso da mesma questão. Na relação com o estranho – situando esse furo no saber – apresentam-se dois caminhos extre-mamente corriqueiros na clínica. De um lado a angústia: quando esse vazio vem como excesso, como se fosse pleno; de outro lado, exemplos dessa clínica que mencionei antes, situando uma ausência do próprio corpo na pro-dução dos cortes. Tanto no exemplo da menina, quanto em outros, em que se coloca a mesma questão, é como se a partida jogada situasse o corpo como não sendo dela. Se a partida não é do sujeito, essa atuação coloca em causa a cena. É uma cena onde o corpo é palco de alguma coisa. Sendo atuada, vai buscar algo no Outro. O que se coloca em causa na construção dessa cena, por que a partida necessita ser construída como uma cena?

Construção da cena: ausência do próprio corpo, produção da rasura no corpo, direção ao Outro na busca de constituir um ponto cego. Encontramos aqui um paradoxo, porque aparentemente o corte dirige-se à mostração. No entanto, na medida em que se trata da rasura no corpo enquanto lugar desse Outro sem bordas, a busca é de produzi-las, logo, produzir um ponto cego. O ponto cego é o que organiza a cena: é a própria condição de possi-bilidade de construção do olhar. Evocando uma referência a Lacan ([1962-1963] 2005), para que seja possível a construção do olhar – disso que im-plica a castração – é necessária a produção de uma falta no Outro, que é propriamente um ponto cego. Na relação entre olhar e saber é necessário um ponto cego, porque um olhar que tudo vê é insuportável. Tem-se uma expressão para essa face do olhar: a evidência. Um saber que é evidente, que é só olhar para saber, sem expressões de dúvida nem tempo de com-preender, situa muito claramente a relação do sujeito com a cena.

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Uma evidência não é sustentável durante muito tempo no campo do saber, na medida em que o sujeito precisa produzir o insabido do incons-ciente, seja por meio de actings, ou formações do inconsciente. No caso desses exemplos que estou situando, a produção do corte busca inscrever um ponto cego, algo de uma borda, um furo no Outro, fazendo o próprio cor-po como palco desse Outro. A proposição lacaniana ([1962-1963] 2005) diz que a construção de um quadro depende da produção de um ponto cego. Nesses casos, diz respeito a que algo decaia enquanto saber: que decaia do saber materno como saber sobre o corpo do púbere. Assim, a produção do ponto cego por meio da rasura implica a construção da cena.

Nesse momento, se situa a difícil intervenção da equipe: a cena cap-tura, ela inclui, enquadra quem se ocupa de estar nesse lugar do Outro. Toda a direção do trabalho corre o risco de ser engolida na relação à cena. A cena vale pelo saber e o inconsciente é atuado como ponto cego no corpo da menina. Então, teríamos de perguntar de que lado está o fantas-ma, qual é esse fantasma que está sendo atuado na construção da cena? De um lado temos esse fantasma materno, da escolhida do pai. De outro lado, o que situei como furo produzido na onividência materna. Esse ponto cego atuado engana ̶ ao mesmo tempo produtor de horror e fascínio – mantém a cena e gera compulsão. Essa manutenção alude à dificuldade na constituição de uma separação, que pudesse permitir a constituição de um sintoma. A não constituição do sintoma diz da fragilidade de uma tal organização, na medida em que não sustenta o lugar do sujeito. Essa co-lagem do corpo à cena – da rasura ao ponto cego ̶ interpela e pode levar a produções extremadas.

É curioso, todos na equipe que se ocupam do caso olham direto na cabeça da Medusa, tornam-se pedra, gozam do vazio como sendo pleno. Para que se possa ter um olhar enviesado é preciso se pensar como é possível constituir, nessa organização, algo que possibilite a perda. Essa clínica, aparentemente coloca o tempo inteiro a castração, mas o que ela apresenta é a cena e, dessa forma, o não registro da perda. Por essa ra-zão a atuação pode levar, cada vez mais, a aumentar seu risco. Intervir em clínicas assim é complicado, na medida em que são várias pessoas que se ocupam do mesmo caso. É uma clínica difícil, trazendo todo um desafio. É também por essa razão que a ausência do corpo, que essa objetalização na apresentação do corpo como cena – também as histéricas clássicas o fa-ziam – traz todo um desafio nas clínicas públicas. Esse desafio está também no consultório privado, na medida em que não é dispensada essa relação com o quadro. O enquadre do consultório não garante a vigência da relação do sujeito com a fala.

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Quero destacar um elemento que me parece importante. Esses são casos que expressam, de forma mais clara, dois registros definidos por La-can como distintos, mas que estão em causa em todos os casos: a diferença e entrelaçamento entre fala e escrita. Não me estenderei, vou somente indi-car: o que faz a cena, o que produz o corte, está do lado da escrita. A relação com a linguagem diz respeito às formações do inconsciente. É quando, de alguma maneira, se produz a singularidade da relação do sujeito ao Outro, que o aliena primariamente, que se singularizam as formações do incons-ciente. Na emergência das formações do inconsciente temos a insistência da cadeia significante. Ali, é necessário um passo a mais, além dessas for-mações: é quando o sujeito dirige ao outro/Outro sua fala, no sentido de se fazer cargo dessas formações, o que não é simples. Falar também pode ser alimentar algo do lado da cena.

Então, a diferença de registros fala/escrita atua de forma entrecruzada. É isso que permite que façamos uma leitura da fala que nos é endereçada. Ou seja, na fala também está em causa a relação do sujeito com o corpo, com esses objetos pulsionais que se desprendem do corpo. Ali entra a rela-ção do sujeito com o gozo, o que implica o que do corpo nunca será repre-sentado pela palavra. Então, pode-se ir tanto por uma via, quanto por outra. De um lado, o corpo como uma superfície de escrita – então o que se joga ali é a cena do Outro, o sujeito se ausentando completamente, submetido à cena do Outro. De outro, uma relação com o que Lacan denominou de fala vazia, que também pode fazer as vezes de cena. É somente no entrecruza-mento, naquilo que se lê do que se fala, que se situa a relação com o furo no saber. O tema desenvolvido por Lacan como sendo litoral diz respeito à relação da fala com algo que sempre resta fora dela: temos sempre que ter presente essa relação.

Algo que me ocorre pensar, dizendo respeito ao ensino de Lacan, situa as condições de sua transmissão. Os do lado de cá do Atlântico, recebemos um texto de Lacan que foi resultado de uma fala – os seminários. Ficamos com o escrito. Só que esse texto foi “faxinado”. Qual faxina se fez para pro-duzir o texto escrito? O que foi faxinado foi a relação da fala com o corpo. Quem escuta recolhe os efeitos dessa interligação. Quando se escuta um analisante se escuta esse litoral que implica a relação da fala com o corpo. A fala com a escrita daquilo que não se escreve. A fala que coloca em pauta os signos bizarros sem interpretação, e que, de alguma maneira, vão inter-pelar a uma leitura do que nenhuma representação pode dar conta. Aqui, a constituição do sintoma é resolutiva, tendo toda sua importância, porque vai colocar em causa todas essas relações, sendo uma forma de enlaçamento de registros heterogêneos e descontínuos.

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Ana Costa

REFERÊNCIAS FREUD, Sigmund. La cabeza de medusa ([1920]1940). In: ______. Obras comple-tas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.FREUD, Sigmund. Inibición, sintoma y angustia ([1925]1926). In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.VODRET, Rossela. Caravaggio e seus seguidores. São Paulo: Base 7 Projetos Cul-turais, 2012.

Recebido em 30/10/2013Aceito em 29/11/2013

Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

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TEXTOS

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Resumo: Levando em conta a ênfase dada por Freud às dimensões do olhar e da voz, o autor procura explicitar o papel desses dois objetos parciais na cons-trução da sexuação e na operação do complexo de castração. Procura-se tam-bém pensar a diferença da eficácia do olhar e da voz nos registros do masculino e do feminino. Por fim, o autor levanta a hipótese teórica de que a passagem pela sexuação implica uma desidealização da imagem da castração e, então, assunção de uma história singular.Palavras-chave: imagem, olhar, sexuação, voz.

ABOUT THE GAZE AND THE VOICE IN THE SEXUATION PROCESSAbstract: Considering the emphasis given by Freud to the dimensions of the gaze and the voice, the author seeks to explain the role of these two partial objects in the construction of the sexuation and operation of the castration com-plex. The essay aims also to think the difference on the efficacy of the gaze and the voice in the registers of the masculine and the feminine. Finally, the author raises the theoretical hypothesis that the passage through the sexuation implies a desidealization of the image of castration in order to build a singular history.Keywords: gaze, image, sexuation, voice.

ALGUNS DESTINOS DO OLHAR E DA VOZ NA SEXUAÇÃO1

Luciano Mattuella2

1 Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Quatro ensaios sobre o sexo, rea-lizada em Porto Alegre, abril de 2013.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicólogo (UFR-GS) e Doutor em Filosofia (PUCRS – estágio doutoral PDEE/CAPES na Université de Stras-bourg – França). E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 105-115, jul. 2012/jun. 2013

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Luciano Mattuella

Ao longo de toda a sua produção teórica, Freud atribuiu importante ênfa-se às dimensões do olhar e da voz na constituição psíquica, especial-

mente no campo da fantasia. Ocupou-se com a relação do olhar e da voz no que se refere à castração e à sexuação, tema que pretendo trabalhar neste texto. Meu intuito é sugerir alguns caminhos que me parecem intrigantes. Desse modo, começo minha linha de raciocínio com a seguinte passagem do artigo A dissolução do complexo de Édipo:

Em algum momento, o menino orgulhoso de possuir um pênis vê a região genital de uma menina e tem de se convencer da falta do pênis, num ser tão semelhante a ele. Com isso também a perda do próprio pênis se torna concebível, a ameaça de castração tem efeito a posteriori (Freud, [1924] 2011, p.207).

Eu gostaria de colocar a ênfase na dimensão do olhar que surge nessa citação – uma entre tantas outras em que essa questão está presente: é a visão o sentido privilegiado por Freud para sustentar o primeiro contato do menino com a ausência de pênis no sexo oposto. Na menina também pode-mos perceber esse relevo dado ao olhar, uma vez que, como aponta Freud, ela “nota o pênis de um irmão ou companheiro de jogos, flagrantemente visível e de tamanho notável, reconhece-o de imediato como a superior con-trapartida de seu próprio órgão pequeno e oculto, e passa a ter inveja do pênis” (Freud, [1925] 2011, p.290, grifos nossos). Também vale sublinhar que, para o menino, ter um pênis é motivo de orgulho – é algo que a menina inveja: ou seja, em Freud, o pênis é também índice de poder, e não deixa de ter consequências na economia das relações entre os pares. Ainda na citação anterior podemos ver que Freud distingue claramente pelo menos dois tempos na relação do menino com a ameaça de castração: o primeiro, puramente visual, e o segundo, podemos supor, ligado à voz e à palavra – tempo que, a posteriori, recoloca o visual em jogo, permitindo-nos inferir que o primeiro tempo, como costuma acontecer nas reflexões freudianas, é um tempo mítico, ou pelo menos suposto. Esse ponto abre o problema do esta-tuto da imagem: será que não poderíamos dizer que, para Freud, a imagem pura, ou seja, não respaldada pela palavra, não existe? Pensando também na lógica lacaniana do traço unário, não se poderia dizer que é a palavra que cria o silêncio anterior a ela, de modo que todo discurso se erige sobre o silêncio – talvez um silêncio também imagético?

Como apontei há pouco, Freud fala que o menino orgulha-se de ter um pênis, assim como a menina inveja-o por não ter um. Acredito ser possível dizer que tanto o orgulho quanto a inveja estão inscritos no registro do visu-

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Alguns destinos do olhar e da voz...

al, do escópico, ou seja, na relação com a imagem: siderado pela percepção da castração, o menino hesita, aferrando-se ao seu orgulho em uma tentati-va de ignorar o que foi visto; a menina, por sua vez, toma a percepção como suficiente e se lança na via da inveja. Como bem nos lembra Lacan:

Invidia vem de videre. [...] [A inveja] faz empalidecer o sujeito dian-te do quê? – diante da imagem de uma completude que se refe-cha, e do fato de que o a minúsculo, o a separado ao qual ele se suspende, poder ser para um outro a possessão com que este se satisfaz [...] (Lacan, 1998, p 112).

A completude não deixa de ser uma marca do silêncio, do silêncio do sujeito. Acho que podemos ver isso em nossa clínica cotidiana quando nos percebemos diante de pacientes cujo discurso insiste ou em manter “tudo em ordem” (ou seja, sem falta) ou em apontar justamente para a falha que, como sabemos, não é possível de ser suturada. São duas formas de fixação do olhar em uma cena que não desliza, sendo necessária a intervenção simbólica, ou seja, o advento da potência da palavra, para que a narrativa siga adiante – para que um segundo tempo possa se desenrolar através da abertura de um ponto de fuga na cena. Afinal, não seria a perspectiva justa-mente uma das formas de o objeto olhar cair, desprender-se?

Tendo isso em vista, insistirei no seguinte ponto: o primeiro anúncio de castração se dá pela via do olhar – no caso do menino, por uma ima-gem de algo que deveria estar na cena, mas não está; no caso da menina, por uma imagem de algo que não deveria estar ali, mas está. No menino, a ameaça de castração aparece sob a forma de “tenho, mas posso vir a perder”; na menina, como “não tenho, mas poderia ter tido”, o que lança ambos os sexos em uma lógica temporal escandida pelo próprio advento da castração.

De toda forma, estamos falando de uma imagem que interpela aquele que a olha, lançando-o para dentro da cena: é uma imagem potente – como se a imagem não fosse somente vista, mas também olhasse aquele que a vê. Como diz Lacan em seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, “o sujeito que nos interessa é preso, manobrado, captado, no campo da visão” (Lacan, [1964] 1998, p.91). A falta, ao ser percebida, interroga pela posição que ocupa aquele que a vê. Relembro aqui Didi-Hu-berman e seu belíssimo livro, O que vemos, o que nos olha: “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha” (1998, p.29). Portanto, neste momento de olhar a castração a criança também se

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sente concernida – aquela diferença que ela percebe diz algo sobre seu lugar no mundo. A imagem vinda do campo do Outro interroga o sujeito.

Impossível não lembrar aqui da anedótica história da “lata de sardinha”. Lacan pescava com um amigo quando, no momento de puxar a rede – o que não deixa de ser um momento de captura, aliás –, esse amigo aponta para a superfície das ondas, mostrando algo. Segundo Lacan conta: “Era uma latinha, e mesmo precisamente, uma lata de sardinhas. [...] Ela rebrilhava ao sol. E Joãozinho me diz – Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo, não!” (Lacan, [1964] 1998, p. 94).

Inquietado por esse inusitado episódio, Lacan diz: “[...] se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo [...]” (Lacan, [1964] 1998, p.94). Como de costume, a fineza da in-terpretação de Lacan está nas sutilezas das palavras. Em francês, regarder significa tanto olhar quanto ter a ver, implicar. Se digo que alguma coisa “me regarde” quero dizer que essa coisa tanto me olha quanto me interpela. Aqui, Lacan faz outra volta na relação entre aquele que olha e aquele que é olhado. Citando o próprio Lacan:

Não sou simplesmente esse ser puntiforme que se refere ao ponto geometral desde onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro. [...] E eu, se sou alguma coisa no quadro, é também essa forma de anteparo, que [...] chamei de mancha (Lacan, [1964] 1998, p.94).

Essa cisão do olhar – “esquize” do olhar, como denomina Lacan – su-gere que uma imagem é potente na medida em que, além de inscrever-se por si própria, ela também inaugura uma posição desde onde o olhar é lançado, ou seja, a imagem cria tanto a sua própria pregnância quanto a condição de possibilidade de ser vista. Ver uma imagem, portanto, implica certa sideração naquilo que é visto – uma espécie de alienação; em outros termos, implica identificar-se à mancha.

Uma decorrência preliminar, portanto: em um primeiro momento, o me-nino olha a – e é olhado pela – falta desde a posição daquele que tem; a menina, desde a posição daquela que não tem. Esses dois lugares, a partir dos quais se colocam o garoto e a garota, engendram a própria condição de visibilidade – de figurabilidade – da falta. Mesmo que a narrativa não se encerre nesse ponto da história, eu gostaria de levantar a hipótese de que esse momento fundamental de percepção da castração funda o lugar

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a partir do qual homens e mulheres veem o mundo. Desse modo, o ver para o homem seria diferente do ver para a mulher. Uma questão que eu gostaria de lançar, então: quais reverberações desse primeiro momento de percepção da castração podemos escutar em nossa clínica cotidiana? O que significa, no campo da clínica, essa suposta distinção entre o olhar do homem e o olhar da mulher?

Se Freud propõe que, para ambos os sexos, o complexo de castração começa pela visão dos genitais do sexo oposto, parece que as coisas a par-tir daí tomam caminhos diferentes para o menino e para a menina. No caso do menino, como escreve Freud em Algumas consequências psíquicas...:

quando o garoto avista pela primeira vez a região genital da me-nina, ele se mostra inicialmente indeciso, pouco interessado; ele nada vê, ou recusa sua percepção, enfraquece-a, busca expedien-tes para harmonizá-la com sua expectativa. Somente depois, quan-do uma ameaça de castração teve influência sobre ele, tal obser-vação lhe será significativa; sua recordação ou renovação suscita nele uma terrível tempestade de afetos e o força a crer na realidade da ameaça até então desdenhada. (Freud, [1925] 2011, p 290)

Frente à visão da falta no outro, o menino assume a postura de hesi-tação: a imagem da castração não é suficiente para que ele se convença de sua existência. Ele recusa, como diz Freud, a sua própria percepção. Aqui vale a pena percebermos que o termo utilizado no original alemão é verleugnet – uma modulação muito específica da negação: a recusa, forma de negação que é colocada, por Freud, em 1926 do lado da perversão e do mecanismo da fixação do fetiche. Escreveu Freud, em Fetichismo: “o meni-no se recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem um pênis” (Freud, [1927] s/d, p 180). Interessante relação entre a perversão, o olhar e o registro da imagem.

Freud diz que o menino “busca expedientes” para harmonizar a ima-gem da castração com as suas hipóteses anteriores, com sua expectativa (de que o outro também seria não-castrado). Parece-me que esse “buscar expedientes” para a manutenção da não-castração do outro sexo se confi-gura clinicamente de forma bastante evidente na relação da neurose obses-siva com a falta – algo que em transferência podemos perceber na tentativa, por parte do obsessivo, de não colocar em questão os pontos de resistência do analista, não sair do seu campo de visão, por assim dizer.

Retornando. Há, portanto, dois momentos no reconhecimento da cas-tração pelo menino: ver os genitais do sexo oposto não é suficiente para a

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inscrição da falta; é preciso ainda um segundo tempo, que – como pare-ce sugerir Freud –, caso não ocorra, apontará para a organização de uma perversão. Esse segundo momento, acredito, tem relação com a voz e a palavra. É ao relembrar as ameaças de castração (as injunções de proibi-ção e rechaço da masturbação) – ou quando essas ameaças acontecerem novamente – que o menino finalmente dá consistência à imagem que inicial-mente recusou. Portanto, para o garoto, a efetividade da castração passa necessariamente pela dimensão da voz. Entretanto, para que a ameaça de castração tenha efeito, é necessária a passagem pela figurabilidade, pela imagem. Encontramos no menino a ideia de uma imagem em suspenso, como que à espera de uma significação pela fala. Parece que Freud acaba sugerindo, no lado do masculino, uma espécie de desconfiança fundamen-tal na imagem – o que é visto nunca é suficientemente efetivo apenas por ter sido visto. A imagem é sempre insuficiente. Um outro modo de dizer isso: a visão da falta não é suficiente para que o homem faça ceder seu orgulho – há, portanto, algo de narcísico nesse enredo.

Já pela via da menina, a história é outra. Segundo Freud: “Com a me-nina é diferente. Num instante ela faz seu julgamento e toma sua decisão. Ela viu, sabe que não tem e quer ter” (Freud, [1925] 2011, p 291). A garota, portanto, é lançada diretamente na lógica da inveja: ela quer ter o que viu que o outro tem. Enquanto no menino a visão da falta inaugura uma fase de hesitação – engendrada pela recusa da percepção –, na menina parece tudo estar desde já decidido. A cena monta-se de imediato. É como se Freud dissesse que, para a garota, a imagem seria suficiente para fazer operar a castração. Já no momento da visão dos genitais dos meninos ela dividiria o mundo em dois grandes grupos: os que têm e os que não têm. Freud comenta que um dos destinos dessa inveja inicial é o deslocamento para a configuração da cena de ciúme. Entendo que o ciúme teria algo a ver com o relançamento da inveja no campo do Outro, ou seja, uma cena que suposta-mente se dava a dois passa a levar em conta o terceiro; não se trataria mais do você tem o que eu não tenho, mas, sim, de “este terceiro, que sustenta a cena, não me deu o mesmo que deu a ele”, o que diz da inescapável captura no olhar do Outro.

Dessa forma, outra consequência importante da inveja do pênis, como nos diz Freud, é o afrouxamento do laço terno com o objeto materno. A mãe passa a ser entendida como aquela que foi responsável pela ausência de pênis na menina, culpada, como afirma Freud, “por tê-la posto no mundo tão insuficientemente aparelhada” (Freud, [1925] 2011, p 293). Notemos que aqui, mesmo que Freud pareça apressar as coisas para a menina, já nos encontramos no registro narrativo, uma história mínima é contada, dando

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condição de figurabilidade à imagem da castração. Trata-se da construção da fantasia, uma vez que podemos entender que a palavra permite a cons-trução de um ponto de vista, ou seja, um deslocamento da posição de al-guém capturado pelo desejo do Outro para outra posição, aquela de alguém que cria uma narrativa – entre tantas outras possíveis – e através dela conta a sua história. Criar um ponto de vista é uma forma de acesso à ficcionali-dade, essa característica sustentada pela potência do significante em sua variedade de destinos possíveis. É na palavra que se agencia a castração do Outro, ou – dito de outra forma – é através da palavra que se pode saber que não há uma história de si já contada anteriormente, mas que se faz ne-cessária à passagem pelos significantes herdados para, a partir deles – mas não restrito a eles –, contar a própria história.

Mais uma vez essa questão parece ter alcance clínico bastante eviden-te: afinal, não seria essa suposição – “vim ao mundo sem as ferramentas necessárias” – que estaria por detrás das fantasias de castração que tão recorrentemente escutamos em nossa clínica? Algo que, como sabemos, pode coagular-se sob a forma de um insidioso ressentimento, como nos lembra Maria Rita Kehl (2011). Essa suposição está na base do discurso daqueles homens e mulheres que acreditam ser necessário todo um pre-âmbulo para então começar a construir um lugar no mundo – não estaria aí a distinção entre trabalhar a partir do que se tem, e esperar ter tudo para então trabalhar? Em outros termos, aí está apresentada a questão do que significa trabalhar a partir do desejo ou a partir do ideal.

Mas, então, se para o garoto é esperada uma fase de hesitação frente à castração, para a menina, segundo Freud, parece que tudo tem de estar desde o início decidido; a imagem sendo suficiente para confirmar a hipóte-se da menina. Aliás, a dúvida com relação à castração pela menina é vista por Freud como um obstáculo na direção da constituição da feminilidade, como podemos perceber na passagem a seguir:

Neste ponto se separa o chamado complexo de masculinidade da mulher, que eventualmente reservará grandes dificuldades ao de-senvolvimento prescrito rumo à feminilidade, caso não seja logo superado. A esperança de ainda ter um pênis, tornando-se igual ao homem, pode se manter por um período improvavelmente lon-go e se tornar motivo de atos peculiares, de outra forma incompre-ensíveis. [...] A menina se recusa a admitir o fato de sua castração, aferra-se à convicção de que possui um pênis, e se vê compeli-da, subsequentemente, a agir como se fosse um homem (Freud, [1925] 2011, p 291).

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Portanto, percebemos que Freud faz uma distinção clara no que se refere ao reconhecimento da castração por ambos os sexos: para a menina, a falta é um fato consumado, e é a partir daí que ela vai ter que trilhar seu caminho rumo à feminilidade; para o menino, entretanto, há um primeiro movimento de recusa e de suspensão – é apenas com a rememoração das ameaças de castração que o enredo se fecha; rememoração que, natural-mente, implica a palavra e a narrativa. Mais uma questão a partir da clínica: como podemos pensar aqueles homens que parecem buscar, na cena do mundo, no dia-a-dia de suas vidas, situações em que procuram que alguém opere como figura castradora? Penso aqui naqueles homens que se lançam a provas de masculinidade e que parecem se angustiar justamente quando não fracassam. Ainda: não estariam os sintomas de impotência sexual rela-cionados com isso tudo de que falamos até agora – talvez como uma forma de fazer frente à demanda de potência?

Assim, se para o menino a voz é tão importante para dar consistência à percepção da falta, que lugar essa voz teria na economia psíquica da me-nina? É interessante percebermos que Freud parece não falar sobre isso – mesmo que a questão do feminino, como sabemos, passe nos seus primór-dios justamente pela voz: a mãe que canta enquanto embala a sua criança, a prosódia da fala da mãe que dá ritmo ao mundo... Essa é uma questão que fica em aberto para mim, mas, mesmo assim, tentarei lançar algumas luzes sobre a seguinte pergunta: qual a função da voz na constituição da feminilidade, uma vez que parece que a imagem é suficiente – no caso da menina – para o reconhecimento da castração? Não deixa de ser um tanto irônico lembrar que a psicanálise começou com uma mulher reivindicando o seu direito à fala, pedindo que Freud se calasse – ou seja, sobre o feminino, cabe às mulheres falarem em próprio nome. A palavra, a voz, parece então ter essa função – como é o caso para o menino, na realidade – de abrir para uma narrativa sobre a castração – de criar uma ficção de si a partir da castração do Outro.

Uma forma de pensarmos esse ponto é trazermos para a discussão aquilo que Freud fala sobre a constituição do super-eu na mulher:

Hesitamos em expressar isto, mas não podemos nos esqui-var da noção de que o nível do que é eticamente normal vem a ser outro para a mulher. O Super-eu jamais se torna tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens afetivas como se requer que seja no homem (Freud, [1925] 2011, p.297).

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Aqui se faz interessante lembrar que, como diz Freud em outros textos, o super-eu conserva em si o caráter do pai, melhor ainda: da voz do pai – ele é a conservação despersonalizada da voz do pai em seu registro proibitivo e regulador. Em outros termos, trata-se de uma voz não dependente de um referente material, uma voz cuja mensagem é escutada como vinda do campo do Outro, difusa porém eficaz. Seguindo o fio da meada que venho tentando esboçar até aqui, talvez se possa pensar que a mulher, ao tomar a percepção – a imagem, portanto – da castração como suficiente, acaba por criar para si um trânsito diferente daquele do homem pelos imperativos superegoicos.

Ao estabelecer uma posição diferente da do homem com relação ao Outro, à cultura, ou seja, por constituir-se pela, mas também para-além da ordem fálica, a mulher parece poder explicitar de uma forma muito particular aquilo de ridículo ou de dissonante que há nos imperativos fálicos de uma determinada época. Da mesma forma, é próprio do feminino fazer alto às ilusões de saberes totalizantes, como fica bastante evidente no papel de-sempenhado pela histéricas à época de Freud: elas mostravam, com seu corpo, a insuficiência do saber científico em dar conta da subjetividade. As-sim, arrisco-me a dizer que toda crítica da cultura acaba trazendo consigo um traço do feminino.

Ainda, agora do lado do homem, penso que aquele momento de he-sitação frente à castração pode acabar volta e meia ressurgindo em sua vida sob a forma de uma suspensão na dúvida e um receio de bancar a sua posição no mundo, uma vez que sustentar-se como desejante implica entrar na cena da castração e reconhecer-se como castrado através da castração do Outro – o que, de algum modo, coloca a própria masculini-dade em questão, relança a pergunta a respeito das insígnias fálicas que povoam a cultura. Assim, parece ficar mais clara a proposição lacaniana de que a mulher é não-toda, ou seja, que as mulheres, uma a uma, podem se constituir também para-além dos imperativos fálicos (uma vez que o significante mulher não fecha um conjunto); o homem, por sua vez, preci-sa da garantia fálica para se sustentar, uma vez que tem o falo como sua única referência.

Assim, será que não poderíamos dizer que essa narrativa que Freud apresenta sobre a castração não é também, de uma certa for-ma, a narrativa de como alguém faz o luto de uma imagem idealizada? Ceder do orgulho e mesmo da inveja não poderia ser entendido como a possibilidade de ir para-além da fascinação narcísica e fazer algo com a falta estrutural – simbolizar essa falta? O que resta dessa sim-bolização? Pensei isso a partir de uma preciosa contribuição que Ana

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Costa3 recentemente nos apresentou sobre os tempos do luto – tempos escandidos logicamente, como propõe Lacan.

O primeiro tempo, tempo de ver, segundo Ana Costa, teria relação com algo do olhar que captura o sujeito, uma espécie de fascínio pela imagem; um momento de profícuas produções no registro visual. Acredito que isto dialoga de perto com o que chamei anteriormente de fixação do olhar, uma vez que me parece que, nesse primeiro momento, o objeto olhar ainda não cai, o furo no Outro ainda não se apresenta propriamente como um furo. A perda não é subjetivada, o que suponho ter sua contrapartida na cena do mundo pela via do enrijecimento, no lado do homem, do orgulho e, no lado da mulher, na inveja – lembremos que propus que orgulho e inveja têm algo a ver com o narcísico e, portanto, com o registro da imagem.

O segundo tempo – ainda seguindo a proposta de Ana Costa –, tempo de compreender, coloca em causa o “eu”: por que essa ofensa foi dirigida a mim? Pergunta que marca uma posição discursiva que já implica um tercei-ro. É um momento de “reivindicação da injustiça”. A partir do que vimos an-teriormente, parece-me que é nessa altura que a mulher passa da lógica da inveja para a do ciúme, ou seja, passa a convocar o Outro como o agente da castração, reivindicando algo que ele deveria ter-lhe dado – já anunciando uma possibilidade de subjetivação da falta. No lado do homem, entretanto, como Freud aponta, aqui parece haver uma suspensão na imagem marca-da pela hesitação – talvez uma fixação que diz algo dos embaraços com a questão fálica.

Por fim, no terceiro tempo, momento de concluir, a palavra faz furo e pode-se pensar na subjetivação da falta: em vez de estar fascinado pela imagem da castração, o sujeito parte da perda para encontrar uma posição discursiva que lhe permita enredar uma narrativa. Esse algo que lhe foi tira-do não será nunca restituído. Seria o momento em que o homem passaria a valer-se do falo em nome próprio e em que a mulher deslizaria da reivin-dicação para outra forma de trânsito na cultura, um modo de relação com o falo que não se esgotasse nos imperativos deste, mas apontasse também para um gozo mais-além: trata-se da assunção da feminilidade. É também um momento de separação, em termos lacanianos.

3 Seminário Clinicando realizado mensalmente na APPOA, coordenado por Ana Costa.

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REFERÊNCIASDIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.FREUD, Sigmund. A dissolução do complexo de Édipo [1924]. In: ______. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.______. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos [1925]. In: ______. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.______. Fetichismo [1927]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicoló-gicas completas de Sigmund Freud – Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, s/d.KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.______. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Recebido em 15/05/2013Aceito em 14/07/2013

Revisado por Renata Almeida