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24 CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005 Antimônio no tratamento de zoonoses Introdução C ompostos de antimônio já eram usados na antiguidade como cosméticos e fármacos. Atual- mente os medicamentos antimo- niais continuam sendo emprega- dos, essencialmente na terapêu- tica das doenças parasitárias leishmaniose e esquistossomose, mas apresentam sérios efeitos colaterais. Os grandes laborató- rios farmacêuticos investem pouco no desenvolvimento de alternativas te- rapêuticas para essas doenças, principalmente porque são classi- ficadas como doenças negligen- ciadas, que dão pouco lucro. Neste artigo apresentaremos bre- vemente as doenças que se beneficiam do tratamento com compostos de antimônio e alguns aspectos da farmacologia dos antimoniais. Mostraremos também as estratégias propostas para melhorar o tratamento com esses medicamentos por meio de suas apresentações em novas “embala- gens” 1 . Quimioterapia antimonial Quimioterapia das leishmanioses As leishmanioses são doenças parasitárias que atingem cerca de 12 milhões de pessoas no mundo. São zoonoses típicas de áreas rurais de regiões tropicais e subtro- picais. No entanto, uma crescente urbanização da doença tem sido observada. Provocada por para- sitas protozoários do gênero Leishma- nia, a enfermidade é transmitida ao ho- mem (ou outros hospedeiros verte- brados) pela picada de um mosquito hematófago infec- tado, denominado flebótomo. Esses parasitas são fa- gocitados pelos macrófagos 2 , onde se multiplicam livremente e esca- pam aos sistemas de defesa do hospedeiro. No Brasil ocorrem cer- ca de 30 mil novos casos anuais da doença, sendo a população de baixa renda a mais atingida. A Leishmania corresponde a um complexo de várias espécies que causam diferentes tipos de manifes- tações clínicas, incluindo as formas cutânea, cutâneo-mucosa e visceral. No continente americano, podemos diferenciar duas formas de leishma- niose: Leishmaniose Tegumentar Americana (cutânea e cutâneo-mu- cosa) e a Leishmaniose Visceral Americana (ou calazar). O cão apa- rece como hospedeiro e tem papel importante como reservatório e fonte de infecção da doença em áreas endêmicas. A moléstia foi descrita pela primei- ra vez em 1903 pelo inglês William Leishman. No entanto, em 1571 Pedro Pizarro já havia relatado que povos situados nos vales quentes do Peru eram dizimados por uma doença que desfigurava o nariz e que foi poste- riormente caracterizada como leish- maniose. No início do século passado, Gaspar Vianna foi o primeiro a relatar a eficácia do tártaro emético, antimo- nial trivalente (Esquema 1), no trata- mento da leishmaniose cutâneo-mu- cosa (Vianna, 1912). A partir dos tra- balhos desse importante médico brasileiro, os doentes de calazar (for- ma visceral e fatal da doença) passa- ram a ter esperança de sobrevi- vência. Entretanto, em razão de seus gra- ves efeitos colaterais, os complexos de antimônio trivalente (Sb III ) foram rapidamente substituídos por comple- Cynthia Demicheli e Frédéric Frézard Apresentaremos neste artigo as doenças parasitárias que se beneficiam da quimioterapia antimonial, alguns aspectos da farmacologia dos medicamentos à base de antimônio, as principais limitações do trata- mento atual e novas alternativas terapêuticas. antimônio, lipossomas, leishmaniose, esquistossomose As leishmanioses são doenças parasitárias (zoonoses) típicas de áreas rurais de regiões tropicais e subtropicais que atingem cerca de 12 milhões de pessoas em todo o mundo

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CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005Antimônio no tratamento de zoonoses

Introdução

Compostos de antimônio já eramusados na antiguidade comocosméticos e fármacos. Atual-

mente os medicamentos antimo-niais continuam sendo emprega-dos, essencialmente na terapêu-t ica das doenças parasi tár iasleishmaniose e esquistossomose,mas apresentam sérios efeitoscolaterais. Osgrandes laborató-rios farmacêuticosinvestem pouco nodesenvolv imentode alternativas te-rapêut icas paraessas doenças,p r i n c i p a l m e n t eporque são classi-ficadas como doenças negligen-ciadas, que dão pouco lucro.Neste artigo apresentaremos bre-vemente as doenças que sebeneficiam do tratamento comcompostos de antimônio e algunsaspectos da farmacologia dosantimoniais. Mostraremos tambémas estratégias propostas paramelhorar o tratamento com essesmedicamentos por meio de suasapresentações em novas “embala-gens”1.

Quimioterapia antimonial

Quimioterapia das leishmaniosesAs leishmanioses são doenças

parasitárias que atingem cerca de12 milhões de pessoas no mundo.São zoonoses típicas de áreasrurais de regiões tropicais e subtro-picais. No entanto, uma crescenteurbanização da doença tem sidoobservada. Provocada por para-

sitas protozoáriosdo gênero Leishma-nia, a enfermidade étransmitida ao ho-mem (ou outroshospedeiros verte-brados) pela picadade um mosquitohematófago infec-tado, denominado

flebótomo. Esses parasitas são fa-gocitados pelos macrófagos2, ondese multiplicam livremente e esca-pam aos sistemas de defesa dohospedeiro. No Brasil ocorrem cer-ca de 30 mil novos casos anuais dadoença, sendo a população debaixa renda a mais atingida.

A Leishmania corresponde a umcomplexo de várias espécies quecausam diferentes tipos de manifes-tações clínicas, incluindo as formascutânea, cutâneo-mucosa e visceral.

No continente americano, podemosdiferenciar duas formas de leishma-niose: Leishmaniose TegumentarAmericana (cutânea e cutâneo-mu-cosa) e a Leishmaniose VisceralAmericana (ou calazar). O cão apa-rece como hospedeiro e tem papelimportante como reservatório e fontede infecção da doença em áreasendêmicas.

A moléstia foi descrita pela primei-ra vez em 1903 pelo inglês WilliamLeishman. No entanto, em 1571 PedroPizarro já havia relatado que povossituados nos vales quentes do Perueram dizimados por uma doença quedesfigurava o nariz e que foi poste-riormente caracterizada como leish-maniose.

No início do século passado,Gaspar Vianna foi o primeiro a relatara eficácia do tártaro emético, antimo-nial trivalente (Esquema 1), no trata-mento da leishmaniose cutâneo-mu-cosa (Vianna, 1912). A partir dos tra-balhos desse importante médicobrasileiro, os doentes de calazar (for-ma visceral e fatal da doença) passa-ram a ter esperança de sobrevi-vência.

Entretanto, em razão de seus gra-ves efeitos colaterais, os complexosde antimônio trivalente (SbIII) foramrapidamente substituídos por comple-

Cynthia Demicheli e Frédéric Frézard

Apresentaremos neste artigo as doenças parasitárias que se beneficiam da quimioterapia antimonial,alguns aspectos da farmacologia dos medicamentos à base de antimônio, as principais limitações do trata-mento atual e novas alternativas terapêuticas.

antimônio, lipossomas, leishmaniose, esquistossomose

As leishmanioses sãodoenças parasitárias

(zoonoses) típicas de áreasrurais de regiões tropicais esubtropicais que atingemcerca de 12 milhões de

pessoas em todo o mundo

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xos de antimônio pentavalente (SbV).Foi proposto que o SbV se comporta-ria como uma pró-droga, sendo redu-zido por tióis a SbIII no organismohospedeiro. Segundo essa hipótese,SbIII seria a forma ativa e tóxica doantimônio. A biomolécula glutationa(GSH, esquema 2), que contém ogrupo sulfidrila e é o tiol predominanteno meio intracelular, seria um fortecandidato a redutor de SbV a SbIII (Fré-zard et al, 2001; Ferreira et al., 2003).A equação (1) mostra a redução deSbV a SbIII com formação de umcomplexo onde três moléculas deGSH se ligam ao SbIII.

SbO3– + 5GSH + H+ ↔

Sb(GS)3 + GSSG + 3H2O (1)

Tem sido sugerido que nos meiosbiológicos SbIII interagiria com os gru-pos sulfidrilas de certas proteínas, re-sultando na perda de sua função. Poroutro lado, foi também demonstradoque SbV forma complexos com ribo-nucleosídeos, e que essa interaçãopoderia ter implicações no mecanis-mo de ação dos antimoniais (Esque-ma 3) (Demicheli et al., 2002). NaFigura 1, mostramos um esquemados dois modelos propostos para omecanismo de ação dos antimoniaispentavalentes.

Os medicamentos utilizados co-mo primeira escolha para o tratamen-to de todas as formas de leishmanio-se no homem continuam sendo com-

postos à base de SbV. Essen-cialmente, dois derivados deantimônio pentavalente encon-tram-se em uso clínico desde1945: o antimoniato de meglu-mina (Glucantime®, Rhodia,Foto 1) e o estibogluconato desódio (Pentostam®, Welcome)(Esquema 4) (Marsden et al.,1985). No Brasil o medica-mento utilizado é antimoniatode meglumina. O composto éobtido sinteticamente a partirde SbV e N-metil-D-glucamina,mas não possui fórmula estru-tural definida. Porém, tem sidosugerido que o antimônio seliga ao N-metil-D-glucaminaatravés do oxigênio do carbo-no-3 (Esquema 4).

Esses compostos injetáveissão administrados por um pe-ríodo de 20-40 dias, o que difi-culta a adesão dos pacientes.Outro fator limitante na terapêuticadessa doença no Brasil é sua grandeocorrência em zonas rurais, com poucaassistência médica. Assim, as desis-tências do tratamento tornam-se fre-qüentes, o que tende a aumentar osreservatórios e o aparecimento de for-mas resistentes do parasita. A toxidezé um outro problema encontrado nouso dos antimoniais pentavalentes(Marsden et al., 1985; Berman et al.,1997). Os efeitos aparecem principal-mente ao final do tratamento e algunspacientes desenvolvem problemas nocoração, nos rins e no fígado.

Em caso de insucesso com essassubstâncias, seja pelo aparecimentode resistência ao tratamento ou porreação de hipersensibilidade ao anti-mônio, podem-se utilizar outros fár-macos como pentamidina, anfoteri-cina B e paramomicina (Esquema 5)(Berman et al., 1997).

Diante dessas limitações, a Orga-nização Mundial da Saúde (OMS)recomenda a pesquisa de novos fár-macos e formulações, bem como devias de administração mais simplese seguras, como as vias oral e tópica(Ridley, 2003).

Esquema 1

Esquema 2

Figura 1: Dois modelos propostos para o mecanismo de ação dos antimoniais pentava-lentes. O modelo (1) envolve a redução de SbV a SbIII pelos tióis; o modelo (2) envolve aformação de complexo SbV-ribonucleosídeo.

Esquema 3: Complexo de Sb(V) com o ribonucleo-sídeo adenosina.

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Quimioterapia da esquistossomoseA esquistossomose é uma doença

parasitária crônica, transmitida porum caramujo cujos parasitas sãoespécies do gênero Schistosoma. Astrês principais espécies que afetamo homem são S. haematobium, S.mansoni e S. japonicum. A infecção

é causada pelas cercárias3, liberadaspelo hospedeiro intermediário (molus-co) em águas limpas, que penetramatravés da pele do homem quandoeste entra em contato com a águacontaminada. Estima-se que, no Bra-sil, 8 a 10 milhões de indivíduos este-jam infectados, dos quais 1 milhão

desenvolvem quadro clínico grave,com danos irreversíveis ao fígado ebaço. As precárias condições sanitá-rias no Brasil e a ausência de umacorreta exploração de recursos hídri-cos contribuem para a prevalência dadoença (Neves et al., 1995).

O primeiro medicamento empre-gado com êxito no tratamento da es-quistossomose foi o tártaro emético(Esquema 1). Esse medicamento eraadministrado por via endovenosa emdoses múltiplas, em um período deaproximadamente um mês. Váriosefeitos colaterais, incluindo náuseas,vômitos, diarréia e alterações no ritmodo coração eram normalmente obser-vados no decorrer do tratamento. Emnumerosos casos o tratamento tinhaque ser interrompido pela falta deadesão dos pacientes (Cioli et al.,1995).

Buscando melhorar a quimiotera-pia antimonial na esquistossomose,centenas de compostos orgânicos deSbIII foram sintetizados e testados,sendo que alguns chegaram a serutilizados na clínica. Foi observadoque os compostos que se ligam aometal por meio de átomos de enxofresão menos tóxicos, mas, por outrolado, menos eficientes do que aque-les que se ligam ao metal através deátomos de oxigênio.

Depois de 50 anos de uso clínico,os antimoniais trivalentes foram final-mente substituídos por medicamen-tos menos tóxicos e ativos por via oral.Hoje em dia, os dois fármacos em usoclínico são a oxamniquina e o prazi-quantel (Esquema 6) Entretanto, osprimeiros relatos que mostram o apa-recimento de formas resistentes doparasita apontam para a necessidadede desenvolver novos medicamentos(Sturrock, 2001).

A síntese do antimoniato demeglumina (Glucantime®)

O Glucantime® (foto 1) é comer-cializado no Brasil pela Aventis. Deacordo com a patente francesa, sur-gida na década de 40, o produtopode ser preparado a partir de pen-tacloreto de antimônio (SbCl5) e de N-metil-D-glucamina, em uma misturade clorofórmio:água e base orgânicaa frio. Observa-se que a rota sintética

Esquema 4

Esquema 5

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é bastante complicada.Recentemente, pesquisadores da

UFMG obtiveram o antimoniato demeglumina através de dois processosdiferentes: a partir de SbCl5 ou a partirdo KSb(OH)6 (Demicheli et al.,1999;2003). O primeiro método, que usaSbCl5, segue as etapas: (i) hidrólisede SbCl5 em água e separação dopentóxido de antimônio hidratadoformado na reação de hidrólise; (ii)adição de uma solução aquosa de N-metil-D-glucamina ao pentóxido deantimônio na razão 1:1 e reação empH neutro a 60 °C até obtenção deuma solução límpida; (iii) precipitaçãodo antimoniato de meglumina comacetona. O segundo método, que usaKSb(OH)6 como fonte do SbV, consistedas seguintes etapas: (i) mistura ereação de KSb(OH)6 com N-metil-D-glucamina em água, em pH neutro a60 °C; (ii) precipitação do antimoniatode meglumina com acetona.

Lipossomas e aplicações naquimioterapia antimonial

A utilização da maioria dos com-postos terapêuticos tem sido limitadapela impossibilidade de aumento dasua dosagem em razão da retençãoou degradação do fármaco, de suabaixa solubilidade e dos efeitoscolaterais indesejáveis inerentes à suautilização. Esse problema despertouo interesse no desenvolvimento desistemas capazes de transportar umcomposto terapêutico até um alvoespecifico.

Em 1965, Alec Bangham e cola-

boradores publicaram umtrabalho de investigaçãosobre a difusão de íonsatravés de um sistema devesículas fosfolipídicasartificiais, ao qual seriadado o nome de liposso-mas (Bangham et al.,1965). Em 1971, GregoryGregoriadis propôs, pelaprimeira vez, a utilizaçãodos lipossomas como sis-tema transportador de fár-macos (Gregoriadis e Ry-man, 1971).

Estrutura e composiçãodos lipossomas

Os lipossomas sãovesículas esféricas, cons-tituídas de uma ou váriasbicamadas concêntricasde lipídeos, que isolam um ou maiscompartimentos aquosos internos domeio externo. Classicamente liposso-mas são preparados a partir do glice-rofosfolipídeo fosfatidilcolina (Figura2). De uma forma mais geral, lipos-somas podem ser obtidos a partir dequalquer substância anfifílica forma-dora de fase lamelar4.

Tipicamente, o diâmetro médio doslipossomas varia de 20 nm a 5000 nm.Por terem dimensões na escala “nano”,lipossomas são considerados “nano-sistemas”. Lipídeos apresentandocarga efetiva negativa ou positiva po-dem também ser incluídos na compo-sição da membrana, o que podeinfluenciar a taxa de incorporação desubstâncias, assim como o destinodos lipossomas. Substâncias farmaco-logicamente ativas podem ser incorpo-

radas, seja no compartimento aquosointerno (substâncias hidrossolúveis),seja nas membranas dos lipossomas(substâncias lipofílicas ou anfifílicas)(Frézard et al., 1999).

Métodos de preparo de liposso-mas e de encapsulação de fármacosforam relatados em inúmeros artigosincluindo algumas revisões em línguaportuguesa (Santos et al., 2002).

Destino dos lipossomasconvencionais

Os lipossomas convencionais (for-mados de fosfatidilcolina ou de surfac-tantes não-iônicos e de colesterol),quando administrados por via endove-nosa, são naturalmente capturadospelos macrófagos do sistema mono-nuclear fagocitário, principalmente dofígado, do baço e da medula óssea

Figura 2: Estrutura e composição de lipossomas unilamelares.

Esquema 6

Foto 1: Glucantime® é o medicamento comercializadopela Aventis, na forma de solução injetável, que contémo fármaco antimoniato de meglumina.

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(Frézard et al., 1999). Como ilustradona Figura 3, a administração de fárma-cos na forma encapsulada em liposso-mas resulta no aumento de sua con-centração nesses órgãos, assim comona redução da concentração em ór-gãos apresentando capilares contínu-os (rins, cérebro, coração, músculos).Depois da fagocitose, os lipossomassão degradados pelas fosfolipaseslisossomais e a substância é liberadanos fagolisossomas, podendo sedifundir para o citossol ou ser excretadapara o meio extracelular. A velocidadede liberação do princípio ativo pode sercontrolada pela manipulação tanto dacomposição da membrana (influen-ciando a velocidade de degradaçãodos lipossomas), quanto do tamanhodos lipossomas (influenciando a efi-ciência de captura pelos macrófagos).Assim, lipossomas pequenos serãocapturados com menor eficiência quelipossomas grandes, permanecerãomais tempo na circulação sanguíneae apresentarão uma liberação maisprolongada.

Destino dos lipossomas furtivosA descoberta recente de que o

destino in vivo dos lipossomas pode-ria ser controlado por meio da mani-pulação de suas características desuperfície constitui um dos principaisavanços da década de 90. Foi obser-

vado que a incorporação, na mem-brana dos lipossomas, de lipídeosacoplados a polímeros de etilenogli-col, altera sua interação com o am-biente, sendo o efeito mais importanteo impedimento dacaptura pelos ma-crófagos e a prolon-gação de sua pre-sença no organismo(Woodle e Lasic,1992). Em conse-qüência, esses tiposde lipossomas, cha-mados de “liposso-mas furtivos”, promovem uma pre-sença prolongada da substância nacirculação sanguínea e uma distribui-ção para outros órgãos além daque-les do sistema mononuclear fagoci-tário (Figura 3).

Potencial dos lipossomas notratamento da leishmaniose visceral

Em 1977-78, grupos ingleses eamericanos de pesquisa propuseramo uso de lipossomas convencionaiscontendo drogas leishmanicidascomo uma nova abordagem para otratamento da leishmaniose visceral(Black et al., 1977; Alving et al., 1978;New et al., 1978). Essa proposta foibaseada na observação de que anti-moniais pentavalentes encapsuladosem lipossomas eram de 200 a 700 ve-

zes mais eficazes do que a forma livreem modelos experimentais de leish-maniose visceral (hamsters, camun-dongos ou cães infectados por Leish-mania donovani). O aumento espe-

tacular da eficáciadessas drogas foiatribuído ao destinonatural dos liposso-mas por via endove-nosa, pois eles sãocaptados pelos mes-mos órgãos (o fíga-do, o baço e a medu-la óssea) e pelas

mesmas células (os macrófagos teci-duais) nas quais se localiza o parasita(Frézard et al., 2000, Schettini et al.,2003).

A anfotericina B também pode serincorporada em lipossomas, e estu-dos mostraram que a formulação daanfotericina em lipossomas é consi-deravelmente menos tóxica que aanfotericina livre (Davidson et al.,1996). Assim, os lipossomas conven-cionais apresentam-se como siste-mas ideais para direcionar drogasleishmanicidas para o local da infec-ção.

Potencial dos lipossomas notratamento da esquistossomose

Os primeiros estudos realizadoscom lipossomas convencionais admi-nistrados por via subcutânea eviden-ciaram a capacidade dos lipossomasde potenciar e prolongar o efeitoprofilático das drogas esquistos-somicidas oxamniquina, praziquantel,e tártaro emético (Esquemas 1 e 6).O efeito benéfico dos lipossomas foiatribuído às suas propriedades deliberação prolongada, resultando noaumento da biodisponibilidade doprincípio ativo.

Recentemente, um estudo comcamundongos, feito por pesquisa-dores da Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG), mostrou queé possível diminuir a toxicidez dotártaro emético e aumentar suaatividade contra S. mansoni (DeMelo et al., 2003). Ao invés deaplicar o antimonial diretamente nosangue dos camundongos, foi feitoo encapsulamento do tártaroemético nos lipossomas antes da

Figura 3: Destino dos lipossomas convencionais (1) e furtivos (2), na circulaçãosanguínea.

Lipossomas pequenos sãocapturados com menor

eficiência que lipossomasgrandes, permanecem mais

tempo na circulaçãosanguínea e apresentam

uma liberação maisprolongada

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injeção nos animais. Os pesquisa-dores constataram um aumento deeficácia do antimonial somentequando usavam os lipossomasfurtivos, que permanecem maistempo na circulação. Desse modo,aumenta-se a chance de a drogaser consumida peloS. Mansoni, que sealimenta de nutrien-tes do sangue. Amaior eficácia doslipossomas furtivos,quando compa-rados aos conven-cionais, foi atribuídaà biodisponibi l i -dade mais elevadado princípio ativo.

Quando submetidos a uma altadose de antimônio (27 mg Sb/kg),todos os camundongos (12/12) quereceberam o tártaro emético naforma livre morreram, enquantoaqueles que receberam a forma en-capsulada em lipossomas sobre-viveram. Conclui-se assim que oslipossomas furtivos reduzem a to-xicidez aguda do tártaro emético edirecionam com eficácia a droga aoS. mansoni durante o curso da in-fecção. Esse estudo mostrou, pelaprimeira vez, o efeito benéfico dosvetores furtivos no tratamento daesquistossomose mansoni.

ConclusõesO planejamento, a síntese e o

desenvolvimento de novos medica-mentos são, na maioria das vezes,processos demorados e muito dis-pendiosos. Para que um princípioativo se transforme em um medica-mento, ele deve passar por avalia-ções pré-clinicas (em animais) e,em seguida, por ensaios clínicos(em humanos), que são realizadosem quatro fases sucessivas, sendoque a liberação do medicamentodeve estar de acordo com asnormas das autoridades sanitárias.Nesse contexto, a estratégia derejuvenescimento de medica-mentos já caracterizados do pontode vista farmacológico, a qualconsiste no desenvolvimento denovas formulações farmacêuticas,torna-se vantajosa porque dispensa

muitas vezes a real ização deensaios pré-clínicos e a primeirafase dos ensaios clínicos.

A quimioterapia convencionaldas leishmanioses e da esquistos-somose apresenta várias limitaçõese precisa ser melhorada para

proporcionar umamaior taxa de cura emais conforto aospacientes. Mos-tramos, neste arti-go, que estratégiasterapêuticas, ba-seadas no uso delipossomas comoveículos de fárma-cos, podem serusadas no desen-

volvimento de novos medicamentosà base de antimônio para o trata-mento da leishmaniose e esquistos-somose. Por outro lado, na escolhado nano-sistema, é fundamentallevar em consideração tanto suabiodistribuição quanto as caracte-rísticas da doença, principalmentecom respeito à localização do para-sita.

Notas1. Termo usado em sentido figu-

rado para substituir a expressãosistema transportador de fárma-cos.

2. Célula mesodérmica formadapela adaptação funcional da célulaconjuntivo-vascular ou do glóbulomononuclear linfático ou sanguí-neo. Destina-se a englobar e digeriros corpos estranhos.

3. Estágio larval de certos nema-tóides, caracterizado por um corpoalongado terminado em ponto, comcauda, e ornado de cílios para seudeslocamento à procura de hospe-deiro intermediário.

4. Tipo de organização estruturaldos lipídeos na forma de bicamada.

Frédéric Frézard ([email protected]), doutor emCiências Biofísicas pela Université Paris VI, França,é professor adjunto do Departamento de Fisiologiae Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Uni-versidade Federal de Minas Gerais (UFMG). CynthiaPeres Demicheli (demichel@ dedalus.lcc.ufmg.br),bacharel e mestre em Química pelo Instituto de Ciên-cias Exatas da UFMG e doutora em Ciências-Quí-micas pela Université Paris XIII, França, é professoraadjunta do Departamento de Química da UFMG.

A estratégia derejuvenescimento de

medicamentos jácaracterizados do pontode vista farmacológico

torna-se vantajosa porquedispensa muitas vezes a

realização de ensaios pré-clínicos e a primeira fase

dos ensaios clínicos

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FERREIRA, C.S.; MARTINS, P.S.;DEMICHELI, C.; BROCHU, C.; OUELLE-

2005 é o Ano Mundial da FísicaA Assembléia Geral das Nações Unidas adotou, pela resolução A/58/L.62, que 2005 seria declarado o Ano Mundial

da Física. A idéia de se escolher este ano não veio ao acaso; ela está ligada a um fato de grande importância históricapara a Física Moderna: em 2005 estará sendo comemorado o centenário da publicação dos trabalhos de Einstein sobreo fóton, a relatividade especial, a relação massa-energia e o movimentobrowniano. Um dos principais objetivos do WYP2005 échamar a atenção do público em geral, mas especial-mente dos jovens, para a importância da Física nomundo contemporâneo.

A Sociedade Brasileira de Física lancou duas publi-cações dentre suas atividades para comemorar estadata: um número especial da Revista Brasileira de Ensinode Física onde estão traduzidos artigos originais deEinstein até o momento inéditos em português. Artigos derevisão sobre os temas estudados por Einstein tambémacompanham essa edição histórica da RBEF. Além disso,um número especial da revista A Física na Escola está sendopreparado. Contando com cerca de vinte artigos a respeitode Einstein, seus trabalhos e o estado da arte da Física nesteinício de século, a revista, voltada para professores do EnsinoMédio e estudantes de Licenciatura de cursos de Física eCiências, tem seu lançamento previsto para julho.

Saiba mais sobre o Ano Mundial da Física visitando o sítioda SBF no endereço

www.sbfisica.org.br/

Abstract: In this article we describe parasitic diseases which can be treated by antimony chemotherapy, along with some pharmacological aspects of antimony-based drugs. The main restrictionsof the presently used treatment and novel therapeutic alternatives are also discussed.Keywords: antimony, liposomes, leishmaniasis, schistosomiasis

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Nota