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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros VAITSMAN, J. and GIRARDI, S., orgs. Introdução: Debates e tendências na ciência. In: A ciência e seus impasses: debates e tendências em filosofia, ciências sociais e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999, pp. 9-17. ISBN: 978-85-7541-507-8. Available from: doi: 10.747/9788575415078. Also available in ePUB from: http://books.scielo.org/id/g947x/epub/vaitsman-9788575415078.epub. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Introdução Debates e tendências na ciência Jeni Vaitsman Sábado Girardi (orgs.)

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros VAITSMAN, J. and GIRARDI, S., orgs. Introdução: Debates e tendências na ciência. In: A ciência e seus impasses: debates e tendências em filosofia, ciências sociais e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999, pp. 9-17. ISBN: 978-85-7541-507-8. Available from: doi: 10.747/9788575415078. Also available in ePUB from: http://books.scielo.org/id/g947x/epub/vaitsman-9788575415078.epub.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Introdução Debates e tendências na ciência

Jeni Vaitsman Sábado Girardi

(orgs.)

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IntroducaoDebates e tendéncias na ciéncia

Gostariamos de poder admirar tanto Blake eArnold, Nietzsche e Mill, Marx e Baudelaire,Trotsky e Eliot, Nabokov e Orwell, Esberemos quealgum critico nos mostre como os livros desseshomens podem ser reunidos e formar um beloMOSAICO.

Richard Rorty

A epigrafe, escolhida depois que o livro ja estava pronto, nos pareceuperfeitamente adequada ao que tinhamos em mente. Foi tirada de um textoem que Rorty (1992) fala do ironista: alguém com duvidas permanentesacerca do préprio vocabulario, com o qual descrevera uma situacao ou de-senvolvera um argumento instantes atras; que sabe que 0 vocabulario com oqual construira seu argumento pode subscrever nem dissolver essas du-vidas; que nao considera seu vocabulario mais proximo da realidade, ou commaior poder de transcendéncia do que outro; que nao vé a escolha entrevocabularios como um empreendimento realizado a partir de ummetavocabulario neutro e universal, nem como uma tentativa de lutar contraas aparéncias que ocultam o real, mas simplesmente como mais um esfor¢opara inventar oO novo em contraposicao ao velho.,

Para nos, organizadores, € esse o espirito do livro, que surgiu da vonta-de de expor, por um lado, uma pequena parte de um debate que, emboraantioo, sempre se desdobra em novas formulacdes sobre o estatuto, o meto-do e a natureza da ciéncia, af incluidas as ciéncias sociais; e por outro, deapresentar também alguns modos possiveis de fazer ciéncia, em se tratandode relacdes humanas e sociais.

O livro reine — é dificil evitar a tentacao de classificar as coisas deforma disciplinar — textos que mesclam filosofia, historia, antropologia, lin-gilistica, epistemologia, sociologia, literatura: sao fildsofos, historiacores,

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A cieéncia e seus tmpasses

médicos, linguistas, sociologos, antropdlogos. Certamente, cada autor traz umpouco de cada um e dos Aabitus constitutivos de suas comunidades disciplinarese profissionais. Assim, eles refletem sobre como a ciéncia vem sendo feita epensada como pratica nos campos em que atuam.

A medida que recebiamos os textos, a diversidade entre eles evocou ofantasma da unidade que, pensavamos de antemdo, ja haviamos éxorcizado.Sera que apresentariam coeréncia, se colocados juntos.em um mesmo volume?Foi Luiz Eduardo Soares quem, de certa forma, nos deixou mais a vontade parareunirmos trabalnos que poderiam parecer dispares entre si, quando, conversan-do a respeito, ele nos lembrou que nisso poderia consistir justamente a riquezada coletanea — a heterogeneidade de discursos possiveis existentes nas ciéncias.Afinal, de certa forma, essa era nossa inten¢ao inicial, ainda que — talvez naomuito conscientemente — esperassemos maior convergéncia entre os pontos devista caracteristicos de uma certa contemporaneidade discursiva. Foi ai que nosdemos conta da dificuldade de se desfazer da compulsdao pela busca da unidadecomo ilusdo positivista.

Procuramos apresentar os textos em uma ordem que possibilite ao leitorseguir uma certa logica. Na primeira parte do livro, o debate propriamentefilosofico — ja duvidamos em chama-lo epistemoldgico — entre autores que, deum lado, reivindicam-se herdeiros do projeto iluminista reformado, e de outro,aqueles que se vinculam a uma abordagem pragmatista do conhecimento. Osprimeiros tem em comum a idéia de que a ciéncia 6 um conhecimento verda-deiro e, mesmo que admitam seu carater provisOrio, consideram-na um tiposuperior de conhecimento; os outros enxergam a ciéncia como mais uma for-ma de vida, uma linguagem possivel entre outras linguagens, incomensuraveisem sua logica interna.

Na segunda parte do livro, a questao da representacao pela linguagem éretomada, agora nao mais como discussdao sobre os fundamentos da ciéncia, mascomo produtos de pesquisas empiricas realizadas pelos autores ou como atividadereflexiva sobre sua pratica.

Nao € nossa intencao estabelecer logo de saida uma tipologia tedrica ouepistemologica, até porque, suspeitamos, com esse procedimento, nao conseguiria-mos abarcar as nuances, matizes, singularidades dos distintos autores, que 4s vezes,conforme veremos, transitam em lapsos displicentes — se nos permitem a met4fora —de um lado para o outro. Com isto queremos dizer que iremos inscrevé-los apenasprovisoriamente, aqui ou ali, dentro de uma corrente ou vertente maior da contendaque divide universalismo e objetivismo versus relativismo e subjetivismo.

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A primeira parte do livro beneficiou-se enormemente da série de pales-tras — da qual reproduzimos apenas uma — realizadas pelo professor PeterMunz, da Universidade de Victoria, em Wellington, Nova Zelandia, e comen-tadas pelos professores Paulo Roberto Margutti Pinto e Renan Springer deFreitas, no semindrio O Projeto Iluminista e seus Inimigos Naturais, organiza-do por este Ultimo na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belozonte, durante o segundo semestre de 1996. Nesta primeira parte, pela con-vergéncia de objeto, incluimos o texto de Cristina Magro.

Embora antiga, a discussdo entre objetivistas e subjetivistas dos maisdiversos matizes nao deixa de ser menos atual. Quisemos, ao expor algumasde suas versdes, apontar fissuras — no duplo sentido da palavra ~ mesmodentro daquilo que constituiriam comunidades epist€micas ou de pensamen-to, para usarmos imagens desenvolvidas de distintas maneiras por fildsofos ehistoriadores da ciéncia como Peirce, Fleck, Kuhn e Apel.

Esse debate inicial apresenta a riqueza de possibilidades que umateoria, uma idéia, pode ter, mesmo 4 revelia da intencdo de seu autororiginal. Questao sempre lembrada nas ciéncias sociais e que se refere ainterpretacao dos textos, implicando disputas, pelos herdeiros de aleumatradi¢ao acerca dos possiveis sentidos dados pelo autor original e as inter-pretacoes e retraducdes de seus seguidores. O que ha de interessante nisso€ a referencia obliqua as infinitas possibilidades da acao e do pensamentohumanos de criar - coisas e palavras - e com isso edificar complexossistemas sociais, culturais, tedricos.

Os textos apontam para diversas possibilidades sobre o que constitui o*fazer ciéncia, sobre a linguagem que diferentes cientistas — As vezes, elesmesmos — usam para falar sobre o mundo e as praticas humanas. Além dacontemporaneidade desses antigos dilemas, nossa intencao é também que osartigos possam servir como referéncia, ponto de apoio para tantos que seaventuram pelo campo da producdo de conhecimento em filosofia, ciénciassociais e salide.

Falando um pouco do primeiro conjunto de textos, as posicées desen-volvidas pelos varios autores expdem a diviséo entre neopopperianos epragmatistas na comunidade dos investigadores. Em comum, ambas as pers-pectivas criticam as teses iluministas no seguinte sentido: o conhecimentocientifico nao conduz infalivelmente a verdade. A aguda diferenca revela-sesobre O seguinte ponto: possui a ciéncia, objetivamente, privilégio sobreoutras formas de conhecimento? Os primeiros autores, seguindo as sugestdes

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A cieénctad e seus tmpasses

de Popper, buscam fundamentar uma resposta positiva a esta questao, apoian-do-se em uma teoria da evolucao que atribui ao discurso racional e critico acapacidade de fazer avancar o conhecimento; os segundos sustentam a tese daincomensurabilidade das formas de vida e de conhecimento.

Peter Munz, fazendo um breve e sedutor passeio pela histéria dasrazoes do Iluminismo, chama a atencao, entre outras coisas, para o proble-ma da linguagem. Ele espanta-se com o fato de os iluministas terem.aceitodurante tanto tempo — uns Dons duzentos anos — a tese de que a linguagemé um meio neutro de representacdes de.fatos exteriores a ela, objetivos eindependentes. Nietzsche teria sido o primeiro pensador a abalar radical-mente tal “confianca na transparéncia da linguagem”, em sua capacidadede representar, mais ou menos fielmente, o mundo, Ao ensinar que aspalavras e as coisas sao incomensuraveis, ele abalou definitivamente a crencado primeiro Iluminismo na potencialidade da linguagem carregar informa-cOes inequivocas sobre 0 mundo.

Como advogado do projeto iluminista naquilo que ele tem de mais sedu-tor — a possibilidade de libertacao da tutela e a realizacao da autonomia — .Munz considera séria e sinceramente essas criticas, que denunciam os limites eapontam uma certa ingenuidade original — poderiamos com um pouco desenerosidade ver as coisas assim. Negar a tutela, divina ou tradicional, inclusi-ve a da tradicao mais elevada da civilizacdo grega, significa contar com a razaode um sujeito falivel — o errar € humano antes do Iluminismo —, de um indivi-duo com empostacao empirica que vive numa comunidade e ao mesmo tem-po € — ou faz de conta que € — um portador tencionado de valores Cuniver-sais?), Além disso, esse individuo vive cotidianamente o problema dos julga-mentos morais, ou aquilo que, abusando novamente das metaforas, poderia-mos descrever através da figura de um péndulo que ora se inclina para osentido do dever inexoravel — o imperativo categdérico de Kant — ora para osentido do “porque deveria eu fazer algo?” Ou seja, no sentido niilista deNietzsche: “ dé-me umd razao que eu te mostrarei, em aleum momento, a teiade mentiras que acobertam a vontade de poder por tras dessa racionalizacao”.Finalmente, ha o problema da verdade: como reconhecer algo como verdadei-ro se as palavras, quando muito, relacionam-se com as coisas de forma obliquae indireta, de forma metaforica? Nao seria a propria verdade uma metametafora,uma nocao caucionafia, para usarmos a expressao de Rorty, uma espécie dealerta que tem o sentido de evitar o sabidamente falso? Essa ultima nocadopoderia com algum esforco ser atribuida ao proprio Popper.

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Introducdo: Debates e tendéncias na ciéncia

Mas sera como advogado do projeto iluminista, e ciente de todas essas‘circunstancias’ que O oprigam a uma redescricao da sua defesa, que Munzpreferiria que a circunstancia nietzscheana nio se tivesse juntado aos autos otestemunho de Wittgenstein, especialmente o ponto em que ele declara queOs participantes de uma forma de vida, além de criadores, sao prisioneiros dalinguagem, Se a prisao da. regra da lingua fosse uma nova forma da tutela,nacia mais natural para um ‘emancipacionista’ que apelar a uma forma impre-cisa e incerta da referéncia as coisas. Esse € o sentido de pensar que pode-mos aprender muito sobre as coisas se tivermos em conta que a referéncia éobliqua e indireta e que a verdade 6 incerta.

Renan Springer de Freitas alinha-se com Peter Munz no ataque ao queeles consideram exageros dos pdés-modernos. Contra as tentativas derelativizacao dos fatos e feitos da ciéncia realizadas por autores como Kuhn.Bloor, Winch, Latour e Foucault — que adotariam, de diferentes maneiras, oprincipio pragmatico de que ciéncia é aquilo que os cientistas fazem — elesustenta, juntamente com os objetivistas, a superioridade da ci€éncia comotipo de conhecimento.

Seguindo as indicagdes de Popper, especialmente na polémica comKuhn, Renan Springer de Freitas defende que o conhecimento cientifico naotem relacdo com crencas nem com regras de comunidades mais ou menoscircunscritas de cientistas, mas com a possibilidade de produzir erros e supera-los. A possibilidade da correcao temporal dos erros est4 no limite dessano¢ao evolucionaria da ciéncia e € exatamente isso que afirma ao mesmotempo sua veracidade e objetividade, ainda que provisoriamente. Nesse sen-tido, ele nao encontra qualquer dificuldade em identificar maior veracidadena explicacdao fisiol6gica do adoecer prevalecente na nossa medicina cientt-fica do que, por exemplo, na explicacao magica da origem das enfermidadesda cultura Zande. Nossa explicacdo, segundo essa perspectiva, é melhor esobretudo mais verdadeira apesar de nfo ser infalivel. A abertura de nossasexplicagdes cientificas ao criticismo € ao mesmo tempo pré-condiciio e ga-rantia de sua maior qualidade epistemolégica em relacdo as explicacéesmagicas Ou miticas das culturas tracdicionais. Enquanto Kuhn e, mais radical-mente, Feyerabend levantariam por aqui o problema da incomensurabilidade.Renan Springer de Freitas nao vé problemas de comparabilidade entre teoriascrescidas de distintas culturas. A coeréncia das diversas teorias em relacdoaos fatos e valores que se pretende explicar é considerada como critériouniversal de E nesta medida também que ele considera absolu-

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A ciéncta e seus impasses

tamente inapropriada a analogia entre ciéncia e jogo. A metafora do jogo éimpropria para a ciéncia, segundo ele, porque anularia os maiores feitos daciéncia... normal. A conformidade a regras seria pertinente apenas para osjogos, a propria evolucao do conhecimento cientifico ja o teria demonstradosobejamente. Afinal, grande parte das maiores descobertas cientificas teriamimplicado a transgressao das regras da propria ciéncia normal.

Os textos de Paulo Roberto Margutti Pinto apresentam uma contraposicaoaos dois primeiros autores. Ele parte da divisao na filosofia contemporaneaentre as abordagens semdantica e pragmatica do conhecimento. A primeira,representacionista e metafisica, almejaria a esséncia Ultima das coisas, com aconcepcao de que a linguagem, para além dela mesma, representaria algoque existiria externa e objetivamente no mundo. Essa perspectiva, que eledefine como semantica, estaria voltada para a esséncia, para a verdade darepresentacao, para a fundamentacao ultima. Por outro lado, a abordagempragmatica do conhecimento, a qual ele adere, conceberia a linguagem deforma instrumental, entendendo o conhecimento como adequacado entre osseres humanos e 0 meio ambiente. Como conseqliéncia, essa concepcaobuscaria explicagcdes menos ambDiciosas e sobretudo marcadas por um caraterpontual e falibilista.

Na mesma vertente, Cristina Magro afirma que a ciéncia nao passaria deuma inventiva manufatura humana, contextualizada no tempo e no espago.A adesao a estética da regularidade e das generalizacOes como forma deapresentacao de seu produto, bem como a proclamacao da objetividade e daracionalidade rigoristas como seu método consistiriam sua marca de origem.Ela insiste no carater arbitrario das nossas distincdes entre quest6es de valore quest6es de fato na pesquisa contempordnea, chamando a atencdo para anatureza parcial e partidaria do trabalho cientifico. Caminhando no limiardessas fronteiras que, de uma outra perspectiva, também corresponderiam atradicional separacao entre os dominios da moral e da ciéncia, entre o subje-tivo e o objetivo, Cristina Magro permite trazer a baila o problema da respon-sabilidade ética dos cientistas. Para ela, a se manter tais dicotomias, pragma-ticamente irrelevantes, seria entao preciso lembrar que a subjetividade éconstitutiva da objetividade.

Na segunda parte do livro, dois artigos apresentam, a partir de dadosempiricos, aleuns dos modos possiveis de fazer ciéncia, enquanto os outrosdois constituem reflex6es sobre os modos e métodos utilizados nas praticascientificas em seus respectivos campos. Se quiséssemos nos ater as origens

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IntroducdG@o: Debates e tendéncias na ciéncia

disciplinares desses autores, dirfamos que se trata de dois cientistas sociais edois médicos, ainda que, estes ultimos, ao atuarem no vasto e complexocampo.chamado “satide coletiva”, de certa maneira também tenham se torna-do cientistas sociais. Subjetividade e narrativas sAo centrais em todos os tex-tos, OS quais, de uma Ou Outra maneira, revelam como hoje aparecem comoincOmodas as batreiras que se instituiram na trajetoria da ciéncia moderna.entre os diferentes métodos e campos disciplinares. Ainda que reconhecen-do novamente o perigo das tipologias redutoras, poderiamos sugerir que ostrés primeiros artigos convergem para a tendéncia pragmAatica, anti-representacionista, enquanto o ultimo enfatizaria a idéia de um dominio deobjetividade proprio da ciéncia.

Explorando as possibilidades que os métodos e teorias que pertenceriamao campo da critica literaria apresentam para o objeto e o projeto teGricoda sociologia, Luiz Eduardo Soares propde um procedimento para além dacoopera¢ao interdisciplinar e, com isso, avanca no caminho dadaquilo que, como parte de um paradigma da complexidade, Morin cha-mou de ‘nova transdisciplinaridade’. Lidando com os dilemas determina-¢ao/imprevisibilidade, necessidade/acaso, unidade/pluralidade, estamosdiante de um mundo de possibilidades em aberto, nao s6 das trajetériasindividuais que se desenrolam nas narrativas dos presididrios entrevistados.mas também no que se refere as prdéprias possibilidades te6ricas eepistemologicas das ciéncias sociais. A analise das narrativas, ao recuperaros movimentos tortuosos e ambivalentes que povoam as experiéncias indi-viduais, Os motivos conflitantes e as explicacdes alternativas que levaramao crime, faz aparecer a pluralidade de mundos morais e a multiplicidadede personagens constitutivos de um mesmo sujeito — “o novelo que seapresenta sob a aparéncia da unidade”.

Em direcao similar, o artigo de Maria Isabel Mendes de Almeida abordaalguns impasses colocados pelo conceito de ‘representacao’ para se analisarnarrativas. Refletindo sobre sua experiéncia como pesquisadora, ela compar-tilna com o leitor aquilo que sente.como os paradoxos da abordagem docientista social. Analisando a subjetividade masculina, percebeu como seuobjeto movimentava-se permanentemente em interacado com ela, o sujeito dapesquisa. Ou seja, o objeto que pretendia delimitar, s6 podia ser percebidocomo relacdo em determinadas situagdes, como interacao entre dois sujeitos:isso, ao mesmo tempo, apontou-lhe os limites da categoria ‘representacdo’,por demais aplainadora e simplificadora para captar os matizes da subjetivi-

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A ci@énciad e seus impasses

dade em seus diversos momentos. Para ela, os limites e conteGdo de seuciscurso sobre a subjetividade masculina foram dados por sua prdpria subje-tividade pessoal.e de género, que se colocou como “contrapartida comple-mentar e enriquecedora de seu objeto de investigacao”.

Os dois artigos seguintes tratam do dilema subjetividade/objetividadeno campo das praticas médicas. Luis David Castiel discute as implicacdes dasubjetividade e da singularidade dos sujeitos para as categorias universalizantes.generalizadoras e pretensamente objetivas construidas pela medicina moder-na, particularmente a clinica; Ele nega a possibilidade de uma ciénciageneralizadora sobre o ser humano, pois cada paciente constituiria um cam-po de incertezas: os casos tendem a ser Uinicos, singulares e as pessoas, bemcomo seus modos de adoecimento, variam. O conhecimento sobre o sernumano seria necessariamente particular e a criatividade, indispensavel noprocesso clinico.

Uma das questOes levantadas é que os médicos sao faliveis, nem sem-pre se pautam pela dita racionalidade l6gico-cientifica. As narrativas — mistode historias e estOrias — s4o centrais para a pratica e o discurso da clinica.tanto do ponto de vista do paciente quanto do médico. O diagnéstico e aprescricao tambem sao construidos nas interacdes por meio de narrativas e omédico elabora seus procedimentos clinicos na interacao com o paciente, emboraos textos médicos frequentemente descrevam “a medicina como ciéncia, mes-mo diante da perceptivel incerteza de sua pratica”,

Esses tr€s artigos tratam nao apenas da dimens4o interativa na produ-¢ao dos fenémenos sociais e humanos — entre os quais as relac6es entresujeito e objeto — , mas também do problema da linguagem como ‘represen-tacao da realidade’. Neste caso, o que esta colocado é a dificuldade dos con-ceitos cientilicos conseguirem apreender as experiéncias vividas pelos sujei-tos, captar seus multiplos 4angulos, em uma operacdo que, longe de ser trans-parente, implica redu¢ées, selecdes, recortes — e reconstrucao em um ‘texto’elaborado pelo pesquisador.

O trabalho de José Mendes Ribeiro, por outro lado, parte da concepcaouniversalista de que ciéncia € o dominio da objetividade, mas uma vez quenao considera a pratica médica como ciéncia e sim como técnica, ela naopoderia ser reduzida aos fundamentos da ciéncia — as idéias de certeza ereprodutibilidade. Na medicina, a singularidade do individuo e de seu adoe-cer, bem como a subjetividade de cada médico imp6em-se sobre cada situa-cao. Nesse sentido, as decisOes médicas pertenceriam estritamente ao domi-

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introducdo: Debates e tendéncias na ciéncia

nio da subjetividade, ao mesmo tempo em que se constituiriam na prépriarelacao intersubjetiva. Ainda assim, os médicos tentariam dissolver os ele-mentos tecnicos mais subjetivos em uma imagem cientifica plena, tendendoa Ciluir os componentes artisticos e incontrolaveis, nitidos em seus processosdecisorios. Sendo os médicos os intérpretes dos usos que podem fazer datécnica, a incorpora¢ao da tecnologia 4 pratica médica ampliaria, inclusive, aalirma¢cao da autonomia do médico e, portanto, da subjetividade, diante deseu Objeto — o adoecer humano.

Embora a riqueza dos textos aqui reunidos possa sugerir outros des-dobramentos, de um modo geral, gostariamos de ressaltar que eles revelampelo menos duas tendéncias atuais nos discursos da ciéncia ou sobre aci€ncia. A primeira constitui a busca de novos métodos e vocabulario porparte de varios cientistas, visando a construcao de um arcabouco conceitualque permita, por um lado, integrar elementos — sociais, biol6gicos, psiqui-cos etc. — que foram separados e até mesmo opostos pelas diferentes disci-plinas cientificas; e por outro, e como parte do mesmo esforco, que possi-bilite a rearticulagao tedrica e empirica dos distintos niveis de emergénciados fenOmenos humanos e sociais.

A segunda tendéncia consiste no fato de que, tendo rufdo a idéia de ‘unida-de da ciéncia’, o conhecimento hoje se apresenta como miltiplas possibilidadesdescritivas. Para além dos debates tedricos e tendéncias analiticas, as ci€éncias eseus metodos, ao perderem a pretensao de revelar certezas de aceitacao univer-sal e racionalmente inquestionaveis, ja nado deveriam mais propor-se a umamissao que, em si mesma, reivindicasse, para além do bem e do mal, a condicaiode legitimar verdades. Isso poderia significar — na perspectiva de Rorty (1992) —que a ci€ncia se voltasse para aquilo que é€ mais Util e justo para as pessoas,fazendo com que o problema de sua relacdo com a ética e a politica se colocassecomo um dos pontos centrais da agenda cientifica contemporanea. Nesse caso,a pertinéncia das praticas cientificas nao deveria, hoje, prescindir de uma discus-sao sobre o alcance e o sentido de seus produtos.

Jeni Vaitsman e Sdoado Girardi

Referéncias bibliograficas

Rorty, R. frony, Contingency and Solidarity. New York: Cambridge University Press, 1992.