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1 2º CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE UNIVERSALIDADE, IGUALDADE E INTEGRALIDADE DA SAÚDE: UM PROJETO POSSÍVEL INTERPROFISSIONALIDADE NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: condições de possibilidade para a colaboração interprofissioal Autores Ana Ecilda Lima Ellery Ricardo José Soares Pontes UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ BELO HORIZONTE 2013

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2º CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE

UNIVERSALIDADE, IGUALDADE E INTEGRALIDADE DA SAÚDE: UM PROJETO

POSSÍVEL

INTERPROFISSIONALIDADE NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA:

condições de possibilidade para a colaboração interprofissioal

Autores

Ana Ecilda Lima Ellery

Ricardo José Soares Pontes

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

BELO HORIZONTE

2013

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INTERPROFISSIONALIDADE NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA:

CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE PARA A COLABORAÇÃO

INTERPROFISSIONAL

INTERPROFISSIONALIDADE IN FAMILY HEALTH STRATEGY:

CONDITIONS OF POSSIBILITY FOR INTERPROFESSIONAL COLLABORATION

Título resumido:

INTERPROFISSIONALIDADE NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA

Palavras chaves: Relações interprofissionais, Equipe de assistência ao paciente, Programa

Saúde da Família

Créditos a órgãos financiadores da pesquisa, se pertinente

Financiamento: CAPES

3

Introdução

A organização do trabalho numa equipe da ESF constitui-se num desafio, face à

necessidade de superar “atuações fragmentadas, mantenedoras do isolamento e das relações

de poder entre os profissionais e destes com os usuários dos serviços, que inviabilizam a

produção do trabalho em equipe desejado na atenção à saúde mais integral e resolutiva”.

(COSTA, ENDERS; MENEZES, 2008, p. 534-5). Um dos fatores que contribui para a

atuação fragmentada dos profissionais é a própria formação. As equipes são constituídas por

trabalhadores de categorias diferentes, formados na lógica da profissionalização (FURTADO,

2009, 2007; D‟AMOUR, 1997), marcada pela delimitação estreita de territórios de cada grupo

profissional, como forma de controle e reserva de mercado. As profissões têm como

características o fato de serem competitivas, estarem contidas em áreas de atuações inseridas

no mercado, visarem a rendimentos materiais e ao lucro.

Nesta perspectiva, Furtado (2007, 2009) e D`Amour (1997) identificam a

existência de duas lógicas antagônicas com as quais os profissionais são confrontados no seu

cotidiano: a da profissionalização e a da colaboração interprofissional. Diferentemente dos

autores referidos, consideramos interagirem entre as lógicas da profissionalização e da

colaboração interprofissional forças “contraditórias”, numa visão dialética, e não

“antagônicas”. Dizemos isto porque se considerarmos serem as forças antagônicas, elas não

poderiam coexistir; enquanto na perspectiva do conceito da contradição, consideramos serem

forças coexistentes, estando em permanente conflito. Isto porque, se, por um lado, o

profissional se considera ameaçado, tendendo a fechar-se ou até mesmo a boicotar o colega de

trabalho; de outra parte, pode também, em determinadas situações, sentir necessidade de

colaborar com um colega, pela necessidade da resolubilidade do problema do usuário e / ou

por sentir ser sua atuação insuficiente para dar conta da complexidade das “situações limites”

(FREIRE, 2009) enfrentadas. Na lógica na qual o trabalhador é tradicionalmente formado, ou

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seja, na profissionalização, ele deve controlar e reservar mercado, buscar ser o mais resolutivo

para ter maior poder de barganha no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, no entanto, a

complexidade das situações limites vivenciadas no cotidiano da saúde, a compreensão de ser o

processo de saúde e doença amplo, desafia os profissionais a colaborarem, apesar de seus

medos, de seus sentimentos ambivalentes e contraditórios.

Justificativa

A interprofissionalidade constitui-se num critério fundamental que orienta equipes

multiprofissionais na Estratégia Saúde da Família (BRASIL, 2008), devendo ser os processos

de trabalho nas equipes multiprofissionais da ESF, estruturados priorizando atendimento

compartilhado para uma intervenção interprofissional, com troca de saberes e

responsabilidades mútuas (BRASIL, 2008). Isto, contudo, não é simples, porquanto estão

envolvidos aspectos subjetivos, questões de poder, de status social, de “medo do novo”, que

tornam a interprofissionalidade uma temática complexa. Scherer e Pires (2009) consideram

ser a interprofissionalidade prescrita para o trabalho na Estratégia de Saúde da Família “um

processo complexo e contraditório, a depender fundamentalmente de atitude individual dos

profissionais. Considerando a relevância da Estratégia Saúde da Família no Brasil que

implantada em 5.284 municípios, com 32.079 equipes de Saúde da Família, constituídas por

profissionais de vários campos disciplinares, privilegiando uma diversidade cada vez maior de

categorias profissionais, são postas questões fundamentais, orientadoras deste estudo, como se

seguem: Seria possível profissionais formados na lógica da profissionalização construírem um

projeto interprofissional na ESF? Existem estratégias que facilitam a organização dos saberes

e práticas de um leque cada vez mais amplo de profissões, organizando-os em benefício dos

usuários e de uma melhor resolubilidade dos serviços de saúde?

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Objetivo

O artigo tem como objetivo compreender as relações interprofissionais na produção do

cuidado na Estratégia Saúde da Família, explorando condições de possibilidades que facilitem

o trabalho interprofissional na Atenção Primária à Saúde no Brasil

Método

Trata-se de um estudo de caso, de natureza qualitativa, inspirado na Hermenêutica, de Hans

G. Gadamer (1979), como prática filosófica; e na Fenomenologia Hermenêutica, de Paul

Ricoeur (1986), para a produção do conhecimento. O cenário de estudo é um Centro de Saúde

da Família, em Fortaleza, Estado do Ceará. A recolha das informações foi procedida no

período de março a agosto de 2011, com realização de entrevistas abertas, observação das

atividades desenvolvidas pelas equipes e realização de oficinas de produção de conhecimento,

envolvendo 23 profissionais da ESF, Núcleos de Apoio à Saúde da Família e residentes de

Medicina e de Saúde da Família e Comunidade.

Referencial teórico

O conceito de interprofissionalidade adotado no estudo se baseia em Colet (2002), que

trabalhou com o conceito de interdisciplinaridade, sendo esta resultante da síntese entre a

integração de saberes e a colaboração profissional. Ellery (2002) considera, entretanto, que a

integração de saberes e o compartilhamento de práticas são processos mediados pelos afetos,

não sendo resultado apenas de uma dimensão cognitiva, onde ocorre a integração de saberes;

e de uma dimensão pragmática, onde tem lugar o compartilhamento de práticas. No cotidiano

dos serviços, referido processo é mediado por questões subjetivas, posto que integrar saberes

e compartilhar práticas são processos perpassados pelos medos, pelos afetos, o que se

constitui na dimensão subjetiva da estrutura conceitual da interprofissionalidade, expressa na

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figura 1. Nesta perspectiva, a interprofissionalidade é também uma produção afetiva.

Figura 1 – Estrutura Conceitual da Interprofissionalidade

Dimensão

Subjetiva

Dimensão Pragmática

Dimensão

Cognitiva

Fonte: Ellery (2012).

No contexto da discussão da interprofissionalidade, necessário se faz diferenciar

os sufixos “disciplinar” e “profissional”, amplamente empregados com os prefixos “multi”,

“inter” e “trans”. Disciplinar refere-se ao plano epistemológico, à vertente dos saberes, no

nível mais teórico do conhecimento; “profissional” refere-se às práticas concretas, ao campo

de atuação das equipes e dos serviços (D‟AMOUR, 1997; FURTADO, 2009). No campo da

prática propriamente dito, parece-nos mais apropriado falarmos de interprofissionalidade. No

cotidiano da saúde, contudo, diferentes “saberes” disciplinares estão envolvidos e se

materializam em práticas profissionais diversificadas; portanto, acreditamos que para

analisarmos as relações entre as disciplinas e os profissionais, os conceitos “interdisciplinar”

(nível epistemológico) e “interprofissional” (nível da prática) são indissociáveis. Isto porque

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na ação concreta dos profissionais, os saberes também estão, necessariamente, presentes.

Furtado (2009) considera ser a interprofissionalidade o correlato da interdisciplinaridade nas

práticas de saúde.

Outro referencial teórico utilizado no estudo é a Teoria da Comunidade de Prática

(WENGER, 2009), como modo coletivo de aprendizagem para a integração de saberes e

compartilhamento de práticas. No cotidiano dos serviços de saúde, onde a lógica da

profissionalização coabita com a necessidade da socialização de saberes e da colaboração

interprofissional, marcas da interprofissionalidade (COLET, 2002), julgamos relevante o

conhecimento e discussão do conceito da Comunidade de Prática (CP), pelo seu potencial na

pactuação de um projeto comum, facilitando a interprofissionalidade na Estratégia Saúde da

Família. Assim, discutimos a Teoria Social da Aprendizagem, desenvolvida por Wenger

(2009), com base em estudos etnográficos, situando-a num contexto de uma experiência de

participação vivida no mundo, mais especificamente, numa “Comunidade de Prática”. Na

concepção da CP, a aprendizagem não se dá apenas nas escolas, nas universidades. Antes, a

aprendizagem é um processo social, contínuo.

Resultados e discussão

A pesquisa realizada mostrou serem as relações interprofissionais na ESF

complexas, havendo vários aspectos que influenciam e vêm oportunizando a construção de

projetos interprofissionais. Na compreensão da complexidade das relações interprofissionais,

identificamos condições de possibilidade para a interprofissionalidade na Estratégia Saúde da

Família, sintetizadas em três dimensões principais - organizacional, coletiva e subjetiva -

representadas na Figura 2.

Figura 2 - Condições de possibilidade da interprofissionalidade na Atenção Primária à Saúde

8

Fonte: Ellery (2002)

Na seqüência, discutimos cada uma destas dimensões, enquanto condições de

possibilidade para a efetivação da interprofissionalidade.

1 Dimensão organizacional

Incluem-se nesta dimensão os dispositivos e arranjos institucionais (Campos e

Domitti, 2007), suportes para as atividades interprofissionais. Três dispositivos e arranjos

institucionais principais dão suporte fundamental ao desenvolvimento da

interprofissionalidade na saúde, quais sejam: a estruturação de uma “Rede de Saúde –

Escola”; a “educação permanente interprofissional” e a “abordagem centrada nas

necessidades do usuário”.

1.1 Rede de Saúde-Escola, integrando ensino, pesquisa e serviços de saúde

O Município de Fortaleza, locus do estudo empírico, adotou, a partir de 2006,

uma estratégia de gestão, denominada “Sistema Municipal de Saúde-Escola” (BARRETO et

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al., 2006). Por meio deste sistema, todas as unidades de saúde do Município passaram a se

constituir em unidades de saúde-escola, sendo lugar não apenas de prestação de serviços de

saúde, mas também de ensino e de pesquisa.

A estruturação de uma Rede de Saúde-Escola é concebida como estratégia, que

permite acelerar a “formação e a capacitação dos profissionais de saúde em coerência com os

princípios e diretrizes do SUS, bem como propicia a construção de “cenários realistas” de

ensino, prestação de serviços e pesquisa que possibilitam a qualificação dos três.”

(BARRETO et al., 2007, p. 8). FRENK et al. (2010), ao analisarem três gerações de reforma

nos sistemas de formação dos profissionais de saúde, consideram ser a tendência atual da

educação integrar-se aos sistemas de cuidados em saúde (“Health-education systems”), de

forma a tornar a educação contextualizada, significativa, com impactos na melhoria dos

sistemas de saúde.

Corroborando com a literatura especializada referida, o presente estudo revelou a

importância da estruturação de Sistemas Municipais de Saúde Escola para a construção da

Interprofissionalidade, considerando ter referido sistema expandido a presença de programas

de ensino e pesquisa nas unidades de saúde. Consideramos, portanto, constituir-se a

transformação das redes assistenciais de saúde de um município em espaços de ensino e

pesquisa uma condição relevante para facilitar a interprofissionalidade na ESF.

A residência proporciona um aprendizado fora do comum. Você acaba

se relacionando com profissões que você não conhecia. (...) A

residência acaba ampliando estes horizontes, da gente perceber que a

gente sozinha não basta, que a gente precisa sim da ajuda, das

competências de outros profissionais (ASSISTENTE SOCIAL).

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A integração ensino, pesquisa e serviços, mediante a estruturação de “Redes de

Saúde-Escola” se mostra, portanto, como estratégica para o desenvolvimento de projetos

interprofissionais na ESF, por aperfeiçoar os modelos de formação e de educação permanente

dos trabalhadores da saúde.

1.2 Educação permanente interprofissional

Outro dispositivo essencial que contribuí para a interprofissionalidade é a educação

interprofissional. Esta ocorre quando estudantes de duas ou mais profissões aprendem sobre

cada uma, permitindo a colaboração efetiva e melhorando os resultados da saúde (WORLD

HEALTH ORGANIZATION, 2010). A educação interprofissional configura-se como um

passo necessário para preparar a efetivação da prática colaborativa, de forma que os estudantes

e os profissionais estejam mais bem preparados para vivenciarem um projeto em comum de

intervenção e responder às necessidades locais de saúde (WORLD HEALTH

ORGANIZATION, 2010).

A educação interprofissional tem lugar não somente na formação, quando

estudantes têm a oportunidade de conviver com estudantes de outras categorias e aprender

sobre outras profissões, mas também em relação aos próprios trabalhadores do SUS, na

educação permanente.

O conceito de educação permanente em saúde se encontra bem estabelecido no

Brasil, sobretudo após a instituição da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde

(PNEPS), em 2004, modificada em 2007, que dispõe sobre novas diretrizes e estratégias para

sua implementação. A partir da PNEPS, a educação dos profissionais de saúde passou a ser

considerada como uma ação finalística da política de saúde para o desenvolvimento da

qualidade do trabalho, sendo este o aspecto diferencial, configurado sob o conceito político-

pedagógico da Educação Permanente em Saúde (CECCIM, 2005). Trata-se de uma proposta

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de ação estratégica que visa a contribuir para transformar e qualificar as práticas de saúde, a

organização das ações e dos serviços neste setor, bem como os processos formativos e as

práticas pedagógicas na formação e desenvolvimento dos trabalhadores de saúde.

Consideramos ser necessário ampliar a concepção da educação permanente em

saúde, incorporando a dimensão da interprofissionalidade, de forma a contribuir para a prática

em colaboração entre os trabalhadores da ESF. Se, a despeito dos esforços empreendidos, os

profissionais continuam a ser formados hegemonicamente na lógica da profissionalização,

baseada na diferenciação entre os profissionais (FURTADO, 2007, 2009), não podemos

prescindir de otimizar a educação permanente, implantando uma sistemática de sua

operacionalização promotora da interprofissionalidade. Desta maneira, as estratégias de

“educação permanente interprofissional” devem ser planejadas e realizadas não por

categorias, mas disseminando oportunidades de trabalho, estudo, pesquisa e reflexões no

coletivo dos profissionais, das mais diversas profissões que atuam na atenção primária à

saúde.

1.3 Abordagem Centrada nas necessidades da Família (ACF)

Como o estudo enfoca a Estratégia Saúde da Família, as necessidades são focadas

na família e não apenas na pessoa individual.

No panorama da atenção primária à saúde no Brasil vem se processando a

ampliação dos saberes e práticas na ESF, sobretudo com a criação dos Núcleos de Apoio à

Saúde da Família (NASF), que vêm incorporando gradativamente diversas categorias, de

forma a ampliar a resolubilidade da atenção primária à saúde. Considerando haver 14

profissões reconhecidas como integrantes da área da saúde no Brasil, se a organização dos

serviços e dos processos de trabalho continuar a ser pautada pelos interesses das corporações,

não haverá interprofissionalidade possível. Além disso, a persistir a hegemonia da lógica da

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profissionalização na organização dos cuidados em saúde, corremos o risco de as unidades de

saúde se transformarem em campos de batalha por prestigio, status e poder entre profissionais

de diversas formações acadêmicas e mesmo entre especialistas médicos.

Consideramos ser necessário definir um quadro teórico de referência do projeto,

que fortaleça a interprofissionalidade, enfraquecendo as lutas corporativas nas organizações de

saúde. A necessidade de definir o quadro de referência que embasa o projeto interprofissional é

considerada por Colet (2002) como um dos indicadores da interprofissionalidade. Este quadro

de referência trará implicações na organização dos serviços de saúde, impactando na

composição da equipe de trabalho, nos processos de trabalho e na gestão de pessoas. Na

definição de uma ação profissional, na estrutura de um serviço, o principal é questionar-se

sobre qual o interesse do usuário; o que seria melhor para a resolubilidade do serviço e não

permanecer preso, limitado pelas “camisas de força” dos conselhos profissionais, muitas vezes

incoerentes com os interesses dos usuários.

Reconhecendo haver diferentes interesses numa organização, implicando

submissão ou fidelidade aos interesses de profissões, da organização ou mesmo a interesses

pessoais, D‟Amour et al. (2008) entendem ser a “Abordagem Centrada no Paciente”

(LEVENSTEIN et al., 1986; REDMAN; LYNN, 2004; LÉGARÉ et al., 2008) um indicador

da colaboração interprofissional, enfatizando haver maior nível de colaboração entre os

profissionais nos serviços de saúde onde esta abordagem é adotada. O foco dos serviços e dos

profissionais nesta abordagem ajudaria a lidar com uma estrutura complexa de interesses

numa instituição e dos seus trabalhadores.

A abordagem centrada no paciente integra o vivido pela pessoa doente em relação

à compreensão dos sintomas, à formulação e à gestão das hipóteses diagnósticas e ao

seguimento decorrente. A tarefa do profissional é dupla: compreender o usuário e entender a

doença (LEVENSTEIN et al., 1986). A abordagem requer, ainda, que os profissionais de

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saúde solicitem o ponto de vista do usuário sobre seus sintomas, levantando expectativas,

experiências marcantes vividas, as emoções e representações (LEVENSTEIN et al., 1986).

Trata-se, portanto, de uma abordagem que valoriza o usuário, seu ponto de vista, enfocando

os sintomas na complexa rede multicausal, requerendo uma compreensão de diferentes

olhares sobre os problemas que se apresentam.

A adoção da “Abordagem Centrada na Família” (ACF), na orientação do projeto

interprofissional em nossos serviços de saúde, ao tirar o foco central da doença para o sujeito,

traz, principalmente, duas grandes contribuições para a interprofissionalidade (Figura 3):

1) em termos do conteúdo do plano terapêutico - ao focar não somente a doença,

mas também as situações onde estas emergem, outros saberes e práticas são

necessários, diluindo o poder de categorias operantes essencialmente no

modelo biomédico (CAPRA, 1982). Se, no modelo tradicional, a voz mais

ouvida era de quem dirige sua ação para a cura da doença, quando a

intervenção profissional passa a ser também os condicionantes e determinantes

sociais, outros profissionais passam a ter espaços nos serviços de saúde e no

processo saúde, doença, intervenção.

2) em termos dos atores sociais que decidem e executam o os planos terapêutico e

de intervenção –à medida que a definição do plano terapêutico é compartilhada

entre profissionais, usuários e familiares, o poder do profissional prescritor vai

sendo reduzido, deixando de ser este o “senhor” da vida e da morte. Com a

adoção da ACF, a autonomia do sujeito é ampliada, bem como sua

corresponsabilidade, considerando participar o usuário na definição do seu

plano terapêutico, numa abordagem negociada, pactuada.

14

Figura 3. Efeitos da Adoção da Abordagem Centrada na Família

Fonte: Autora

A adoção de uma Abordagem Centrada na Família (ACF), ultrapassando a

tendência de organizar os serviços de saúde com base nos interesses das corporações

(CAMPOS, DOMITTI, 2007) configura-se como estratégica para vivência da

interprofissionalidade na ESF. Referida abordagem opera uma mudança de paradigmas, uma

verdadeira “transição tecnológica” na saúde. Consoante ressaltam Franco et al. (2009), para

haver uma transição tecnológica, necessário se faz um avanço na forma de produção do

cuidado, “no sentido de romper com as atuais estruturas do modelo biomédico, do processo

produtivo centrado no ato prescritivo, organizando processos de trabalho mais relacionais”

(p. 35).

2 Dimensão coletiva

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Além da dimensão organizacional, onde estão incluídos dispositivos e arranjos

institucionais facilitadores da interprofissionalidade, há, também, aspectos relacionados à

organização dos profissionais como grupo de trabalho, ou seja, a organização do coletivo.

Estão incluídas nesta dimensão coletiva as formas como os profissionais se organizam no seu

cotidiano profissional, como são seus processos de aprendizagem, como pactuam um projeto

em comum, como lidam com os interesses divergentes e com o poder. A Teoria das

Comunidades de Prática, discutida no referencial teórico, é base da discussão desta dimensão.

A comunidade de prática possui três elementos essenciais: a pactuação de um

projeto em comum; o engajamento mútuo nele e o desenvolvimento de um repertório

compartilhado.

2.1 A pactuação de um projeto em comum

Observamos que as equipes da ESF estudadas, nos seus processos de trabalho,

pactuam um projeto em comum, construído através das rodas de gestão das equipes, das

reuniões de matriciamento, das visitas domiciliares, dos atendimentos comunitários e de

outros diversos momentos informais compartilhados.

A necessidade da pactuação de um projeto em comum surge, sobretudo, do

reconhecimento de haver diferentes motivações pessoais e profissionais no trabalho. Estas são

naturais. O essencial é reconhecer sua existência, tirando do campo do não-dito as

divergências, os conflitos, os interesses diferenciados, de forma a poder pactuar.

O que é mais difícil de trabalhar em equipe é descobrir quais são as

motivações de casa um e somar estas motivações, porque minhas

motivações podem ser diferentes das dos meus colegas. De repente, eu

sou motivado, mais por idealismo, ou mais pela questão mesmo do

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trabalho....enfim descobrir as reais motivações no desempenhar do

seu trabalho e trazer o mais próximo possível estas motivações. Isto é

o que eu acho mais importante e mais difícil também. (MÉDICO).

A construção de um projeto terapêutico ou de intervenção construído

coletivamente facilita o engajamento mútuo dos profissionais integrantes das equipes da

ESF, num processo de corresponsabilização: “a gente sempre está junto e trocando idéias.

Eu acho que a gente trabalha em equipe bem próximo mesmo.” (ENFERMEIRA).

A produção de um projeto em comum não é algo que ocorra de forma imposta,

como uma decisão verticalizada. Trata-se de um processo construído pela equipe, de forma a

responder as inúmeras demandas expressas no cotidiano profissional. Um projeto em comum

não é desenvolvido sem que a equipe encontre espaços de partilha, de reflexão de casos, do

matriciamento entre as diversas redes assistenciais de saúde. Há necessidade de serem

estabelecidos horários na rotina do CSF que destinem tempo para reuniões e discussão de

casos entre os profissionais. Isto implica a necessidade de redução do número de

atendimentos, decisão esta nem sempre fácil de ser tomada, em face da pressão da

população; contudo, se o gestor compreende o impacto disto na qualidade e na resolubilidade

das ações, será mais fácil adotar esta medida.

O desenvolvimento de um projeto comum, que expressa o grau com o qual os

profissionais subscrevem e se identificam com as finalidades de trabalho, é também uma

dimensão da interprofissionalidade trabalhada por Soubhi et al. (2009).

2.2 O engajamento mútuo

O engajamento mútuo da equipe oportuniza a aprendizagem, por meio da

participação vivida numa comunidade (WENGER, 2009), trazendo novos ensinamentos para

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os profissionais, muitas vezes diferentes dos aprendidos durante a formação, que não prepara

para o trabalho em equipe: A gente aprendeu a trabalhar com outros profissionais fora da

faculdade. A gente não é formada pra trabalhar em equipe. (MÉDICA DA ESF).

A despeito dos profissionais serem formados praticamente ausentes da

experiência do trabalho interprofissional, como se cada categoria sozinha pudesse dar conta

da complexidade que enfrentam no seu cotidiano, a experiência numa comunidade de prática

enseja aprendizagens transformadoras. Os resultados alcançados com o trabalho

interprofissional, construído coletivamente, são fundamentais para superar as resistências a

uma pratica colaborativa.

Quando a gente pega um, dois, três casos que a gente vai trabalhando

em equipe interprofissional e a gente ver os resultados dos casos, não

tem mais jeito de não fazer assim. (MÉDICA DA ESF).

O engajamento mútuo fomenta processos de trabalho solidários, onde há um

sentimento de corresponsabilidade sanitária com o usuário, com a continuidade do trabalho.

Isto contribui para que a equipe mantenha o trabalho sem perdas para a comunidade, mesmo

nos momentos de ausência de um ou de outro profissional, por motivos diversos.

2.3 Repertórios compartilhados

O terceiro elemento da comunidade de prática presente numa equipe da ESF é o

repertório compartilhado, que facilita a comunicação entre os profissionais, por decodificar,

socializar entre os mesmos termos técnicos, siglas, jargões profissionais. Os termos, gestos,

rotinas, protocolos, enfim, os repertórios compartilhados são úteis não somente porque

testemunham um engajamento mútuo dos profissionais na sua equipe, mas também porque

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eles podem ser utilizados em novas situações e socializados com outros profissionais que

venham a integrar à equipe (WENGER, 2009). Cada elemento tem um significado bem

preciso, que pode ser utilizado na formulação de novos protocolos, novas tecnologias a serem

utilizadas na atuação profissional.

Compartilhar repertórios implica um esforço pessoal de cada profissional para

estar no coletivo com as condições de partilhar saberes e práticas. Para tanto, além da abertura

para socializar competências, necessário se faz também um esforço de educação permanente

por parte de cada trabalhador, de forma a poder contribuir com a discussão e resolução das

questões emergentes.

Estudar um pouquinho também é importante, para ir para a discussão

e estudo de casos mais seguro. Ter um apoio teórico, uma

fundamentação teórica. Acho que também é importante.

(PSICÓLOGA).

Neste estudo, vimos haver evidências da presença das três dimensões que

caracterizam uma comunidade de prática (o engajamento mútuo, o projeto comum e um

repertório partilhado) no cotidiano das equipes da ESF, considerando ser o trabalho conjunto

dos profissionais um elemento - chave para a busca permanente de comunicação e troca de

experiências e conhecimentos entre os integrantes da equipe da ESF, incluindo o NASF.

Para que a equipe constitua comunidade de prática, é preciso, entre outras, a

possibilidade do diálogo, da pactuação dos interesses nem sempre convergentes e centrados

nos usuários. Embora a prática seja lugar privilegiado de aprendizagem, torna-se

imprescindivel a garantia de espaços na dinâmica do trabalho para a reflexão sobre o

cotidiano profissional e o processo de pactuação. Isto porque a prática envolve experiências

19

positivas, animadoras, mas também traz momentos de conflitos, geradores de sofrimento. Se

estes não forem adequadamente trabalhados entre os membros de uma CP, podem surgir

bloqueios, contribuindo para que muitos participantes se fechem para o processo coletivo.

Existem evidências de haver numa equipe da ESF a possibilidade desta constituir-

se como uma comunidade de prática, onde seja possível a aprendizagem social. Nestes

espaços de construção de novas práticas e saberes, nascidas da integração dos saberes

disciplinares e da colaboração interprofissional, pode ser gestado um projeto interprofissional,

a despeito dos obstáculos para a sua efetivação.

Em se adotando a concepção da aprendizagem social em comunidades de prática,

mesmo que os profissionais tenham sido formados hegemonicamente para atuações

disciplinares, para afirmação de seu espaço profissional e status social (FURTADO, 2007,

2009), pela Teoria Social da Aprendizagem, parece ser possível a reversão desta tendência

entre os profissionais.

3 Dimensão subjetiva

A interprofissionalidade é influenciada não somente por dimensões organizacionais e

coletivas, mas também por aspectos subjetivos, envolvendo atitudes, crenças e valores

individuais. Soubhi et al. (2009) exploram esta dimensão subjetiva da interprofissionalidade,

nas discussões das predisposições e valores dos profissionais. Consideram haver atitudes e

crenças dominantes que podem ou não favorecer a ligação entre vários profissionais. Trata-se

também da predisposição dos profissionais a sair de suas fronteiras disciplinares e modelos de

práticas habituais.

Sinceramente, eu acho que fica muito a cargo da questão pessoal de

cada um (...). Por exemplo, tem um médico que não tem perfil para

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atender em comunidade. O perfil dele é fazer atividade de consultório

e pronto. Por mais que a enfermeira tente conquistá-lo, que o dentista

tente conquistá-lo para fazer algumas atividades juntas, é difícil. Acho

que vai muito do pessoal e da formação acadêmica que influencia o

perfil profissional da pessoa. (DENTISTA).

D‟Amour et al. (2008) também abordam aspectos subjetivos, considerando ser a

“internalização” uma das quatro dimensões da colaboração interprofissional, envolvendo esta

três aspectos fundamentais: o conhecimento mútuo, a confiança e a troca de informações.

Os participantes da pesquisa referiram vários outros aspectos subjetivos, como a

coesão, a confiança, a solidariedade, a escuta, a humildade, dentre outras. Sintetizaremos esta

dimensão subjetiva da construção da interprofissionalidade em três aspectos principais:

identificação com o modelo assistencial da ESF, saber lidar com frustrações e a afetividade.

3.1 Identificação com o modelo assistencial da ESF

A identificação dos profissionais com o modelo de trabalho da ESF foi destacado

como necessária para o trabalho interprofissional na atenção primária.

Para os profissionais colaborarem entre si eles precisam gostar da

Saúde da Família. Quem não gosta da Saúde da Família e está lá deve

ser muito sofrido. Acho que é dedicação. Eu não consigo me ver

trabalhando sem ser numa equipe. Outro aspecto é ter humildade pra

saber o que a gente sabe. Saber que não dar conta da complexidade da

Saúde da Família. Você viu lá no morro... não é só tratar doença..

(MÉDICA).

21

O escopo do trabalho da equipe na ESF não visa somente a responder às queixas

trazidas pelos usuários. A responsabilização sanitária exige também uma atuação nos

determinantes e condicionantes sociais da saúde, portanto, nas condições de vida e trabalho da

população adscrita; desafio complexo, requerendo implicação do profissional e um olhar

ampliado sobre o processo saúde, doença e intervenção. O envolvimento dos profissionais,

contudo, se processa de forma crescente, à medida que vão participando na comunidade de

prática, num continuum de aprendizagem.

Quando eu me formei, eu queria ser cirurgião. (...). Quando eu

terminei a faculdade, eu queria fazer a residência, mas eu queria

primeiro, trabalhar no interior para ter uma condição mínima de vida.

(...). E isto acabou acontecendo. Eu não fiz a cirurgia, mas fiz a

residência em Saúde da Família e me sinto realizado. (...) Hoje eu

posso dizer que eu sou um profissional em formação, mas satisfeito

com aquilo que faço. (MÉDICO).

Há necessidade de os profissionais, com um maior nível de envolvimento e

comprometimento com a natureza do trabalho na ESF, compreenderem e terem paciência com

os ritmos individuais de cada um, de acordo com as histórias pessoais e profissionais

singulares, como vimos no depoimento anterior e no que se segue. Compreender os processos

individuais e oferecer as condições organizacionais e coletivas para que os profissionais

possam ir se envolvendo é um aspecto importante da interprofissionalidade na ESF.

O envolvimento com o modelo assistencial da ESF, muitas vezes, não é de

imediato, processando-se gradativamente. A despeito dos avanços na formação, é preciso

22

considerar, ainda, continuar esta centrada no hospital, na especialidade e no largo emprego de

tecnologias pesadas. Neste cenário, portanto, a educação permanente interprofissional,

discutida na dimensão organizacional, assume importância fundamental para a reversão deste

processo formativo hospitalocêntrico, centrado na doença e na “medicalização”.

3.2 Lidar com frustrações

O trabalho coletivo interprofissional requer que os envolvidos desenvolvam a

capacidade de reconhecer e lidar com as frustrações inerentes à vida e aos processos de

trabalhos. Ocorre a frustração quando o desejo ou expectativa de uma pessoa não é satisfeita,

podendo gerar sentimentos de revolta, descontentamento ou agressividade. Saber lidar com

frustrações é reconhecer não sermos o “centro do mundo”, havendo outros desejos e

expectativas individuais e coletivas a serem satisfeitas. Portanto, é preciso discriminar bem os

sentimentos presentes, desenvolvendo a capacidade de suportar a dor da frustração e

reconhecendo serem os processos históricos e sociais. Cunha (2009) destaca requerer o

trabalho interprofissional certa capacidade em lidar com a incerteza e, portanto, com o luto da

percepção da inexistência de certezas absolutas. Lidar com frustrações é, por excelência,

aprender a lidar com perdas, fazendo os lutos necessários no processo existencial e

profissional.

Campos e Domitti (2007, p. 404) consideram depender o trabalho

interprofissional de “certa predisposição subjetiva para se lidar com a incerteza, para receber e

fazer críticas e para tomada de decisão de modo compartilhado”. O coletivo de trabalho numa

comunidade de prática reconhece haver múltiplos desejos e interesses, requerendo seja

desenvolvida a capacidade de diálogo e pactuação. Assim, nos processos de pactuação podem

surgir críticas e sugestões, e os profissionais precisam ter humildade para escutar e processar

23

o conteúdo das falas dos colegas de trabalho, ao contrário de comportamentos reativos e

defensivos.

A capacidade de lidar com frustrações é confrontada no reconhecimento da

incompletude das disciplinas isoladamente, compreendendo que uma categoria sozinha,

qualquer que seja ela, não dá conta de responder às inúmeras e complexas demandas da

população, conforme foi também enfatizado por Soubhi et al. (2009) e D‟Amour et al. (2008).

. Ao compreender e aceitar a parcialidade de seus saberes e práticas, o profissional necessita

ter abertura para aprender com o outro, respeitando os próprios limites. Romper com a visão

da supremacia de um saber sobre outro, considerando a complementaridade da ciência, trata-

se de uma conduta requerida pela interprofissionalidade, consoante enfatizado por diversos

autores, como Colet (2002) e Morin (2007).

E saber respeitar cada profissional. Não existe aquele: há sou mais,

sou menos. Eu acho que numa equipe, todos estão no mesmo patamar,

onde todos têm suas qualidades, que a gente precisa para fazer o

trabalho funcionar. Onde o nosso objetivo é fazer com que a

comunidade seja, que a gente possa fazer o melhor pra comunidade; o

que a agente pode fazer com todas as necessidades e carências da

comunidade. (ENFERMEIRA).

3.3 Afetividade

A afetividade é uma dimensão do psiquismo humano, envolvendo “um conjunto,

complexo e dinâmico, de características particulares voltadas à valoração que se dá a uma

pessoa, objeto ou experiência particular e que afetam o funcionamento psíquico do ser

humano.” (PINTO, 2008, p. 85). A compreensão contemporânea concebe a afetividade como

24

inter-relacionada às demais funções psíquicas (cognição, percepção, atenção, dentre outras),

sendo o ser humano em cada uma de suas experiências influenciado por aspectos afetivos,

cognitivos, sociais, numa interdependência dinâmica. (PINTO, 2004, 2008; ARANTES DE

ARAÚJO, 2000, 2002).

Os afetos se expressam nos desejos, sonhos, fantasias, expectativas, palavras,

gestos, enfim, em tudo o que fazemos e pensamos (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2002).

Eles têm influência marcante em todos os momentos da vida da pessoa, dando sentido aos

acontecimentos e às experiências. Franco et al. (2009) consideram ser o desejo a força motriz

da sociedade, formando-se em nível inconsciente, sendo “constitutivo das subjetividades, que

no plano social torna os sujeitos os protagonistas por excelência de processos de mudança.”

(P. 24). Assim, não podemos desconhecer os micropoderes que transitam no cotidiano

profissional, sobretudo movidos pelos desejos de cada um.

Nesta perspectiva, a afetividade é um aspecto importante na construção da

interprofissionalidade, podendo facilitar ou dificultar os processos de trabalho, as relações

interprofissionais. Não há como escamotear a dimensão afetiva da convivência humana, em

especial, numa comunidade de prática, como podem ser as equipes de trabalho na ESF, onde

há uma convivência muito próxima e as pessoas são constantemente desafiadas a se

desinstalarem, a quebrarem suas barreiras de proteção psíquica e saírem de si mesmas,

abrindo-se para o outro. São processos complexos, muitas vezes, dolorosos, visto não ser fácil

socializar saberes, compartilhar práticas.

O desenvolvimento de sentimentos de solidariedade entre a equipe, de forma a

apoiar o colega nas suas dificuldades pessoais e familiares também se faz necessário.

Quando você sabe que o profissional está com a vida um pouco difícil,

ele está um pouco disperso, porque está passando por muitos

25

problemas, você proteger um pouquinho. Oh, ele não veio hoje porque

precisou fazer tal coisa, mas eu estou aqui para ficar no lugar dele,

uma cumplicidade. Não de encobrir coisas erradas do profissional,

mas de ter uma cumplicidade, de mostrar que a equipe está coesa e na

falta de um, tem o outro pra dar suporte. (PSICÓLOGA).

Na convivência com o outro, no desenvolvimento de laços de amizade, o processo

de estranhamento recíproco entre as pessoas pode ser reduzido gradativamente, diminuindo as

resistências e bloqueios ao trabalho interprofissional.

A dimensão subjetiva da interprofissionalidade, contudo, não pode ser

considerada simplesmente como atributos individuais, que as pessoas possuem ou não. São

atitudes, valores, desejos e sentimentos passiveis de ser trabalhados, mobilizados.

Corroborando a literatura especializada (D‟AMOUR et al., 2008; SOUBHI et al., 2009),

consideramos ser possível e necessário desenvolver condições organizacionais, coletivas e

subjetivas promotoras da interprofissionalidade, particularmente por meio da participação

social vivida numa comunidade de prática, lugar por excelência de aprendizagem do sujeito.

Qualquer mudança nas relações interprofissionais, que impactem positivamente na

melhoria dos cuidados de saúde, necessita de uma verdadeira desterritorialização (FRANCO

et al, 2009) dos trabalhadores, em que eles saiam do lugar da acomodação, do pessimismo, do

instituído e possam encontrar novos caminhos.

Mesmo tendo sido os profissionais da saúde formados hegemonicamente para a lógica

da profissionalização, envolvendo luta por status e reserva de mercado de trabalho, a

participação numa equipe da ESF, constituída como comunidade de prática, possibilita a

aprendizagem de outros valores, favorecendo a integração de saberes e a colaboração

interprofissional, embora não livre de conflitos. A terceira dimensão privilegia aspectos

26

subjetivos, como a identificação dos profissionais com o modelo assistencial da ESF, saber

lidar com frustrações e a afetividade. Consideramos ser possível a interprofissionalidade,

desde que sejam disponibilizadas condições organizacionais e coletivas, mobilizadoras de

aspectos subjetivos dos profissionais. A oferta das condições de possibilidade, no plano

organizacional, é indispensável, mas não suficiente para a integração de saberes e a

colaboração interprofissional. Sem a mobilização dos afetos, dos desejos e dos micropoderes

de cada sujeito, não há interprofissionalidade possível.

27

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