inventario cultural pataxo

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Inventário Cultural Pataxó Tradições do povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia

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Com esse documento, espera-se contribuir para uma melhordivulgação das principais manifestações, tradições, rituais, memórias esaberes da cultura Pataxó para as 25 aldeias existentes no Extremo Sul daBahia, assim como a disseminação da cultura indígena para os não-índios,como instrumento pedagógico para a implantação da Lei Federal 11.645/08que determina a inclusão das temáticas “História e Cultura Afro-brasileirase Indígenas” no currículo oficial da rede de ensino brasileira. Este inventáriovem coroar ainda mais essa relação de respeito à diversidade cultural dospovos indígenas, bem como a defesa dos seus direitos. Desejamos a todosuma boa leitura!

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  • Inventrio CulturalPatax

    Tradies do povo Patax do Extremo Sul da Bahia

  • Inventrio Cultural Patax: tradies do povo Patax do Extremo Sul da Bahia

    Projeto Promoo da Cultura Patax para o

    Etnodesenvolvimento

    Instituto Tribos JovensIane Rodrigues Petrovich Gouveia

    Diretora Executiva

    Analia DavidGestora de Projetos

    Joselito Rufino dos SantosMonitor Indgena do Projeto

    O contedo desta publicao de inteira responsabilidade do Instituto Tribos Jovens, parceiro executor do Projeto Promoo

    da Cultura Patax para o Etnodesenvolvimento, e no reflete obrigatoriamente a opinio da Unio Europeia.

  • 5

    Inventrio Cultural Patax: tradies do povo Patax do Extremo Sul da Bahia

    Realizao da Pesquisa:Grupo de Pesquisa da Lngua e Histria Patax ATXOH

    Parceiro apoiador:Instituto Tribos Jovens

    Consultoria especializada:Instituto Portosegurense de Educao e Cultura - IPEC.

    Apoio:Pontos de Cultura Patax de Aldeia Velha e Reserva da Jaqueira/Coroa

    Vermelha e as Escolas indgenas de Barra Velha, Coroa Vermelha e Aldeia Velha.

    Pesquisadores:Bianca Arruda; Clarivaldo Ferreira (Ajur Patax); Francisco Eduardo

    Torres Cancela; Jabes Ferreira Alves (Jwaty Patax); e Leticia dos Santos (Ykytaynaha Patax). Contribuies de Fabiana, Lauro e Paty, do Ponto

    de Cultura Patax de Aldeia Velha, e Apurin, Bira, Charles, Cleber, Erilson, Graziane, Hzio, Itanaj, Weder, participantes da Oficina saberes

    e fazeres da cultura Patax.

    Entrevistados: Na Aldeia Patax Barra Velha: Aloysio R. dos Santos, Conceio S. F. dos Santos, Pedro F. dos Santos, Ildina C. Ferreira, Maria Bernada C., Erlnio dos S. Alves, Apurinan Braz Borges, Jos Matias Ferreira, Romildo A. F. dos Santos (cacique Romildo), Rosa Maria Soares, Isael M. dos Santos,

    Delzita Rosa Almeida, Luis C. Ferreira, Jos Graciano Alves e Joo Graciano Conceio.

  • 6

    Na Aldeia Velha Patax: Rodrigo M. Guedes, Rosalvo R. dos Santos, Felipe Bispo da Conceio, Joselito R. dos Santos, Helder Medeiros da

    Pena, Maria DAjuda Alves da Conceio e Antonio Lopes Santana.

    Na Aldeia Patax Coroa Vermelha: Indiara Ferreira dos Passos, Pedro da A. Miranda, Amilton A dos Santos, Benedito A. do E. Santos, Rosa N. do E. Santos, Jocelia Alves dos Santos, Rosinete P. e Alberto do E. S. Matos

    (Itamb).

    Fotografias: Acervos do Ponto de Cultura Patax de Aldeia Velha e Reserva da

    Jaqueira/Coroa Vermelha; Instituto Tribos Jovens e Oficina saberes e fazeres da cultura Patax; UNICEF/BRZ/ Joo Ripper.

    Montagens das fotos: Iuri Clauton

    Ilustrao da capa: Fernando Santana Carvalho (Oiti Patax).

    Reviso Final: Beth Stifelman, Iane R. Petrovich Gouveia, Clara Crepaldi e

    Lirian Monteiro, Analia David.

    Povo Patax. Inventrio Cultural Patax: tradies do povo Patax do Extremo Sul da Bahia. Bahia: Atxoh / Instituto Tribos Jovens (ITJ), 2011.

    112 pp.

    1. Patax Bahia. 2. Povos indgenas. 3. Histria. 4. Cultura. 5. Autonomia. I. Coordenao de Pesquisa da Lngua e Histria Patax ATXOH.

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    SOBRE O INSTITUTO TRIBOS JOVENS - ITJ

    O ITJ foi idealizado durante o I Encontro das Tribos Jovens em

    1998, e constitui uma organizao da sociedade civil de carter educativo

    e cultural, sem fins lucrativos, instituda formalmente em 2001. Nosso

    objetivo social principal contribuir para o desenvolvimento integrado e

    sustentvel da regio do Extremo Sul da Bahia, a partir da criao e do

    monitoramento de atividades destinadas convivncia multicultural,

    cidad, empreendedora e solidria, para a melhoria da qualidade de vida

    das pessoas que compem os diferentes grupos tnicos brasileiros.

    Ao longo de 13 anos, atuamos com os povos indgenas da Bahia,

    em especial com a etnia Patax, com representantes das aldeias de Barra

    Velha, Coroa Vermelha, Boca da Mata, Mata Medonha e Aldeia Velha

    presentes desde a fundao do Instituto, tanto no Conselho Deliberativo

    e Fiscal, quanto na Equipe Tcnica. O Instituto tambm mantm parcerias

    com outras 12 etnias indgenas presentes no Brasil e realiza atividades em

    conjunto com comunidades diversas nas reas social, cultural, ambiental

    e educacional. Promovemos programas e projetos de educao, sade,

    cidadania e direitos humanos em prol do desenvolvimento cidado

    participativo e inclusivo.

    INSTITUTO TRIBOS JOVENS

  • 8

    SOBRE A COORDENAO DE PESQUISA DA LNGUA E HISTRIA

    PATAX ATXOH

    Patax, povo que tinha grande habilidade em atirar flechas. Na mata, sabia se defender como ningum. Povo guerreiro que aps sculos de contato forado com os no indgenas ainda mora em aldeias muito diferentes das de antes, claro, at porque era nmade e ainda preserva muitas lembranas do passado de luta e permanece lutando bravamente para continuar a existir enquanto povo.

    Algum pode at ficar pensando: por que um povo considerado agressivo foi convencido a deixar de lado sua cultura, sua lngua e suas tradies? Ser que foi vencido pelas perseguies diversas, calou, cansou da luta e abandonou valores e ideais? E at mesmo podero afirmar: a lngua patax est morta. Patax deixou sua lngua para l e aprendeu a lngua do colonizador, e por a vai.

    No verdade. Para entendermos porque a lngua patax ficou adormecida, importante lembrar e considerar vrias coisas. Porque a nossa lngua no foi perdida como dizem. A lngua patax est no nosso dia a dia. Tentaram tirar o direito de continuarmos falando a nossa lngua. Fomos aldeados fora, mas nem tudo foi perdido de nossa lngua antiga! Pois com a ajuda resistente dos mais velhos, foi possvel preservar nas memrias musicais e no uso dirio uma quantidade de palavras de grande valor para ns.

    A lngua que falvamos antigamente, com certeza, da famlia de lnguas Maxakali, pertencente ao tronco Macro-J. Ainda hoje possvel fazermos comparao de sons e significados iguais entre as duas lnguas. Podemos afirmar ento que havia semelhanas no s nas lnguas, mas tambm nos costumes desses povos.

    H pouco tempo atrs, ns, educadores e lideranas Patax, preocupados em manter o nosso jeito de ser Patax e afirmar nossos costumes, nos convencemos de nosso papel de organizadores de nossa sociedade e passamos, de forma independente, a fazer estudos mais detalhados sobre nossa lngua. Depois de muito estudo, apesar de no

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    sermos conhecedores de lingustica, porm levados por grande desejo de descoberta e de aprender tudo sobre a nossa lngua, passamos a chamar nossa lngua de patxoh para marcar nosso trabalho. Patxoh porque pat so as iniciais da palavra patax; atxoh significa lngua; xh guerreiro. Ou seja, linguagem de guerreiro.

    Para chegar ao resultado que temos hoje, desde 1998, comeamos a fazer a pesquisa em Barra Velha e na Aldeia Coroa Vermelha. Em 1999, elaboramos um pequeno projeto para conseguir dinheiro em apoio ao trabalho de Pesquisa da Histria, Cultura e Lngua Patax. Depois que coletamos vrias informaes junto aos nossos velhos de diversas aldeias, em documentos de pesquisadores e relatos de viajantes, criamos um grupo de estudos para analisar e propor uma forma de utilizarmos esses materiais.

    Podemos destacar as coisas boas que conseguimos com nosso trabalho de pesquisa: elaboramos um vocabulrio que inicialmente no passava de 200 palavras que eram conhecidas pela grande maioria da populao. Depois de aplicarmos critrios rigorosos, criados por ns mesmos, atualmente dispomos de um vocabulrio com mais de 2500 palavras. Alm disso, passamos a pensar numa maneira de organizar a linguagem falada e a escrita no nosso dia a dia. Foi assim que foi possvel comear a ensinar na escola o que aprendemos.

    Dentre as palavras que foram coletadas entre os mais velhos, foram achadas vrias palavras que eram de origem de outras lnguas e troncos lingusticos. Para entendermos como esta mistura ocorreu, de acordo com os mais velhos, a Aldeia Barra Velha era considerada um ponto de encontro e passagem de vrios povos. Por isso, a lngua era levada e trazida. Por outro lado, de acordo com a histria, sabemos que os Patax e outros povos foram retirados de seus territrios originrios e obrigados a se aldearem em Bom Jardim, atual Aldeia Patax Barra Velha, num espao limitado, o que poderia tambm explicar a diversidade de palavras faladas pelo nosso Povo que, na verdade, tambm so palavras de outros povos.

    Sabemos das dificuldades e das limitaes que enfrentamos no trabalho com a lngua Patxoh, se assim podemos cham-la. Mas acreditamos que ao tentar fazer a revitalizao da lngua Patax estaremos sempre pensando no nosso jeito de ser Patax. No porque achamos que para algum ser ndio preciso saber falar uma lngua indgena.

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    Acreditamos que a lngua importante porque ela carrega muitos segredos e valores de um povo. A lngua leva um povo a fazer mais resistncia s mudanas de costumes isso verdade.

    Desde 2003, estamos usando a escola, nas aldeias Barra Velha e Coroa Vermelha, para comear a fazer um trabalho de reaprendizado de nossa lngua Patax e temos tido timos resultados. Temos sempre a cobrana de pessoas de outras aldeias Patax pedindo para ajud-los a comear a ensinar a lngua indgena na comunidade. Muito nos anima, pois sabemos que no basta s trabalhar a lngua na escola. preciso que seja usada no dia a dia da comunidade, valorizada. Para que a lngua patxoh ganhe vida e significado novamente preciso que todos na aldeia colaborem neste processo.

    Sabemos o que queremos: preservar a nossa lngua. Para ns, est lanado o desafio. Tem gente por a que acha que impossvel. Ns, Patax, acreditamos.

    COORDENAO DE PESQUISA DA LNGUA E HISTRIA PATAX ATXOH

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    AGRADECIMENTOS

    Parte do material dessa pesquisa foi coletado durante a Oficina Saberes e Fazeres da Cultura Patax, realizada entre os dias 31 de janeiro e 4 de fevereiro de 2011, na Aldeia Me Barra Velha. Agradecemos imensamente a contribuio de todos/as os/as participantes, em especial, Paty, Fabiana e Lauro, monitores que trabalham no Ponto de Cultura Patax de Aldeia Velha. Agradecemos tambm ao Cacique Romildo e famlia, Jabes e Pi, Itanaj, Hzio, Graziane, Weder, Apurinan, Charles, Cleber, Bira, Erilson, Aripotxe e Raoni e os makiames Maria Coruja, seu Zeca, Tururim, Conceio, Lus, Urubu, seu Joo da Isca, Z Baixinho e famlia, seu Joo Domingos, Malasartes e Rosa.

    Em Coroa Vermelha, agradecemos ao Cacique Aru, ao paj Itamb, Dona Rosa, Pedro, Jandaia, Kapimbar, Rose, Arau e ao Museu da Histria Indgena pelo apoio s atividades de pesquisa e entrevistas concedidas. Na Aldeia Velha, agradecemos igualmente ao Cacique Urubaia, aos professores Angelo e Ehyn, S. Lus Caixeiro e paj Jaan, alm dos j citados Paty, Fabiana e Lauro.

    Agradecemos tambm ao Escritrio Tcnico da 7. SR IPHAN Porto Seguro por apoiar nossas atividades de pesquisa e equipe do ITJ pelo suporte nessas atividades.

    Por fim, cabe destacar que a qualidade de todo estudo antropolgico depende da qualidade dos dados coletados e do tempo disponvel para esse fim. No prazo de trs meses de desenvolvimento desse trabalho, s foi possvel um resultado aceitvel devido ao apoio de todos e todas que nos concederam no somente informaes, mas tambm entusiasmo para realizar essa tarefa.

    A vocs, muito obrigado!

    Awry!

  • SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................... 15

    1 - Notas Sobre a Histria dos Patax do Extremo Sul da Bahia.......19

    - Os sertes da antiga Capitania de Porto Seguro: um territrio tradicionalmente ocupado pelos ndios Patax....................19

    - Um cerco de paz aos ndios dos sertes: o projeto colonial pombalino e a tentativa de integrao dos ndios bravos.............................................23

    - Um cerco de guerra aos ndios dos sertes: o combate aos ndios inimigos......................................................................................................26

    - O aldeamento dos ndios selvticos: a criao de Barra Velha, a integrao forada dos ndios e a expropriao da terra indgena..........31

    - A criao do Parque Nacional do Monte Pascoal: a poltica do Estado e a poltica dos ndios......................................................................36

    - Da dispora retomada do territrio Patax............................................39

    2 - Os Patax Contemporneos...............................................................45

    - Localizao, dados demogrficos e aspectos fundirios...........................46

    - Atividades econmicas.............................................................................50

    - Organizao social e poltica.......................................................................50

    - Lngua: o patxoh.......................................................................................52

    3 - Aspectos da Cultura dos Patax do Extremo Sul da Bahia: Saberes e fazeres.........................................................................................59

    - Medicina tradicional..................................................................................59

  • - Formas de habitao..................................................................................65

    - Pesca............................................................................................................69

    - Comidas e bebidas......................................................................................70

    - Artesanato...................................................................................................75

    - Jogos e brincadeiras....................................................................................83

    - Rituais, cantos e danas..............................................................................89

    - Histrias e Narrativas Patax.....................................................................95

    - Pinturas corporais......................................................................................99

    - Celebraes...............................................................................................100

    - Lugares......................................................................................................104

    Referncias Bibliogrficas......................................................................107

    Para Saber Mais........................................................................................109

  • 15

    INTRODUO

    A publicao do Inventrio Cultural Patax fruto de uma parceria exitosa entre o Instituto Tribos Jovens (ITJ) e o povo Patax, numa atividade que integrou o projeto Promoo da Cultura Patax para o Etnodesenvolvimento financiado pela Unio Europeia (UE). Esta pesquisa histrica e antropolgica foi realizada em conjunto por profissionais do ITJ, IPEC e uma equipe de pesquisadores indgenas, incluindo jovens formados pelo projeto, sob superviso da Coordenao de Pesquisa da Lngua e Histria Patax - ATXOH, que atua h mais de dez anos realizando pesquisas e registros dessa populao. O presente trabalho tambm contou com a colaborao valiosa do Instituto Portosegurense de Educao e Cultura (IPEC), do Ponto de Cultura Saberes e Fazeres da Cultura Patax de Aldeia Velha e das escolas indgenas de Barra Velha, Coroa Vermelha e Aldeia Velha.

    O Inventrio resultado das pesquisas Levantamento dos Saberes e Fazeres Patax e Pesquisa Histrica e Cultural, que teve como objetivo principal identificar e documentar a histria, a forma de organizao social e poltica, as atividades econmicas, a lngua e, mais detidamente, os bens culturais materiais e imateriais da populao Patax na atualidade. Ele traz informaes sobre a histria dos ndios do Extremo Sul da Bahia e sobre a cultura Patax, demonstrando a historicidade da cultura e revelando o patrimnio cultural dos ndios, cujo resultado um retrato do que vem sendo vivenciado nas aldeias Barra Velha, Aldeia Velha e Coroa Vermelha/Reserva da Jaqueira em seus cotidianos.

    O Inventrio apresenta alguns aspectos histricos e culturais. A pesquisa histrica teve como objetivo analisar a histria dos ndios do Extremo Sul da Bahia, identificando sinteticamente os processos de mudanas sociais e culturais vividos desde a colonizao at os dias atuais.

    Foi uma atividade fundamental entender como os Patax conseguiram resistir s diversas tentativas de assimilao cultural e integrao sociedade nacional por meio da elaborao e execuo de diferentes polticas indgenas, possibilitando aos ndios a reelaborao de sua cultura, a reconstruo de suas identidades, a ampliao de suas redes de solidariedade e a sua permanncia fsica e cultural enquanto grupo social.

  • 16

    J a pesquisa antropolgica catalogou as principais manifestaes, tradies, rituais, memrias e saberes da cultura Patax. As temticas se encontram divididas em duas sesses, com as respectivas subdivises: 2. Breve caracterizao dos Patax contemporneos: organizao social e poltica; atividades econmicas; e lngua. 3. Aspectos da cultura dos Patax do Extremo Sul da Bahia: saberes e Fazeres: medicina tradicional; comidas; habitao; modos de expresso (artesanato; cantos; danas, histrias e pinturas corporais); celebraes e lugares.

    Com esse documento, espera-se contribuir para uma melhor divulgao das principais manifestaes, tradies, rituais, memrias e saberes da cultura Patax para as 25 aldeias existentes no Extremo Sul da Bahia, assim como a disseminao da cultura indgena para os no-ndios, como instrumento pedaggico para a implantao da Lei Federal 11.645/08 que determina a incluso das temticas Histria e Cultura Afro-brasileiras e Indgenas no currculo oficial da rede de ensino brasileira. Este inventrio vem coroar ainda mais essa relao de respeito diversidade cultural dos povos indgenas, bem como a defesa dos seus direitos. Desejamos a todos uma boa leitura!

    Iane Rodrigues Petrovich Gouveia

    Diretora Executiva - ITJ

  • 1Notas sobre a Histria

    dos Patax

    do Extremo Sul da Bahia

  • 19

    1 - Notas sobre a Histria dos Patax do Extremo Sul

    da Bahia1

    O presente texto tem por objetivo apresentar uma sntese da trajetria histrica dos ndios Patax do Extremo Sul da Bahia. A proposta no apresentar uma histria total desse grupo indgena, mas apenas destacar os episdios de maior referncia documental e histrico-cultural, apresentando recortes temporais importantes para reflexo sobre as polticas indgenas e indigenistas construdas nesses mais de 510 anos de contato.

    Os sertes da antiga Capitania de Porto Seguro: um

    territrio tradicionalmente ocupado pelos ndios

    Patax

    O Monte Pascoal, nosso P de Pedra, terra indgena, baliza de nossa histria, salo de nossas festas, altar e memria de nossos antepassados. Terra que representa o canto do paih, sossego da ona pintada, o som da sabi, o tinir da araponga, a sombra do jequitib e tantas outras formas de vida da Mata Atlntica que queremos preservar, como sempre fizemos.2

    Em 19 de agosto de 1999, os ndios Patax escreveram uma importante pgina da sua histria. Depois de quase 500 anos de um longo processo de invaso das suas terras, os Patax retomaram a principal referncia geogrfica, simblica e histrica de seu territrio: o Monte Pascoal. A retomada aconteceu aps trs dias de reflexes e discusses realizadas na reunio do Conselho de Caciques Patax, que foi sediada na aldeia Boca da Mata e teve como principal tema a luta pelo direito demarcao das terras indgenas. Atravs da Carta do Povo Patax s Autoridades Brasileiras, os ndios argumentaram que o Parque Nacional do Monte Pascoal foi criado

    1 Texto elaborado pelo historiador Francisco Cancela, aps pesquisa documental e realizao de oficina de pesquisa histrica com ndios Patax.

    2 Professores Indgenas: Povo Patax. Leituras Patax: razes e vivncias do povo patax nas escolas/ Secretaria de Educao. Salvador: MEC/ FNDE/ SEC/ SUDEB, 2005.

  • 20

    nos limites de suas terras, o que lhes dava o direito de imediatamente retomar o seu territrio, sob a proteo jurdica do direito constitucional e amparo inquestionvel da memria dos antepassados.

    O apelo memria dos antepassados como um instrumento comprobatrio da longnqua presena dos Patax no entorno do Monte Pascoal representa mais do que um simples artifcio retrico. Trata-se, isto sim, da valorizao e instrumentalizao poltica da tradio oral, possibilitando a construo de pontes entre o presente e o passado do povo Patax, sobretudo atravs das lembranas, dos mitos e dos cantos transmitidos pelos mais velhos s novas geraes. No uso dessas memrias, os Patax reconstruram, no presente, os fragmentos que justificaram a luta pela retomada do seu territrio, como demonstra a narrativa apresentada na epgrafe desse tpico.

    A presena dos ndios Patax no entorno do Monte Pascoal no est registrada apenas na memria dos ancios indgenas. Os documentos produzidos por colonos, religiosos e autoridades polticas no perodo colonial tambm evidenciam que essa regio era tradicionalmente ocupada pelos Patax, juntamente com outros grupos indgenas tambm pertencentes ao tronco lingustico Macro-J. Em uma carta datada de 31 de julho de 1788, por exemplo, o padre Cypriano informava coroa portuguesa que nas vizinhanas do Monte Pascoal e nas suas fraldas est situada as aldeias do gentio chamado Patax, que saem muitas vezes praia para pescar tartarugas3 .

    Na verdade, o Monte Pascoal representava um dos principais pontos de localizao no interior dos sertes da Capitania de Porto Seguro. Nessa poca, o termo serto era utilizado para designar toda regio distante do litoral, de natureza ainda indomada, habitada por ndios hostis e animais ferozes, sobre a qual as autoridades portuguesas detinham pouca informao e um controle insuficiente. Em geral, o serto era definido em relao ao seu afastamento dos ncleos coloniais, pela sua escassa populao luso-brasileira, pela dificuldade em transitar por suas trilhas e pelo perigo constante de ataques de feras e de ndios bravios.

    3 CARTA do padre Cypriano Lobato Mendes a D. Pedro III sobre a economia da capitania da Bahia. Salvador, 31 de julho de 1788. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 68, D. 13019.

  • 21

    A antiga capitania de Porto Seguro era dominada por um vasto serto. Durante todo perodo colonial, a ocupao portuguesa nessa regio se limitou faixa litornea, sendo a vila de So Mateus o ponto mais avanado no serto, distante apenas sete lguas da costa do mar. Desde fins do sculo XVII, a Coroa portuguesa havia decretado o impedimento de desbravar os sertes de Porto Seguro, Ilhus e Esprito Santo, tendo em vista formar uma barreira natural contra os descaminhos do ouro e pedras preciosos das Minas Gerais. Segundo Maria Hilda Paraso, essa medida consistiu em uma estratgia de transformar a rea em zona tampo que inviabilizasse o acesso sem controle s minas, sendo proibidas a realizao de entradas, a abertura de estradas e a derrubada das matas4. Com isso, o serto de Porto Seguro se transformou em abrigo de vrias etnias que conseguiram manter seus padres sociais e a integridade de seus territrios.

    Nesse espao avesso presena europeia, diversos povos indgenas aproveitaram as condies ambientais, geogrficas e ecolgicas existentes nos sertes para se refugiarem do violento avano da colonizao. Ainda que pertencentes a um mesmo tronco lingustico, esses grupos possuam territrios, hbitos e organizao social diferentes, sendo comum a construo de alianas entre alguns e de disputas territoriais entre outros. Essa realidade foi percebida pelo prncipe Maximiliano, quando descreveu os habitantes dos sertes da antiga Capitania de Porto Seguro, informando

    que:

    Os Capuchos, os Cumanachos, Machacalis e Panhamis tambm perambulam por essas matas. Parece que as ltimas quatro tribos se aliaram com os Patachs [sic] para que assim, unidos, possam fazer frente aos Botocudos, mais numerosos. A julgar pelas semelhanas de linguagens, maneiras e costumes, as referidas tribos parecem ter certa afinidade. Como disse, as cinco tribos aliadas possuem afinidades nas maneiras e costumes. Fazem habitualmente um orifcio no lbio inferior, metendo por ele pequeno pedao de bambu curto e fino, uma

    4 PARASO, Maria Hilda. Os Botocudos e sua trajetria histrica. In: CUNHA, Manuela Carneiro (Org). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.

  • 22

    de cujas extremidades pintam de vermelho com urucu. Usam curtos os cabelos no pescoo se sobre os olhos; alguns usam-nos rente em quase toda cabea. maneira dos tapuia, pintam o corpo de

    vermelho e preto5.

    Organizados em pequenos grupos semi-nmades, os ndios Patax foram descritos nos documentos como guerreiros e inimigos dos colonos. Em geral, eram considerados barreiras para o avano da colonizao no interior da Capitania de Porto Seguro e responsveis por inmeros ataques aos habitantes das povoaes coloniais, principalmente nas intermediaes do Monte Pascoal. Em 1808, o desembargador Luis Toms de Navarro, que percorria o litoral de Salvador ao Rio de Janeiro para analisar a possibilidade de instalar uma estrada real dos correios, registrava em suas anotaes que o Patax era gentio muito atrevido e valente, que no tem domiclio certo, anda errante, viviendo da pesca, caa e frutos6.

    Os Patax habitavam uma grande rea no interior da Capitania de Porto Seguro. As serras, vales e leitos dos rios da regio formavam os habitats mais comuns desse grupo indgena. Os inmeros registros dos sculos XVIII e XIX permitem recompor o mapa da ocupao territorial Patax, definindo uma rea descontnua que deslizava, de norte a sul, desde o rio Buranhm at o rio So Mateus. Segundo comprovou o viajante austraco que visitou Porto Seguro em 1816,

    Nas matas margem do rio So Mateus, os ndios no civilizados (tapuias ou gentios) so muito numerosos e vivem em constante guerra com os brancos. Ainda durante o ltimo ano mataram 17 pessoas. A margem norte freqentada pelos Patachs, Cumanachs e Machacalis e outras tribos at o rio de Porto Seguro7.

    5 WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Traduo de Edgar S. de Mendona e Flvio P. de Figuereido. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da USP, 1989, p. 213.

    6 NAVARRO, Luis Toms. Itinerrio da Viagem que fez por terra da Bahia ao Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, v. 7, 1866, p. 433

    7 WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Traduo de Edgar S. de Mendona e Flvio P. de Figuereido. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da USP, 1989, p. 214.

  • 23

    Nos vastos sertes da antiga Capitania de Porto Seguro, os Patax

    e outros grupos indgenas eram senhores de suas terras. Ao no aceitar

    aliana com os colonizadores e nem admitir a conquista de seus territrios,

    os Patax se transformaram em obstculo da colonizao e inimigos dos

    portugueses. A poltica metropolitana que impedia o desbravamento dos

    sertes de Porto Seguro como mecanismo para evitar o contrabando de ouro

    e diamantes contribuiu para maior domnio dos ndios sobre seu prprio

    territrio, principalmente nas intermediaes do Monte Pascoal, que era

    considerada pelos portugueses o centro de habitao destes Brbaros, que

    infestam toda grande comarca de Porto Seguro8.

    Um cerco de paz aos ndios dos sertes: o projeto

    colonial pombalino e a tentativa de integrao dos

    ndios bravos

    Na segunda metade do sculo XVIII, as reformas do governo

    josefino aportaram na Capitania de Porto Seguro. Embora fosse considerada

    decadente desde o final do sculo XVI, enfrentado grandes dificuldades

    no povoamento, na produo econmica e na defesa dos interesses reais,

    essa Capitania possua algumas potencialidades estratgicas. Do ponto de

    vista econmico, havia a disponibilidade de terras frteis para produo

    de vrios gneros agrcolas e para criao de gado, bem como uma rica

    floresta cheia de madeiras teis para a construo naval e civil. Do ponto

    de vista geopoltico, possua uma imensa rede hidrogrfica composta por

    grandes rios que nasciam nas serras de Minas Gerais (Jequitinhonha,

    Mucuri, So Mateus, Doce), sendo bastante cobiados por contrabandistas

    e por mineiros aventureiros. Do ponto de vista comercial, localizava-

    se entre os dois maiores centros urbanos da colnia, sendo bastante til

    para o abastecimento de alimentos do Rio de Janeiro e Salvador. Por essas

    razes, a coroa no hesitou em inserir Porto Seguro no bojo das reformas

    pombalinas.

    8 VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no sculo XVIII. Vol. 2. Salvador: Editora Itapu: 1969, p. 526.

  • 24

    Essas medidas reformistas interferiram diretamente nas relaes

    entre a colonizao e os ndios na Capitania de Porto Seguro. De um

    lado, as medidas de secularizao da administrao dos ndios resultaram

    na expulso dos jesutas e na transformao dos aldeamentos existentes

    em vilas, surgindo as novas vilas de Trancoso e Verde, criadas em 1759,

    oriundas respectivamente dos aldeamentos de So Joo e Esprito Santo.

    De outro, as medidas de desenvolvimento regional se estruturaram no

    aproveitamento da populao indgena, que passaria a ser visto no apenas

    como mo-de-obra, mas tambm como agente da prpria colonizao,

    atuando no povoamento, na defesa e na administrao da colnia, ainda

    que submetidos a um radical projeto de civilizao.

    Em 1763, a Coroa portuguesa criou uma ouvidoria para governar a Capitania de Porto Seguro, com objetivo de transformar a regio em plo de produo de gneros alimentcios para abastecer as cidades de Salvador e Rio de Janeiro. Para a realizao desse projeto, o rei de Portugal ordenou a introduo de uma srie de mudanas na forma de organizao do espao colonial, no funcionamento da poltica e administrao dos ndios, na estrutura e dinmica da economia regional e nas regras de convivncia intertnicas, defendendo que sem homens sociveis e civis no pode[ria] haver Estabelecimento [que fosse] til9. Assim, para fazer de Porto Seguro um territrio civilizado, seria necessrio converter seus moradores indgenas ao catolicismo e organiz-los poltica, econmica e juridicamente de acordo com os modelos europeus, transformando-os em produtores inseridos no mercado e em sditos geradores de impostos.

    O estabelecimento de novas vilas se transformou num dos

    principais objetivos dos agentes coloniais. Essas povoaes deveriam ser

    criadas por meio do aproveitamento dos ndios mansos dispersos e dos

    colonos pobres vadios, formando ncleos coloniais que funcionariam como

    ponto de defesa do territrio, como espao para a civilizao dos indgenas

    e como lugar de arregimentao de mo-de-obra. Como resultado da ao

    da Ouvidoria, foram criadas seis novas vilas de ndios na Capitania de

    9 DECRETO porque Sua Majestade h por bem erigir em Ouvidoria a Capitania de Porto Seguro, cuja Comarca se estender a todo seu distrito, nomeando para cri-la o Doutor Tom Couceiro de Abreu, por tempo de trs anos. Portugal, 02 de Abril de 1763. AN Relao da Bahia, cdice 542, vol. 02, p. 48.

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    Porto Seguro: So Mateus (1764), Prado (1764), Belmonte (1765), Viosa (1768), Porto Alegre (1769) e Alcobaa (1772).

    Essas vilas atuariam como importante espao de incorporao dos ndios aliados na sociedade colonial. Nelas existiriam escolas para os meninos indgenas aprenderem a lngua portuguesa, as casas deveriam ser construdas da maneira europia e os costumes indgenas seriam terminantemente proibidos. Para as autoridades portuguesas, os ndios s poderiam

    [...] conseguir a civilidade humana vivendo nas novas vilas com justia que os governe e dirija, dando-se mestre e mestras a seus filhos, que os ensine e doutrinem para que assim por este modo venham a perder a miservel brutalidade em que at agora tem sido criados e hajam em poucos anos se verem doutrinados e cristianamente civilizados10.

    As vilas atuariam tambm como uma barreira contra os perigos dos ndios inimigos que habitavam os sertes de Porto Seguro. Os documentos coloniais que atestam a criao dessas vilas comprovam que no fugia das intenes das autoridades metropolitanas o objetivo de defesa poltico-militar. Em 1764, por exemplo, o ouvidor Tom Couceiro de Abreu defendeu a necessidade de se fundar duas vilas na Capitania, sendo uma margem do Rio Grande (atual Jequitinhonha) e outra margem do Rio Jucurucu, argumentando que dessa iniciativa se seguiria a convenincia de ficar defendida do Gentio bravo toda esta costa, a estrada real da praia e os passageiros11.

    A criao dessas vilas de ndios, que se tornaram a gnese da municipalidade atual do Extremo Sul da Bahia, resultou na formao de uma muralha contra os sertes. Ao criar a vila do Prado, em 26 de dezembro de 1764, Tom Couceiro de Abreu informou aos moradores que uma de suas responsabilidades era ficar defendendo a estrada real da costa da imensidade de gentio que se acha aldeado pelas fraldas e riachos do Monte

    10 RELAO dos Autos da criao da Vila Nova do Prado, da Capitania de Porto Seguro. Porto Seguro, 12 de dezembro de 1764. BNRJ Manuscritos, I 5, 2, 29, n 11.

    11 RELAO do ouvidor Tom Couceiro de Abreu, das vilas e rios de Porto Seguro. Porto Seguro, 8 de janeiro de 1764. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 34, D. 6429-6430.

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    Pascoal, que lhe fica distante 8 lguas12. Em 1768, quando o ouvidor Jos Xavier Machado Monteiro foi criar a Vila Viosa, na margem do Rio Perupe, argumentou que a povoao traria o benefcio de se ir evacuando o gentio brbaro que circula pelas margens deste rio13. No ano seguinte, ao criar a vila de So Jos de Porto Alegre (atual Mucuri), informou ao rei de Portugal que essa povoao objetivava expelir o gentio brbaro que nestas praias insultava os viajantes e abrig-los a entrar-se no mato de modo que se no atrevesse jamais a atacar14.

    A preocupao em montar uma barreira contra os perigos dos sertes da antiga Capitania de Porto Seguro tinha base slida. Como foi visto anteriormente, a regio interiorana das Capitanias de Ilhus, Porto Seguro e Esprito Santo se transformou em uma rea de refgio dos grupos indgenas Macro-J, que conseguiram sobreviver relativamente afastados da sociedade colonial. Nessa poltica de defesa, os ndios Patax, considerados pelos portugueses como inimigos da colonizao, representavam uma ameaa real expanso do projeto colonial na regio, pois eram classificados como os mais desconfiados e reservados e tinham o olhar [...] sempre frio e carrancudo, sendo muito raro permitirem que os filhos se criem entre os brancos, como as outras tribos o fazem

    prontamente15.

    Um cerco de guerra aos ndios dos sertes: o combate

    aos ndios inimigos

    No incio do sculo XIX, o crescimento econmico da antiga

    Capitania de Porto Seguro exigiu a necessidade de conquistar novas

    12 RELAO dos Autos da criao da Vila Nova do Prado, da Capitania de Porto Seguro. Porto Seguro, 12 de dezembro de 1764. BNRJ Manuscritos, I 5, 2, 29, n 11.

    13 AUTOS de criao, medio e demarcao de Vila Viosa, capitania de Porto Seguro. Campinho, 2 de abril de 1772. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 46, D. 8555.

    14 AUTOS de ereo e criao da nova Vila de Porto Alegre. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, v. 3, 1914, p. 515.

    15 WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Traduo de Edgar S. de Mendona e Flvio P. de Figuereido. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da USP, 1989, p. 215.

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    terras para a expanso do plantio da mandioca e a construo de novas

    vias de comunicao para o escoamento da produo. Na dilatao da

    fronteira interna, os sertes passaram a ser conquistados, colocando os

    luso-brasileiros em contato direto com os inmeros povos indgenas que

    se refugiavam nas matas e serras da regio. Para os interesses coloniais,

    a conquista dos sertes estava condicionada vitria sobre os grupos

    indgenas que habitavam aquela rea.

    Os ndios dos sertes reagiram de diferentes formas ao avano

    colonial sobre seus territrios. Alguns grupos, fugindo da violncia das

    expedies que adentravam o interior do continente, optaram por se deslocar

    para as vilas de ndios em busca de abrigo e proteo. Essa alternativa era

    vista por esses grupos como o mal menor, pois a permanncia nos sertes

    poderia resultar no extermnio de todo o grupo ou na escravizao dos

    sobreviventes. Em uma correspondncia enviada ao governador da Bahia

    em 1812 os oficiais da Cmara do Prado informaram que:

    [...] no ltimo dia do passado ms de abril saiu de paz uma imensa aldeia do gentio Patax no stio do Capito Manoel de Farias e eram tantos os membros da mesma aldeia que de repente lhe levaram de 18 para mais de 20 alqueires de farinha e massa, alm de algumas ferramentas; contudo, ainda ficaram muitos arranchados beira do mato e se julgou passarem de 300 pessoas 16.

    Outros grupos optaram pela reao militar. Resolveram atacar as povoaes coloniais, destruindo casas, plantaes e fazendas e causando algumas mortes de luso-brasileiros. Em 1802, o comerciante Tomas Lindley registrou o ataque de um grupo de ndios dos sertes vila de Trancoso, informando que os ndios ontem estiveram na orla da mata prxima vila, tendo atingindo dois mulatos. Um deles levou uma flexada [sic] na

    16 NOTCIAS dos oficiais da Cmara da Vila do Prado sobre a presena de ndios Patax no stio do Capito Manoel de Farias. Prado, 3 de maio de 1812. BNRJ Manuscritos, C-0230, 009 n 015.

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    coxa e o outro, no peito. Este, caindo, foi imediatamente massacrado. Seu companheiro, ferido tambm no brao e nas costas, escapou s por aquele momento, pois morreu no mesmo dia17.

    Os colonos e as autoridades coloniais comearam a se preocupar com a reao dos ndios dos sertes. Um clima de insegurana passou a tomar conta das povoaes situadas no litoral. Inmeros documentos foram enviados para o governo da Bahia descrevendo os insultos dos gentios brbaros e exigindo liberdade para os luso-brasileiros retrucarem com a mxima violncia. A posio do Comandante-mor do Tero das Ordenanas da vila de Caravelas frente aos ataques dos ndios demonstra o que os colonos esperavam das autoridades, defendendo no s o uso da violncia como o direito escravizao dos ndios. Segundo seu argumento,

    [...] a violncia o meio mais prprio de tornar tranqilas e habitveis as terras em que transitam esses brbaros, pela experincia de 22 anos em que eles a tem feito conhecer indceis e incapazes de que o amor, o sofrimento e a beneficncia os chame sociedade civil e grmio da Igreja, o que se conseguir mais facilmente sitiando-os e impedindo-lhes com armas a resistncia e trazendo-os violentados aos povoados das vilas, onde no devem ficar em liberdade, porque de certo retrocedero, mas transmitidos as praas, onde no h matas pelas quais se entranhem para sua primitiva e onde se lhe d a cultura e os empregos proporcionais a sua ndole18.

    Em meados do ano de 1808, o Prncipe Regente D. Joo VI resolveu institucionalizar a violncia como principal instrumento para a conquista dos sertes. Com o objetivo de ampliar a produo interna de alimentos para abastecer o grande nmero de pessoas que vieram com

    17 LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. So Paulo: Editora Nacional, 1969, p. 98.

    18 NAVARRO, Luis Toms. Itinerrio da Viagem que fez por terra da Bahia ao Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, v. 7, 1866, p. 439.

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    a Famlia Real, decidiu construir uma nova poltica econmica, pautada na valorizao de um mercado interno, principalmente nas Capitanias e Comarcas que, apesar de estarem fora do circuito comercial agrcola, eram potencialmente produtivas. Assim, Minas Gerais, Ilhus, Porto Seguro e Esprito Santo foram alvos de transformaes significativas. As medidas mais comuns eram o incentivo produo de alimentos, o estmulo ampliao dos pastos e o investimento em novas vias de comunicao para garantir o escoamento dos produtos.

    Em Porto Seguro, as medidas foram sentidas por meio da insistente cobrana de aumento da produo de farinha de mandioca, nas inmeras expedies de construo de estradas interligando a regio leste e na introduo da economia pecuria na divisa com Minas e Esprito Santo. Contudo, para que esta nova economia pudesse funcionar era preciso garantir trs coisas bsicas: acesso a novas terras, disponibilidade de mo-de-obra e infra-estrutura real de escoamento. Para alcanar tais resultados, D. Joo VI resolveu: primeiro, conquistar efetivamente os territrios que ainda estavam fora do domnio dos colonos no interior da Capitania, avanando sobre as terras dos ndios refugiados nos sertes; segundo, aumentar a oferta de mo-de-obra escrava reeditando a possibilidade de escravizao indgena que estava suspensa desde 1758; terceiro, aproveitar os ndios mansos das vilas de ndios (Prado, Belmonte, Viosa, Alcobaa, Verde, Trancoso e Porto Alegre) para trabalharem na abertura de estradas.

    O resultado deste laborioso plano foi a decretao da Guerra Justa aos ndios dos sertes das Capitanias de Ilhus, Porto Seguro, Minas Gerais e Esprito Santo, em 1808. Decretada contra os chamados Botocudos, essa medida legalizou o extermnio, a escravizao e a apropriao das terras dos ndios Patax, Maxakali, Malali, Krenak e Kamak.

    De acordo com a Carta Rgia de 18 de julho de 1808, o responsvel pela coordenao da Guerra Ofensiva aos ndios na antiga Capitania de Porto Seguro foi o Capito-mor da conquista do gentio brbaro Joo Luis de Siqueira. A rea prioritria de ao foi entre a Vila Viosa e o Rio Comuruxativa, seguindo este diretamente a Lagoa Grande pelo lado norte do Monte Pascoal. Desta forma, o territrio tradicionalmente ocupado pelos Patax se transformou no palco das guerras de conquista.

    A guerra contra os ndios dos sertes buscava resolver tanto o problema da mo-de-obra quanto da conquista de novas terras. Assim, todos

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    os ndios que fossem encontrados com armas em mos seriam considerados prisioneiros de guerra e trabalhariam como escravos por 10 anos ou enquanto mostrarem conservar a natural ferocidade e antropofagia. As terras habitadas por esses ndios deveriam ser ocupadas por colonos, que teriam iseno de impostos por 10 anos, contanto que desenvolvessem uma cultura permanente. Desta forma, os principais efeitos da decretao da guerra justa contra os ndios dos sertes de Porto Seguro foram o extermnio de vrios grupos e a expropriao de suas terras19.

    Para assegurar uma paz armada nos sertes de Porto Seguro, o ouvidor Jos Marcelino da Cunha iniciou a construo de vrios destacamentos militares nas cachoeiras dos principais rios da regio. O plano do ouvidor era construir uma barreira militar contra os ndios dos sertes, formando no entorno de cada vila um posto militar, composto por ndios mansos, interligado por estradas vicinais e comandado por um oficial das ordenanas. Segundo sua prpria verso:

    Para o fim de resguardar os habitantes das vilas da Comarca dos repetidos e sempre fatais ataques e correrias dos ndios Patax, Machacali e Botocudo, levantei os destacamentos de Aveiro na Povoao de Santa Cruz, o de Aguiar no termo da Vila Verde, o de Linhares e Crememuan no termo da Vila de Trancoso, o de Vimeiro no termo da Vila do Prado, o de bidos no termo da Vila de Alcobaa, o de Santarm em termo da Vila de Caravelas, o de Caparica no termo da Vila Viosa, o de Arajo no termo da Vila de Porto Alegre e os de Itanas e Galveas no termo da Vila de So Mateus; fazendo em todos eles casas de morar e plantaes e provendo de competente guarnio20.

    19 CARTA para o Capito-mor da conquista do gentio brbaro, Joo Luis de Siqueira, na qual orienta a decretao de guerra justa aos ndios da Capitania de Porto Seguro. Salvador, 18 de julho de 1808. APEB mao, 165.

    20 REQUERIMENTO do ouvidor da Comarca de Porto Seguro, Jos Marcelino da Cunha, solicitando comenda da Ordem de Cristo pelos servios prestados na defesa da sua Comarca. BNRJ Manuscritos, C-0230, 009, n 11.

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    Essa poltica de submeter os ndios dos sertes sociedade dominante por meio da violncia armada se alastrou por quase todo sculo XIX. Os documentos emitidos pelas autoridades das vilas de Prado, Caravelas e Viosa destacam a preocupao com os ndios que ainda permaneciam errantes pelos sertes da regio. Afinal, para os interesses mercantis dos proprietrios de terra, os ndios bravos continuavam representando um obstculo para o desenvolvimento do atual Extremo Sul da Bahia.

    O aldeamento dos ndios selvticos: a criao de Barra Velha, a integrao forada dos ndios e a

    expropriao da terra indgena

    As medidas do cerco de guerra contra os ndios dos sertes de Porto Seguro no foram suficientes para trazer a paz desejada pelos proprietrios de terras. Os Patax, Maxacali e Botocudos ainda possuam o domnio de grande rea no interior do continente e tambm continuavam reagindo invaso de seus territrios. Em um requerimento datado de 1844, os moradores da Vila do Prado se queixaram ao governador da Provncia da Bahia de que os selvagens indgenas estavam assaltando inesperadamente as roas [...] no s devastando as plantaes como barbaramente arrancando as vidas daqueles que de sbito encontravam. Para solucionar o problema, propuseram a criao de um aldeamento na regio, porque alm de prosperar a lavoura (...) ficaro garantidas inmeras vidas, livrando por este modo aos habitantes da flecha assassina de semelhantes brbaros21.

    A proposta dos fazendeiros do Prado no foi aceita de imediato. Em parte, o problema estava no vazio legal existente durante as quatro primeiras dcadas do Brasil Imprio. Depois de conquistada a independncia, o novo pas ainda buscava consolidar o estado monrquico, conciliar os interesses das elites regionais e forjar uma nao unificada em torno de um projeto de manuteno dos privilgios herdados do perodo

    21 REQUERIMENTO dos habitantes da Vila do Prado ao Presidente da Provncia. Prado, 12 de abril de 1844. APEB mao, 1823.

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    colonial. Fora as proposies de Jos Bonifcio na Assemblia Constituinte de 1823, no houve nesse perodo nenhuma legislao que regulamentasse a poltica nacional frente s populaes indgenas, permitindo que cada provncia resolvesse essa delicada questo a seu modo.

    Entre o final da dcada de 1840 e o incio da dcada de 1850, dois estatutos jurdicos estabeleceram uma poltica especfica para os ndios no Brasil. O primeiro foi editado em 24 de julho de 1845, recebendo o ttulo de Regulamento das Misses. Nesse documento, o poder monrquico brasileiro, imbudo da tarefa de consolidar a centralizao poltica e administrativa do Estado, estabeleceu as diretrizes para o relacionamento entre a sociedade nacional e os ndios mansos j aldeados. Em termos gerais, essa nova legislao manteve o princpio oriundo da poca colonial de catequizar e civilizar os ndios, regulamentando aspectos de carter mais administrativo do que poltico-cultural, tal como o papel dos diretores de ndios, diretores de aldeias, tesoureiros, etc.

    Em 18 de setembro de 1850, foi publicado o segundo estatuto jurdico, que ficou conhecido como Lei de Terras. Essa lei estabeleceu os parmetros acerca da regularizao fundiria da nao, tendo como um dos principais efeitos a distino entre a propriedade pblica e privada das terras no Brasil. Segundo sua determinao, as terras que fossem consideradas devolutas pertenceriam ao Estado, tendo ttulo de propriedade pblica e podendo ser vendida pelos governos. Todavia, para os ndios moradores dos sertes, a definio de terra devoluta contida nessa lei representava um verdadeiro ataque ao domnio dos territrios que ocupavam. Afinal, todas as terras que se acharem aplicadas ao uso pblico; que no estiverem sob domnio particular por qualquer ttulo legtimo; ou que se encontrarem ocupadas por posse seriam classificadas como devolutas22.

    Como os ndios dos sertes no possuam ttulos legtimos das terras que habitavam, no poderiam ocupar esses territrios. Ento, o Decreto n 1218, de 20 de janeiro de 1854, procurou regulamentar a aplicao da Lei de Terras, estabelecendo, no que se refere questo indgena, que seriam reservadas terras devolutas para a colonizao e aldeamento de indgenas nos distritos onde existirem hordas selvagens. Desta forma, retomava-se

    22 MOTTA, Mrcia. Lei de Terras. MOTTA, Mrcia (Org). Dicionrio da Terra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.

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    a ideia de integrar os ndios dos sertes sociedade envolvente, atravs de uma poltica de submisso poltica, explorao econmica e expropriao dos territrios tradicionalmente ocupados pelos ndios.

    Esses dois estatutos jurdicos tambm no garantiram a terra para os ndios j aldeados. Ao contrrio, ele firmou a ideia de que os ndios teriam direito apenas ao usufruto, sendo as terras devolutas pertencentes ao Estado. Alm disso, estabeleceu uma srie de critrios para julgar o direito dos aldeados terra. Vrios aldeamentos que resistiram aos mais de quatrocentos anos de colonizao passaram a ser classificados como terras no indgenas por causa da grande presena de nacionais (homens brancos), da forte existncia de populaes mestias ou da utilizao de modelos econmicos no condizentes com o que se classificava na poca como tipicamente indgena. Desta forma, o governo inaugurou uma avassaladora poltica de expropriao da terra dos ndios aliados, que viviam aldeados h longos anos.

    nesse contexto jurdico-poltico que o governo da Bahia anunciou uma deciso frente s constantes denncias dos moradores do Prado sobre a presena de ndios selvagens e errantes no entorno do Monte Pascoal. Em 1861, o presidente provincial Antonio da Costa Pinto informou na Assemblia baiana que se fazia necessria a criao de um aldeamento para os ndios selvagens daquela regio, justificando-a da seguinte maneira:

    H centenas de famlias, ora nas brenhas, e ora na referida vila [do Prado], sem carter hostil verdade, mas persistente em seus costumes selvticos. Estes ndios vo pescar constantemente no rio - Corumbau - em cujas margens armam ranchos, onde moram, at que terminada a pesca e a salga, se retiram para as matas.23

    23 PINTO, Antonio da Costa. Falla recitada na abertura dAssemblea Legislativa da Bahia pelo Presidente da Provincia ... no dia 1o. de marco de 1861. Bahia, Typographia de Antonio Olavo de Franca Guerra.

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    O novo aldeamento visava agregar os vrios grupos indgenas do tronco lingustico Macro-J que se espalhavam pelos sertes da Comarca de Porto Seguro, destacando-se dentre eles os Patax, que formavam o principal grupo que ocupava o entorno do Monte Pascoal. Essa medida possibilitava a pacificao da regio e, principalmente, a liberao de terras para o avano do plantio de mandioca e cacau, o aumento da extrao de madeiras e a expanso dos pastos de gado. Para assegurar a converso dos ndios selvticos, o governo props o envio de padres capuchinhos para a difcil misso da catequese.

    Os proprietrios de terras da regio aproveitaram o momento da criao do novo aldeamento para a liberao de terras que eram ocupadas tambm pelos ndios mansos que habitavam as vilas criadas no sculo XVIII. Um movimento para expulsar os ndios de verdade eclodiu nas vilas de Alcobaa, Viosa, Belmonte, Porto Alegre, Trancoso e Verde, exigindo que essas povoaes fossem habitadas apenas por brancos, mestios e negros, sendo os indgenas tambm transferidos para o aldeamento do rio Corumbau. Desta forma, muitos ndios de origem Tupiniquim, Menian, Maxacali e Botocudo, que estavam vivendo nos termos dessas vilas, foram obrigados a se deslocarem para a nova aldeia, fazendo que sua origem comportasse vrios grupos indgenas.

    Localizada nas proximidades da barra do rio Corumbau, essa aldeia recebeu o nome de Bom Jardim. Segundo memria dos ndios mais velhos, essa denominao foi uma criao dos padres capuchinhos que se encantavam com os perfumados jasmins que surgiam no entorno da lagoa prxima a aldeia. Com a mudana da barra do rio Corumbau, que se deslocou para o sul cerca de seis quilmetros, a povoao ficou conhecida como Barra Velha, sendo, portanto, a mesma aldeia criada em 1861 para reunir os ndios que viviam em volta da vila do Prado24.

    A aldeia de Barra Velha se tornou o abrigo de vrios grupos indgenas, que sofreram forte processo de miscigenao. O intencional isolamento da povoao funcionava como mecanismo para afastar a

    24 CARVALHO, Maria Rosrio. Os Patax Meridionais: uma breve recenso histrico-bibliogrfica. In: Tradies tnicas entre os Patax no Monte Pascoal: subsdios para uma educao diferenciada e prticas sustentveis.1 ed.Vitria da Conquista : Edies UESB, 2008, v.1, p. 36.

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    indesejada presena dos ndios nas terras que os fazendeiros ambicionavam se apropriar. Por longos anos, a aldeia passou despercebida pelas autoridades pblicas, que faziam vistas grossas para a situao da populao indgena local, com vistas a assegurar a prpria desestruturao social, cultural e econmica dos seus habitantes.

    Barra Velha passou tambm a funcionar como ponto de contato entre os ndios aldeados e os pequenos grupos indgenas que ainda viviam nos sertes. Na memria dos mais velhos, os ndios dos sertes, classificados genericamente como Tapuias, desciam regularmente na regio da aldeia conhecida como Cu, onde realizavam trocas culturais e de gneros alimentcios. Segundo lembra a ndia Penina,

    Maria Correia que ia encontrar os ndios no Cu, ela passava folha nela e no preparava coisa de branco, ficava trs dias amoitada na mata para encontrar com ndios. Fazia beiju, cauim e levava peixe. Eles traziam muita caa: anta e porco do mato. Traziam isso para ramiar: a dana e canto que esses ndios traziam ningum sabe como , eles faziam um crculo de pedra, botava o porco do mato no meio e danavam ao redor. Eles festejavam o Au deles e voltavam para aldeia.25

    Uma das primeiras notcias de Barra Velha no sculo XX data do ano de 1939. Sob o comando do almirante Gago Coutinho, uma expedio area cruzou os cus de Porto Seguro com intuito de redescobrir o primeiro rinco de terra avistado pela esquadra cabralina. Ao passar pela aldeia, o almirante registrou o seguinte:

    Deixamos a aldeia de Barra Velha s primeiras horas da madrugada. desolador o aspecto de misria do povoado onde passamos a primeira noite... Temos visto caboclos inteiramente abandonados. Caboclos doentes e analfabetos. Na aldeia Barra Velha, encontramos uma pequena

    25 Professores Indgenas: Povo Patax. Leituras Patax: razes e vivncias do povo patax nas escolas/ Secretaria de Educao. Salvador: MEC/ FNDE/ SEC/ SUDEB, 2005.

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    populao descendente dos Tupiniquins. Todo mundo doente. Uns atacados pelo impaludismo, outros pela verminose.26

    Ainda que isolados e abandonados pelo poder pblico, os caboclos descendentes dos ndios misturados, cuja etnia dominante era a Patax e no a Tupiniquim, entraram nas primeiras dcadas do sculo XX mantendo o domnio sob o territrio concedido a eles na criao da aldeia em 1861. Com relativa autonomia, os ndios de Barra Velha conseguiam pescar, caar, plantar e reproduzir suas tradies. As dcadas de 1940 e 1950 mudariam drasticamente o rumo dessa histria, como se ver a seguir.

    A criao do Parque Nacional do Monte Pascoal: a

    poltica do Estado e a poltica dos ndios

    No dia 19 de abril de 1943, por meio do Decreto 12.729, o governo federal criou o Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP). Essa iniciativa estava de acordo com as polticas implementadas pelo governo ditatorial do Estado Novo, comandado pelo presidente Getlio Vargas, que se apoiavam na defesa do nacionalismo e na transformao do Estado em uma entidade institucionalizadora da vida cultural dos cidados. O PNMP foi elevado condio de monumento nacional, que deveria ser preservado em seus aspectos naturais e paisagsticos, contribuindo para perpetuar a memria do fato histrico que deu origem nao: o descobrimento do Brasil em 1500.

    Para regulamentar a criao do PNMP, o governo enviou o engenheiro Aurelino Costa Barros para delimitar a rea a ser preservada. De acordo com o Decreto 12.729, o governo possua prerrogativa de desapropriar, quando necessrio, as terras ou benfeitorias que estivessem na rea destinada ao parque. Estranhamente, no h nenhuma referncia nos documentos governamentais da presena dos ndios de Barra Velha no entorno do Monte Pascoal.

    26 CASTRO, R. Berbert (Org). 1940. Sob os cus de Porto Seguro. Diretoria de Cultura e Divulgao do Estado da Bahia, Imprensa Oficial do Estado, p. 67.

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    Ao chegar regio, o Dr. Barros iniciou a demarcao do territrio do PNMP. Para conquistar o apoio e a cooperao dos ndios de Barra Velha, o engenheiro informou que a medio se revestiria em benefcios para os ndios, sobretudo na definitiva demarcao das terras da aldeia. Os ndios ajudaram o representante do governo no transporte dos equipamentos, na abertura de trilhas, no abastecimento da equipe e na localizao nas matas. Todavia, ao final dos trabalhos foram surpreendidos com a notcia de que

    ia ser criado um parque florestal naquela rea e que eles no deveriam mais derrubar rvores na mata. S deveriam fazer roas nas capoeiras, mas o melhor mesmo seria procurar logo outras colocaes, pois todo mundo seria retirado de dentro do parque. Era o governo que queria assim. No poderiam mais fazer derrubadas para as roas, nem tirar cip ou embira, nem piaava e muito menos caar. A floresta iria ficar por conta dos bichos.27

    A recepo dessa notcia repercutiu entre os ndios como um golpe contra o direito que possuam por ocupar historicamente aquele territrio. A indignao alimentou um sentimento de pertencimento a uma comunidade tnica diferenciada, articulada em torno de uma identidade cultural especfica e enraizada por laos simblicos e materiais ao territrio que o governo desejava expropriar. Por isso, os ndios decidiram defender seus interesses frente ao governo, enviando para a capital federal o capito Honrio, juntamente com outras lideranas da aldeia, com a finalidade de requerer ao Servio de Proteo ao ndio (SPI) a demarcao das terras de Barra Velha.

    No dia 1 de setembro de 1949, capito Honrio conseguiu registrar sua reivindicao no SPI. Por meio de um pequeno requerimento, solicitou ferramentas para o trabalho e roupa para as crianas da Ardea dos ndios de Belo Jardim Monte Pascual que fica acima de Porto Seguro na Bahia. Todavia, no deixou de pontuar sua principal demanda,

    27 Professores Indgenas: Povo Patax. Leituras Patax: razes e vivncias do povo patax nas escolas/ Secretaria de Educao. Salvador: MEC/ FNDE/ SEC/ SUDEB, 2005.

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    exigindo o favor de no deixar o pessoal da ndia tomar minhas terras. Nas conversas realizadas na viagem, os representantes do governo garantiram que enviariam tcnicos para realizar a demarcao da terra indgena de Barra Velha.28

    No ano de 1951, dois indivduos chegaram na aldeia de Barra Velha com a notcia de que eram os responsveis pela demarcao da terra indgena. Identificados genericamente como engenheiro e tenente, os dois homens estimularam a rivalidade contra os no-ndios dos arredores, resultando num saque a uma venda na povoao de Corumbau. Na fuga, os ndios foram instrudos a cortarem as linhas do telgrafo e a se aquartelarem na igreja da aldeia.

    Trs dias depois, uma forte represso policial atacou Barra Velha. Policiais de Prado e Porto Seguro chegaram na aldeia disparando intensa chua de balas e queimando o que encontravam pela frente. Os dois lderes no ndios foram mortos, o capito Honrio foi preso, dezenas de ndios foram detidos e inmeros fugiram para o mato em busca de proteo.

    Perseguidos, os ndios foram se espalhando pelas fazendas da regio. Aps o cessar-fogo e a ordem de libertar os ndios, algumas famlias indgenas resolveram retornar aldeia destruda, outras optaram por silenciar sua origem tnica como defesa contra a violncia e o preconceito. Segundo descreve Cornlio Vieira de Oliveira, Barra Velha ficou vazia. O mato crescia no meio da rua e no lugar das casas. As roas foram destrudas, ou melhor, colhidas pelo pessoal de Carava29.

    O ndio Epifnio assumiu a responsabilidade de reagrupar os ndios da aldeia. Comeou a percorrer as fazendas e povoaes da redondeza em busca das famlias que haviam fugido da aldeia durante o Fogo de 51. Aos poucos, Barra Velha foi se recompondo, ainda que muitas famlias temessem retornar. Todavia, o problema da demarcao da terra permanecia

    28 GRUNEWALDE, Rodrigo. O aldeamento, o fogo e o parque: resistncia Patax em Barra Velha. In: Tradies tnicas entre os Patax no Monte Pascoal: subsdios para uma educao diferenciada e prticas sustentveis.1 ed.Vitria da Conquista : Edies UESB, 2008, v.1, p. 172.

    29 OLIVEIRA, Cornlio Vieira. Barra Velha: o ltimo refgio. Londrina, 1985, p. 49.

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    sem resoluo, tendo um agravante com a criao do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que passou a administrar o PNMP, em 1961.

    Durante toda a dcada de 1960, vrios conflitos entre o IBDF e os ndios de Barra Velha vieram tona. Os administradores do PNMP queriam restringir a rea de caa e plantio dos ndios, sob argumentao da preservao da fauna e da flora. Os ndios resistiram s imposies dos guardas florestais, ousando constantemente abrir roas de mandioca alm dos limites determinados para a aldeia. Somente na dcada de 1970, com a interveno da Fundao Nacional do ndio, a populao indgena de Barra Velha conquistou o direito sobre um territrio ainda no suficiente, porm maior do que aquele regulamentado pelo IBDF.

    A luta dos Patax de Barra Velha pelo reconhecimento do seu territrio no cessou. Os conflitos, os debates e as negociaes se arrastaram por longos anos. Finalmente, em 20 de julho de 1988, o governo resolveu reconhecer 8.627 hectares no entorno de Barra Velha como rea de posse imemorial indgena, propondo que fosse regulamentada com o nome de Colnia Indgena Barra Velha. Em dezembro de 1991, a Presidncia da Repblica, por meio do decreto 396, homologou a demarcao da aldeia Patax.

    Da dispora retomada do territrio Patax

    O Fogo de 51 e os conflitos territoriais com os administradores do PNMP resultaram numa disperso dos Patax pelo Extremo Sul da Bahia. Nessa dispora forada, alguns grupos indgenas se refugiaram em stios afastados da aldeia, procurando obter as condies mnimas para sua sobrevivncia fsica e cultural. s vezes, organizados por meio de troncos familiares, s vezes, misturados com a sociedade regional, esses refgios acabaram se transformando em ponto de resistncia e de ressurgimento do domnio territorial Patax.

    A demarcao da terra indgena de Barra Velha no 45foi percebida pelos ndios como a conquista final da luta Patax. Ao contrrio, eles entenderam a demarcao como um ponto de partida, pois reconheciam

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    que a rea delimitada ainda era insuficiente para a sua reproduo social, cultural, demogrfica e espacial. Se, por um lado, a demarcao de Barra Velha estimulou o retorno de algumas famlias e fortaleceu a organizao poltica em defesa do direito terra; de outro lado, estimulou os outros grupos Patax espalhados pela regio a reivindicarem a demarcao de seus territrios, emergindo um forte movimento de afirmao tnico-cultural e de mobilizao poltica.

    Este ressurgimento reflexo da forma como os ndios se percebem, tanto enquanto dependentes de sua vida comunitria, quanto de seu sentimento de pertencentes regio (talvez seja mais preciso afirmar sentimento de donos histricos destas terras). Aliados estes dois sentimentos intensa luta poltica que se desencadeia a partir da mobilizao e organizao poltica, os ndios iniciam o processo de retomada de suas terras. A partir disso, h um forte momento de discusses e negociao entre os ndios, FUNAI, IBAMA, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF, extinto em 1989) e grupos indigenistas para a regularizao das terras indgenas no Extremo Sul da Bahia.

    Atualmente os indgenas continuam lutando pela regularizao de suas terras. Cientes de como fazer para terem seus direitos respeitados, eles esto se tornando cada vez mais atuantes em suas causas, formando no comisses atuantes politicamente, mas grupos de educadores indgenas, ncleos de recuperao de sua cultura e at mesmo reconstituio lingustica, dentre outras coisas. A longa experincia poltica acumulada desde a dcada de 1970 tornou este grupo de brasileiros, fortes conhecedores de seus direitos, assim como conhecedores do que devem fazer para serem respeitados.

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    REFERNCIAS

    AGOSTINHO DA SILVA, Pedro. Condicionamentos ecolgicos e intertnicos da localizao dos Patax de Barra Velha. In: AGOSTINHO DA SILVA, Pedro Manuel et alii. Tradies tnicas Entre os Patax do Monte Pascoal: subsdios para uma educao diferenciada e prticas sustentveis. Vitria da Conquista: Edies UESB, 2008.

    CANCELA, Francisco. Uma barreira contra os perigos do serto do Monte Pascoal: a criao da vila do Prado, os ndios Patax e a re-significao das relaes de contato (1764 - 1820). In: AGOSTINHO DA SILVA, Pedro Manuel et alii. Tradies tnicas Entre os Patax do Monte Pascoal: subsdios para uma educao diferenciada e prticas sustentveis. Vitria da Conquista: Edies UESB, 2008.

    CARVALHO, Maria do Rosrio Gonalves de. Os Patax Meridionais: Uma breve recenso histrico-bibliogrfica. In: AGOSTINHO DA SILVA, Pedro Manuel et alii. Tradies tnicas Entre os Patax do Monte Pascoal: subsdios para uma educao diferenciada e prticas sustentveis. Vitria da Conquista: Edies UESB, 2008.

    DANTAS, Beatriz G; SAMPAIO, Jos Augusto L.; CARVALHO, Maria do Rosrio G. de. Os povos indgenas no Nordeste brasileiro: um esboo histrico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992.

    GRNEWALD, Rodrigo de Azeredo. O aldeamento, o fogo e o parque: resistncia Patax em Barra Velha. In: AGOSTINHO DA SILVA, Pedro Manuel et alii. Tradies tnicas Entre os Patax do Monte Pascoal: subsdios para uma educao diferenciada e prticas sustentveis. Vitria da Conquista: Edies UESB, 2008.

    _____________. Os ndios do descobrimento: tradio e turismo. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. Rio de Janeiro, UFRJ/MN/PPGAS, 1999.

    OLIVEIRA, Cornlio V. de. Barra Velha: o ltimo Refgio. Londrina: [s.n.], 1985.

  • 42

    PARASO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos e sua trajetria histrica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992.

    PATAX, ndios. ndios na viso dos ndios: Patax do Prado. Salvador: Thydewas, 2007.

    SAMPAIO, Jos Augusto Laranjeiras. Relatrio de situao fundiria das terras indgenas Patax de Coroa Vermelha (praia) e Coroa Vermelha (Mata), guas Belas, Corumbauzinho e Trevo do Parque. Salvador: ANA, 1993.

  • 2Os Patax Contemporneos

  • 45

    2 - Os Patax Contemporneos

    Contam os mais velhos que em um lugar encantado, chamado Juacema, surgiu um grande guerreiro: Txpay (o criador). Em um dia ensolarado, Txpay provocou um grande temporal na Juacema, onde se formou um imenso buraco. Cada pingo de gua que caa no buraco se misturava ao barro, dando forma a ndios belos e fortes. Ns, ndios, samos do buraco e comeamos a povoar e habitar aquela terra (Mito de criao do povo Patax).

    ***

    Os ndios conhecidos sob o etnmio Patax ocupam parte da faixa litornea e interior do Extremo Sul do estado da Bahia e municpios do interior de Minas Gerais. Em sua totalidade, existem 11.833 (Funasa, 2010) Patax distribudos em vinte e cinco aldeias nesses estados. No h estrito consenso em relao famlia lingustica a que pertencem: se, de um lado, h os que consideram que os Patax pertencem famlia lingustica Goyatac30; de outro, a maior parte dos linguistas afirmam que a lngua Patax faz parte da famlia lingustica Maxakali31, que ora pode ser considerada uma subdiviso do grupo J, ora uma famlia lingustica completamente independente do grupo J32. De qualquer modo, atualmente consenso que os Patax pertencem ao tronco lingustico Macro-J33.

    interessante destacar esse dado porque ele reflete os violentos processos de contato com os no-ndios a que os Patax e os ndios de outras etnias foram compelidos: alm do extermnio da populao e usurpao de seu territrio, as lnguas nativas tambm sofreram perdas irremediveis. No caso, a lngua Patax persistiu, no mnimo, at 1938, quando Curt Nimuendaju encontrou falantes estabelecidos na Reserva

    Caramuru-Paraguau, aldeia dos Pataxs H-H-He34.

    30 Steinen apud Carvalho & Souza, 2005.

    31 Rodrigues 1986 apud Carvalho & Souza, 2005.

    32 C. Loukotika apud Carvalho & Souza, 2005.

    33 Arantes, 2001, p. 121; Rodrigues, 1986 apud Carvalho & Souza, 2005.

    34 Carvalho & Souza, 2005.

  • 46

    Como vimos, existem aproximadamente 12 mil Patax distribudos em vinte e cinco aldeias. Em Coroa Vermelha, residem cerca de seis mil ndios, o que a torna, em termos demogrficos, a maior aldeia Patax existente.

    Neste estudo, apresentaremos alguns aspectos socioculturais das aldeias Patax de Barra Velha, Coroa Vermelha e Aldeia Velha, todas localizadas na faixa litornea do Extremo Sul do Estado da Bahia, entre os municpios de Santa Cruz Cabrlia e Porto Seguro. Cada uma dessas aldeias possui marcos relevantes para a cultura e histria do povo Patax: a aldeia de Barra Velha reconhecida como a Aldeia Me, onde, em 1861, foram aldeados ndios de diversas etnias, sendo os Patax o grupo tnico mais representativo, e onde ocorreu o fatdico Fogo de 1951, que implicou na disperso dos Patax e na formao de novas aldeias. J Coroa Vermelha, alm de ser a maior aldeia Patax em termos demogrficos e de ser uma das aldeias que mais vivencia cotidianamente as implicaes do contato com os no ndios, tambm particulariza-se por ser pioneira em aes de pesquisa, resgate e valorizao da cultura Patax, consolidando a existncia do Grupo de Pesquisa da Lngua e Histria Patax ATXOH, que se formou h mais de dez anos, e do Ponto de Cultura Patax da Reserva da Jaqueira. A Aldeia Velha das mais jovens aldeias Patax, mas caracteriza-se pelo forte investimento em aes de registro e valorizao cultural com diversas produes e cursos executados pelo e no Ponto de Cultura Patax de Aldeia Velha.

    Como j citamos, existem muitas outras aldeias Patax com aspectos em comum e singularidades em relao s aqui apresentadas e que igualmente cooperam para caracterizar a experincia histrico-social e cultural dessa populao. Mesmo reconhecendo esta limitao da pesquisa, esperamos que as informaes aqui contidas contribuam para a valorizao da identidade cultural de todos os Patax, informando populao no indgena e contribuindo para o enfrentamento dos preconceitos vivenciados

    pelos Patax cotidianamente.

    Localizao, dados demogrficos e aspectos fundirios

    Terra Indgena (TI) Barra Velha: possvel considerar que a luta pelo estabelecimento das terras Patax sempre foi uma questo

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    premente para esta populao desde o perodo colonial. Constituda por episdios marcantes, o caso da instituio da TI Aldeia Barra Velha paradigmtico para se entender todos os processos de resistncia ali protagonizados.

    Criada em 1861 s margens do rio Corumbau por determinao do governo da provncia da Bahia, a aldeia Bom Jardim, atual aldeia Patax Barra Velha, reuniu ndios de diversas etnias, dentre as quais estavam os Pataxs, que eram maioria, os Maxakalis, Botocudos, Kamaks e Tupis. Mas foi a partir de 1940, com a criao do Parque Nacional do Monte Pascoal, que as disputas pela TI de Barra Velha se acirraram, culminando com o fatdico episdio do Fogo de 1951.

    Na dcada de 70, com o retorno de diversas famlias para a aldeia Barra Velha, iniciou-se novamente o processo de luta para o reconhecimento e demarcao da TI. Nessa poca, os Patax comearam a organizar uma srie de aes e movimentos pela oficializao de territrios indgenas e pelo reconhecimento dos seus direitos, conseguindo que a homologao efetiva fosse realizada em 1991.

    Essa primeira TI Patax est localizada prxima a uma rea de proteo ambiental, o Parque Monte Pascoal, no municpio de Porto Seguro. Essa situao peculiar propiciou e ainda propicia uma srie de contratempos j que a populao depende essencialmente de atividades que implicam na alterao do meio ambiente que os cerca, como por exemplo, o roado da mandioca, a mariscagem e a extrao vegetal para feitura de artesanatos em madeira35.

    Atualmente com uma rea de 8.627 hectares que fica entre os rios Carava e Corumbau, a aldeia de Barra Velha tem mais de 300 famlias, com aproximadamente trs mil pessoas que sobrevivem do artesanato, da agricultura e da pesca.

    Terra Indgena - TI Coroa Vermelha: A aldeia Coroa Vermelha situa-se numa regio de intensa movimentao turstica, no

    35 Silva, 2006, p. 207-10.

  • 48

    territrio do Extremo Sul da Bahia, municpio de Santa Cruz Cabrlia, entre os km 76 e 79 da BR-367, considerado o palco da invaso dos portugueses em 1500. Ela limita-se ao sul pelo monumento da resistncia Patax e ao norte pelo rio Mutari.

    Essa aldeia Patax est distribuda em duas glebas: A e B. A primeira caracteriza-se por ser uma rea urbana onde est o conjunto cultural Patax e a habitao da maior parte da populao; na gleba B, desenvolvida a agricultura de subsistncia e uma pequena parte do territrio utilizada para criao de gado. Alm disso, h uma parte do territrio com 827 km de mata que consiste na Reserva da Jaqueira.

    Todo o territrio formado por 1493 hectares, conquistado a partir da luta pela demarcao na dcada de 70. Mas somente em 1990 iniciaram-se os estudos antropolgicos realizados pelos Grupos de Trabalho da FUNAI. Aps o processo de demarcao, ocorrido em 1997, os Patax de Coroa Vermelha encontram-se agora em fase de ampliao do seu territrio por meio da reconquista de outras terras. Como resultado dessa luta pela ampliao do territrio j existem hoje as comunidades de Juerana, Aroeira e Nova Coroa.

    Com isso, a aldeia Coroa Vermelha possui atualmente 1600 famlias e aproximadamente 6000 pessoas que vivem do comrcio, agricultura, pesca e de empregos pblicos nos setores da sade e educao.

    Terra Indgena - TI Aldeia Velha: Ocupada em 1997, aps uma longa histria de luta pela terra, a rea est situada ao norte margem do rio Buranhm, com reas alagadas, manguezal e terreno arenoso. Compe-se, tambm, de uma rea mais elevada, mais para o interior, prximo estrada de Arraial dAjuda, no qual h mata secundria bem

    conservada.

    Conhecida atualmente como Aldeia Velha, essa TI deriva de um aldeamento jesuta de 1534, chamada aldeia de Santo Amaro. Os antigos donos chamavam esta rea de Fazenda de Santo Amaro, mas o nome Aldeia Velha foi dado pela populao indgena justamente para reafirmar sua presena desde tempos imemoriais, conforme atestam a existncia de stios arqueolgicos no local.

  • 49

    Aps muitas histrias de luta, foi em 1992 que Ip (Silvino

    Lopes do Esprito Santo) conseguiu unir mais de 46 famlias Patax que

    estavam desaldeadas e iniciou o processo definitivo de conquista desse

    territrio, tornando-se ento a principal liderana e posteriormente o

    cacique da aldeia durante muitos anos.

    A primeira retomada comeou na estrada que liga Arraial dAjuda

    a Trancoso, onde atualmente h o local de entrada da atual Reserva da

    Aldeia Velha. Os ndios permaneceram por cerca de duas semanas neste

    local. O fazendeiro ficou sabendo da retomada da terra e entrou com uma

    liminar para que os indgenas desocupassem a rea. Ip recebeu a visita

    de um oficial da justia que juntamente com alguns policiais militares

    expulsaram as famlias que acataram a liminar sem resistncia.

    No ano de 1998, recomeou a luta pela terra. Esta fase contou

    com o apoio fundamental do Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) e

    Grupo de Apoio aos ndios Patax (GAIPA), que forneceram alimentos

    s famlias aldeadas. Outra pessoa que teve um papel fundamental nesta

    luta foi o ndio tupi-guarani Taigua, advogado que virou mrtir na aldeia,

    pois foi assassinado enquanto defendia os direitos indgenas, por motivo

    ainda no esclarecido.

    Antes estabelecidos na parte baixa, junto ao rio, por ser uma

    posio estratgica no processo de ocupao, com a terra indgena

    consolidada, as famlias passaram a transferir suas moradias para o

    interior da mata, onde estabeleceram a aldeia definitiva. Atualmente,

    a Aldeia Velha possui aproximadamente 2.000 hectares no distrito de

    Arraial dAjuda, municpio de Porto Seguro. Nela residem cerca de duas

    mil pessoas, que sobrevivem da venda do artesanato e de atividades

    voltadas para o etnoturismo.

    A situao fundiria das trs aldeias foi estabelecida conforme o

    art. 231 da Constituio, como TI tradicionalmente ocupada por ndios,

    e tambm de acordo com o ttulo IV, artigo 32, lei 6001 Estatuto do ndio

    (21/12/73).

  • 50

    Atividades econmicas

    As principais atividades econmicas das aldeias pesquisadas esto baseadas na venda de artesanato indgena, no investimento no etnoturismo e em atividades de subsistncia, como pesca, mariscagem e roado. Particularmente, a aldeia de Coroa Vermelha tambm investe na venda de produtos de praia e de produtos associados cultura nordestina (cangas, rendas, redes, cermicas etc); e no comrcio em geral. Alm disso, comum que, no perodo de maior movimentao turstica, algumas pessoas trabalhem na rede de servios, como hotis e barracas de praia nos municpios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrlia.

    Com relao diviso dos trabalhos, de modo geral, o modelo adotado aquele em que os homens lidam com a pesca e o os trabalhos que sustentam a famlia e s mulheres cabe o cuidado das crianas e demais atividades domsticas. No so mais todas as aldeias que atualizam esse modelo, em especial, naquelas mais prximas s cidades, como Coroa Vermelha e Aldeia Velha, os trabalhos so divididos igualmente. Em todas as aldeias homens e mulheres podem se candidatar aos cargos de liderana.

    Organizao social e poltica

    O povo Patax constitui famlia, normalmente, com idade entre quinze e dezesseis anos e, de modo geral, essa famlia tende a ser grande, tem entre 10 a 12 filhos. Cada unidade familiar possui sua casa e trabalha para o seu sustento, contudo, mantm vnculos importantes com os pais e outros parentes, seguindo as mesmas tradies de fazer artesanato, roas e farinha com eles.

    Desse modo, em relao organizao interna, embora cada grupo domstico se constitua de maneira autnoma em relao aos demais, importante considerar as relaes de parentesco, fundamentais na constituio das redes de cooperao e solidariedade horizontais ou verticais sobretudo no que concerne sustentabilidade econmica de cada unidade. Estas redes correspondem, em geral, a famlias extensas ou a conjuntos de famlias extensas, e a abrangncia delas tende a extrapolar os limites estritos da comunidade local. Contudo, estas famlias esto subordinadas a lideranas polticas e econmicas locais, o que contribui

  • 51

    para uma plena caracterizao da aldeia como principal plo poltico Patax. Mas isso no significa que exista uma unidade poltica nas aldeias; ao contrrio, assim como h heterogeneidade social, existem grupos opostos e concorrentes.

    As trs aldeias adotam um regime poltico regido por um cacique, que o lder geral, e as lideranas e conselheiros, que so os seus auxiliares e cuidam dos problemas relacionados comunidade. So eles que buscam desenvolver e promover polticas que deem condies para sanar as necessidades existentes no cotidiano da comunidade.

    No existe periodicidade pr-estabelecida, nem forma de eleio definida para a escolha das lideranas Patax de cada aldeia. O modo como se organizam politicamente decorre do grau de satisfao da comunidade em relao s lideranas: se a comunidade no estiver satisfeita, ela se rene e prope uma nova liderana para a aldeia. Atualmente, na aldeia Barra Velha, a liderana poltica o cacique Romildo; na aldeia Coroa Vermelha, o cacique Aru; e na Aldeia Velha, o cacique Urubaia

    As expresses de uma unidade poltica e social nas aldeias s ficam evidentes no contexto de suas relaes com a sociedade no indgena, no qual a condio de indgena desempenha um papel fundamental. No caso, como grande parte das aldeias Patax foram configuradas a partir da dispora ocorrida em 1951, possvel considerar que elas compem com Barra Velha um conjunto poltico e social que, apesar de disperso, vm se rearticulando formalmente em encontros regulares, motivados pelo resgate de uma histria comum, de aspectos culturais e de relaes de parentesco e pela luta por direitos e territrios. Nesse mbito, em 1998, foi criado o Grupo de Pesquisa da Lngua e Histria Patax (ATXOH) e, em 2010, foi criada a Federao Indgena das Naes Patax e Tupinamb do Extremo Sul da Bahia (FINPAT), antecedida pela Frente de Luta e Resistncia Patax e pelo Conselho de Caciques.

    importante destacar tambm a existncia de associaes que auxiliam no trabalho de luta por direitos e promoo de aes para melhoria das condies de vida da populao em todas as trs aldeias pesquisadas. Em 2011, as associaes atuantes nas comunidades so a ASPECTUR (Associao Patax de Ecoturismo), a ACIBAVE (Associao da Comunidade Indgena de Barra Velha), a Associao de Ecoturismo

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    Patax de Aldeia Velha e a ACIPACOVER (Associao Comunitria Indgena Patax de Coroa Vermelha).

    Lngua: o patxoh

    As marcas da histria de resistncia e dos processos de reinveno do povo Patax esto na sua lngua que, aps longo perodo de proibies de seu uso, passa atualmente por uma nova fase.

    Atravs do trabalho independente de pesquisa de educadores e lideranas Patax, preocupados em afirmar suas tradies e costumes, em 1998, foram iniciados estudos mais detalhados da lngua e o resgate de muitas palavras do vocabulrio Patax, culminando com a ampliao desse vocabulrio que inicialmente no passava de 200 palavras para um vocabulrio de 2.500 palavras.

    Como j observado, a lngua falada pelos Patax pertence ao tronco lingustico Macro-J. Contudo, durante as pesquisas realizadas foram coletadas palavras entre os mais velhos provenientes de outras lnguas e troncos lingusticos, sendo que atualmente este material est passando por um processo de anlise e reviso. Mas para entendermos como essa mistura ocorreu, importante levarmos em considerao que, de acordo com registros histricos, os Patax e outros povos foram foradamente retirados de seus territrios originrios e aldeados em Bom Jardim, hoje Aldeia Patax Barra Velha, contribuindo para a diversidade do seu vocabulrio e seus costumes36.

    Esse trabalho, apesar de todos os avanos, est ainda em fase de desenvolvimento: na msica, o uso do patxoh, como chamado o idioma Patax, j uma realidade; no entanto, h ainda muito a ser feito para que o uso cotidiano tambm se torne efetivo. Mas se depender dos esforos dos educadores e das lideranas Patax empenhadas na valorizao de sua lngua e cultura, em breve todos estaro se comunicando em patxoh sem embarao.

    36 Professores Indgenas: Povo Patax, 2005, p. 16.

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    Algumas saudaes em Patxoh:Algumas saudaes em Patxoh:

    Hayku - Bom dia Resposta - Hayx

    Itx niat - Boa tarde Resposta - Miria

    Takoh - Boa noite Resposta - Akun

    Awry - Obrigado Resposta - Iam

    Tuk tukeh - Boa sorte

    Arn ert - Eu te amo

    Tsg Tchau

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    Algumas palavras em Patxoh:Algumas palavras em Patxoh:

    Niopatx: Abraar

    Niah: Acordar

    Daw: Adeus

    Mpy: Adorar

    Hamikahy: Aniversrio

    Hitup: Alegria

    Hatxotxy: timo, certo, ok.

    Sunniat: Cantar

    Akai: Lder

    Hytx: Criador

    Niamis: Deus

    kohay: Amigo

    Pakh: Cultura

    Txobh: Cura

    Taputar: Parente

    Patax: Aldeia

    Kijtxaw: Escola

    Htxek: Com licena

    Kawat: Corao

    Arene: Falar

  • 3Aspectos da Cultura dos Patax

    do Extremo Sul da Bahia: Saberes e fazeres

  • 59

    Hayku - Bom dia Resposta - Hayx

    Itx niat - Boa tarde Resposta - Miria

    Takoh - Boa noite Resposta - Akun

    Awry - Obrigado Resposta - Iam

    Tuk tukeh - Boa sorte

    Arn ert - Eu te amo

    Tsg - Tchau

    3 - Aspectos da Cultura dos Patax do Extremo Sul

    da Bahia: Saberes e Fazeres

    Medicina Tradicional

    O paj

    O Paj um grande sbio da aldeia. Numa aldeia, o paj

    considerado como o curador, o mdico que cuida das doenas que a

    atinge. Geralmente, o paj sempre um dos mais velhos por causa de seu

    conhecimento em todas as reas: medicinal, adivinhaes atravs do tempo

    e na preparao de remdios naturais. aquela pessoa que reza e cura as

    pessoas. um ancio, que traz consigo desde a nascena, o dom espiritual

    e a fora dos ancestrais e que no decorrer de sua vida vai adquirindo

    experincia e conhecimento.

  • 60

    Atualmente, os ancios que exercem essa atividade nas aldeias pesquisadas so o paj Itamb (Alberto do Esprito Santo Matos), de 78 anos, na aldeia de Coroa Vermelha; a paj Jaan (Maria Dajuda Alves da Conceio), de 69 anos, na Aldeia Velha; e o paj Albino Braz, na aldeia Barra Velha.

    Alm de benzer e curar as pessoas por meio do poder das rezas e

    das plantas, os pajs produzem muitos remdios para curar os males que

    atingem a populao das aldeias. Algumas ervas medicinais so muito

    utilizadas pelo povo Patax de modo geral. So elas:

    eAmesca: uma rvore muito importante para os Patax. A sua seiva usada nos rituais sagrados do povo Patax em forma de incenso, para espantar os maus espritos e fortalecer os espritos dos guerreiros. Tambm tem importante uso medicinal: a seiva serve para combater dores de cabea, dor de dente, sinusite, dor de barriga e outros. Seu aroma bastante agradvel.

    Babosa: a folha da babosa batida no liquidificador junto com leite usada para combater o cncer. tambm eficaz no combate diabete, fazendo o comprimido do seu lquido com a farinha de trigo.

    eSanta Maria: o sumo de sua folha serve para combater micoses e impigem, passando no local. O banho com suas folhas serve para combater a sinusite e a goma de suas folhas serve para curar infeces na pele.

    eCardo Santo: a folha batida no liquidificador junto com leite anti-inflamatrio; o ch com as folhas serve para dores no corpo; o sumo da folha junto com leo de rcino serve para combater a pneumonia.

    eTioi: o banho com suas folhas serve para o fortalecimento espiritual, olho gordo e combate sinusite; o ch das suas folhas serve para combater verme.

    eConfrei: o ch com as suas folhas anti-inflamatrio; o sumo junto com leite serve para tirar pustema; o ch junto com coentro-maranho anti-inflamatrio fortalecido, serve para curar inflamao de garganta.

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    eHortel: o ch com as suas folhas serve para combater febre e gripe; as suas folhas amassadas espantam ratos de casa, colocando no local onde eles costumam aparecer.

    eBoldo: o ch com as suas folhas serve para congesto e dor no estmago.

    eCoentro-Maranho: o ch com as suas folhas estimulante sexual; o sumo da raiz pisada serve para escorbuto.

    eChapu-de-couro: o ch com as suas folhas serve para combater dores no corpo; a raiz e as folhas colocadas na cachaa servem para reumatismo.

    eCana-de-macaco: o sumo de seu caule e olho serve para combater hemorragia, dor de estmago e problema nos rins; o ch das folhas serve para dores no corpo.

    Artimijo: a massagem com as suas folhas aquecidas serve para acelerar o processo de parto.

    RMastruz: o ch e o sumo de suas folhas anti-inflamatrio e tambm serve para combater dores e febre. Tambm combate vermes. As suas folhas pisadas e amarradas num local servem para curar inchaos e dores nos ossos; o sumo do mastruz com leite serve para retirar pustema e combater pneumonia37.

    Vale destacar que o conhecimento que os pajs possuem sobre a flora local e a manipulao das ervas digno de reconhecimento e que no consiste numa forma paliativa ou atrasada de lidar com problemas de sade. Ele resulta de anos de observao e prtica e depende da

    transmisso de conhecimentos por meio da oralidade.

    A parteira

    Na comunidade, normalmente a parteira uma anci que tem

    37 Nascimento, 2003.

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    muitos conhecimentos tradicionais, em especial, das plantas e ervas. Na hora de realizar um parto, ela conhece as tcnicas de acompanhamento e preparao dessas ervas medicinais para que seu trabalho ocorra conforme o planejado.

    Uma mulher Patax torna-se parteira vivenciando, praticando e, geralmente, seguindo uma tradio familiar. O trabalho da parteira um trabalho rduo e que exige muita dedicao: ela est presente no s no momento do parto, mas sobretudo nas horas que o antecedem, preparando os banhos com artimijo, mentrast