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Introdução

O cristianismo é religião de uma pessoa, de Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem para nos sal-

var. Na Exortação Apostólica Verbum Domini (VD) sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, o Papa emérito Bento XVI afirma: “veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar de a fé cristã não ser uma ‘re-ligião do Livro’”. Citando Bernardo de Claraval, ele conti-nua: “o cristianismo é a ‘religião da Palavra de Deus’, não de ‘uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo’” (VD, 7). Não sendo religião do Livro, o cristianis-mo também não é religião do culto. Essa verdade é muito importante nesta reflexão sobre o ser e o agir do presbítero hoje, que não é um homem do culto, mas seguidor e servi-dor de uma pessoa. Em sua primeira encíclica, Deus Caritas Est (DCE), o Papa emérito Bento XVI ensina: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE, 1). Os cristãos seguem um sacerdote, um único sacerdote, Jesus Cristo, o sumo e eterno Sacerdote.

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No sacerdócio de Cristo se entende todo tipo de sacerdócio exercido na Igreja, povo de sacerdotes (Ap 1,6; 5,10; 20,6), “raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus” (1Pd 2,9). No único sacerdócio de Cristo, pelo batismo, todos na Igreja são sacerdotes, com a missão de oferecer a vida como culto agradável a Deus. O sacerdócio batismal fundamenta os três múnus de todo fiel, o da profecia, o da liturgia e o da realeza. Todo batizado é ungido para ser, como Cristo, profeta, sacerdote e rei. O sacerdócio batismal é fonte para todo e qualquer carisma e ministério. Todo batizado, inserido no sacerdócio de Cristo, recebe do Espírito Santo inúmeros dons para a edificação da Igreja.

Para o bom conhecimento do ser e do agir do padre hoje, convém entender a relação especial existente entre o sacerdócio de Cristo, o sacerdócio dos fiéis e o dos presbí-teros. A vida e o ministério dos padres são prolongamento do sacerdócio de Cristo e de sua missão salvífica a serviço dos fiéis. Há um nexo místico entre o sumo sacerdote Jesus Cristo e seus presbíteros-padres-sacerdotes. Daí a necessida-de de se reconhecer a origem divina da vocação sacerdotal para se poder entender a vida e o ministério dos presbíteros.

Logo de início são necessários alguns esclarecimen-tos. Primeiro, não só os padres são sacerdotes. Todos os ba-tizados também o são, ainda que de outra forma. Todos os batizados, por participarem do único sacerdócio de Cristo, constituem o povo sacerdotal. Os batizados são sacerdo-tes no seu ser, enquanto configurados a Cristo, enxertados em seu Corpo, a Igreja, como membros vivos de Cristo, Caminho, Verdade e Vida. Os batizados são sacerdotes em seu agir, porque no exercício dos três múnus agem em nome

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de Cristo, quando santificam suas vidas e o mundo com os sacramentos da Vida; quando ensinam e praticam a palavra da Verdade; quando servem os necessitados no Caminho da caridade. Por isso, ao chamar os padres de sacerdotes não se pode esquecer que o seu sacerdócio é um serviço ao sacer-dócio comum dos fiéis. Sobre a relação entre o sacerdócio comum dos batizados e o sacerdócio ministerial dos padres, diz o Concílio Vaticano II na Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG) sobre a Igreja: “O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico ordenam-se um ao outro, embora se diferenciem na essência e não apenas em grau. Pois ambos participam, cada qual a seu modo, do úni-co sacerdócio de Cristo. O sacerdote ministerial, pelo poder sagrado de que goza, forma e rege o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o povo. Os fiéis, no entanto, em virtude de seu sacerdócio régio, concorrem na oblação da Eucaristia e o exercem na recepção dos sacramentos, na oração e ação de graças, pelo testemunho de uma vida santa, pela abne-gação e pela caridade ativa” (LG, 10). Os padres, portanto, são sacerdotes, enquanto servidores do sacerdócio dos fiéis.

Segundo, os padres não são só sacerdotes; eles tam-bém são profetas e pastores. Ser sacerdote é uma das mis-sões do padre, aquela que o caracteriza mais e pela qual ele é mais chamado em causa: homem do culto, administrador dos sacramentos, presidente da missa e oficiante da oração cristã. Mas ele não é só isso. Considerá-lo apenas como sa-cerdote é reduzir sua missão ao altar, à oferta do sacrifício eucarístico, esquecendo que ele é também homem do púl-pito e da praça, homem da Palavra a ser anunciada e do pobre e do povo a serem servidos. Seu sacrifício, unido ao

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de Cristo, tem uma dimensão mais ampla. É o sacrifício de sua vida em todos os momentos e em todas as suas ações. O Concílio Vaticano II, no decreto Presbyterorum Ordinis (PO) sobre a vida e o ministério dos sacerdotes, reconhece essa amplitude do ministério presbiteral, dizendo que os padres são ministros da Palavra, da liturgia e da comunidade (PO, 13). É específico do ministério presbiteral “levar à perfeição a edificação do Corpo, mediante o sacrifício eucarístico” (LG 17), pois “para que os fiéis formassem um só corpo, no qual ‘nem todos têm a mesma função’ (Rm 12,4), [o Senhor] constituiu, dentre eles, alguns como ministros que, na socie-dade dos crentes, possuíssem o poder sagrado da Ordem, para oferecer o sacrifício e para perdoar os pecados” (PO, 2). Mas, para serem aptos à presidência da Missa, fonte e ápice da vida cristã [Sacrosanctum Concilium (SC), 10], os presbíteros devem exercer cotidianamente os três múnus. Na celebração da Eucaristia, banquete e sacrifício, eles con-centram esses três múnus, pois pregam a Palavra de Deus, oferecem o sacrifício eucarístico e reúnem a comunidade cristã. Portanto, além de serem sacerdotes, ministros do cul-to e da liturgia, eles devem exercer o ministério de profeta: pregar a Palavra, explicar o Credo, coordenar o serviço da catequese, fortalecer os fiéis na prática dos mandamentos, promover cursos de formação bíblico-teológico-doutrinal para as lideranças, chamar a atenção da sociedade para os valores do Evangelho. Eles devem exercer também o minis-tério de pastor: guiar a comunidade, coordenar a obra pas-toral, animar os fiéis no exercício da caridade cristã, tomar decisões favoráveis à vida do povo, servir os pobres. Por isso, o Concílio Vaticano II prefere o nome bíblico de presbítero, que significa: o ancião, o mais velho, aquele que tem mais

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experiência, que é mais integrado, autorizado e, por isso, o mais importante, aquele que está em posição de honra ou destaque. É esse o título que preferimos usar neste livro.

Terceiro, os presbíteros são sacerdotes como e com todos os fiéis. Antes, e mais que serem sacerdotes pelo sa-cramento da ordem, eles são sacerdotes pelo sacramento do batismo. Santo Agostinho, citado na Lumen Gentium, assim se referia à dignidade dos leigos: “Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo; convosco sou cristão. Aquilo é um dever; isto é uma graça. O primeiro é um perigo; o segundo, salvação” (LG, 32). Ser padre sem o povo ou acima do povo é um perigo e risco de condenação! Pode levar ao risco do orgulho, do colocar-se num pedestal, a partir de onde se julga e se con-dena quem não consegue viver nas alturas da fé. É o risco da hipocrisia dos fariseus e doutores da Lei e dos sacerdotes do Templo na época de Jesus. Ao contrário, ser padre com o povo e a serviço do povo, no seguimento de Cristo e a exemplo de Cristo, é salvação. É a certeza de se estar no caminho e no meio do povo, junto de quem o próprio Jesus se encontra. Uma graça inefável!

O presbítero é um homem tirado do meio do povo sacerdotal, do meio do mundo, para ser consagrado ao ser-viço de Deus, para servir aos fiéis da Igreja e ao mundo e colaborar com todos na edificação de Reino de Deus. “Todo pontífice é escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus” (Hb 5,1).

Por isso, o conhecimento das realidades do mundo e da Igreja e de seus desafios é o primeiro passo para se falar do que é ser padre hoje. O primeiro capítulo desta reflexão

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trata dos desafios sociais, eclesiais e pessoais, analisados na ótica do amplo fenômeno do pluralismo religioso, que o pa-dre tem de enfrentar nos dias atuais no seu ser e agir, no seu mistério e ministério presbiteral. É a etapa do ver, do situar o presbítero. O ser do padre só pode ser entendido no mistério de Deus. Ele exerce a autoridade de Deus Pai, na configura-ção e no modelo de Jesus Cristo, ungido pelo Espírito Santo.

O segundo capítulo traz os elementos fundamentais da teologia do presbiterato, do mistério, do ser do presbí-tero, no modelo e no seguimento do único, sumo e eterno sacerdote, Jesus Cristo, conforme o magistério da Igreja e a teologia dos grandes mestres. É a etapa do julgar, do ser do presbítero.

O presbítero dos nossos tempos tem como centro de sua missão o exercício da caridade pastoral. Igual a to-dos os cristãos na cidadania batismal, deles se difere pelo ser configurado a Cristo Cabeça e inserido de modo mais íntimo ao mistério trinitário, cristológico e pneumatológico. Uma diferença que se reflete no exercício do ministério di-vino-humano, na oração e na ação, na entrega sacrifical, na atitude de diálogo com os valores do mundo e na descon-fiança ético-profética diante das práticas desumanas.

O terceiro capítulo apresenta caminhos práticos do ministério, do agir presbiteral, no seguimento de Jesus Cristo, Bom-Pastor, no serviço à Igreja e ao Reino. É a etapa do agir do presbítero.

Nossa reflexão se baseia no modo como o Beato João Paulo II entende o enraizamento do ser e do agir do presbítero. Na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis (PDV) sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais ele ensina: “A relação do sacerdote com Jesus Cristo

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e, nele, com a sua Igreja situa-se no próprio ser do presbítero, em virtude da sua consagração/unção sacramental, e no seu agir, isto é, na sua missão ou ministério” (PDV, 16). Mistério e ministério são as palavras-chave de João Paulo II para enten-der a pessoa do presbítero e a comunhão do presbitério: “Na sua verdade plena, o presbitério é um mysterium: de fato, é uma realidade sobrenatural porque se radica no sacramento da Ordem. Este é a sua fonte, a sua origem. É o ‘lugar’ do seu nascimento e crescimento […]. Esta origem sacramental reflete-se e prolonga-se no âmbito do exercício do ministé-rio presbiteral: do mysterium ao ministerium” (PDV, 74). As atuais Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil (DFPIB) acrescentam: “Do ser configurado com Cristo decorre um agir conforme ao de Cristo” (DFPIB, 50).

Situar, ser e agir. Mundo, mistério e ministério. No mundo em que o padre se situa, ele se configura no ser e no mistério de Cristo para agir no ministério de Cristo e da Igreja a serviço do Reino.

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Para tratar dos presbíteros como discípulos missionários de Jesus Bom-Pastor, o Documento de Aparecida reco-

nhece a necessidade de partir da realidade. “Um olhar ao nosso momento atual nos mostra situações que afetam e de-safiam a vida e o ministério de nossos presbíteros” (DAp, 192). A fé cristã enfrenta em nossos tempos muitos desafios, que tocam de modo especial o ser e o agir dos padres. No iní-cio do terceiro milênio, os católicos em geral e, sobretudo, os presbíteros, são chamados por Deus e provocados pela reali-dade histórico-social em que vivem a darem passos gigantes-cos para poderem acompanhar as mudanças socioculturais.

Vivemos uma mudança de época. “No emaranha-do dessa mudança de época, destacam-se algumas trans-formações entrelaçadas cujas consequências é necessá-rio mensurar sempre, seja em extensão social, grupal, seja em profundidade no coração e na mente dos indivíduos” (DFPIB, 16). As Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil apresentam diversas mudanças que afetam e desafiam a vida dos presbíteros. Há mudanças referentes ao uso do tempo, à comunicação, à economia, à realidade

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urbana, à ecologia. Há mudanças relativas à autoridade e ao poder, a aspectos vitais e afetivos, à prática religiosa etc. (DFPIB, 14-32). Tudo isso balança com a vida e o ministério dos presbíteros de hoje. Para os temas do “ser” e do “agir” do padre hoje interessa-nos, dentre todas essas mudanças, o amplo fenômeno do pluralismo religioso, em cuja ótica to-das as outras realidades poderão ir sendo retomadas.

1.1. Desafios sociais

Uma das características do mundo moderno é a plu-ralidade. As pessoas têm visões diferentes, até contraditórias, sobre cada assunto. À pluralidade de visões corresponde também uma pluralidade de compromissos, participações, interesses. Isso se dá na esfera pessoal e familiar, política e social, econômica e cultural, artística e profissional, enfim, em qualquer campo em que esteja presente o ser humano moderno. E também no campo religioso!

Como este livro pretende refletir sobre o ser e o agir do presbítero nos dias de hoje, convém que iniciemos falan-do do mundo que nos cerca. No entanto, todos os desafios, quer sejam de ordem social, eclesial, quer pessoal, serão en-focados no horizonte do pluralismo religioso, tema que afeta de modo direto e cotidiano o ser e o agir do presbítero.

Em sua oração sacerdotal, Jesus reconhece diante do Pai que seus apóstolos devem situar-se no mundo, sem ser do mundo, dispostos a assumir as provações e tribula-ções do mundo (Jo 17,14-16). Um dos grandes desafios ao ser e ao agir do presbítero de hoje refere-se à sua inserção na cultura atual. Diz o Documento de Aparecida: “O presbíte-ro é chamado a conhecê-la para semear nela a semente do

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Evangelho, ou seja, para que a mensagem de Jesus chegue a ser uma interpelação válida, compreensível, cheia de es-perança e relevante para a vida do homem e da mulher de hoje, especialmente para os jovens” (DAp, 194).

Expressão característica da cultura atual é o plura-lismo religioso. Na exposição do ser e do agir do presbítero hoje, convém conhecer os fenômenos, expressões e mo-vimentos religiosos. O que são, como se caracterizam, em que se fundamentam, o que querem? Como identificá-los e distingui-los entre si? Que referenciais temos para julgá--los? Por que surge nos nossos tempos essa constelação de expressões e fenômenos humanos na busca do Absoluto? O conhecimento vai levar à ação: em que medida esse fenô-meno do pluralismo religioso ajuda ou atrapalha o anún-cio e a realização do Reino de Deus? No caso da vida e da missão dos presbíteros, que são discípulos e missionários de Jesus Cristo, Bom-Pastor, e o seguem de perto no anúncio do Reino da vida e da liberdade, convém perguntar-se como eles se situam neste mundo do pluralismo religioso: servem--se dele para aprisionarem-se a si mesmos e ao povo católico em ideias fixas, inseguranças, medos? Ou em sistemas cle-ricais antigos? Ou em novos esquemas – fundamentalistas, esotéricos, gnósticos? Ou, ao contrário, manejam-no como fator de libertação para assumir desafios, para sugerir novas propostas de evangelização e proclamar com mais vigor e coragem a graça da salvação em Jesus Cristo? Que atitu-des os presbíteros tomam diante dessas novas expressões? Como ser evangelizadores da pessoa e obra de Jesus Cristo e da vinda do seu Reino em meio a tantas propostas reli-giosas? Assumirão o caminho de um diálogo fácil, correndo o risco de simplesmente adequar-se à cultura dominante,

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esvaziando assim a dinâmica escandalosa do Evangelho? Terão uma atitude de antipática desconfiança, distanciando--se cada vez mais do mundo, do terreno onde devem se-mear o Evangelho? Ou, em vez de fazer uma escolha força-da e extremada por um só dos dois caminhos – diálogo ou desconfiança –, poderão eles buscar o equilíbrio e criar e trilhar um caminho mais rico e pleno?

Na busca desse caminho, importa voltar à pessoa e prática de Jesus de Nazaré. No anúncio do Reino, Ele tomou como ponto de partida o mundo que o cercava, detendo-se na dimensão religiosa. Quanto mais religioso Ele era e quanto mais religiosa se configurava sua missão, tanto mais aberto Ele foi ao diálogo com o diferente de si e tanto mais crítico dos poderes do antirreino. Quanto mais religioso, tanto mais crítico do poder político do Império Romano e do poder ideológico dos sacerdotes do Templo e dos doutores da Lei. Na condenação das práticas e pre-conceitos religiosos que impediam o povo de experimentar a verdadeira liberdade de filhos e filhas de Deus, Ele não poupou nem mesmo as instituições religiosas (o Templo: Jo 2,13-22; a Lei: Mt 5,17-48; a esmola, a oração e o jejum: Mt 6,1-18; os sacrifícios: Mt 9,13; 12,6-7; o sábado: Mc 2,23-28; 3,1-6; as tradições humanas: Mc 7,1-12; o ensinamento dos fariseus: Mt 23,1-36). Foi contundente na censura aos sacerdotes e fariseus que, sendo responsáveis pela reli-gião, em vez de levarem as pessoas ao encontro com Deus, oprimiam o povo com a observância legalista da Torá e a prática sacrificialista no Templo. Tornavam-se maus pas-tores, abandonavam o povo, deixando-o abatido, desani-mado, como ovelhas sem pastor (Mc 6,34; Mt 9,36). Essa prática religiosa de Jesus, que enfrentava a incoerência e

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a perversidade do poder religioso, deverá tornar-se o crité-rio para que os presbíteros de hoje se situem no complexo mundo do pluralismo religioso.

A pluralidade de visões e de interesses no campo religioso afeta a todos os católicos, particularmente os pres-bíteros, agentes religiosos por excelência. Acontece, porém, que eles foram e ainda são formados numa mentalidade e prática por demais marcada pelos valores da pré-moderni-dade, em que a religião era o carro-chefe da cultura e Deus estava no centro de todas as relações. Não se pode, tam-bém, esquecer que no Ocidente, no regime pré-moderno da cristandade medieval que chegou até os nossos tempos, a Igreja Católica sempre esteve à frente da organização da sociedade, da formação do pensamento, da divulgação das ideologias, do controle dos comportamentos. Nesse regime, não havia lugar para a pluralidade. Tudo era determinado pelo sentido da unidade ao redor da única religião, o catoli-cismo, ficando as outras religiões ou igrejas cristãs excluídas do manuseio público dos bens religiosos.

Nessa situação, o padre era considerado o único agente religioso a ser ouvido e consultado. Não havia concor-rentes. Ele era respeitado por todos e detinha poder ideoló-gico em todos os campos da atividade humana. Isso era mais evidenciado nas pequenas cidades, nos bairros e nas perife-rias urbanas. Além das relações propriamente eclesiais e pas-torais, determinava sobre as relações familiares (o número de filhos, a autoridade dos pais, a obediência dos filhos), sobre a sexualidade de seus fiéis (a castidade dos jovens, a relação sexual dos casados), sobre as reviravoltas públicas (o exercício das autoridades políticas, o candidato a ser votado, os bura-cos das ruas a serem cobertos), sobre os valores culturais (a

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moda, os costumes, o horário dos bailes). Não havia espaço da atividade humana de seus fiéis que ficasse fora de sua au-toridade e julgamento.

Embora essa onipresença já não seja mais levada em conta nem por eles mesmos nem pelos seus fiéis, é fato, porém, que há ainda resquícios dessa relação. Há presbíte-ros que se julgam senhores da vida particular e pública de seus fiéis, com domínio sobre a consciência e a liberdade das pessoas. Há fiéis, embora em número cada vez menor, que esperam, passivamente, de seus padres as ordens e de-terminações a serem seguidas nesta ou naquela situação, neste ou naquele conflito.

A formação para a pluralidade e a inserção num mundo de valores plurais é desafiante. Exige estudo para conhecer as mentalidades e práticas diferentes das nossas. Exige capacidade e disposição para o diálogo. Não aceita nem a intolerância nem o irenismo. Não se casa nem com o comodismo nem com o ativismo. Nesse sentido, será preciso dar mais atenção à formação para a pluralidade. Tanto na formação inicial e permanente dos presbíteros como no próprio exercício do ministério, há que se ter em conta a necessidade de acostumar-se a colocar-se diante do diferente, numa atitude de respeito e diálogo, ao mes-mo tempo sem imposições e sem medos. É o que sugerem as Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil: “Os programas de formação devem dedicar aten-ção ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, ajudando os presbíteros a melhor conhecerem e situarem-se na rea-lidade religiosa plural do nosso tempo, desenvolvendo a capacidade do diálogo e da cooperação, como orienta o Magistério da Igreja” (DFPIB, 359).

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1.2. Desafios eclesiais

Entre os desafios eclesiais a serem enfrentados pe-los presbíteros encontram-se: o exercício da tarefa pastoral em comunhão com o bispo e os demais presbíteros; a má distribuição de presbíteros pelas dioceses; a identidade teo-lógica do ministério presbiteral; o peso das estruturas ecle-siais; o afastamento de católicos; a urgência de conversão pastoral; a existência de paróquias muito grandes, difíceis de serem adequadamente atendidas, ou de paróquias muito pobres que obrigam os presbíteros a outros tipos de tarefas para poderem subsistir, ou de paróquias situadas em áreas de violência e insegurança (DAp, 197; DFPIB, 23-30).

Com o Vaticano II, a Igreja entrou na modernidade. Mas, apesar das mudanças havidas, não se pode esperar que mil anos de mentalidade e prática sejam, sem mais nem me-nos, deixados de lado. O passado continua presente, pela lei da inércia, em muitas das estruturas eclesiais, ritos litúrgicos, normas canônicas, valores morais, práticas pastorais. Está no inconsciente coletivo do povo católico e de suas lideranças.

Além da inércia do passado da cristandade antiga e medieval, acresce-se o fato de que entramos na modernidade com um espírito muito otimista no valor da razão, da ciência e da técnica. A reflexão teológica e a ação pastoral se torna-ram por demais racionalistas, científicas, técnicas. Com muita força, a razão entrou na mentalidade e no ministério de pres-bíteros, afetando assim sua própria personalidade e identidade. No campo da pastoral em geral, passaram a ter grande espaço as ciências da metodologia, da estatística e da comunicação, entre outras. Na gestão paroquial, contam as ciências da admi-nistração, do planejamento, da contabilidade, da engenharia empresarial etc. Na pastoral bíblica e catequética, entraram as ciências da linguística, da didática e da pedagogia. Na teologia

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da libertação, nas comunidades eclesiais de base e nas pasto-rais sociais, exerceram bastante peso as ciências sociais, políti-cas e econômicas. Sem dúvida, esse casamento da teologia e da pastoral com a ciência moderna trouxe grande riqueza. Mas o fato de estas ciências terem sido assumidas, muitas vezes, sem critérios firmes de discernimento, fez com que se perdesse mui-to do sentido da mística e da espiritualidade, da religiosidade popular e do cotidiano, da emoção e do sentimento. São valo-res que agora, por força das exigências da pós-modernidade, se está querendo resgatar.

Sabe-se hoje como é importante resgatar a dimen-são afetivo-emocional que interessa mais aos indivíduos e que no passado esteve subjugada ao peso da dimensão lógico--racional como fator de força à instituição. Valorizou-se muito a cabeça, o pensamento, as definições, as normas, os cargos. Esqueceu-se o coração, o sentimento, as relações. Nas ativi-dades pastorais e evangelizadoras, é preciso voltar a ser como Jesus: um homem de relações, de afetos, de atenções. Ou seja, alguém que soube dar grande realce àquilo que se acha-va de menor valor. Sem cair no outro extremo, desvalorizan-do a importância do raciocínio e da organização das ideias e da estruturação comunitária e social, será preciso no futuro trabalhar mais equilibradamente razão e emoção, cabeça e coração! As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, para o período de 2011 a 2015, ao tratarem da vi-vência do tríplice múnus – Palavra, Liturgia e Caridade – no âmbito da pessoa, propõem: “Não podemos deixar de reco-nhecer e valorizar cada pessoa, em sua liberdade, autonomia, responsabilidade e dignidade. A ação evangelizadora implica, antes de tudo, respeitar, defender e promover a dignidade de todas as pessoas” (DGAEIB, 130a).

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A experiência do pós-Vaticano II mostrou que de fato não se estava preparado para o encontro com o diferente. Acostumados ao domínio e monopólio da verdade sobre to-dos os temas, os cristãos, principalmente os presbíteros e as lideranças mais engajadas nas estruturas pastorais, caíram em estado de perplexidade, manifestada nos mais diversos e contraditórios tipos de comportamento: crise de identidade, justaposição dualista de valores, duplicidade de vida, aban-dono do ministério, intolerância arrogante, apatia e perda do entusiasmo, medo da insegurança.

Nesse clima, surgem diferentes saídas de solução. Duas delas que o senso comum, mais ainda o senso cristão, rejeitam. Alguns pretendem voltar ao que era antes, com saudades das cebolas do Egito (Nm 11,5), onde, pelo preço do centralismo pi-ramidal, contava-se com seguranças e certezas. É a atitude dos que vivem ainda submetidos ao mundo, a proibições do tipo: “Não pegues! Não proves! Não toques!” (Cl 2,20-21). Fixam-se no ritualismo litúrgico, na rigidez das leis e orientações pasto-rais, na rudeza da autoridade, no apego ao poder, na pastoral centralizadora, na produção exagerada de documentos que definem ordens para todos os setores da vida cristã. É a “pasto-ral do tacape”. Sem a estabilidade de uma espiritualidade firme e de uma teologia segura, busca-se no neoconservadorismo a força de tradições que compensem suas fraquezas históricas. O apego ao poder e às tradições faz que muitos presbíteros con-centrem suas preocupações no aparato das alfaias litúrgicas, na aparência da veste clerical, na garantia de cargos e títulos. Há os que, num simulacro de inculturação e de reação ao pen-tecostalismo reinante, fazem miscelânea entre devoções anti-gas e devocionismos modernos, introduzindo no próprio ritual da missa elementos estranhos à grande tradição litúrgica, tais

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como procissões com o Santíssimo Sacramento, práticas exor-cistas, repousos no Espírito, curas de libertação etc.

Outros se soltam na ânsia novidadeira da experiência, em que, pelo preço da renovação, abandonam pontos essen-ciais da fé e da moral cristãs. Não suportando a sã doutrina, deixam de ouvir a verdade, seguem seu próprio gosto, cercam--se “de uma série de mestres que só atiçam o ouvido” (cf. 2Tm 4,3-4). Apegam-se a doutrinas enganadoras, iludem-se com doutrinas diabólicas (1Tm 4,1-2). Vivem arriscando experiên-cias, topam tudo, trazem para dentro das comunidades todo tipo de movimentos, vão atrás de qualquer notícia sobre apa-rições, visões e novas revelações, apegam-se a emoções e ale-luísmos baratos, agarram-se a qualquer nova teoria pastoral e espiritual, fazem qualquer tipo de curso oferecido no mercado religioso. Desorientados, buscam segurança no ar. É a “pastoral de biruta de aeroporto”. Um bom número de presbíteros sente--se perdido, não encontra um eixo de referência para sua vida espiritual e para seu ministério pastoral. Como têm mostrado diversas pesquisas junto ao clero do país e do mundo, há os que se lançam de tal modo no ativismo desenfreado que pade-cem da doença chamada Síndrome de brunout, da exaustão, da sobrecarga própria de lâmpadas queimadas; não respon-dem mais aos desafios que se lhes propõem e não conseguem mais iluminar o ambiente em que vivem. Outros se perdem em compromissos de tal modo individualizantes, como o culto ao corpo em academias, o acesso ininterrupto às redes sociais, o consumo de alfaias clericais etc., que não lhes sobra tempo para o cultivo espiritual e o labor pastoral.

Uma terceira atitude, exigida pela própria dinâmica da evangelização, é a mais difícil. Trata de garantir os fun-damentos da fé, na disposição do diálogo e da inculturação,

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no enfrentamento dos desafios, na derrubada de legalismos e moralismos. Mas, tudo isso, a que preço? Há quem se perca no desgaste e no cansaço, lançando-se à ação sem a colheita dos frutos. Há quem experimente a paciência irênica e pre-guiçosa, deixando tudo como está para ver como é que vai ficar. Permanecer firmes em meio às mudanças de nosso tem-po não é algo possível a quem se deixe levar pelas ilusões do momento. A concentração da espiritualidade pessoal e pres-biteral na pessoa de Jesus Cristo; a paciência histórica que constrói as bases de um novo tempo sobre os valores perenes do humano e do evangélico; o mergulho nas profundidades da grande tradição bíblica e teológica e magisterial; o retorno às propostas de aggiornamento do Concílio Vaticano II; a bus-ca de uma pastoral centrada na eclesiologia da comunhão, a superação da mentalidade piramidal e da prática focada no poder; o estudo aprofundado e crítico dos grandes temas que afetam a ação pastoral, como o lugar da mulher e do jovem, a relação da fé e da moral cristãs com os avanços científicos nas áreas da biotecnologia e da sexologia; a abertura para o diálogo com as ciências e filosofias que estão na tela dos de-bates atuais; o encontro com líderes e membros de expres-sões religiosas não cristãs; a participação em celebrações e reuniões com outras denominações eclesiais…; tudo isso são desafios urgentes a serem enfrentados pelos presbíteros atuais em diálogo crítico e profético com o mundo contemporâneo.

1.3. Desafios pessoais

Um dos desafios salientados pelas Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil refere-se ao modo como as pessoas e, notadamente, os presbíteros vivenciam a

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religião. “Na área da religiosidade, frequentemente se busca uma espiritualidade difusa, que oferece satisfações emotivas, proximidade e conforto interior. Por vezes, constata-se a falta de vida espiritual intensa fundada na caridade pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão com os irmãos” (DFPIB, 21). O tema do pluralismo religioso e dos novos movimentos e expressões religiosas é particularmente desafiador quando se trata da pluralidade pós-moderna. A re-ligião esteve represada no passado. Na pré-modernidade foi coordenada pelo clero católico num regime de uniformidade centralizadora. Na modernidade foi sufocada pela razão cien-tificista e tecnocrática. Agora ela encontra vazão na cultura pós-moderna da busca da satisfação imediata das emoções e prazeres. Como os outros campos da atividade humana, ela entra no mercado, na moda e na mídia, tendo que se adequar às leis da livre iniciativa, da oferta e procura, da concorrência e do lucro, sob pena de perda de seu sentido mais sublime e profundo, a relação com o Absoluto.

Neste novo tempo, os presbíteros não são mais os únicos agentes da função religiosa. Concorrem com pasto-res, pais de santo, magos, esotéricos, iluminados, mestres, bruxos... Não só. Qualquer pessoa, pertencente ou não a uma denominação religiosa, tem o que dizer sobre religião. No espaço aberto pela pós-modernidade, cada pessoa é su-jeito de suas escolhas religiosas. Pode formatar para si, pela montagem de peças tomadas de cá e de lá, uma religião própria. Não só individual, mas também invisível aos olhos dos outros. Uma religião sem pertença, sem instituição, sem doutrina, sem moral, diferente de qualquer das grandes reli-giões conhecidas. Há também muitos que, mesmo se decla-rando membros desta ou daquela religião, vivem uma espé-cie de cisma particular, achando-se na liberdade de aceitar

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e acatar ou rejeitar elementos, até mesmo fundamentais, de sua igreja ou instituição religiosa.

Enfim, o pluralismo religioso e ético da sociedade atual leva as pessoas a fazerem da religião um assunto privado. Trata-se do casamento entre o individualismo e o mercanti-lismo. Numa sociedade de mercado livre, a religião tornou--se artigo de compra e venda. No supermercado de ofertas religiosas, cada um pega o que quer, o que mais lhe agrada, o que poderá vir a solucionar suas crises afetivas e financeiras. Busca-se uma religião de resultados, de terapia, de consolo. Esse modo de conceber a religião põe o cristianismo diante de um grande desafio. Como anunciar o Evangelho do amor de Deus Pai num mundo em que a comunidade e a gratuida-de perdem sentido? Tudo hoje tem que passar pelo crivo do indivíduo e do dinheiro. Mas não é o cristianismo a religião da vida comunitária e da gratuidade?

As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAEIB), que compreendem os anos de 2011 a 2015, colocam a alteridade e a gratuidade como atitudes do discípulo missionário. Isso vale, com mais razão, para os presbíteros. “Alteridade se refere ao outro, ao próximo […]. É o reconhecimento de que o outro é diferente de mim, e esta diferença nos distingue, mas não nos afasta. As diferenças nos atraem e complementam, convidando ao respeito mú-tuo, ao encontro, à partilha e ao intercâmbio da vida e à so-lidariedade […]. Gratuidade significa amar, em Jesus Cristo, o irmão e a irmã, respondendo, através de atitudes fraternas e solidárias, a grande questão proposta a Jesus: ‘quem é o meu próximo’ (Lc 10,29). […] Gratuidade e alteridade, como expressões do Amor, são fontes de paz, reconciliação e fra-ternidade” (DGAEIB, 8-10).

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Neste mundo religiosamente plural, os presbíteros são chamados a alargar seu cérebro e coração. Não podem ser somente agentes da função religiosa. Não podem ser nem magos nem marqueteiros. São chamados a serem místicos, a estarem à frente de todos no caminho da santidade. Inseridos nessa rede de opções religiosas, os presbíteros – e os cristãos em geral – são chamados ao discernimento. Há uma contradi-ção entre a proposta do mundo e o projeto de Jesus. Disso, Ele mesmo nos alertou: “Eles (seus discípulos) não são do mundo, como também eu não sou do mundo” (Jo 17,16). No início de seu evangelho, João diz: “[O Verbo]... Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu” (Jo 1,10). Hoje, como sempre, esse mundo continua a recusar e a perseguir a Jesus e seu Evangelho. Como anunciar, então, o Evangelho da alteridade e da gratuidade?

Duas respostas são tentadoras: a magia e o marketing. Parece que conseguem atrair pessoas a Cristo e resolver o problema da contradição do mundo. Mas, no fim, se vendem ao mercado das ilusões individualistas.

A magia é fuga da alteridade, da comunidade. Trata o Evangelho como algo que se pode adquirir à custa de sa-crifícios, promessas e ofertas. Tira a pessoa da comunidade para colocá-la a sós diante de Deus, para barganhar com Deus, para comprar as graças e bênçãos e milagres de Deus. Serve-se da força dos palavrórios humanos e de devocionis-mos baratos, para resolver um problema pessoal, para alcan-çar uma cura, para superar uma crise etc., e até para adquirir um ingresso antecipado para o céu. Esquece que Evangelho não se compra, vive-se! O Evangelho de Jesus Cristo é a vinda gratuita de Deus a nós, é a encarnação de Deus que vem ao nosso encontro. No cristianismo, não precisamos

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mais buscar a Deus com os nossos próprios meios; devemos, isso sim, deixar-nos encontrar por Ele. Deixar que Deus seja Deus, que Ele opere em nós e através de nós. Que seja Ele a fazer, em nós e por nós, as suas maravilhas. Por mais que o cristianismo, como qualquer religião, implique uma busca de Deus, é preciso voltar sempre ao específico do Evangelho cristão: Deus já veio até nós, Deus já nos salvou em Cristo. Em vez de viver pedindo a Deus a solução de nossos proble-mas, tratando-o como pronto-socorro, quebra-galhos e tapa--buracos, fazendo do cristianismo uma religião de resultados, deveríamos nos comprometer com Deus, tornando-nos seus colaboradores, cocriadores de seu mundo, anunciadores de seu Reino. Pois, se Deus já nos salvou, se Ele tanto nos amou até nos dar seu Filho único, “também nós nos devemos amar uns aos outros” (1Jo 4,11). Em vez de uma religião de magia, de resultados, o cristianismo é uma religião de relação com Deus e com os irmãos, é uma religião de compromisso com a transformação do mundo.

O marketing é fuga da gratuidade. Trata o Evangelho como coisa, como algo que nos pertence, que podemos pôr à venda. Esquece que Evangelho não se vende, anuncia-se! O Evangelho é dom de Deus para todos, “diante de Deus, não há distinção de pessoas” (Rm 2,11), mas quer que “todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). O Evangelho não é um produto que se possa pôr à venda. Ele pertence à ordem da gratuidade de Deus. Não é pela força de muita publicidade, pela exposição espetacular e pelo poder de imposição do mercado, que o Evangelho en-trará no coração das pessoas. O Evangelho é como uma pe-quena semente, um tiquinho de fermento, uma pitada de sal. Ele entra nas pessoas como a chuvinha fina. Pode acontecer

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que pessoas fiquem maravilhadas com manifestações triun-fantes da Igreja. Mas, é pela simplicidade do testemunho, pela convivência cotidiana com os cristãos, pela pertença a uma simples comunidade de fé, a um pequeno grupo de re-flexão e oração, que elas haverão de se converter ao Cristo. Por mais que precise ser “publicado de cima dos telhados” (Lc 12,3), através dos poderosos meios atuais de comunica-ção, o Evangelho, na verdade, entra pelos ouvidos, atrai pela simplicidade, serve-se de meios pobres. Basta, aqui, recordar que a fraqueza humana foi o poderoso meio de evangelização do grande missionário São Paulo. O adjetivo “fraco” (no singu-lar e no plural) é comum em suas cartas. Por exemplo: “Fiz-me fraco com os fracos, a fim de ganhar os fracos” (1Cor 9,22). A palavra “fraqueza” (no singular e no plural) é um termo pe-culiar de Paulo. Em toda a Bíblia, ela aparece só duas vezes fora dos escritos paulinos. Nestes (contando também a Carta aos Hebreus, de corte paulino), a palavra “fraqueza/fraque-zas” aparece mais de 15 vezes. Por exemplo: “Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas per-seguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sinto fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10). Bem se vê que para Paulo o Evangelho não pertence à ordem humana, não é produto de mercado. Ele não se estabe-lece pela força do dinheiro, do poder e de outras idolatrias do mundo, mas pela simplicidade do testemunho cristão.

Portanto, nem magos, nem marqueteiros! Os pres-bíteros e cristãos do novo milênio são chamados a ser místi-cos. Evangelho se vive! A saída que a Igreja sempre encon-trou em seus grandes momentos de crise nos seus dois mil anos de história foi a mistagogia. A catequese mistagógica faz uma aliança entre comunidade e gratuidade, introduz o fiel aos mistérios divinos, promove a iniciação às coisas

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sagradas, cria o discipulado evangélico. Pela mistagogia, a Igreja ajuda as pessoas a entrar no caminho de Jesus, a ou-vir a sua Palavra, a experimentar a beleza e o compromis-so dos sacramentos cristãos, a vivenciar a riqueza da santa Eucaristia, a deixar-se possuir pelo Espírito divino, a praticar e propagar a cidadania batismal. Pela mistagogia, vive-se de modo paciente e constante o Evangelho de Jesus, sem fa-zer concessões a magias e marketing, sem precisar comprar nem vender os dons de Deus. Trata-se de ser gratos diante da gratuidade de Deus e de ser engajados na vida de comu-nhão como membros da grande família de Deus, unidade na trindade, comunhão de três pessoas que se amam tanto e tão bem que são um só Deus.

A mistagogia é o caminho que os presbíteros do mundo de hoje são desafiados a trilhar para serem fiéis e fe-lizes em seu mistério e ministério presbiteral. Para não se tor-narem esquizofrênicos — pessoas com dupla personalidade, vivendo sem entusiasmo as coisas que ensinam ou desliga-dos da caminhada histórica da humanidade e desinteressa-dos pela massa de excluídos que aumenta dia a dia — será preciso adaptarem a si o que o teólogo Karl Rahner disse a respeito de todos os cristãos: o cristão do século XXI ou será um místico ou simplesmente não será cristão. Sem mística, sem santidade, o presbítero não será ninguém e nada terá a oferecer a seu povo.

Apresentando os desafios da Igreja para o futuro, Rahner reclamava a ausência de mestres e de discípulos, inda-gando: “Onde existem ainda os ‘pais espirituais’, os gurus cris-tãos, que possuem carismas para iniciar os discípulos na medi-tação e, até mesmo, no misticismo, onde se poderá reconhecer a realidade definitiva do ser humano, isto é, sua união com Deus, como uma coragem sagrada? Onde estão os que têm coragem de ser discípulos desses pais espirituais?” (apud Tuoti,

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1998, 41). Os presbíteros é que, nesse mundo do pluralismo reli-gioso, hão de ser os primeiros discípulos da mística cristã, a fim de ser tornarem pais espirituais, mistagogos, introdutores dos fiéis na experiência de Deus e no encontro com Cristo.

O Documento de Aparecida pede que os presbíte-ros sejam discípulos e mistagogos, missionários e servidores dos bens da fé e da vida ao povo. “O povo de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos: que tenham uma profunda experiência de Deus, configurados com o cora-ção do Bom-Pastor, dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração; de presbíteros-missionários; movidos pela caridade pastoral: que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procu-rar os mais distantes pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com seu Bispo, com os presbíte-ros, diáconos, religiosos, religiosas e leigos; de presbíteros--servidores da vida: que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da solidariedade. Também de presbíteros cheios de misericórdia, disponíveis para ad-ministrar o sacramento da reconciliação (DAp, 199).

No caminho da santidade, o horizonte do ser e do agir do presbítero se manifesta bastante amplo. Temos aí os te-mas que se referem “aos aspectos vitais e afetivos, ao celibato e a uma vida espiritual intensa, fundada na caridade pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão com os irmãos; também ao cultivo de relações fraternas com o bispo, com os demais presbíteros da diocese e com os leigos” (DAp, 195). Há ainda a tarefa coletiva do apostolado, a vida de oração, o sacramento da confissão, a devoção a Maria, a mor-tificação e a entrega pela missão pastoral (DAp, 195).

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“No mundo de hoje, sendo tantos os deveres a cumprir e tão grande a diversidade de problemas em que se

angustiam os homens, frequentemente com urgência de solu-ção, correm os mesmos homens o perigo de se dispersarem por muitas coisas. Também os presbíteros, implicados e disper-sos por muitíssimas obrigações do seu ministério, podem per-guntar, não sem ansiedade, como lhes será possível reduzir à unidade a sua vida interior com a sua ação exterior” (PO, 14). No mundo do pluralismo religioso, no qual o presbítero corre o risco da fragmentação e esfacelamento de sua identidade e de sua missão, é só no mistério de Deus uno e trino que ele encontra o sentido de seu ser mais íntimo, sua unidade interior pessoal e a coesão de sua ação. No mistério de Deus Trindade, ele descobre que não é funcionário de uma instituição, volun-tário de uma agência prestadora de serviços, empregado de uma empresa. Seu ser funda-se no ser de Deus; sua identidade encontra-se radicada na identidade do próprio Deus, comuni-dade na diversidade de três pessoas que se amam tanto e tão bem que são um só Deus.

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Ao mostrar situações que afetam a vida e o mi-nistério dos presbíteros, o Documento de Aparecida adverte para o risco de se encarar o presbítero como um mero de-legado ou representante da comunidade e sugere que o seu ser se define a partir de Cristo. É a questão da identidade do presbítero. Mesmo estando a serviço do sacerdócio comum dos fiéis, dele se difere qualitativamente. Não é apenas um delegado ou um representante da comunidade. Por sua es-pecial união com Cristo e unção no Espírito, o presbítero é um dom divino para a comunidade. Ele é sacerdote, um dom, um dote sagrado (DAp, 193). “O presbítero é verdadei-ro sacerdote porque participa do sacerdócio de Cristo (LG 28). De fato, em virtude da ordenação, ele se torna um dom sagrado de Deus para o seu povo” (DFPIB, 63).

Essa questão também foi examinada na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis, de João Paulo II. Aí o Papa alcança um equilíbrio entre a visão cristológica e a visão eclesiológica do presbítero (PDV, 12). Pela primeira, entendia-se o presbítero por demais diferenciado do co-mum dos fiéis, identificado como um alter Christus, de tal modo configurado a Ele, que se distanciava da comunida-de. Assegura-se agora que, com e como todos os fiéis, o presbítero é, sim, um alter Christus, mas especificando que o modo dessa configuração a Cristo se dá sempre em re-lação à Igreja. Como o Cristo e sempre em união com Ele, o presbítero é pastor da Igreja, esposo da Igreja, servo da Igreja, cabeça da Igreja. Assegura-se também que o pres-bítero é membro da comunidade e, como a própria co-munidade e com ela, está diante de seu Senhor e Mestre, mas de modo diferenciado, enquanto a preside e a guia na relação com o Senhor.

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A identidade do presbítero tem uma conotação es-sencialmente relacional. “Mediante o sacerdócio, que bro-ta das profundezas do mistério de Deus, ou seja, do amor do Pai, da graça de Jesus Cristo e do dom de unidade do Espírito Santo, o presbítero é inserido sacramentalmente na comunhão com o Bispo e com os outros presbíteros para servir o povo de Deus” (PDV, 12). A identidade do presbítero tem, pois, uma conotação trinitária, cristológica e pneuma-tológica, e eclesiológica.

Uma primeira reflexão deste capítulo aponta breve-mente para a vida trinitária do presbítero, centrada na es-piritualidade da comunhão. Em seguida, medita-se sobre a relação do presbítero com cada uma das três pessoas divi-nas. O Pai será visto no mistério e no ministério de sua au-toridade; Ele será apresentado como fonte e referência para a autoridade do presbítero. O Filho será visto no mistério e no ministério de sua caridade pastoral, como modelo para a ação pastoral do presbítero. O Espírito Santo será visto no mistério e no ministério na especificidade carismática do presbítero, regente da sinfonia carismática de sua comuni-dade. Por fim, um item conclusivo, ao mesmo tempo em que apresenta Maria como mulher trinitária e eucarística, suge-re o sacerdócio mariano, em sua humildade e simplicidade, como contraponto para o atual modo exacerbado de viver o ministério petrino, ou melhor dizendo, masculino.

2.1. O presbítero no mistério da Trindade

A espiritualidade e a teologia cristãs trouxeram para o dia a dia da vida cristã o tema da Santíssima Trindade. Não valem mais para o nosso tempo as observações de K.

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Rahner de que o cristianismo havia se tornado uma religião tão “monoteísta” que, se por acaso fossem tiradas do credo e do catecismo as referências trinitárias, o povo cristão nem sequer perceberia, em suas práticas devocionais e morais, a consequente lacuna.

Hoje, a Trindade está em toda parte, faz-se mais presente que em outros tempos. Na celebração litúrgica, na espiritualidade, na oração, nos encontros de oração e de reflexão, nos círculos bíblicos, nos cursos de teologia. O Concílio Vaticano II (1962-1965), com seu acento em uma eclesiologia da comunhão que se fundamenta no mistério de Deus Trindade para apresentar a Igreja como mistério de comunhão e missão, de unidade na diversidade, abriu as portas da reflexão e da prática cristãs para a Santíssima Trindade. Desde então, não há como falar da Igreja a não ser como povo de Deus Pai, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo, como ícone da Trindade. A Igreja e, com ela e nela, o presbítero vêm da Trindade, vivem na Trindade e vão para a Trindade. Deus Trindade é a fonte, a forma e o fim da Igreja e de cada presbítero. Não há como falar da mo-ral cristã a não ser como obediência ao projeto de Deus Pai, como seguimento de Cristo, como vida no Espírito. Não há como falar da liturgia cristã a não ser como ação de graças da Igreja dirigida a Deus Pai, por meio de seu Filho Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Todos os sacramentos são tidos como obra da Igreja que administra, com a invo-cação do Espírito Santo, a graça salvífica do Pai, alcançada na morte e ressurreição do Filho. Enfim, todos os campos da reflexão e da atividade cristãs passaram a caracterizar-se por um forte teor trinitário.

Essa marca trinitária pode ser mais claramente per-cebida na espiritualidade cristã. A mística cristã passou a

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perceber que deve ter um timbre mais explicitamente trinitá-rio, em que as três pessoas divinas sejam valorizadas por aqui-lo que cada uma tem de próprio, pelo carisma de cada uma.

Assim, há a necessidade de se valorizar mais o Pai em sua autoridade e centralidade, como Deus antes, além e acima de tudo, maior que o nosso coração e a nossa cons-ciência (1Jo 3,20), maior que o próprio Filho Jesus (Jo 14,28), como eixo da verticalidade da vida cristã, como destinatário do primeiro mandamento – o amor a Deus acima de todas as coisas. Por outro lado, deve-se evitar uma espiritualidade desintegrada que se fixe somente no Pai, que se baseie numa falsa “religião do Pai”, que faz de Deus Pai um patrão cruel, um senhor castigador, um policial multador ou um quebra--galhos ou tapa-buracos.

O Filho deve ser reconhecido como Deus no meio de nós (Mt 18,20; 28,20), Emanuel, Deus conosco (Mt 1,23), um de nós, em tudo igual a nós, menos no desumano do pecado (Hb 4,15). Ele é a referência da horizontalidade da vida cristã, chamada ao segundo mandamento – amar ao próximo, ao semelhante –, em quem se vê a figura do Filho de Deus encarnado, feito homem para nos salvar, em sua encarnação e inserção na história, em sua militância e en-gajamento ético e profético na luta por uma sociedade mais humana. Deve-se, porém, evitar uma espiritualidade desin-tegrada que se volte somente para o Filho, numa também falsa “religião do Filho”, que faça dele apenas um líder reli-gioso, um ativista político, um contestador social.

O Espírito Santo precisa ser percebido como Deus dentro de cada um de nós (Rm 8,11), derramado em nos-sos corações (Gl 4,6), unido ao nosso espírito (Rm 8,16), como referência de toda singularidade, dos carismas e das

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especificidades de cada fiel e, mesmo, de cada ser humano, que é, por graça divina, templo de sua presença e ação. Ele é a referência da profundidade da vida cristã, que nos inter-pela num assim chamado terceiro mandamento – amar-se a si mesmo – pelo qual cada pessoa humana deve querer--se bem, cuidar de si e dos seus valores, perceber-se como única e irrepetível, em sua singularidade, chamada a fazer--se no mundo, a enriquecer-se com os talentos recebidos, a produzir frutos no Espírito (Gl 5,22-23). Não é cristã, toda-via, uma espiritualidade desintegrada, voltada somente para o Espírito Santo, numa falsa “religião do Espírito”, que faça dele um ídolo feito à imagem humana, um deus construído para o agrado e a satisfação do homem, o deus da nova era, o “self” das religiões gnósticas e esotéricas.

Tudo isso leva à pergunta pela relação do presbítero com a Santíssima Trindade. Os presbíteros são atualmente o motor acelerador ou o freio repressor das propostas pastorais. Eles são o crivo por onde passa ou se retém o dinamismo da Igreja. Não precisaria ser assim se a Igreja, na consciência de sua identidade, na organização de suas estruturas e na realiza-ção de sua missão, fosse mesmo mais trinitária. Acontece que ela ainda se deixa marcar pelo peso do clericalismo. De um lado, este se torna sobrecarga estafante e desumana nos frá-geis ombros desses pobres homens feitos de argila (2Cor 4,7). De outro, não considera devidamente a vocação, a missão e o protagonismo das lideranças leigas. O clericalismo peca teológica e pastoralmente. Teologicamente, por desconside-rar a Igreja como ícone da Trindade, por tratá-la como uma agência de serviços em que alguém deve fazer as vezes de di-retor ou gerente, ou de representante de poderes superiores. Pastoralmente, por impedir o aproveitamento das conquistas

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alcançadas pelas ciências humanas e sociais na realização de serviços comuns: o reconhecimento da diversidade de ca-rismas, as relações humanas, a reengenharia empresarial, o foco em objetivos claros e precisos, a busca pela qualidade de serviços, o atendimento personalizado da clientela, o bom aproveitamento de todas as qualidades humanas, o planeja-mento, a administração, a prestação de contas etc. Valores modernos a serem considerados de modo mais adequado no serviço da comunhão e da missão eclesial.

Volta, portanto, a pergunta, agora sob outras formas: de que maneira poderiam os presbíteros viver sua relação com a Santíssima Trindade de modo a evitar o clericalismo presente na Igreja? Como a Santíssima Trindade como um todo e cada pessoa divina em particular marcam o ser e o ministério dos presbíteros? O que dizem a Sagrada Escritura e os documentos eclesiais sobre a relação existente entre a Santíssima Trindade e o mistério e o ministério do presbítero?

Na resposta a essas perguntas, o objetivo é enfocar todo o ser do presbítero no mistério central da fé cristã: Deus, em sua comunhão e diversidade. Entendemos que cada pes-soa divina tem algo a dizer de próprio para o ser e a ação, o mistério e o ministério do presbítero. A vida do presbíte-ro deve marcar-se cada vez mais por um timbre trinitário. Sua santidade tem como fonte, sentido e meta a Santíssima Trindade. Seu ser e agir, como ministro da comunhão ecle-sial, encontra seu significado mais profundo no ser e no agir como ministro da Trindade, ministro do amor e da vida de Deus em favor das pessoas com quem vive e a quem serve.

Os presbíteros do novo milênio não são nem mon-ges tradicionais, nem magos ou marqueteiros modernos ou pós-modernos. Mas místicos, mistagogos, que vivem

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a Trindade e conduzem os fiéis à experiência de Deus Trindade. Tradicionalmente, a espiritualidade dos presbíte-ros foi enquadrada no mesmo regime de vida dos monges. A vida de oração, a recitação das horas, a fuga do mun-do, os atos de piedade faziam com que os presbíteros, ainda que tivessem compromissos pastorais a serem desenvolvidos em meio ao mundo, devessem retirar-se, de tanto em tanto, para momentos específicos de oração. Não ficava clara a relação entre a oração e a ação, entre a espiritualidade e a ação pastoral. Corria-se o risco do dualismo, que separava a vida pessoal, espiritual, da vida pública, social. O decre-to Presbyterorum Ordinis convida os presbíteros a integrarem uma e outra, num modo próprio de se viver a espiritualidade centrada na caridade pastoral, numa “unidade de vida que não pode ser construída com a mera ordenação externa do seu ministério nem apenas com a prática dos exercícios de piedade, por mais que isto concorra para ela. Mas poderão os presbíteros construí-la, seguindo, na prática do ministério, o exemplo de Cristo nosso Senhor, cujo alimento era fazer a von-tade daquele que o enviou para realizar a sua obra” (PO, 14).

Os tempos atuais levam à tentação da espiritualida-de mágica. Há presbíteros que se iludem com as solicitações do mercado e do marketing. Na preocupação, inútil e fal-sa, de igualarem-se aos concorrentes religiosos de plantão (gurus, cartomantes, bruxos) ou aos líderes de outras igrejas e religiões (pastores e mestres) ou, pior, aos expoentes das igrejas-empresas, muitos presbíteros da Igreja católica tor-nam-se magos. Acham-se responsáveis por resolverem todos os problemas que lhes são trazidos. Centram sua ação pas-toral numa religião de resultados. Exorcizam demônios, fa-zem sessões de curas, oferecem milagres, promovem shows etc., na tentativa solucionarem problemas para agradarem

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as pessoas e, assim, garantirem clientela. A religião vende-se ao mercado.

Os presbíteros devem situar-se na linha da grande tradição ao mesmo tempo em que se atualizam diante das exigências dos novos tempos. Da tradição, é preciso reter o carisma do serviço, da pregação da Palavra, da presidência da Eucaristia, da administração dos sacramentos e da con-cepção do presbítero como continuação da ação de Jesus Cristo, o Bom-Pastor. Diante dos novos tempos, é preciso perceber a carência e a sede atual de espiritualidade, o re-torno ao sagrado, a busca do religioso. Portanto, nem mon-ges, nem magos, mas místicos e mistagogos. Místicos em seu ser, mistagogos em seu agir. Místicos, porque possuídos por Deus, pelo amor e pela força de Deus. Mistagogos, porque responsáveis por conduzir e introduzir os fiéis na experiên-cia de Deus e de seu amor. Os presbíteros do novo milênio deverão fazer uma experiência tão profunda, efetiva e afe-tiva de Deus, que sua ação pastoral nada mais seja do que transbordamento de sua espiritualidade, de sua santidade.

Na Trindade se fundamenta, portanto, o mistério, o ser, a identidade do presbítero, bem como seu ministério, seu agir, sua relevância para a Igreja e o mundo de hoje. Sua vida é trinitária. O presbítero “é chamado a compreender como, pelo sacramento da Ordem, será enviado pelo Pai e configu-rado a Cristo, para atuar e viver, na força do Espírito Santo, na comunhão da Igreja, para a salvação do mundo” (DFPIB 278). Deus é Amor (1Jo 4,8.16). Deus Trindade é Amor. Deus é o que faz; Deus faz o que é: Amor! Como na Santíssima Trindade, o ser e o agir se identificam, porque Deus é o que faz, Deus faz o que é, assim também, a partir da Trindade e em sintonia com ela, o ser e o agir do presbítero se sintetizam

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no amor. Isso se pode dizer, certamente, de todo cristão e, mesmo, em linguagem mais ampla, de todo ser humano. Insiste-se aqui, porém, que, seja pelo sacramento da ordem, seja por sua específica missão na Igreja e na sociedade, isso se diz de modo específico do presbítero. Sobretudo do presbíte-ro diocesano. Também do presbítero religioso, na medida em que ele atua e se compromete com a caminhada espiritual e pastoral de uma diocese.

Como toda a Igreja tem sua origem, seu sentido e sua meta na Trindade, também o presbítero vem da Trindade, vive na Trindade e vai para a Trindade. Em Deus Amor, uni-dade na diversidade de três pessoas distintas, que se amam tanto e tão bem que são um só Deus, está sua origem, o sentido de sua caminhada e sua meta. São Boaventura faz uma bela reflexão sobre o movimento de ir e vir entre a San-tíssima Trindade e o fiel cristão: “Desse Pai (o Pai das luzes), por seu Filho Jesus Cristo, vem a nós o Espírito Santo e por este Espírito Santo, que reparte e distribui os dons a quem quer, é-nos dada a fé”. É pela fé que conhecemos o Cristo, que fala e age pelas Escrituras. “Conhecendo-o, então, e amando-o (o Cristo), firmes na fé e arraigados na caridade, poderemos entender a largura, a extensão, a altura e a pro-fundidade da Sagrada Escritura e, por esta ciência, chegar àquele intensíssimo conhecimento e desmedido amor da Santíssima Trindade. A ela atendem os desejos dos santos e nela se encontra a plenitude de toda a verdade e de todo o bem” (Ofício das Leituras, 2a feira da 5a semana do Tempo Comum). Assim, da Trindade nos vem a fé, que nos ajuda a interpretar a Sagrada Escritura e ver nela o Cristo. Do Cristo, conhecido e amado na Escritura, passamos ao conhecimen-to e ao amor da Trindade. Envolvidos por tão profundo

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conhecimento e por tão imensurável amor, os cristãos são e agem como tais na vivência do amor. Assim também são e agem os presbíteros.

Apoiando-se na proposição dos padres sinodais participantes do sínodo dos bispos sobre a vocação e a mis-são dos presbíteros, de 1990, o Beato João Paulo II escreve na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis: “A identidade sacerdotal, como toda e qualquer identidade cristã, encon-tra na Santíssima Trindade a sua própria fonte, que se revela e autocomunica aos homens em Cristo, constituindo nele e por meio do Espírito, a Igreja como gérmen e início do Reino” (PDV, 12). E logo a seguir: “É no interior do mistério da Igreja como comunhão trinitária em tensão missionária que se revela a identidade cristã de cada um e, portanto, a específica identidade do sacerdote e do seu ministério. O presbítero, de fato, em virtude da consagração que recebe pelo sacramento da Ordem, é enviado pelo Pai, através de Jesus Cristo, ao qual como Cabeça e Pastor de seu povo é configurado de modo especial para viver e atuar, na força do Espírito Santo, ao serviço da Igreja e para a salvação do mundo” (PDV, 12). E ainda: “Não se pode, então, definir a natureza e a missão do sacerdócio ministerial, senão nesta múltipla e rica trama de relações, que brotam da Trindade Santíssima e se prolongam na comunhão da Igreja como si-nal e instrumento, em Cristo, da união com Deus e da uni-dade de todo o gênero humano” (PDV, 12). Daí, conclui o papa, a conotação essencialmente relacional da identida-de do presbítero: ele é e age em íntima relação com cada uma das pessoas divinas, com seu bispo e seu presbitério, com seus irmãos presbíteros e diáconos e com os fiéis leigos. Seu ser e seu agir, seu mistério e seu ministério se explicam

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somente na dinâmica das relações. Torna-se, pois, muito difí-cil reconhecer como presbítero alguém que venha a assumir posições isoladas em sua atividade pastoral. Sua identidade e relevância tornam-se tanto mais embaraçadas quanto mais isolado ele for, sobretudo por causa da presença do pecado em seu coração, mas também por fatores alheios à sua von-tade, que ele pode e deve, no entanto, superar, como tem-peramento pessoal, herança formativa, distância geográfica, dissonâncias teológicas ou ideológicas, particularidades ca-rismáticas etc.

Servindo-se, ainda, das palavras dos mesmos pa-dres sinodais, em sua mensagem ao povo de Deus, escreve João Paulo II sobre a verdade, o mistério e o dom do sacer-dócio ministerial: “A nossa identidade tem a sua fonte mais remota na caridade do Pai. Ao Filho, por Ele enviado, Sumo Sacerdote e Bom-Pastor, estamos unidos sacramentalmente com o sacerdócio ministerial por ação do Espírito Santo. A vida e o ministério do sacerdote são a continuação da vida e da ação do próprio Cristo. Esta é a nossa identidade, a nossa verdadeira dignidade, a fonte da nossa alegria, a certeza da nossa vida” (PDV, 18).

Há que se insistir nesse tema da Santíssima Trindade como fonte do mistério e do ministério do presbítero. Embora ressalvando que ela é também fonte da vida de qualquer cris-tão, há um esclarecimento sobre a especificidade da iden-tidade trinitária do presbítero, relacionando-a sempre com sua configuração com Jesus Cristo, Servo, Esposo, Cabeça e Pastor da Igreja. Se, portanto, o presbítero encontra, como todos os fiéis cristãos, sua identidade em Deus Trindade, há também uma especificidade que o caracteriza. Essa especi-ficidade é precisamente o equilíbrio de que se falou acima

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entre as perspectivas cristológica e eclesiológica do presbíte-ro. É pelo caminho dessa especificidade – sua configuração com Cristo, na relação deste com a Igreja – que há de se traçar o perfil do presbítero, de seu ser e de seu agir, de sua espiritualidade e de sua ação.

Uma das características da espiritualidade cristã de nosso tempo é sua dimensão coletiva. Graças a esse horizon-te trinitário aberto pela reflexão teológica, pelos ensinamen-tos do magistério e pelas práticas pastorais dos tempos pós--conciliares, além de fatores provenientes do próprio espírito do tempo atual – ecumenismo e diálogo inter-religioso, co-municação social, busca da paz entre as nações, intercâmbio entre as culturas, mobilização social, globalização da solida-riedade, economia solidária, economia da comunhão, polí-tica da comunhão, orçamento participativo etc. –, crescem em todas as esferas do cristianismo anseios de pessoas e co-munidades por uma espiritualidade que supere o intimismo próprio das espiritualidades tradicionais. Percebe-se hoje a passagem de uma teologia ou espiritualidade da retribuição (de recompensa ou castigo) para uma teologia ou espiritua-lidade da ternura (de amor, de comunhão). Uma das gran-des revoluções teológicas do último século é a compreen-são de Deus como Pai, próximo de nós, bondoso, amoroso. Décadas atrás, correspondendo a uma pedagogia autoritária e repressora, Deus era visto muitas vezes como patriarca au-toritário, policial vingativo, patrão cruel. O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga critica a imagem tradicional e pro-põe uma nova imagem de Deus para os tempos atuais, de-clarando: “Ao pôr em crise a concepção tradicional, a nova situação cultural permite que levemos a sério essa verdade fundamental. Se Deus cria por amor – e só por amor – todas

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as pessoas, é óbvio que quer dar-se a todas, dar-se sempre e dar-se totalmente. Além do mais, é isso o que a mais elemen-tar experiência humana nos ensina: nenhum pai ou mãe, normais e decentes, regateiam o amor a seus filhos” (p. 32). A experiência do amor de Deus como Pai leva ao desejo e à experiência da comunhão com todos.

Há, hoje, um acento no carisma da comunhão vivi-da e buscada entre as pessoas, entre os povos, entre as igre-jas, entre as religiões. A comunhão é uma ânsia dos tempos atuais. O carisma da comunhão torna-se resposta aos graves problemas de nosso tempo (DAp, 109-113): uma vida sem sentido, o desespero de um mundo sem Deus, a idolatria dos bens terrenos, o subjetivismo hedonista, o individualismo, a despersonalização, a exclusão dos pequenos e pobres, as es-truturas de morte, a ameaça à natureza, a religião neoliberal do deus-dinheiro e o seu decorrente relativismo religioso--ético-moral-cultural. Diante de todos esses males, “Jesus nos revela a vida íntima de Deus em seu mistério mais elevado, a comunhão trinitária” (DAp, 109). O Concílio Vaticano II já havia convidado os cristãos a assumirem a dimensão comu-nitária da santidade. Com base na eclesiologia de comunhão, na concepção da Igreja como mistério, comunhão e missão, e na imagem da Igreja como povo de Deus, todo o capítulo quinto da Lumen Gentium é uma reflexão sobre a dimensão coletiva da santidade. “Todos na Igreja, quer pertençam à hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: ‘esta é a vonta-de de Deus, a vossa santificação’ (1Ts 4,3; cf. Ef 1,4)” (LG, 39).

Não é aqui o momento de rememorar a história da espiritualidade cristã, que, desde meados do século XX, vinha abrindo espaços para essa dimensão comunitária da

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espiritualidade. A história dos movimentos de espirituali-dade surgidos nas décadas anteriores ao Concílio mostra a importância desse elemento. Essa espiritualidade da co-munhão indica a santidade como obra coletiva, insistindo na presença de Jesus no meio dos discípulos reunidos em seu nome. Assim, em tudo o que cada pessoa faz, ama, fala, pensa etc., estou eu, está você, está cada pessoa, está o pró-prio Jesus. Presente em cada pessoa na sua singularidade. Mas, sobretudo, presente no meio da comunidade reunida em seu nome.

Essa espiritualidade da comunhão é assumida pelo Beato João Paulo II na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (NMI). O papa faz aí uma ampla definição desse novo estilo de espiritualidade, propondo-a como espiritualidade a ser vivida por toda a Igreja, chamada a ser a casa e a esco-la da comunhão: “Espiritualidade da comunhão significa em primeiro lugar ter o olhar do coração voltado para o mistério da Trindade que habita em nós e cuja luz há de ser percebi-da também no rosto dos irmãos que estão ao nosso redor. Espiritualidade da comunhão significa também a capacidade de sentir o irmão de fé na unidade profunda do Corpo místi-co, isto é, como ‘um que faz parte de mim’, para saber parti-lhar as suas alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seus anseios e dar remédio às suas necessidades, para oferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade. Espiritualidade da co-munhão é ainda a capacidade de ver antes de mais nada o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de Deus: um ‘dom para mim’, como o é para o irmão que diretamente o recebeu. Por fim, espiritualidade da comu-nhão é saber ‘criar espaço’ para o irmão, levando ‘os fardos uns dos outros’ (Gl 6,2) e rejeitando as tentações egoístas que

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sempre nos insidiam e geram competição, arrivismo, suspei-tas, ciúmes. Não haja ilusões! Sem essa caminhada espiritual, de pouco servirão os instrumentos exteriores da comunhão. Revelar-se-iam mais como estruturas sem alma, máscaras de comunhão, do que como vias para a sua expressão e cresci-mento” (NMI, 43).

Essas palavras valem de modo especial para os presbíteros. Ao falar dos presbíteros párocos, o Documento de Aparecida se inspira nesta Carta Apostólica de João Paulo II para dizer que “todos os organismos pastorais precisam estar animados por uma espiritualidade da comunhão mis-sionária” (DAp, 203). E o papa conclui: “Sem este caminho espiritual, de pouco serviriam os instrumentos externos de comunhão. Mais do que modos de expressão e crescimento, esses instrumentos se tornariam meios sem alma, máscaras da comunhão” (cf. NMI, 43; DAp, 203).

Cabe, pois, aos presbíteros o ministério da comu-nhão. No seu ser e no seu agir, ele é homem da comunhão. Mesmo que não se conheçam uns aos outros, eles são “um” como cristãos, pelo batismo, e mais ainda como presbíteros, pelo sacramento da ordem. Graças à fundamentação trinitá-ria de seu ser e agir, o presbítero é, por excelência, ministro da comunhão. É chamado a exercer seu ministério da comu-nhão no próprio presbitério, inicialmente, para, a partir daí, transbordar para fora em favor da vida na diocese e de toda a Igreja. Como o regente de uma orquestra sinfônica, o presbíte-ro rege singularmente a vida de sua comunidade, bem como o presbitério rege colegialmente, em unidade com o bispo, a vida da diocese. Como ministro da comunhão, a ele cabe reger uma orquestra na qual ministros leigos tocam diversos instrumentos em consonância com seus diversos carismas.

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Nessa espiritualidade da comunhão, encontra-se o eixo da mística presbiteral, a fundamentação unitária e trini-tária do ser e agir de cada presbítero.

2.2. O presbítero diante de Deus Pai

O presbítero está sempre diante de Deus Pai. É na relação com o Pai que ele aprende a ser padre, presbítero. Como ele é comumente chamado de padre, que quer dizer pai, é significativo que ele se coloque diante da paternidade e da autoridade de Deus Pai, a fim de poder, numa relação de intimidade e confiança, aprender o exercício de sua pró-pria paternidade e autoridade. Deus Pai é Deus acima de nós, mais do que nós, além de nós, antes que nós. Deus Pai é a fonte mais remota da identidade cristã e, portanto, da vida presbiteral, do ser e agir presbiteral, do mistério e ministério presbiteral. É a Deus Pai que se volta o primeiro mandamen-to: amar a Deus acima de tudo. Perguntado sobre o maior mandamento da Lei, Jesus, como bom judeu, respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito! (Dt 6,5). Esse é o maior e o primeiro mandamento” (Mt 22,37-38; Js 22,5).

Na própria comunhão da Santíssima Trindade, o Pai é o mistério profundo, o abismo absoluto, o totalmen-te outro, o manancial de onde brota a vida, não somente da criação e da humanidade, mas também do Filho e do Espírito Santo. Ainda sem o conhecer como Pai, o salmista via nele a segurança, o amparo, a proteção de sua vida e o chamava de origem, escudo, rochedo (Sl 17). Os profetas serviam-se de metáforas para expressar o cuidado e a ter-nura de Deus: águia (Dt 32,11), pastor (Jr 23,3), médico (Is

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30,26), pai (Eclo 51,14), mãe (Eclo 4,11), esposo (Os 2,21). Ele é o Deus de misericórdia, que desde suas profundas en-tranhas (rahamim) se compadece de seus filhos, é o Deus amigo e terno que responde ao mal sempre com o bem. Em sua encíclica Dives in Misericordia (DM) sobre a divina mise-ricórdia, o Beato João Paulo II, depois de explicar o sentido do termo hesed como bondade, graça, amor, fidelidade de Deus para com seu povo, detém-se longamente na expla-nação do significado do termo rahamim: “Enquanto hesed acentua as características da fidelidade para consigo mesmo da responsabilidade pelo próprio amor (que são caracterís-ticas em certo sentido masculinas), rahamim, já pela própria raiz, denota o amor de mãe (rehem = seio materno). Do vín-culo mais profundo e originário, ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma particular relação com ele, um amor particular […] totalmente gratuito […]. Sobre este fundo psicológico, rahamim dá origem a uma gama de sen-timentos, entre os quais a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, a prontidão para perdoar” (DM, 29, nota 52). Os israelitas já conheciam o Senhor como Deus da pie-dade, da benevolência e da compaixão [Sl 103(104),13; Ex 34,6-7; Is 54,7.10; 49,14s; 66,13].

Nos tempos messiânicos, sua verdade mais profun-da foi exposta a toda a humanidade. Jesus de Nazaré o re-velou como seu Pai e nosso Pai. Antes e mais que ser criador do mundo, senhor da história e libertador da humanidade, Ele é, na eternidade, o Pai do Filho amado, o qual é gerado no amor unitivo e distintivo do Espírito Santo. Por isso, quan-do o Filho eterno encarnou-se em Jesus de Nazaré, revelou o Pai como sua âncora, bússola, norte, referência. Tudo na vida do Filho estava voltado para o Pai: a vontade do Pai, as obras do Pai, o Reino de Deus Pai. Jesus nos revela que Deus

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é o Pai que cuida de nós, bem mais do que das aves que Ele alimenta sem que elas tenham que plantar e colher e das flo-res do campo que Ele veste com roupas mais bonitas do que as do rei Salomão (Mt 6,26-32; Lc 12,24-28). Deus é o bom Pai que faz chover e envia o sol para bons e maus, para jus-tos e injustos (Mt 5,45), que recebe e abraça o filho perdido e arrependido (Lc 15,22-24), que dá gratuitamente aos que lhe pedem (Mt 18,19, Mc 11,24, Jo 16,23), que oferece o pão do céu que dá a vida para sempre (Jo 6,32.51.58).

Esse Deus Pai é que vem a nós em suas duas mãos, o Filho e o Espírito, a Palavra e o Sopro. Em sua paternida-de e maternidade temos a fonte e origem de tudo. Ninguém mais pai, ninguém mais mãe do que Deus Pai. Ser humano é fazer a experiência de ser amado e amar. Ninguém ama, se antes não for amado. A criança é primeiramente amada para depois começar a amar. Uma criança que não foi amada tornar-se-á um adulto problemático. O fundamento de todo amor é Deus Pai. Se ninguém nos ama, podemos ter a certeza do amor de Deus Pai. O cristão tem como sublimar, em Deus, toda a sua carência de afeto. O essencial da vida cristã é fazer a experiência de ser amado pelo Pai, é ter uma relação umbi-lical com Deus Pai, é acreditar no amor. “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco” (1Jo 4,16).

Em sua catequese semanal, o Papa emérito Bento XVI desenvolveu, no dia 30 de janeiro de 2013, o artigo do credo sobre a fé em Deus Pai, verdade fundamental da fé cristã. O papa inicia seu discurso sobre Deus Pai falando so-bre a paternidade humana, sobre a qual, diz ele, é muito difícil de tratar. Ele constata que, em nossa sociedade, faltam modelos masculinos de referência, pois “famílias desestrutu-radas, compromissos de trabalho mais absorventes, preocu-pações e muitas vezes o esforço para equilibrar o orçamento

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familiar, a invasão distraída dos meios de comunicação na vida diária, são alguns dos muitos fatores que podem impe-dir uma relação pacífica e construtiva entre pais e filhos”. Por isso, torna-se embaraçoso imaginar Deus como um pai. Quem tem ou teve um pai “muito autoritário e inflexível, ou indiferente e carente de afeto, ou mesmo ausente”, terá difi-culdade para “pensar com serenidade em Deus como Pai e abandonar-se a Ele com confiança”.

Vivemos numa sociedade sem pais, sem referências. Sofremos o eclipse do pai, a morte social do pai. Aumenta o número de famílias sem pais, de famílias maternizadas. Escrevendo sobre a beleza mística da paternidade de São José, como reflexo da paternidade de Deus Pai, Leonardo Boff escreve: “Vivemos numa sociedade sem pai ou do pai ausente. Num certo sentido, o pai foi expulso de casa na me-dida em que foi impedido de realizar suas próprias funções paternas. Seja porque o regime de trabalho da sociedade in-dustrial e do conhecimento o ocupa física e mentalmente de forma tão intensa que lhe resta pouco tempo para conviver com seus filhos e filhas, seja porque seu papel foi demolido pela crítica à autoridade do pai, identificada com o patriar-calismo ou igualada ao machismo, objeto da mordacidade feroz dos movimentos feministas. Os homens, em geral, e os pais, em particular, entraram em profunda crise de identida-de, da qual ainda não saíram” (p. 189). Em vez do patriarca-lismo, há hoje o predomínio de outra figura: a da mãe. Muitas vezes sozinha e desamparada, ela não dá conta de oferecer aos filhos tudo de que necessitam. “Tal quadro”, diz ainda L. Boff, “configura um desastre humano e social. A ausência do pai é, por todos os títulos, inaceitável. Ela desestrutura os filhos e filhas, tira o rumo da vida, debilita a vontade de

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assumir um projeto e mutila a sociedade” (p. 192). Também o Documento de Aparecida se pronunciou sobre a ausência de muitos pais na relação com seus filhos. “No entanto, em não poucos casos, desafortunadamente, terminam renun-ciando a essa responsabilidade e delegando-a às mulheres ou esposas” (DAp, 460).

Num mundo sem pais, torna-se importante falar de Deus Pai como auctoritas (estímulo, promoção), verticalida-de, centralidade, referência absoluta em nossa vida. Um Pai que é estímulo e incentivo e que se revela pela bondade. A relação vertical com Ele torna-se eixo e referência para nossa vida.

A partir da Sagrada Escritura e da fé cristã, somos convidados a nos lançar nos braços desse Deus ao mesmo tempo misericordioso e onipotente. Misericordioso porque nos ama até o ponto de doar seu próprio Filho para a salva-ção da humanidade, porque acompanha com amor a nossa existência, dando-nos a sua Palavra, o seu ensinamento, a sua graça, o seu Espírito, porque nunca abandona os seus filhos e nunca se cansa deles, porque se deixa atrair pela nossa pequenez e fragilidade, porque sua fidelidade supe-ra imensamente aquela dos seres humanos para abrir-se às dimensões da eternidade. Onipotente, sim, mas não prepo-tente, porque, explica o Papa emérito Bento XVI, seu poder “não se expressa como força automática ou arbitrária, mas é marcada por uma liberdade amorosa e paterna”; porque ao criar os seres humanos livres, “renunciou a uma parte do seu poder, deixando o poder da nossa liberdade”; porque é capaz de “responder ao mal não com o mal, mas com o bem aos insultos com o perdão, ao ódio homicida com o amor que faz viver”; porque em seu poder amoroso “o mal é realmente vencido, a morte é definitivamente derrotada,

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porque transformada em dom da vida”; porque seu poder “não se expressa na violência, não se expressa na destrui-ção de todo o poder contrário como nós desejamos, mas se expressa no amor, na misericórdia, no perdão, no acei-tar a nossa liberdade e no incansável apelo à conversão do coração”. Sua misericórdia e sua onipotência não se con-tradizem, pois, diz o papa, “só quem é realmente poderoso pode suportar o mal e mostrar-se compassivo; só quem é realmente poderoso pode exercitar plenamente a força do amor”. Deus é Pai. Não é um ídolo, uma ideia, uma fonte de energia, de vibrações, mas pessoa, alguém. Não é um pai--patrão, policial, prepotente, mas amoroso.

Em Jesus Cristo, “imagem de Deus invisível” (Cl 1,15), podemos conhecer o rosto benevolente de Deus Pai. Conhecendo Jesus, podemos conhecer o Pai (Jo 8,19; 14,7). Também os presbíteros, em seu ser e agir, são chamados a refletir o rosto misericordioso e onipotente do Pai que está nos céus. Vivendo a caridade de Deus que “cobre uma mul-tidão dos pecados” (1Pd 4,8), que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,7), os presbíteros de hoje se tornam, para seus irmãos carentes de amor e de cuidado, imagem do próprio Deus.

Na relação amorosa com Deus Pai, o presbítero des-cobre a beleza de sua própria paternidade. Assim, embora seja preferível o termo presbítero, de origem bíblica, retoma-do pelo Vaticano II, o povo, no entanto, em sua vivência de fé e em sua pertença à comunidade, aprendeu e acostumou-se a chamar esses homens de padres. Ser padre é ser pai. Não apenas no sentido sacramental da administração dos bens sagrados, os sacramentos e a Palavra, mas também no senti-do afetivo da presença, do companheirismo, do cuidado. A

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partir da relação amorosa que os presbíteros têm com Deus Pai, passam a exercer sua paternidade presbiteral.

Como pais, no reflexo da paternidade de Deus em favor dos fiéis, os presbíteros serão especificamente cuida-dores. Nesse sentido, Pe. Jésus Benedito dos Santos, cita um amplo leque de atividades em que o presbítero deve ser um cuidador: “Os serviços pastorais, movimentos, celebrações, realização dos sacramentos, atendimento individual, visita a doentes, palestras, reuniões, bênçãos, orações, cursos, formação de comunidades, atenção aos mais pobres são expressões de cuidado do presbítero católico para com os indivíduos, famílias, comunidade, sociedade ou raça. Mas existem muitas outras expressões de cuidado da comunida-de, como o diálogo, o ecumenismo, a presença em momen-tos de sofrimento ou de alegria”. E conclui: “No pastoreio, a mística do cuidado deve levar o novo presbítero a priorizar a espiritualidade de fidelidade ao Espírito de Deus” (p. 123).

Servindo-se da figura de São José, o Papa Francisco, na missa de início de seu pontificado, indicou que seu minis-tério será marcado pelo cuidado paternal e pela disposição ao seguimento do Cristo crucificado: “Nunca esqueçamos que o verdadeiro poder é o serviço, e que também o Papa, para exercer o poder, deve entrar cada vez mais nesse serviço que tem seu cume luminoso na cruz; deve colocar seus olhos no serviço humilde, concreto, rico de fé, de São José e, com ele, abrir os braços para cuidar de todo o povo de Deus e acolher com afeto e ternura toda humanidade, especialmente os mais pobres, os mais fracos, os pequenos, isso que Mateus descre-ve no julgamento final sobre a caridade: o faminto, o sedento, o forasteiro, o nu, o doente, o prisioneiro (cf. Mt 25,31-46). Apenas aquele que serve com amor sabe cuidar”.

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Para poderem ser pais, cuidadores, mistagogos, os padres, como discípulos mais chegados a Jesus, como seus ministros, pregadores de sua pessoa e práxis, os padres são desafiados a ter a mesma espiritualidade de Jesus, que funda-menta de forma total sua vida no Pai. Como Jesus, a partir de sua relação com o Pai, os padres são chamados à vivência do amor, da misericórdia, do carinho, da ternura com todos, a começar com os pobres, doentes, idosos, necessitados. Como Jesus, são chamados a exercer a coragem de profetas para denunciar tudo o que se interpõe na relação entre Deus Pai e o povo, tudo o que se torna ídolo a pretender tomar o lu-gar do Pai: dinheiro, moda, mídia, prestígio, pansexualismo, relativismo etc. Com especial atenção a ídolos mascarados de divinos, como os condenados pelos profetas veterotestamen-tários e por Jesus: instituições religiosas, lei, templo, culto, se-gurança na própria religião particularista, fundamentalismo religioso, proselitismo etc. Como Jesus de Nazaré, em sua es-piritualidade totalmente centrada no Pai, os padres de hoje são chamados a viver diante do Pai na fidelidade, na obediên-cia, no discernimento, na escuta e na confiança, sobretudo, nas crises da caminhada, nas angústias, nas decepções e nas noites escuras do apostolado.

Em sua conversão e convergência permanente ao Pai, os padres sabem que Deus, o Pai de Jesus, não é um patrão prepotente, um juiz arbitrário, um policial severo, não é um Deus quebra-galho, tapa-buraco, pronto-socorro. Mas um Deus que, no máximo do amor doado, exige a máxima fide-lidade. A partir da relação com o Pai e nos mesmos moldes de Jesus, o padre de hoje exerce sua autoridade (auctoritas, do latim auctor, agente de augere = fazer crescer, promover), sem autoritarismo, sem cargas de clericalismo, centralismo,

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patriarcalismo ou paternalismo. Mas também sem medo, cas-tração, repressão ou culpa. O padre de hoje não pode deixar de exercer sua autoridade, não pode fugir do exercício de sua masculinidade numa sociedade que a afrouxou com medo ou inibição diante da força do feminismo. Mas deve apresen-tar-se como ministro da unidade, como centro de referência, como mártir, como profeta, promotor e defensor da vida e da liberdade de todos, a começar dos que sofrem as maiores ameaças à sua dignidade humana.

Os presbíteros poderão ser, para seus irmãos na fé e para todas as pessoas de boa vontade, sinais da referência amorosa de Deus Pai, cada vez mais esquecido no mundo de hoje. O Documento de Puebla (DP) advertiu que não se conseguirá realizar o sonho da fraternidade universal sem a referência filial ao Pai. “Da filiação em Cristo nasce a fra-ternidade cristã. O homem moderno não tem conseguido construir uma fraternidade universal na terra, porque pro-cura uma fraternidade descentrada e sem origem. Esqueceu que os homens só têm uma maneira de se tornarem irmãos: reconhecer que provêm do mesmo Pai” (DP, 241).

A consciência de estar diante de Deus Pai e de ser representante da paternidade e da autoridade do Pai na relação com os irmãos e irmãs na caminhada da fé faz com que os presbíteros se coloquem de modo crítico diante das idolatrias do poder, do mando, do cargo, dos títulos, do autoritarismo. Em vez do desejo de onipotência ou da ba-julação, a proposta cristã é a obediência. Também diante do persistente pelagianismo da lei, da ordem, do mercado, das armas, dos impérios, um pelagianismo em que se per-cebe a força humana que exclui a presença e a ação de Deus, os presbíteros buscam, de modo profético, a graça

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da humildade, a simplicidade da fé na Palavra de Deus. Não é possível ser presbítero e, ao mesmo tempo, adorador de ídolos. Foi o alerta do Papa Francisco na manhã do dia 6 de junho de 2013, a respeito da afirmação dos fariseus de que adoravam o único Deus: “Não basta dizer: ‘Mas eu acredito em Deus, Deus é o único Deus’. Tudo bem, mas como você vive isso no caminho da vida? Porque pode-mos dizer: ‘O Senhor é o único Deus, não há outro’, mas viver como se Ele não fosse o único Deus e ainda ter ou-tras divindades à nossa disposição”. É o perigo da idolatria, muito constante na vida dos chefes religiosos no tempo de Jesus e, certamente, não distante dos presbíteros de hoje. O perigo é a idolatria, “trazida até nós com o espírito do mundo. E Jesus foi claro: o espírito do mundo, não! Pede ao Pai que nos defenda do espírito do mundo, na última ceia”. “A idolatria é sutil”, enfatizou o papa, insinua-se na alma do homem. Nós também temos nossos ídolos ocultos. Descobri-los, procurá-los e destruí-los é a única maneira de avançar e não estar longe do reino de Deus.

Por fim, em vez de se desanimar com o escândalo do pecado – seu e do povo –, o presbítero será um anuncia-dor e praticante de outro escândalo: o escândalo da obe-diência misteriosa a um Deus, pobre e simples, que se reve-lou aos pequenos; o escândalo da misericórdia do Pai que sempre está disposto a acolher e perdoar seus filhos.

2.3. O mistério do presbítero diante de Jesus Cristo, sumo sacerdote

O presbítero é, por excelência, configurado a Jesus Cristo, o Filho eterno do Pai, que quis ser Deus conosco, entre nós,

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um de nós. Se Deus Pai é Deus acima e além de nós e a Ele devemos total obediência, Deus Filho é Deus conosco, entre nós, Deus encarnado na materialidade da criação, Deus pre-sente na Igreja, Deus revelado na figura de um ser humano, identificado em cada irmão e irmã, sobretudo os pobres.

Na intimidade das relações intratrinitárias, o Filho é o tu, o outro do Pai. Antes de ser a Palavra feita carne, a Palavra crucificada, ele é a Palavra eterna. Antes de tudo, o Filho é Palavra-Verbo. Ele é gerado pelo Pai antes de todos os tempos, numa geração eterna que faz dele a inteligência eter-na do Pai. É essa dimensão profunda e misteriosa da geração eterna do Filho que fundamenta a obra da criação. Tudo é criado por Cristo, em Cristo e para Cristo (Cl 1,15-17). Ele é a Palavra divina pela qual o Pai criou todas as coisas, as visíveis e as invisíveis. Ele está no início, na continuação e na consu-mação da criação, como imagem de Deus refletida em toda a criação, sobretudo em cada ser humano. Em tudo Ele tem a primazia. Ele é a causa eficiente, operativa, instrumental, de todas as coisas; pois tudo foi criado por Ele, pelo poder de sua palavra. Ele é a causa exemplar, modelar, formal, de todas as coisas; pois tudo foi criado nele, na sua imagem e forma. Ele é a causa final, objetiva, de todas as coisas; pois tudo foi criado para Ele, que é a meta e o destino de tudo. Ele é o primeiro, o primogênito, o salvador que dá sustento, o reconciliador que dá consistência e o recapitulador que dá o sentido último a todas as coisas. Por isso, Ele é a nova criação, a antecipação do futuro do ser humano e do mundo.

Por essa mediação na obra da criação e da salvação da humanidade e do mundo, cremos na essência crística da natureza e da humanidade e, com maior razão, dos cristãos em geral e dos presbíteros em particular.

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Esse Cristo, Verbo eterno do Pai que criou todas as coisas para si para vir a elas e nelas manifestar a bondade ra-dical de Deus, fez-se homem em Jesus de Nazaré, assumindo a pobreza da carne humana frágil e mortal. É nesse Cristo que todo presbítero é chamado a espelhar-se para poder con-tinuar a sua obra e colaborar na realização do objetivo de sua encarnação: redimir e recapitular todas as coisas. Como Verbo criador (nele tudo foi criado), sustentador (por Ele tudo subsiste) e recapitulador (para Ele tudo foi feito), Ele tem por objetivo o reencabeçamento, a recapitulação de todas as coi-sas, para que tudo seja entregue ao Pai e Deus seja tudo em to-das as coisas (1Cor 15,28). Trata-se do primeiro objetivo, mais amplo e otimista, da encarnação: o aperfeiçoamento no bem. Tudo conspira para o bem, para o amor, para o céu. Mas por causa do pecado humano e das resistências que oferecemos ao amor primordial de Deus e à graça criacional, essa obra de recapitulação terá que se marcar como obra de redenção. Esse objetivo, mais restrito e mais realista da encarnação, tem em vista a libertação do mal. Recapitular é humanizar e divi-nizar. Mas, para tanto, é preciso antes e de maneira conjunta reumanizar, justificar, redimir.

Seguidor de Cristo, recapitulador que aperfeiçoa a bondade radical da criação e redentor que liberta a hu-manidade de todo o mal e de todo o pecado, o presbítero recebe de seu Senhor um selo, uma marca especial e indelé-vel. “O ministério dos sacerdotes, enquanto unido à Ordem episcopal, participa da autoridade com que o próprio Cristo edifica, santifica e governa o seu corpo. [...] Os presbíteros ficam assinalados com um caráter particular e, dessa manei-ra, configurados a Cristo sacerdote, de tal modo que possam agir em nome de Cristo cabeça. [...] Os presbíteros recebem

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de Deus a graça de serem ministros de Jesus Cristo no meio dos povos, desempenhando o sagrado ministério do Evangelho, para que seja aceita a oblação dos mesmos po-vos, santificada no Espírito Santo. […] É pelo ministério dos presbíteros que o sacrifício espiritual dos fiéis se consuma em união com o sacrifício de Cristo, mediador único, que é oferecido na Eucaristia de modo incruento e sacramental pelas mãos deles, em nome de toda a Igreja, até quando mesmo o Senhor vier. Para isto tende e nisto se consuma o ministério dos presbíteros” (PO, 2).

Essa grande obra do Verbo recapitulador e reden-tor, expressa na encarnação, no ministério, na morte e na ressurreição de Jesus de Nazaré, continua a ser exercida até o fim dos tempos pela Igreja, assistida e fortalecida pelo Espírito Santo. No meio das vicissitudes humanas, através de avanços e recuos, o Reino de Deus vai se estabelecendo no mundo. A Igreja é sinal, instrumento e germe desse Reino. Na fraternidade comum e na cidadania batismal que carac-teriza a Igreja como povo santo de Deus e Corpo de Cristo, os presbíteros são agentes essenciais dessa obra.

Eles são chamados a ser como o Cristo: cabeças da Igreja, servos da Igreja, pastores da Igreja, esposos da Igreja, senhores da Igreja. Em tudo isso, é claro, não em nome próprio e em própria vantagem. Mas sempre e somente em nome de Cristo e em comunhão com Ele.

Na Pastores Dabo Vobis, o Beato João Paulo II ensi-na: “Jesus Cristo é Cabeça da Igreja, seu Corpo. É ‘Cabeça’ no sentido novo e original de ser ‘servo’ […]. O serviço de Jesus atinge a plenitude com a morte na cruz, ou seja, com o dom total de si mesmo, na humildade e no amor […]. A auto-ridade de Jesus Cristo Cabeça coincide, portanto, com o seu

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serviço, o seu dom, a sua entrega total, humilde e amorosa pela Igreja. […] É a partir deste preciso tipo de autoridade, quer dizer, do serviço à Igreja, que a existência espiritual de todos e cada um dos sacerdotes é animada e vivificada, exa-tamente como exigência da sua configuração a Jesus Cristo Cabeça e Servo da Igreja” (PDV, 21). Para poder exercer o mistério e o ministério da capitalidade, no seguimento de Jesus Cristo, o presbítero é chamado à disposição para a atitude kenótica do serviço. Sua auctoritas se exerce como disponibilidade para servir, estimular e incentivar os diver-sos carismas do povo de Deus.

Sendo Cabeça da Igreja, Jesus Cristo é Servo da Igreja, “o único verdadeiro servo sofredor, conjuntamente Sacerdote e Vítima” (PDV, 21). Em consonância com o ser-viço de Cristo, o presbítero, “pelo fato de participar da un-ção e da missão de Cristo, pode prolongar na Igreja a sua oração, a sua palavra, o seu sacrifício e a sua ação salvífica. É, portanto, servidor da Igreja mistério porque atua os sinais eclesiais e sacramentais da presença de Cristo ressuscitado. É servidor da Igreja comunhão porque – unido ao Bispo e em estreita relação com o presbitério – constrói a unidade da comunidade eclesial na harmonia das diferentes voca-ções, carismas e serviços. É finalmente servidor da Igreja missão porque faz com que a comunidade se torne anun-ciadora e testemunha do Evangelho” (PDV, 16). Ao assumir o serviço de Cristo à sua Igreja, os presbíteros o fazem “de ânimo alegre, de boa vontade e segundo Deus”, de modo a se tornarem modelo para o povo, que “é chamado a as-sumir, frente ao mundo inteiro, essa atitude sacerdotal de serviço à plenitude da vida do homem e à sua libertação integral” (PDV, 21).

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Sendo Cabeça e Servo da Igreja, Jesus Cristo é o único e Bom-Pastor do povo santo de Deus. “Jesus autoapre-senta-se como ‘o Bom-Pastor’ (Jo 10,11.14) não só de Israel, mas de todos os seres humanos (Jo 10,16). E a sua vida é uma ininterrupta manifestação, uma cotidiana realização da sua ‘caridade pastoral’” (PDV, 22). No seguimento e no exemplo de Cristo Pastor da Igreja, “em virtude da sua consagração, estes (os presbíteros) são configurados a Jesus Bom-Pastor e são chamados a imitar e a reviver a sua própria caridade pastoral” (PDV, 22).

Cabeça, Servo e Pastor da Igreja, Jesus Cristo é o amado Esposo da Igreja. A entrega de Cristo à sua Igreja, fruto do seu amor, está conotada com aquela dedicação ori-ginal que é própria do esposo no seu relacionamento com a esposa [...]. Jesus é o verdadeiro Esposo que oferece o vinho da salvação à Igreja (Jo 2,1-11), [...] que “amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de torná-la santa, purifi-cando-a por meio do banho da água acompanhado da pa-lavra, de modo a fazer aparecer diante de si a Igreja resplan-decente, sem mancha nem ruga ou qualquer coisa de seme-lhante, mas santa e imaculada” (Ef 5,25-27). O presbítero é chamado a viver essa esponsalidade de Cristo. “Certamente ele permanece sempre parte da comunidade como crente, juntamente com todos os outros irmãos e irmãs convocados pelo Espírito, mas, por força da sua incorporação a Cristo Cabeça e Pastor, encontra-se na referida posição de esposo perante a comunidade. Enquanto representa Cristo Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja, o sacerdote coloca-se não só na Igreja, mas perante a Igreja. Portanto ele é chamado, na sua vida espiritual, a reviver o amor de Cristo Esposo na sua relação com a Igreja Esposa. A sua vida deve iluminar-se

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e orientar-se também por este tratamento nupcial que lhe exige ser testemunha do amor nupcial de Cristo” (PDV, 22). Incardinado (cardo = dobradiça) em sua diocese, o presbíte-ro é casado com a Igreja particular, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na aceitação e na rejeição, todos os dias até que a morte os separe.

Cabeça, Servo, Pastor e Esposo da Igreja, Jesus Cristo é o único Senhor da Igreja (PDV, 13-16). O presbítero não é dono da Igreja. “Enquanto representa Cristo Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja, o sacerdote coloca-se não apenas na Igreja, mas também perante a Igreja.” No meio da Igreja e à frente da Igreja, ele é, sim, um alter Christus. Não a títu-lo de glória e triunfo. Mas a título de kenosis e serviço. Por isso, “o sacerdócio, enquanto unido à Palavra de Deus e aos sinais sacramentais a cujo serviço se encontra, pertence aos elementos constitutivos da Igreja. O ministério do presbítero existe em favor da Igreja; é para a promoção do exercício do sacerdócio comum de todo o povo de Deus” (PDV, 16).

Capitalidade, serviçalidade, pastoralidade e espon-salidade são as relações que o presbítero mantém com a Igreja de Cristo. Nisso tudo o único paradigma para a com-preensão do ser e agir, do mistério e o ministério do presbí-tero, é o Cristo crucificado e ressuscitado. No entanto, não há que se esquecer de que a ressurreição provém da cruz. Portanto, o serviço de Jesus na cruz é a chave para a com-preensão da pessoa e da missão de qualquer presbítero. Aí, Jesus de Nazaré fez a experiência do abandono por parte do Pai. Gritando pelo Pai não o encontrou. Entre Ele e o Pai havia um muro de separação constituído pela massa huma-na de pecadores. Cumprindo a obra do Pai, distinguindo-se dele em sua obediência, diferenciando-se dele ao assumir

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o pecado da humanidade, Ele foi mais longe do Pai que o mais distante pecador. Fazendo-se maldito na cruz, passou pela noite escura ao defrontar-se com o paredão de peca-dores que o impedia de ver o Pai. Mas permaneceu fiel e abandonou-se ao Pai. Assim, pôde pegar-nos todos, pescar--nos todos na rede do amor para trazer-nos ao Pai. É esse o modelo que os presbíteros têm diante de si em sua missão de cabeças, servos, pastores e esposos da Igreja para o anún-cio do Evangelho do perdão e da misericórdia, o serviço de edificação do Reino de paz e justiça, o apoio ao sacerdócio comum dos fiéis na obra salvadora da Igreja.

Presente e atuante na criação e na Igreja, o Cristo está presente e atuante no pobre. Na ordem do ser, da graça, cada presbítero é um alter Christus, é configurado com Cristo. Mas a insistência nesta configuração com Cristo frequente-mente se esquece desta outra dimensão: o Cristo, Filho de Deus, humilhou-se na forma de ser humano, rebaixou-se à condição de servo, foi condenado à vergonhosa morte na cruz; sendo rico se fez pobre; aproximou-se, identificou-se e solidarizou-se com os pobres, doentes, marginalizados, excluí-dos. A realização do presbítero como alter Christus só pode ser possível, então, no amor ao próximo. Se o primeiro man-damento do presbítero é o amor a Deus Pai acima de todas as coisas, o segundo mandamento é o amor a Jesus Cristo presente no próximo. No próximo que é a criação, com todos os seres vivos. No próximo que é a Igreja, com todas as suas expressões de vocações e ministérios, teologias e espirituali-dades etc. No próximo que é, sobretudo, o pobre, cada irmão e irmã de quem o presbítero deve considerar-se servidor, de quem deve aproximar-se para levar o alívio da fé em Deus e o conforto das necessidades espirituais e materiais.

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Viver como Jesus Cristo significa estar com Ele na cruz. Essa vida crucificada o presbítero a vive na celebração dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia, na proclamação da Palavra e ação caritativa. Em todos esses múnus – da Liturgia, da Palavra e da Caridade – o presbítero vive uma relação íntima e confiante com Jesus de Nazaré. O presbí-tero de hoje sabe que Jesus de Nazaré não deixou nem su-cessores, nem substitutos. Sucessão e substituição aconte-cem por ausência, mudança ou morte. Mas Jesus Cristo não está ausente, não foi transferido; morreu, mas ressuscitou. Ele deixa seguidores. Pois está vivo entre nós, à nossa fren-te, chamando-nos e guiando na caminhada. O presbítero é, pois, seguidor de seu Mestre e Senhor, cabeça, pastor, servo e esposo da Igreja.

Por essa íntima relação com Jesus Cristo, com quem e em nome de quem o presbítero é cabeça, esposo, pastor e servo da Igreja, todos os padres são chamados a viver uma espiritualidade própria. Juan María Uriarte, escrevendo sobre a espiritualidade do presbítero, sugere que esta seja marcada pela confiança em vez da ingenuidade, pela fidelidade em vez do êxito, pelo serviço oculto em vez da busca dos aplausos, pelo fazer sossegado em vez do frenético. Uma espiritualidade não isolada e intimista, mas acompanhada e em comunhão com os irmãos presbíteros e leigos. Enfim uma espiritualida-de de espaços interiores em vez de ânsias exteriores (Uriarte, p. 31ss). “Sem esses espaços interiores, podem apossar-se de nossa alma duas companheiras incômodas e perniciosas: a ansiedade e a fadiga. A ansiedade produz em nós um fazer agitado que deixa nossos colaboradores nervosos. [...] A fadi-ga é cansaço mais uma certa alergia provocada pelo trabalho em condições pouco humanas” (p. 42). Ansiedade e fadiga

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poderão levar à decepção e ao ceticismo. Atitudes distantes anos-luz do ministério pastoral de Jesus Cristo, o amoroso e dedicado Bom-Pastor das ovelhas do Pai.

2.4. O presbítero diante de Deus Espírito Santo

Todo presbítero tem também uma relação especial com o Espírito Santo, a terceira pessoa divina, Deus em nós, dentro de nós, Deus que mora em nós, derramado em nos-sos corações (Rm 8,9.11.16; Gl 4,6). Na ordem do ser e da gra-ça, ele é, como todos os cristãos, ungido pelo Espírito Santo para ser outro Cristo. Na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis, o Beato João Paulo II afirma que o Espírito Santo está presente e atuante sobre e em Jesus, que, “em virtude do Espírito, pertence total e exclusivamente a Deus, participa da infinita santidade de Deus que o chama, elege e envia”. O Espírito Santo está também “sobre a totalidade do povo de Deus, que é constituído como povo consagrado a Deus e por Deus enviado para o anúncio do Evangelho que salva”. Ele está também sobre os membros do povo de Deus, os quais são “inebriados e assinalados pelo Espírito (1Cor 12,13; 2Cor 1,21-22; Ef 1,13; 4,3), e chamados à santidade, [...] a ser san-tos e imaculados na sua presença na caridade, em virtude da predestinação para sermos seus filhos adotivos por obra de Jesus Cristo (Ef 1,4-5)” (PDV, 19). E conclui essa reflexão acerca da presença do Espírito Santo sobre Cristo, a Igreja e seus membros, atestando a relação entre o presbítero e o Espírito Santo: o chamado “à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade encontra particular aplicação no caso dos presbíteros: estes são chamados não só enquanto batiza-dos, mas também e especificamente enquanto presbíteros,

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ou seja, por um título novo e de um modo original, derivado do sacramento da ordem” (PDV, 19).

O Espírito Santo é na Trindade o laço de amor en-tre Pai e Filho, é o amor unitivo e distintivo que ao mesmo tempo une e distingue o Pai e o Filho. Sua identidade própria está em ser a ação do Pai e do Filho. Na intimidade da co-munhão trinitária, o Pai e o Filho estão um diante do outro, um identificando o outro e sendo identificado pelo outro. No relato do batismo e da transfiguração, o Pai proclama: “meu Filho” (Mt 3,17; 17,5); o Filho frequentemente se refere a Deus chamando-o: “meu Pai” (Mt 7,21; 11,25-27; 12,50; Jo 20,17.21). De modo diverso, o Espírito Santo não está diante de outra pessoa, identificando-a e sendo por ela identificado. Ele está dentro do Pai e do Filho. É o amor, o agrado, do Pai derrama-do totalmente sobre o Filho amado (Mc 1,11), de modo que o Filho pode afirmar seguramente: “Tudo o que o Pai possui (o seu Espírito) é meu” (Jo 16,15). Ele é o amor do Filho to-talmente retribuído ao Pai na hora da consumação final (Jo 19,30). O Espírito Santo não tem quem seja dele. Não diz: “tu és meu”. Não está diante de ninguém, identificando e sendo identificado. Ele é, não tendo ação própria, mas sendo a ação do Pai e do Filho. Ele é, sendo do Pai e do Filho. Seu ser está nesta kenosis. Não se preocupando em autoafirmar-se diante do Pai ou do Filho, Ele encontra sua profunda identidade: é o amor, a ação do Pai e do Filho. Nas relações intratrinitárias Ele é somente ação do Pai e do Filho; nas relações extratrini-tárias Ele é o que faz, Ele faz o que é: amor.

Assim, o Pai gera o Filho na eternidade por obra do Espírito Santo. Maria gera o Filho na encarnação por obra do Espírito Santo. O cristão gera o Filho em seu co-ração e em sua personalidade por obra do Espírito Santo.

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Analogamente, podemos dizer que o presbítero, ao anun-ciar a Palavra, administrar os sacramentos e guiar a comu-nidade, gera o Filho no meio da comunidade e no coração dos fiéis por obra do Espírito Santo. O Espírito Santo faz na história o que fez e faz na eternidade: gerar nos corações e nas comunidades o Filho eterno do Pai.

Compreendendo dessa forma a relação do Filho e do Espírito Santo, supera-se tanto o cristomonismo quanto o pneumatocentrismo. Não há Cristo sem Espírito, não há Espírito sem Cristo. Santo Irineu de Lião ensinava que a Palavra e o Sopro são como que as duas mãos do Pai que vem a nós para nos reunir em seu amor, nos salvar do peca-do, nos santificar e nos chamar à eterna comunhão consigo.

O ser do Espírito Santo se revela em sua presença e ação. No Credo, logo após a profissão de fé em sua divinda-de se acrescentam os lugares em que está presente e atuan-te: na Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. A vida em Cristo consiste em descobrir e salientar a presença e ação do Espírito Santo. Ao contrário, viver sem Cristo ou fora de Cristo é pecar contra o Espírito Santo, é sufocar e negar sua presença e ação na obra do Messias, da Igreja, dos profetas e em cada um de nós. A garantia, o penhor do Espírito Santo (2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,13-14) assenta-se no so-nhar, crer e lutar pela vida nova da ressurreição, na embria-guez da felicidade eterna antecipada na posse do Espírito (Ef 5,18). Em tudo isso, porém, há que se ter em conta que essa presença e ação são muito sutis e sóbrias. Como é próprio do amor, o Espírito Santo não se impõe. Apenas, humilde-mente se propõe. Atestam-no seus símbolos bíblicos – água, óleo, vento, nuvem, dedo –, que sempre apelam para a deli-cadeza da mobilidade, da liberdade, da ação, da força.

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Tudo isso, que vale para todo cristão, ungido e pos-suído pelo Espírito Santo, vale com mais razão e profundi-dade para cada presbítero. Possuído pelo Espírito Santo, ele há de ser um homem do Tabor, transfigurado. A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II introduziu a epiclese, a in-vocação do Espírito Santo, em cada um dos sacramentos. Também na celebração do sacramento da ordem invoca-se a presença e ação do Espírito Santo sobre quem está sendo ordenado. Desse modo, se pelo batismo e pela crisma ele já era um homem ungido, possuído e dominado pelo Espírito Santo, agora, pela ordem, ele se torna ainda mais, em inten-sidade e profundidade, um homem do Espírito Santo. Na oração consecratória, o bispo ordenante suplica a Deus Pai: “Nós vos pedimos, Pai todo-poderoso, constituí esse vosso servo na dignidade de Presbítero; renovai em seu coração o Espírito de santidade; obtenha, ó Deus, o segundo grau da ordem sacerdotal que de vós procede, e a sua vida seja exemplo para todos”.

Com a presença do Espírito Santo dentro de si, em si, o presbítero é chamado a uma terceira forma de amor: amar-se a si mesmo. Essa terceira forma de amor há de tor-nar-se real no cultivo de si, na formação de seu caráter, na solidificação da autoestima, no louvor e glorificação a Deus pelos dons e carismas recebidos, na vivência festiva por ser filho de Deus, na busca interior da santidade, na luta pela autorrealização, no caminho persistente rumo à própria de-finitividade. Esse amor de si não repousa num egoísmo nar-cisista, mas funda-se na experiência gratuita de receber o amor do Pai, precisamente o Espírito Santo que fortalece o presbítero para a missão evangelizadora, o zelo apostólico, a doação de si em favor da obra do Cristo.

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Nesse cultivo da alegre autoestima por ser filho de Deus e possuído pelo Espírito, cada presbítero deverá perce-ber a presença e ação do Espírito Santo nos carismas e po-tencialidades de seus colegas presbíteros. Compreenderá que alguns têm vocação para ser párocos, outros para ser vigários paroquiais, outros para coordenadores, professores, formado-res, profetas, missionários ou comunicadores. A constatação da presença e ação do Espírito Santo em cada presbítero evi-tará uma prática de nivelamento na mediocridade que não considera os valores próprios de cada um deles.

Esta autoestima fundada na graciosa posse do Espírito levará o presbítero a respeitar, e valorizar, e qualifi-car os carismas dos fiéis a quem serve. Ele é um regente de orquestra que, embora talvez não saiba tocar instrumento al-gum, esforça-se por garantir a harmonia do conjunto ao valo-rizar sons diversos, ora aquietando uns, ora exaltando outros, ora intensificando todos. Ele há de notar uma relação entre carência e carisma. Se há na comunidade alguma carência, firme na fé no Espírito Santo doador de todos os dons, o pres-bítero saberá encontrar alguém, aí na própria comunidade, que tenha carisma para tal necessidade ou lacuna. Se, ao in-vés, alguém na comunidade revela possuir algum carisma es-pecífico, o presbítero, como experiente nas coisas do Espírito Santo, terá a esperteza de reparar no vazio que, na mesma comunidade, possa ser coberto por tal carisma.

Isso vale para o dia a dia de seu ministério pastoral. Mas também para o mistério de seu próprio ser. Diante de ca-rências pessoais que impedem ou atrapalham a própria missão evangelizadora, o presbítero deve aprender a confiar e esperar no Espírito Santo, que não lhe vai faltar na doação de caris-mas próprios que venham a encobrir e resolver essas carências

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e lacunas. Trata-se de considerar que a íntima relação com o Espírito Santo, a terceira pessoa divina, o amor unitivo e distin-tivo do Pai e do Filho, é a mina de ouro de onde o presbítero retira energias para seu ser e seu agir. É nessa fonte de graças que o presbítero encontra e fortalece a virtude da esperança, pela qual ele tem o seu olhar voltado para o futuro. A esperan-ça é para ele “âncora [...] firme e sólida” fundeada em Jesus Cristo, precursor de todo presbítero, sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec (Hb 6,19-20).

É por essa esperança no Espírito Santo que o pres-bítero há de viver sua aliança com a Igreja, naquela espon-salidade que, sendo exclusiva de Jesus Cristo, é, por pura graça, partilhada por cada presbítero em sua relação com a Igreja. Com efeito, ambos – a Igreja e o presbítero – nascem no mesmo instante, na ceia e na cruz, isto é, no mistério pascal. “Não se deve, pois, pensar no sacerdócio ordena-do como se fosse anterior à própria Igreja, porque ele exis-te totalmente em função do serviço da mesma Igreja; nem muito menos se pode pensar como posterior à comunidade eclesial, de modo que esta pudesse ser concebida como já constituída independentemente de tal sacerdócio (PDV, 16). Quando Cristo cria a Igreja, cria também o sacerdócio cris-tão, necessário para a edificação e a manutenção daquela. O ministério presbiteral existe para o serviço do ministério batismal dos fiéis, do povo regenerado pelo batismo e un-gido pelo Espírito Santo. “O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferen-ciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Com efeito, o sa-cerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz

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o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo” (LG, 10). João Paulo II reflete sobre essa íntima relação entre o presbítero-esposo e a Igreja-esposa, dizendo: “Assim, pela sua própria natureza e missão sacramental, o sacerdote sur-ge, na estrutura da Igreja como sinal da prioridade absoluta e gratuidade da graça, que à Igreja é oferecida por Cristo ressuscitado. Através do sacerdócio ministerial, a Igreja toma consciência, na fé, de não vir de si mesma, mas da graça de Cristo no Espírito Santo” (PDV, 16).

O presbítero exerce um ministério propriamente pneumatológico. Como o Espírito Santo nas relações intra-trinitárias, ele é o servidor da unidade na diversidade. Como o Espírito Santo é uma pessoa em duas, o presbítero encon-tra o sentido de seu ser sacerdotal sendo uma pessoa em muitas, a serviço da multiplicidade carismática e ministerial do povo de Deus. Buscará no Espírito Santo a verdadeira unidade de seu ser e de seu agir, uma unidade que supere o vício da uniformidade, do institucionalismo e do funcio-nalismo. No Espírito Santo o presbítero buscará também a beleza da diversidade, a riqueza de seu ser interior e de seu agir exterior, evitando todo risco de individualismo, frag-mentação e anarquia.

É com a unção do Espírito Santo que cada pres-bítero em particular e cada presbitério diocesano há de valorizar a pastoral presbiteral [Texto-base do 7o Encontro Nacional dos Presbíteros (ENP), de 1998], a fim de cuidar de todos os aspectos da vida dos presbíteros: saúde, sub-sistência, solidariedade mútua, formação permanente, rea-lização pessoal, realização na opção vocacional, realiza-ção no celibato, relação com Deus, relação com os leigos,

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ministério colegial, presença e serviço junto à sociedade. O amor unitivo e distintivo que é o próprio Espírito Santo ajudará os presbíteros a viverem “a experiência concreta da fraternidade presbiteral, na hospitalidade, na comunhão de bens, na solicitude com os presbíteros doentes; com colegas em situação de crise, solitários, sobrecarregados, na correção fraterna, na ajuda mútua e no lazer realiza-do em conjunto” (DFPIB, 372). Mesmo que o mistério do presbítero tenha um sentido propriamente gratuito para o ser, uma vez que “o ministério ordenado tem uma radical forma comunitária e pode apenas ser assumido como obra coletiva” (PDV 17), a pastoral presbiteral tem como conse-quência, para o agir presbiteral, uma enorme riqueza de ser-viço ao povo de Deus. “O primeiro cuidado da pastoral pres-biteral é motivar os presbíteros a serem como Jesus Cristo, o Bom-Pastor, vivendo e agindo como Ele, possibilitando uma maturação pessoal de modo que possam dedicar-se plena-mente ao ministério de pastores que Deus e a Igreja lhes confiam em prol das comunidades” (DFPIB, 369).

Além do cuidado coletivo do presbitério, pela dimensão radical da colegialidade e relacionalidade que caracterizam seu ser padre, o presbítero tem no Espírito Santo a força interior para o cuidado de si mesmo, de sua unidade interior e de sua íntima relação com Deus. É com a unção do Espírito Santo que cada presbítero há de situar--se no atual mundo globalizado, no qual ele é desafiado a reconstruir permanentemente sua unidade interior amea-çada pela tentação do retorno ao fundamentalismo pré--moderno ou pelo esgarçamento relativista pós-moderno. Diante da diversidade religiosa de nosso tempo, cada pres-bítero precisa refazer a todo instante a síntese entre mística,

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afeto, teologia e ministério (Texto-base do 10o ENP, p. 33-39). Só assim ele conseguirá, como no exemplo de quase todos os Santos Padres – em sua maioria, papas, bispos e presbíteros –, ser ao mesmo tempo santo, teólogo e pastor.

O fato de ser ungido pelo Espírito Santo dá a cada presbítero a possibilidade de reconfigurar continuamente sua identidade e intimidade pessoal, através das seguintes atitudes, tão urgentes no contexto do pluralismo religioso: a) destradicionalização, em vista de nova síntese mais pes-soal e compatível com o social e culturalmente vivido na atualidade; b) reflexividade, de um sujeito consciente, livre e responsável por seus atos e escolhas, que reflete social e solidariamente a realidade em volta; c) intimidade, de um sujeito instituinte e não sujeito instituído, autêntico em suas relações interpessoais; d) flexibilidade, capaz de enfrentar a intensa circulação de situações, possibilidades e ideias da modernidade; e) precaução, capaz de perceber os imprevis-tos de uma sociedade de riscos; f) confiança, como pessoa reflexiva, isto é, como sujeito autônomo, com projetos de vida individualizados, mas ao mesmo tempo como pessoa solidária (Texto-base do 10o ENP, p. 33-39).

Por fim, somente com a unção do Espírito Santo conseguir-se-á, a título pessoal e de modo coletivo, res-ponder às três grandes propostas que aparecem de modo recorrente nas diretrizes da ação evangelizadora da Igreja no Brasil: a) construir a identidade presbiteral pessoal, com liberdade autêntica, numa sociedade consumista; b) reno-var a comunidade presbiteral, com relações fraternas, numa sociedade de fragmentação de relações; c) ser solidário, no serviço da justiça em favor dos últimos, nesta sociedade ex-cludente, cheia de riscos contra a vida e a comunhão.

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2.5. O presbítero diante do sacerdócio mariano à luz da Trindade

Exemplo de relação plena com as três pessoas di-vinas foi Maria Santíssima. Filha amada de Deus Pai, viveu diante dele a confiança total, o “sim” absoluto da fé, a obe-diência fiel. Mãe de Deus Filho, viveu de tal modo a Palavra no coração que a encarnou em seu ventre. Identificou-se com seu Filho na caridade e no serviço, até a forma da en-trega total, a ponto de tornar-se íntima colaboradora da obra da redenção, mulher eucarística, mãe dos discípulos de seu Filho. Jesus foi só de Maria. Maria foi só de Jesus. O que Jesus foi, disse e fez, tem muito a ver com o que recebeu de Maria. Esposa e ícone do Espírito Santo, ela foi de tal modo ungida por Ele que concebeu a Palavra em seu ventre e, quando a Palavra crucificada e ressuscitada voltou ao Pai, esteve à frente dos discípulos e discípulas de seu Filho para ser de novo ungida pelo Espírito e colaborar com o advento da Igreja nascente, nas alegrias e angústias da evangelização.

Por essa intimidade com as três pessoas divinas, Maria é imagem do homem novo redimido em Cristo. Em sua Imaculada Conceição, ela sempre foi o que sempre devería-mos ter sido: santos, imaculados. Em sua Assunção gloriosa ao céu, ela já é o que um dia seremos: santos, transfigurados. Ela é também imagem da Igreja. Como Maria da história e Maria da glória, ela é mãe e membro da Igreja a caminho do Reino definitivo.

No interior da Igreja, ela exerce o sacerdócio ma-riano, feminino, maternal, afetivo, eclesial, leigo. Na relação com a Palavra, ela se fez em silêncio. No seu silêncio, fez-se a Palavra. Na sua sombra, fez-se a Luz. Por isso mesmo seu silêncio e sua sombra fizeram-se palavra e luz.

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Ela indica, assim, o perfil mariano da Igreja, tema desenvolvido por Hans Urs von Balthazar. Maria não é um modelo ao qual se olha de fora. Ela é figura da Igreja, de tal modo integrada na Igreja que uma e outra se confundem nos planos de Deus. Assim o sacerdócio batismal dos fiéis, o sensus fidei, o consensus fidelium, a dimensão carismática e ministerial de todo o povo de Deus – temas tão presentes no Concílio Vaticano II – encontram em Maria sua mais perfeita realização. Trata-se aqui do sacerdócio mariano, ápice e mo-delo do sacerdócio de todos os fiéis. Em sua obra sobre a tese balthasariana do perfil mariano da Igreja, Brendan Leahy explica: “A intenção de Von Balthasar não é meramente nos levar a ver Maria como modelo de discipulado individual, válido para qualquer um de nós pessoalmente. O fato de, no Concílio Vaticano II, o capítulo sobre Maria ter sido co-locado dentro da Lumen Gentium evidencia algo mais: trata--se de um marco que convida a uma renovada descoberta do princípio mariano atuante na própria vida da Igreja, de geração em geração. Ao trazê-lo à luz, Von Balthasar quer es-timular uma compreensão da identidade da Igreja em termos de um movimento dinâmico e bipolar entre os dois princípios de unidade que atuam no seio do povo de Deus: o princípio mariano e o princípio petrino” (p. 15).

Eis algo que desafia o modo como muitos presbíteros exercem seu ser e agir. Como o sacerdócio dos presbíteros é petrino, masculino, realiza-se diante da Igreja. Por isso, tem a marca da distinção e corre o risco de pôr-se num pedestal para diferenciar-se do povo. Com isso, pela força da palavra pura-mente humana, pode tornar-se meramente institucional, racio-nal, agressivo. Os presbíteros de hoje são chamados a recordar--se de que antes de sacerdotes petrinos, são sacerdotes pelo

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batismo, na igualdade comum dos fiéis em Cristo, na unção comum do Espírito Santo. São chamados a descobrirem em si mesmos, e respeitarem e valorizarem o sacerdócio dos fiéis, cujo modelo encontra-se em Maria. O sacerdócio de Maria co-loca-se atrás de Jesus, aos pés da cruz, com a Igreja, dispondo--se a ser silêncio que abre espaço para o anúncio e o reforço da Palavra, sombra que possibilita a presença da Luz. Convém lembrar que o próprio sacerdócio de Jesus de Nazaré, mesmo sendo masculino e fonte do sacerdócio petrino, foi também sempre mariano. Foi sempre um sacerdócio laical, exercido com o povo, no meio do povo. O sacerdócio mariano poderá dar ao ser e ao agir dos presbíteros de hoje nova marca e valor, ao lembrá-los que provém do chão e da comunhão eclesial, ao convidá-los a dar um toque mais afetivo e cordial às suas rela-ções com os fiéis, ao motivá-los a serem não somente homens da Palavra, mas também do silêncio orante e acolhedor.

Vale certamente para todo presbítero a intuição de Chiara Lubich que, ao perguntar ao Senhor: “Por que qui-seste deixar-te na Eucaristia e por que, sendo Deus, não en-contraste um modo de deixar-nos também Maria?”, recebeu dele a resposta: “Porque quero vê-la em ti”.

Como homem da Eucaristia, o presbítero há de ter sempre consigo Maria, mulher eucarística. Em sua última encíclica Ecclesia de Eucharistia (EE) sobre a Eucaristia em sua relação com a Igreja, afirma o Beato João Paulo II: “De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a paixão e a ressurreição, coloca--se no prolongamento da encarnação. E Maria, na anuncia-ção, concebeu o Filho divino também na realidade física

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do corpo e do sangue, em certa medida antecipando nela o que se realiza sacramentalmente em cada crente quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o corpo e o sangue do Senhor” (EE, 55). Maria é o primeiro sacrário. Gera Cristo; sofre o sacrifício de Cristo; celebra as primeiras missas com os discípulos e guarda com a comunidade cristã a dignidade da Eucaristia como banquete e sacrifício.

Tendo-a como mãe, amiga, irmã e companheira, cada presbítero poderá tornar-se, como Maria, transparên-cia de Deus. Recordando que carvão e diamante têm as mesmas propriedades químicas, mas um é ardor, outro é luz, um é morte, outro é ressurreição, os presbíteros do novo milênio, na pluralidade dos caminhos que buscam o sagra-do, mas nem sempre levam ao Deus vivo e verdadeiro reve-lado em Cristo, poderão, com Maria, tornar-se transparência do único sacerdócio de Cristo.