interpretação e ideologias - paul ricoeur

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Page 1: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

B.TOC

LUO

OC

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO EPISTEMOLÔGICÒf

(2.a edição)Hilton Japiassu ' '

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DINÂMICA DA PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAISPaul de Bruyne, Jacques Herman e Marc de Schoutheete í"

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INTERPRETAÇÃO E IDEOLOGIAS |Paul Ricoeur ^. ' t ;

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NASCIMENTO E MORTE DAS CIÊNCIA^ HUMANASHilton Japiassu "- f r T - j. (v

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FranciscoAlves

Page 2: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

Interpretação e Ideologias

Nesta obra, Paul Ricoeuraceita o desafio de estabelecerum confronto entre hermenêuticae ideologias. Trata-se de umadecodificação interpretativa douniverso dos signos presente naelaboração dos discursos dasciências humanas e sociais, bemcomo de uma tomada de posiçãocrítico-interpretativa dos discur-sos ideológicos que se infiltrame se dissimulam em todo conheci-mento, por mais científico que eleseja. Para tanto, faz-se necessá-rio converter o método herme-nêutico num esforço de salvar ohomem da (ou apesar da) ciên-cia, de vez que os métodos posi-tivistas, para salvar a ciência,vêem-se obrigados a mutilar ohomem. Contra o esprit géomé-trique, ainda vivo e atuante noscientistas humanos, a hermenêu-tica opta pelo esprit de finesse,mas sem cair nas ilusões daconsciência imediata. Postulauma filosofia em trabalho, queseja tarefa de tomada de cons-ciência mediante a decifração dosentido oculto nos sentidos apa-rentes. O que só pode ser feitoatravés da interpretação do uni-verso do simbolismo e do proces-so de dissolução das ilusões daconsciência: "É necessário quemorraln os ídolos para que vi-vam os símbolos".

O autor se insurge contra onefasto dualismo epistemológicoque instaurou a desastrosa men-talidade tentando dicotomizar os

l i do

IXTIÜRPIUÜTAÇÂCIE IDEOLOGIAS

Page 3: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

PAUL RICOEUR

INTERPRETAÇÃOE IDEOLOGIAS

4? EDIÇÃO

FranciscoAlves

Page 4: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

rf

O

Capa: Ana Maria Silva de Araújo

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Ficha Catalográfica

(Preparada pelo Centro de Catalogaçãona-fonte doSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

Ricoeur, Paul.R398Í Interpretação e ideologias; organização, tradução e apre-

sentação de Milton Japiassu. Rio de Janeiro, F. Alves, 1990.

1. Hermenêutica 2. Ideologia 3. Vontade - FilosofiaI. Título

CDD - 145153.801

CDU - 17.021.23301.152

77-0557 801.73

1990

Todos os direitos desta tradução reservados à:LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S/ARua Sete de Setembro, 177 - Centro20050 - Rio de Janeiro - RJ

Não é permitida a venda em Portugal.

BIBLIOTECA

UFM."

licoeur. Paul

Interpretação e ideologias

33/1541 Í/Í1138187/96)

SUMARIO

Apresentação

Primeira parte: FUNÇÕES DA HERMENÊUTICA 15

1. A TAREFA DA HERMENÊUTICA 17

A. Das hermenêuticas regionais à hermenêutica geral 18

O primeiro "lugar" da interpretação 18F. Schleiermacher 20W. Dilthey 23

B. Da epistemologia à ontologia 29

M. Heidegger 30H. G. Gadamer 37

2. A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DO DISTANCIAMENTO 43

A. A efetuação da linguagem como discursoB. O discurso como obraC. A relação entre a fala e a escritaD. O mundo do textoE. Compreender-se diante da obra

45 A49 A53 A

54 •*57

Page 5: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

Segunda parte: CIÊNCIA E IDEOLOGIA

1. INTRODUÇÃO

2. CRITÉRIOS DO FENÔMENO IDEOLÓGICOtA. Função geral da ideologiaB. Função de dominaçãoC. Função de deformação

3. CIÊNCIAS SOCIAIS E IDEOLOGIA

4. A DIALÉTICA DA CIÊNCIA E DA IDEOLOGIA

61

63

67

677173

77

87

Terceira parte: CRITICA DAS IDEOLOGIAS

1. A ALTERNATIVA

A. Gadamer: a hermenêutica das tradiçõesB. A crítica das ideologias: Habermas

1. POR UMA HERMENÊUTICA CRITICA

A. Reflexão crítica sobre a hermenêuticaB. Reflexão hermenêutica sobre a critica

97

103

103119

131

131 -139'

Quarta parte: SINAL DE CONTRADIÇÃO E DE UNIDADE? 147

l. OS NEOCONFLITOS NAS SOCIEDADES INDUSTRIAISAVANÇADAS 149

A. Ausência de projeto coletivo 150B. O mito do simples 152C. Esgotamento da democracia representativa 153

2. DOIS ANTEPAROS IDEOLÓGICOS

A. A ideologia da conciliação a todo preçoB. A ideologia do conflito a todo preço

157

157162

3. RÉPLICA À IDEOLOGIA: POR UMA NOVA ESTRATÉ-GIA DO CONFLITO 167

APRESENTAÇÃO

Paul Ricoeur: filósofo do sentido

A obra de Paul Ricoeur pode ser justamente considerada comouma das mais ricas e profundas de nossa época. Seu ponto departida é uma análise rigorosa da vontade humana. Seu objetivo éatingir e formular uma teoria da interpretação do ser. Afenomenologia constitui um momento decisivo de sua metodologia.A originalidade de Ricoeur está em não fazer filosofia a partir defilosofia. Não reflete a partir de idéias. Seu pensamento não seabriga nem se repousa no pensamento dos outros. É umpensamento que recria, que se serve do pensamento dos outroscomo de um instrumento. Evidentemente, sua filosofia nãoconstitui uma criação ex nihilo, um círculo que se fecha em simesmo, porque não pode haver filosofia sem pressuposições.Trata-se de um pensamento que se propõe a adotar um métodoreflexivo capaz de romper todo e qualquer pacto com o idealismo.De forma alguma pretende negar sua relação com o vivido. Pelocontrário, tem em vista o esclarecimento, mediante conceitos, daexistência. E esclarecer a existência é elucidar seu sentido. Por isso,o problema próprio a Ricoeur é o da hermenêutica, vale dizer, o daextração e da interpretação do sentido. _Eeieebeu que todo o.pensajnenífl_jnoderno tornou-se interpretação. Assim, a questãoque se lhe revela essencial não é tanto a do erro ou a da mentira.porémjulaJ/MSflo. Para se descobrir a verdade, deve-se dissipar essaquestão. Toda a crise atual da linguagem pode ser resumida naoscilação entre a desmistificação e a restauração do sentido. E o pro-jeto de Ricoeur nSo é outro senão o de redescobrir a autenticidadedo sentido graças a um esforço vigoroso de desmistificação.

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Este esforço de desmistificação começa com a construção deuma Filosofia da vontade tendo por objetivo reconciliar Descartese Kierkegaard, através de uma meditação sobre a linguagem! Ométodo utilizado é o fenomenológico, tentando compreender oque descreve, para descobrir seu sentido. Para atingir mais direta-mente o essencial da questão da vontade, Ricoeur coloca entreparênteses os temas religiosos da falta e da transcendência. Suaeidética da vontade supõe a suspensão do juízo sobre os dogmasreligiosos do pecado original e das relações do homem com Deus.A suspensão do juízo sobre a falta original permite-lhe o estudosem preconceito da falibilidade empírica da vontade humana. E adesconsideração provisória da transcendência permite-lhe restituir opoder criador simbólico à vontade, mediante a poesia. A vontadeprecisa ser isolada e purificada. Não pode ser analisada apenas pelométodo que se funda no estudo dos atos objetivantes da percep-ção e do saber, nem tampouco pelo que reduz suas análises a ummodelo único: a existência vivida. A vontade precisa ser estudadaem si mesma. Seus componentes essenciais são o projeto, a execu-ção e o consentimento. Isto implica a correlação do voluntário e doinvoluntário. Porque querer é projetar um mundo, apesar ou contraos obstáculos. Querer também é projetar uma intenção que, peloconsentimento, converte-se em necessidade "sofrida" e retomada pe-lo consentimento.

Em seu esforço de desmistificação, Ricoeur suspende o parên-teses que introduzira entre a falta e a transcendência, para instau-rar uma dialética do voluntário e do involuntário, dominada pelasidéias de desproporção, de polaridade do finito e do infinito, deintermediário ou de mediação. Em Finitude e culpabilidade, nãoestuda mais o problema da realidade do mal, mas o problema desua possibilidade, vale dizer, da falibilidade. A finitude não bastapara explicar o mal. O importante é saber que finitude possibilita ainserção do mal na realidade humana. O pathos da miséria torna-seum ponto de partida de uma filosofia do homem. O homem não éum simples meio entre o ser e o nada. A "intermediariedade" dohomem consiste em operar mediações entre contrários ou correla-tivos. A fonte da falibilidade reside em certa não-coincidência dohomem consigo mesmo. O homem é um ser que não coincideconsigo mesmo. Ê um ser que comporta uma negatividade. O papelda filosofia consiste em refletir sobre esse caráter patético da mi- í"

séria, que se revela nos níveis do conhecer, de agir e dosentir.

\ No_ plano do conhecer, a primeJia_característica do objeto é adeaggrecer. Q homem não^cria^o^real. Ele o recebe como umapresença. Sua percepção se abre ao mundo. Percepção finita. Toda

-visão é um ponto de vista. O mundo é o horizonte de todo objeto,que só é percebido em parte. Há possibilidades infinitas de cap-tá-lo. Muitos pontos de vista nos escapam. _No entanto, podemosdize-los: pela linguagem, falamos dasjisionomias ocultas e não per-^ce^djs_das_coisas._Fa]arnos delas eni-Sua ausência. Neste_seníido^apalavra transcende todos os pontos de vista. ^A realidade não sereduz ao qye^gjle_sei-vistQ- Identifica-se também ao que pode serdito. Há uma síntese do visto e do dito numa filosofia do discurso,mas que só se aplica à ordem das coisas. No mundo humano,permanece uma dualidade: jjjlado e o sentido são irredutíveis. Ohomem não é um dado. Ele se define por ser uma tarefa, umasíntese projetada. Nem por isso se reduz à mera subjetividade. Estávinculado ao mundo'exterior mediante seus interesses e seiis senti-jnentQS. O ser do objeto é síntese, ao passo que o ser do homem éconflito, pois nele se inscreve, como componente essencial, a pos-sibilidade do mal, embora o mal constitua sempre um escândaloque se impõe ao homem. Escândalo presente, injustificável racio-nalmente. Donde a importância do discurso filosófico para .revelaras fontes radicais da existência. Donde também a importância dalinguagem simbólica, capaz de restaurar e de fazer uso de umafilosofia da imaginação. Bachelard dizia que a razão recomeça, masé a imaginação que começa, pois é a imagem poética que nosintroduz na raiz do ser falante. ParaRjcoeur.é_o símbolo caieexprime nossa experiência fundamental e nossa situação no ser. Éele que nos reintiQduz no estado nascente dajmguagem. O ser sed á a o homem mediante as seqüências simbólicas, de tal forma-mietoda visão do ser, toda existência comojrelação ao ser, já é umahermenêutica, ,Q_que importa, no final de contas, é que o homemnão_se contentecõm sua~linguagem primária e espontãnea^jãyexprimir toda a sua experiência. Ele precisa chegar a umainter-pretação criadora de sentido, a essa atitude filosófica do com-preender. Para além da experiência das coisas e dos aconteci-mentos, situa-se o niVei^aJinguagenL filosófica, UnguaggniJSÍg1'pretativa_capaz de revelar uma experiência ontológica que é rela-

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cão do homem com aquilo que o constitui homem, vale dizer,foco de sentido.

O projeto de Ricoeur é racional, quer dizer, pretende elaboraruma filosofia da linguagem capaz de elucidar as múltiplas funçõesdo significar humano. Se o símbolo nos leva a pensar, devemospensar. Embora parta do cogito, Ricoeur não pretende elaboraruma filosofia da consciência. Sua filosofia é muijo_mais um traba-lho de tomada de consciência, mediante a desmistifícação das ilu-sões da consciência, da consciência como ilusão. E como a her-menêutica visa a uma decifração dos comportamentos simbólicosdo homem, a um "trabalho de pensamento que consiste em deci-frar o sentido oculto no sentido aparente", os estudos antropoló-gicos de Ricoeur não podem ignorar o pensamento corrosivo dapsicanálise freudiana. O sentido da hermenêutica freudiana consisteemmostrar qugo lugar do cogito^ encontra-se ocupado por um

Jalsocogito, que Freud chama de narcisismo. O falso cogito devepassar por um processo de dissolução. O objetivo da filosofia con-siste em atingjr urna expliçaçlo do verdadeiro, vale dizer, um for-

jiecimento de sentido,, o^que só pode^ser feito mediante a inter-pretação do sirnbqlismo e o_ processo de dissolução das ilusões: Í1É

,iiecessarjo que morram os ídolos para que vivam os símbolos". Umdos méritos da hermenêutica freudiana consiste em libertar o sujeitohumano de sua crença ingênua em sua autonomia imediata e em .suacerteza inquebrantável. Mas ela não se deu ao trabalho de se pergun-tar por que e como deve chegar à sua verdadeira relação consigomesma. Por isso Ricoeur elabora uma simbólica mais radical da cons-ciência, que se encontra na raiz de todas as determinações históricas

fé espirituais do homem. Tal simbólica, por seu conteúdo, remete-nosl àqujlQ_gue_hájle^ obscuro, de regressão e de inconsciente no homem/alienado. Porsua_intenção,jria se apresenta comooimapelo à-redes-Qioberta "do princípio ontológico da consciência. Eis o duplo movi-_rnejrito da hermenêutica de PajJ J&coeur, que o leva a fazer daarqueologia freudiana, do sentido de sua análise interpretativa dasmanifestações do inconsciente, uma espécie de infra-estrutura do

insar filosófico._Para tanto, precisa superar a metodologia fenome-nol6gica,> pois esta acredita, por simples redução, ter acesso umCogito suficientemente depurado. AjFenomenolopia préperada por um pensamento que descobriria, rnsosLObjetividade nãopensada, o fundamento últimodojgen^niento.

j Ricoeur concebe a filosofia como uma atividade, como umaJ tarefa ao mesmo tempo concreta, temporal e pessoal, muito embora/com pretensões à universalidade: "Tenho algo a descobrir de próprio,algo que ningém possui a tarefa de descobrir em meu lugar. Se minhaexistência tem um sentido, se ela não é vã, tenho uma posição no serque é um convite a colocar uma questão que ninguém pode colocarem meu lugar. A estreiteza de minha condição^ de minha informação,de mejis_encgntiõs_e_de minhas leiturasjá^esboça a perspectiva finitajejaünha vocação jde verdade. No entanto, por outro lado, procurara verdade, quer dizer que aspiro a dizer uma palavra válida paratodos, que se destaca sobre o fundo de minha situação como umuniversal. Não quero inventar, dizer o que me agrada, mas aquilo queé". (Histoire et vérité.)

Em todos os três níveis de profundidade em que podemos en-carar a atividade filosófica - nível da vida cotidiana, nível da vidacientífica e nível propriamente reflexivo - constatamos que ela sem-pre está às voltas com os problemas te fundamento e de origem. Serfilósofo é ter acesso à velha questão aristotélica: "o que é o ser", "oque é que é" (Ti to on), radicalizada por Leibniz, quando a formuloude um modo dramático: "Por que há algo (o ser) e não antes o nada?"É esse tipo de questão que nos leva a penetrar na ordem da razão. De-pois do cogito cartesiano, essa questão se dividiu em duas: de umlado, a questão do ser, da natureza e de Deus; do outro, a questão dohomem. Daí o duplo sentido da filosofia posterior, sempre oscilandoentre esses dois pólos. Essajgnsão constitui o caráter dramático dajjtosofia. Há duas possibilidades de existir, de viver, de o homemcompreender a si mesmo e_dê_exp]icar as coisas: reagrupar tudoem torno do único centro que é o homem, ou fazer_com quetudo conviria para_um pólojnais forte e que seria o fundamento

sua vida. Diante desse dilaceramento do campo ontológico,dessa polarização e dessa ruptura na questão do ser, a filosofiaprecisa assumir uma nova tarefa: deve clarificar todas as implica-ções dessa alternativa, não somente para a questão da vida pes-soal, mas para o diálogo com as ciências. ^Eja_precisa_cayar_as

jmidjc5e^^o^pnhej^£nto_científico para descobrir sobre quesolo ele se constrói. E a presença do homem ao mundo é este soloprimitivo sobre o qual se edificam as ciências.^Assim^encontmnpj-nos diante de uma volta ao fundamento, de um retornp_às_fun-cíã£ÔesT"E~é' somente depotó~dãs~ciênc1as que o filósofo tem o

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direito de voltar antes delas. Em outras palavras, é no ponto maisavançado de uma ciência que ele pode e deve colocar o problema desuas raízes, de seus fundamentos e, por conseguinte, de seu sentido.

O pensamento filosófico de Ricoeur é um dos mais fecundosda atualidade. Ao fazer da fenomenologia de Husserl, cujas Ideentraduziu em 1950, não um ponto de partida, mas um momentodecisivo de sua reflexão filosófica, aceitou o desafio de confron-tá-la com as atividades que, hoje em dia, ocupam-se objetivamenteda decifração dos comportamentos simbólicos do homem. E comoo núcleo vivo desses estudos antropológicos é constituído pelapsicanálise freudiana, Ricoeur se viu chamado a refletir sobre opensamento corrosivo e iconoclasta de Freud. Vê na psicanálise ummomento privilegiado do método da interpretação permitindo-lheescapar às dificuldades da fenomenologia. O ser se dá à consci-ência do homem através das seqüências simbólicas, de tal formaque toda visão do ser e toda existência como relação ao ser já seafirmam como uma interpretação. Em 1961, Ricoeur concluía suaSimbólica do Mal com a seguinte fórmula: "O símbolo nos leva apensar". Em 1965, escreve uma grande obra intitulada Da inter-pretação. Ensaio sobre Freud. Seu objetivo é responder a seguintequestão: o que significa pensar segundo os símbolos! Não se li-mita a um debate com Freud, mas libera um horizonte de pes-quisa. Não se trata de um ensaio sobre a psicanálise como práticaviva, mas de um ensaio sobre a obra de Freud enquanto documen-to escrito e acabado: uma interpretação de conjunto de nossa cul-tura capaz de mudar a compreensão que temos de nossa vida. Ofilósofo precisa justificar essa compreensão, vale dizer, determinarseu sentido, sua legitimidade e seus limites. E somente uma medi-tação sobre a linguagem pode fornecer-nos uma estrutura de aco-lhida à exegese freudiana de nossos sonhos, de nossos mitos e denossos símbolos. Como conseqüência, dissolve-se a velha filosofiado sujeito em suas expressões ingênuas e prematuras: as ilusões daconsciência imediata.

Antes dessa obra (traduzida por mim para o português e publi-cada pela Imago Editora ), Ricoeur havia publicado Gabriel Mareeie Karl Jaspers (1948) e Histoire et Vérité (1955). Para muitos, oeixo de sua obra é constituído pela Philosophie de Ia volante,

Jr

publicada em três volumes: Lê volontaire et 1'involontaire (1950),Finitude et culpabilité: I. L'homme faillible; II. La symboliquedu mal (1960). No entanto, creio que seus ensaios de hermenêu-tica, intitulados Lê conflit dês interprétations em 1969 (tradu-zido por mim para a Imago, sob o título O conflito das interpre-tações) conseguem levar a reflexão filosófica a enfrentar os grandesdesafios lançados pelas correntes de pensamento contemporâneas.Trata-se, de fato, de assumir filosoficamente a tensão desses confli-tos. Um primeiro foco conflitual instala-se no cerne mesmo dasdiscussões contemporâneas sobre o estruturalismo e a morte dosujeito. O problema do duplo sentido leva o filósofo à encruzilhadade uma semiologia fundada na lingüística estrutural e de umasemântica vinculada a uma teoria da frase ou instância de discurso.Nesse nível, faz-se necessária uma filosofia em trabalho, capaz de to-mar os atalhos das estruturas, do sentido objetivo, do mundo anônimoda cultura, sendo que o momento abstrato e impessoal da língua pre-cisa ser incorporado ao ato vivo da palavra e ao seu poder reflexivo.Assim, apesar de atravessada por tensões e conflitos, a filosofia nãopode deixar de ser uma reflexão susceptível de manter numa certaeqüidistância a reconciliação soberana e o dilaceramento sem me-diação. Sua vocação é a de "elucidar, por noções, a própria exis-tência". _Pprquej:onsiste na tentativa de exprimir e de dizer osentido não rf/fo.^mbora dizível, áa^existência^ás^vida. E é justa-mente por isso que ela é essencialmente hermenêutica, vale dizer,

de ' um sentido pré^dado^jle um sentidoguj^ojisijtujji_sjedirnentação de umajyidj^ej:» dom de uma tradição.

De um modo geral, podemos caracterizar o pensamento dePaul Ricoeur como uma tentativa de acesso às fronteiras do saber,mas sem transpor seus limites. Trata-se de uma tentativa de conver-gência dos discursos humanos em sua totalidade, sem negar o des-locamento de suas especificidades. Dá um primado ao sentido e àpromessa mas sem omitir a estrutura e o rigor. Vai além de umasimples filosofia do sujeito cognoscente fazendo apelo a uma feno-menologia da oferta do mundo que, por sua vez, se vê transbor-dada por uma ontologia do ser, quando este se dá a conhecer.Todavia, Ricoeur chama nossa atenção para não convertermos oser símbolo de uma presença num ídolo vão de nossa intempe-rança humana. Ao buscar uma simbólica instauradora de sentido, ofilósofo precisa olhar para trás a fim de verificar se, por acaso, sua

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existência não seria a presa de uma crença fantasmática. E é porisso que o projeto hermenêutico possui realmente um cunho inter-disciplinar. Não porque toma de empréstimo a outras disciplinasaquilo de que tem necessidade, mas porque se constrói na luz quereciprocamente lhe lançam linguagens oriundas de perspectivas pro-fundamente distintas, porém susceptíveis de imprevisíveis conver-gências epistemológicas: a filosofia reflexiva do cogito, a exploraçãodo inconsciente, a figuração simbólica do espírito habitante domundo, a decifração hermenêutica dos signos e das ideologias. Faceà atual fragmentação do saber, comparável à divisão do trabalho, adivisão do trabalho científico correspondendo à divisão do tra-balho tecnológico, a responsabilidade do filósofo não consistemais, como pensara Comte, em elaborar um sistema das ciências,pois ninguém mais consegue levar a efeito esse projeto, a não sersob a forma grosseira de classificações das matemáticas, da astro-nomia, da física, das ciências humanas, etc., mas em instaurar umareflexão sobre a linguagem humana. Em outros termos, competeao filósofo compreender de que forma estão contidas_na palavra enesse maravilhoso poder dejalar que é o homem as possibiÜdâdjsde ramificações nas distintas linguagens. Um dos problemas funda-mentais de nossa cultura é o da fragmentação das linguagens: lin-

dajyida quo-tidiana. linguagem do artista, etc^ ^colaborar decididamente parasalvaria unidade da linguagem é a responsabilidade do filósofo. Alinguagem é de tal forma feita, que o poder dê dizer, de significar,de exprimir ou de comunicar pode realizar-se em registros tãodiferentes quanto o conhecimento científico, a poesia, a expressãomítica e a formulação religiosa. Compete ao filósofo compreenderessa variedade de linguagens. Compete-lhe ainda situá-las cada umaem seu lugar, bem como justificá-las umas pelas outras.

Em sua última obra, La métaphore vive (Seuil, 1975), queestou traduzindo para o português (Imago Ed.), Ricoeur retoma,mais uma vez, suas análises hermenêuticas sobre a linguagem. Tra-ta-se de um volumoso estudo apoiado, dessa feita, não somenteem trabalhos europeus, mas numa vasta literatura anglo-saxônia.Esse conjunto de estudos obedece a uma progressão: partindo dapalavra, passa pela frase a fim de culminar no discurso propria-mente dito. A retórica, desde Aristóteles até os estruturalistas,toma a palavra por unidade de referência, ficando a metáfora redu-

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zida ao deslocamento e à extensão do sentido das palavras: suaexplicação depende de uma teoria da substituição. A contribuiçãode Benveniste foi decisiva, sobretudo com sua oposição entre umasemiótica para a qual a palavra não passa de um signo no códigoléxico e uma semântica onde a frase é portadora da significaçãocompleta mínima. No entanto, Ricoeur dá um passo à frente: aopassarmos da frase ao discurso propriamente dito (poema, ensaio efilosofia), abandonamos, enfim, o nível semântico e ingressamos nonível hermenêutico. O que está em questão, nesse nível, não émais a forma da metáfora (como para a retórica), nem tampoucoseu sentido (como para a semântica), mas sua referência. Em últi-ma análise, a metáfora vai consistir no poder de redescrever arealidade, o que acarreta a necessidade de uma tomada de cons-ciência quanto à pluralidade dos modos de discurso e quanto àespecificidade do discurso filosófico.

Interpretação e ideologias

É nesse contexto - de uma decodificação hermenêutica douniverso dos signos, presidindo à elaboração do discurso científico,mormente no domínio das chamadas ciências humanas e sociais, ede uma crítica hermenêutica dos discursos ideológicos, sempre pre-sentes em todo conhecimento, por mais científico que ele seja -que vai situar-se o presente volume, denominado Interpretação eideologias. Trata-se de uma coletânea de textos publicados peloautor em diversas revistas ou em obras coletivas. De forma algumatais artigos constituem uma apresentação sistemática do pensa-mento do autor. Podemos dizer que são exposições condensadas,proferidas em diversas circunstâncias e escritas para responder apreocupações bem determinadas, relativas a um contexto espe-cífico. Na origem, não estavam destinadas a serem congregadas.Sua reunião num só volume deveu-se a uma iniciativa de minhaparte. Numa conversa que mantive com o Prof. Ricoeur em Paris,no início de 1976, fiz-lhe ver a importância, para o público univer-sitário brasileiro em geral, de um fácil acesso a uma série de textosdando conta da atualidade da questão hermenêutica em confronto

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com os problemas de ordem ideológica. Ele se mostrou vivamenteinteressado na "divulgação" desses elementos e instrumentos dereflexão, fornecendo-me imediatamente vários de seus artigos paraque os organizasse em um único volume. Após selecionar os textosque me pareceram mais significativos, submeti-os à apreciação doautor, que nada teve a objetar à ordem de apresentação por mimsugerida. No meu entender, a unidade que os cimenta é uma uni-dade de inspiração, na medida em que todos se inscrevem numaproblemática fundamental: a de converter o método hermenêuticoou interpretativo num esforço de salvar o homem da (ou mesmoapesar da) ciência, de vez que os métodos positivistas das ciênciastentam salvá-la, embora pouco se importem com o homem. Diría-mos que contra o esprit géométrique ainda muito vivo nos cientis-tas humanos, a hermenêutica opta pelo esprit de finesse que sócompreende o cogito quando mediatizado pelo universo dossignos: a consciência não é imediata, porém mediata; não é umafonte, mas uma tarefa, a tarefa de tornar-se consciente, mais cons-ciente. Neste sentido, não há hermenêutica geral, vale dizer, teoriageral da interpretação, cânon geral da exegese. O que há são teo-rias hermenêuticas opostas. Em particular, os duplos sentidos vin-culam a consciência a um antes ou a um depois, a uma origem oua um fim: para a psicanálise, a verdade da consciência encontra-seatrás dela num inconsciente arcaico ou infantil, de que os fatosconscientes constituem apenas o retorno; para a fenomenologia (nosentido hegeliano), essa verdade se encontra no fim, no futuro parao qual a consciência marcha. Esboçam-se, assim, as duas herme-nêuticas entre as quais se instala o que Ricoeur chama de "oconflito das interpretações".

A primeira parte do presente volume é constituída por doistextos policopiados: "A tarefa da hermenêutica" e "A função her-menêutica do distanciamento". O primeiro constitui a descrição doestado atual do problema hermenêutico. Serve como pano defundo para a elaboração do problema hermenêutico de um modoque seja significativo para o diálogo entre a hermenêutica e asdisciplinas semiológicas. O segundo traduz o pensamento de Ri-coeur. Ele aí faz uma revisão da problemática hermenêutica, quepassa a ser entendida como a teoria das operações de compreensãoem sua relação com a interpretação dos textos. Todo o segundocapítulo é dedicado à elaboração das categorias do texto, a fim de

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que seja resolvida a aporia central da hermenêutica, já apontada noprimeiro capítulo, a saber: a desastrosa alternativa entre explicar ecompreender. A hermenêutica exige uma complementaridade des-sas duas atitudes e uma superação de tão nefasto dualismo episte-mológico. E isto a partir de uma elaboração da noção de texto,pois é ela que produz o distanciamento, necessário à noção deobjetividade, mas no interior da historicidade da experiência hu-mana. Donde a organização da problemática em torno de cincotemas: a efetuação da linguagem como discurso, a efetuação dodiscurso como obra estruturada, a relação da fala com a escrita nodiscurso, a obra do discurso como projeção de um mundo, o dis-curso e a obra de discurso como mediação da compreensão de si.

A segunda parte é composta de um artigo publicado na RevuePhilosophique de Louvain (maio de 1912), intitulado "Science etidéologie". Nele, o autor nos alerta, inicialmente, para certasarmadilhas a que pode nos conduzir uma interpretação redutora dofenômeno ideológico. Em seguida, passa a elaborar alguns critériospermitindo-nos compreender o fenômeno ideológico, não a partirde uma análise em termos de classes sociais e de classes dominan-tes, mas de um modo de cruzar Marx sem segui-lo nem tampoucocombatê-lo. Para tanto, procede em três etapas: primeiramente,estuda a função geral da ideologia; em seguida, estuda a função dedominação, própria da ideologia, que acrescenta à função anteriorde integração; em terceiro lugar, a ideologia é analisada em suafunção de deformação. Só então Ricoeur passa a mostrar os vín-culos existentes entre as ciências sociais e a ideologia. E concluidizendo que nenhuma teoria social pode desvincular-se por com-pleto da condição ideológica. Finalmente, tenta dar uma solução àclássica oposição entre ciência e ideologia. Entre ambas, deve haveruma relação dialética: não há um lugar não-ideológico de ondepossa falar o cientista social, porque falar de um lugar axiologica-mente neutro não passa de um engodo.

A terceira parte é constituída de uma comunicação feita porRicoeur no colóquio sobre "Desmitização e Ideologia", organizadopelo Centro Internacional de Estudos e pelo Instituto de EstudosFilosóficos de Roma, em janeiro de 1973. O título original é"Herméneutique et critique dês idéologies". Encontra-se publicadonas Atas do Colóquio, dirigidas por Enrico Castelli ('Démytisationet idéologie, Aubier, Paris, 1973). Conservamos apenas parte do

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título: "crítica das ideologias". Porque, de fato, o que pretendeRicoeur é elaborar uma crítica das ideologias subjacentes à pre-tensão das ciências humanas de atingir a cientificidade. Não temem vista buscar os fundamentos das ciências humanas. Seu objetivoé lançar um desafio crítico à "falsa consciência", às distorções dacomunicação humana, sempre ocultando ou dissimulando o exer-cício da dominação ou da violência. Tal desafio parece estreita-mente vinculado ao domínio da epistemologia das ciências huma-nas. Ele se enuncia em termos de uma alternativa: consciênciahermenêutica ou consciência crítica. Ricoeur tenta superar essaalternativa que, no pensamento contemporâneo, ainda se verificana obra de Gadamer, ao estudar a hermenêutica das tradições, enos estudos de Habermas, ao elaborar sua crítica das ideologias.Por não aceitar a alternativa proposta por esses dois autores, Ri-coeur se propõe a elaborar uma reflexão crítica sobre a própriahermenêutica. Seu intuito não consiste em fundar a hermenêuticadas tradições e a crítica das ideologias numa espécie de supersis-tema que as englobaria. Ele tenta integrar a criticada consciênciafalsa na hermenêutica e conferir à crítica das ideologias uma di-mensão meta-hermenêutica. Mas não fica nisso. Sobre a crítica dasideologias, elabora uma reflexão tendo por objetivo pôr à prova areivindicação de universalidade da crítica das ideologias, mostrandoa interpenetração das duas "universalidades": da hermenêutica e dacrítica das ideologias. É neste sentido que faz uma reflexão her-menêutica sobre a própria crítica, também chamada de "meta-hermenêutica".

Finalmente, a quarta parte é constituída por algumas con-clusões tiradas pelo autor de um longo trabalho por ele apresen-tado nas Semanas Sociais realizadas em Lyon (França) em de-zembro de 1972, sobre a tema "Maitriser lês conflits". Essasconclusões foram publicadas em Chronique Sociale de Frànce (n.°5/6, dezembro de 1972), com o título Lê conflit - signe de con-tradiction et d'unité? No dizer do próprio autor, seu trabalho temum tríplice objetivo: em primeiro lugar, descrever os novos, con-flitos que surgem nas sociedades industriais avançadas; em seguida,situar, face a esses neoconílitos, algumas das atitudes de caráterideológico que mascaram seu sentido e sua realidade, engajan-do-nos em comportamentos estéreis; enfim, extrair dessas moíiva-ções-anteparo sugestões teóricas e práticas para a elaboração de

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uma nova estratégia dos conflitos. Talvez essa elaboração pres-suponha uma reflexão capaz de descobrir as raízes do homem quenão vive somente de pão bem como esse gemido de uma criaçãoque não se faz sem conflito, nem tampouco no conflito a todopreço, mas no coração mesmo dos conflitos vividos na esperança.

Hilton Japiassujulho de 1977

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PRIMEIRA PARTE

Funções da hermenêutica

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1. A TAREFA DA HERMENÊUTICA

O presente estudo visa a descrever o estado do problema her-menêutico, tal como o recebo e o percebo, antes de trazer minhaprópria contribuição, no debate do segundo estudo. Dessa dis-cussão prévia, limitar-me-ei a extrair, não somente os elementos deuma convicção, mas os termos de um problema não resolvido.Com efeito, pretendo conduzir a reflexão hermenêutica até oponto em que ela recorra, por uma aporia interna, a uma reori-entação importante, caso queira entrar seriamente na discussãocom as ciências do texto: da semiologia à exegese. O segundoestudo será inteiramente consagrado a essa revisão da problemá-tica hermenêutica.

Adotarei a seguinte definição de trabalho: a hermenêutica éa teoria das operações da compreensão em sua relação com ainterpretação düs_textos. A idéia diretriz será, assim, a da efe-tuação do discurso como texto. Todo o segundo estudo seráconsagrado à elaboração das categorias do texto. Com isso, ficapreparado o terreno para uma tentativa de resolver a aporia cen-tral da hermenêutica apresentada no final do primeiro estudo, asaber: a alternativa, a meu ver desastrosa, entre explicar e com-preender. A busca de uma complementaridade entre essas duasatitudes, que a hermenêutica de origem romântica tende a disso-ciar, exprimirá, assim, no plano epistemológico, a reorientaçãoexigida da hermenêutica pela noção do texto.

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A) Das hermenêuticas regionais à hermenêutica geral

O balanço hermenêutico que aqui proponho converge para aformulação de uma aporia, a mesma que dinamizou minha própriapesquisa. Portanto, a apresentação que se segue não é neutra, nosentido em que seria despojada de pressuposição. A própria her-menêutica já nos previne contra essa ilusão ou essa pretensão.

Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duaspreocupações. A primeira tende a ampliar progressivamente a vi-sada da hermenêutica, de tal modo que todas as hermenêuticas

{regionais sejam incluídas numa hermenêutica geral. Mgs_esse_movi-mento de desregionalização não pode ser levado a bom termo semque, ao mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemoló-

\gicas da hermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em/ saber de reputação científica, estejam subordinadas a preocupaçõesl antológicas segundo as quais compreender deixa de aparecer como

um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser ede relacionar-se com os seres e com o ser. O movimento de desre-gionalização se faz. acompanhar, pois, de um movimento de radica-lização, pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral, masfundamental.

O primeiro "lugar" da interpretação

Sigamos sucessivamente ambos os movimentos.A primeira "localidade" que a hermenêutica procura desencla-

var é certamente a da linguagem e, de modo mais especial, a dalinguagem escrita. Importa-nos reconhecer os contornos desse pri-meiro lugar, pois meu próprio empreendimento, no segundo es-tudo, poderá aparecer como uma tentativa de novamente regiona-lizar a hermenêutica mediante a noção de texto. Convém, pois,precisarmos porque a hermenêutica possui uma relação privilegiadacom as questões de linguagem. Basta, parece-me, partirmos de umcaráter absolutamente notável das línguas naturais, exigindo umtrabalho de interpretação no nível mais elementar e mais banal daconversação. Este caráter é a polissemia^ vale dizer, este traço denossaspalavras deterem mais de uma significação quando_as-coji-

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sideramos fora de seu uso em determinado contexto. Não me inte-ressarei aqui pelas razões de economia que justificam o recurso aum código léxico apresentando um caráter também singular. O quenos interessa, na presente discussão, é que a polissemia das palavrasrecorre, em contrapartida, ao papel seletivo dos contextos relati-vamente à determinação do valor atual que adquirem as palavrasnuma mensagem determinada, veiculada por um locutor preciso aum ouvinte que se encontra numa situação particular. A sensibili-dade ao contexto é o complemento necessário e a contrapartidainelutável da polissemia. Mas o manejo dos contextos, por sua vez,põe em jogo uma atividade de discernimento que se exerce numapermuta concreta de mensagens entre os interlocutores, tendo pormodelo o jogo da questão e da resposta. Esta atividade de discer-nimento é, propriamente, a interpretação: consiste em reconhecerqual a mensagem relativamente unívoca que o locutor construiuapoiado na base polissêmica do léxico comum. Produzir um dis-curso relativamente unívoco com palavras polissêmicas, identificaressa intenção de univocidade na recepção das mensagens, eis oprimeiro e o mais elementar trabalho da interpretação. É no inte-rior desse círculo bastante amplo das mensagens trocadas que aescrita demarca um domínio limitado, chamado por W. Dilthey -ao qual retornarei mais demoradamente a seguir — _de_expjess5esda vida fixadas pela escrita1. São elas que exigem um trabalho espe-cífico de interpretação, por razões que exporemos no segundoestudo e que se devem justamente à efetuação do discurso comotexto. Digamos, provisoriamente, que, com a escrita, não se B_re-gnghejmjnais as condições da interpretação direta mediante o jogoda questão e da resposta, por conseguinte, através do diálogo. Sãonecessárias, então, técnicas específicas para se elevar ao nível dodiscurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem atravésdas codificações superpostas, próprias à efetuação do discurso comotexto.

1. Cf. W. Dilthey, "Origine et développement de 1'hennéneutique" (1900), inLê monde de 1'esprit, I, Paris, 1947, pp. 319-322, 333s.

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F. Schleiemacher

O verdadeiro movimento de desregionalização começa com oesforço pára se extrair um problema geral da atividade de inter-pretação cada vez engajada em textos diferentes. O discernimentodessa problemática central e unitária deve-se à obra de F. Schleier-macher. O que há, antes dele, é, de um lado, uma filologia dostextos clássicos, sobretudo os da antigüidade greco-latina, e, do outro,uma exegese dos textos sagrados, o Antigo e o Novo Testamentos.Em cada um desses dois domínios, o trabalho de interpretação variaconforme a diversidade dos textos. Portanto, uma hermenêutica ge-ra exige que nos elevemos acima das aplicações particulares e que dis-cirnamos as operações comuns aos dois grandes ramos da hermenêu-tica. Contudo, para conseguir isso, devemos nos elevar não somenteacima da particularidade dos textos, mas da particularidade das re-gras, das receitas, entre as quais se dispersa a arte de compreender. Ahermenêutica nasceu desse esforço para se elevar a exegese e a filolo-gia ao nível de uma Kunstlehre, vale dizer, de uma "tecnologia" quenão se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas.

Ora, essa subordinação das regras particulares da exegese e dafilologia à problemática geral do compreender constituía uma revi-ravolta inteiramente análoga à que fora operada pela filosofia kan-tiana com referência às ciências da natureza. A este respeito, pode-mos afirmar que o kantismo constitui o horizonte filosófico maispróximo da hermenêutica. Como se sabe, o espírito geral da Crí-tica pretende inverter a relação entre uma teoria do conhecimentoe uma teoria do ser; deve-se medir a capacidade do conhecer antesde se enfrentar a natureza do ser. É compreensível que o climakantiano tenha sido o adequado à formação do projeto de referiras regras de interpretação, não à diversidade dos textos e das coisasditas nesses textos, mas à operação central que unifica a diversi-dade da interpretação. Se Schleiermacher não está pessoalmenteconsciente de operar na ordem exegética e filológica o tipo derevolução copérnica operada por Kant na ordem da filosofia danatureza, Dilthey estará perfeitamente consciente disso, no climaneokantiano do fim do século XIX. Todavia, foi necessário que sepassasse antes por uma extensão, cuja idéia Schleiermacher aindanão possuía, ou seja, pela inclusão das ciências exegéticas e filoló-gicas no interior das ciências históricas. Somente no interior dessa

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inclusão a hermenêutica vai aparecer como uma resposta globaltrazida à grande lacuna do kantismo; ela foi percebida, pela pri-meira vez, por J. G. Herder e reconhecida, com toda lucidez, por E.Cassirer; consistia em dizer que, numa filosofia crítica, nada háentre a física e a ética.

Mas não se tratava apenas de preencher uma lacuna do kantis-mo. Tratava-se de revolucionar profundamente sua concepção dosujeito. Por haver-se limitado à busca das condições universais daobjetividade na física e na ética, o kantismo só conseguiu eviden-ciar um espírito impessoal, portador das condições de possibilidadedos juízos universais. A hermenêutica não podia acrescentar algoao kantismo sem receber da filosofia romântica sua mais funda-mental convicção, a saber, a de que o espírito é o inconscientecriador trabalhando em individualidades geniais. Ao mesmo tempo,o programa hermenêutico de Schleiermacher era portador de umadupla marca - romântica e crítica. Romântica por seu apelo_auma relação viva com o processo de criação e crítica por seudesejo de elaborar regras universalmente válidas da compreensão.Talvez toda hermenêutica fique sempre marcada por essa duplafiliação romântica e crítica, crítica e romântica. JJrítica_éj>j)rp-pósito de lutar contra a não-compreensão em nome do famosoadâgio: "há hermenêutica, onde houver não-compreensão" * ; român-tica é o intuito de "compreender um autor tão bem, e mesmomelhor do juie _ele mesmo se compreendeu" (p. 56). - __

f Ao mesmo tempo, estamos conscientes de que foi uma(aporiaj\ tanto quanto um primeiro esboço, que Schleiermacher legouTsua/ descendência nas notas de hermenêutica que jamais conseguiu^-transformar em obra acabada. O problema com o qual se defron-

tou foi o da relação entre duas formas de interpretação:

^*s uma

cão constante em sua obra, mas cuja significação não cessa dedeslocar-se no decurso dos anos. Antes da edição Kimmerle', publi-cada em Heidelberg em 1959, não eram conhecidas as notas de1804 e dos anos seguintes. Por isso atribuiu-se a Schleiermacheruma interpretação psicológica que, no início, era equivalente àinterpretação gramatical. A primeira, a interpretação gramatical,

1. Cf. F. Schleiermacher, Hermeneutik, Heidelberg, Ed. Kimmerle, §§ 15 e 16;G. Gadamer, Wahrheit una Methode, Tübingen, 1960, p. 173.

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J*_

apóia-se nos caracteres do discurso que são comuns a uma cultura;a segunda, a interpretação técnica, dirige-se à singularidade, atémesmo à genialidade, da mensagem do escritor. Ora, se as duasinterpretações possuem direitos iguais, não podem ser praticadas aomesmo tempo. Schleiermacher precisa: considerar a língua comuméesquecer o escritor, compreender um autor singular é esquecersua língua que é apenas atravessada. Ou percebemos aquilo que écomum, Uíi então percebemos o que é próprio. A primeira inter-pretação é chamada de objetiva, pois versa sobre os caractereslingüísticos distintos do autor, mas também negativa, pois indicasimplesmente os limites da compreensão; seu valor crítico refere-seapenas aos erros concernentes ao sentido das palavras. A segundainterpretação é chamada de técnica, sem dúvida por causa do pro-jeto de uma Kunstlehre, de uma tecnologia.

É nessa segunda interpretação que se realiza o projeto mesmode uma hermenêutica. Jrata-se de atingir a subjetividade jagueleque fala, ficando a língua esquecida..A,linguagem toma-set aqui, pórgão a serviço da individualidade. Essa interpretação é chamadade positiva, porque atinge o ato de pensamento que produz odíscursg._ Não somente uma exclui a outra, mas cada^ima exigetalentõs~~distintos, como o revelam os excessos respectivos deambas. O excesso da primeira gera o pedantismo; o da segunda, anebulosidade. Somente nos últimos textos de Schleiermacher asegunda interpretação ganha um primado sobre a primeira e ocaráter adivinhatório da interpretação enfatiza seu caráter psicoló-gico. Jjodayia^jnesmo neles, a interpretação psicológica - estetermo substitui o de interpretação técnica - jamais se limita a umaafinidade com o autor, mas implica motivos críticos na atividadede comparação: uma individualidade só pode ser apreendida porcomparação e por contraste. Assim, também a segunda hermenêu-tica comporta elementos técnicos e discursivos. Não_se apreendejamaisjliretamente uma individualidade, mas somente sua diferençacom relação a outra e a si mesma. Complica-se, assim, a dificul-dade de se demarcar as duas hermenêuticas pela superposição, aoprimeiro par de opostos, o gramatical e o técnico, de um segundopar de opostos, a adivinhação e a comparação. Os "Discursos Aca-dêmicos"1 dão testemunho desse extremo embaraço do fundador

1. In: Schleiermacher Werke l, Leipzig, 1928.

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da hermenêutica moderna. Proponho-me a mostrar, jio segundoestudo, que jaJs_embaraços só podem ser superados se elucidarmosjt relação da obra com a subjetividade do autor e se. na interpre-tação, deslocarmos a ênfase da busca patética das subjetividades

^subterrâneas em direção ao sentido e à referência da própria obra.Contudo, precisamos, antes, levar mais adiante a apona central dahermenêutica, considerando a ampliação decisiva pela qual Diltheya fez passar subordinando a problemática füológica e exegética àproblemática histórica. É essa ampliação, no sentido de urna maioruniversalidade, que prepara o deslocamento da epistemologia emdireção à ontologia, no sentido de uma maior radicalidade.

W. Dilthey

Dilthey se situa nessa encruzilhada crítica da hermenêutica,onde a amplitude do problema é percebida, muito embora perma-neça colocada em termos do debate epistemológico característicode toda a época neokantiana.

A necessidade de incorporar o problema regional da interpre-tação dos textos no domínio mais amplo do conhecimento histó-rico impunha-se a um espírito preocupado em tomar consciênciado grande êxito da cultura alemã no século XIX, a saber, a inven-ção da história como ciência de primeira grandeza. Entre Schleier-macher e Dilthey, há os grandes historiadores alemães do séculoXIX, L. Ranke, J. G. Droysen, etc. Por_conseguinte. o texto a serinterpretado é a própria realidade e seu encadeamento (Zusam-menhang). Antes da questão de como compreender um texto dopassado, deve-se colocar uma questão prévia: como conceber umejicadeamentp histórico? ^Antesda coerência de um texto, vem a

como o grande documento do homem,como a mais fundamental expressão da vida. Djlthey é, antes detudo, o intérprete desse pacto entre hermenêutica e história. .hojecEamamos de historicismo num sentido pejorativo,_exrmrneinicialmente um fato de cultura, a saber, a transferência de inte-resse das obras-primas da humanidade sobre o encàdèamerito histó-rico que as transportou. Ò descrédito d!THsl:õncíslnõ~nIõ resultaapenas dos embaraços que ele mesmo suscitou, mas de outra mu-dança cultural, ocorrida mais recentemente, e que nos leva a privi-

-¥-

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leôar o sistemírèrhv detrimento da mudança, a (sincronia em detri-O^ ^ / \ ^-— - ^^*^

mento dauüacroniar Veremos posteriormente como as tendênciasestruturais düTcrítica literária contemporânea exprimem ao mesmotempo o fracasso do historicismo e a subversão, em profundidade,de sua problemática.

Todavia, ao mesmo tempo que Dilthey trazia à luz da reflexãofilosófica o grande problema da inteligjbilidade do histórico en-quanto tal, estava inclinado, por um segundo fato cultural rele-vante, a procurar a chave da solução, não do lado da ontologia, masnuma reforma da própria epistemologia. Este segundo fato culturalé representado pela ascensão do positivismo enquanto filosofia, seentendermos com isso, em termos bastante gerais, a exigência doespírito de manter como o modelo de toda inteligibilidade o tipode explicação empírica que vinha sendo adotado no domínio dasciências naturais, j) tempo jie_Dilthev é o da completa recusa dohegelianismo e o da apologia do conhecimento experimental. EQLconseguinte, o único modo de se fazer justiça ao conhecimentohistórico pargcia_consistir em conferir-lheuma^dimensão cien-jífjca. comparável j[jjüe_ as~cjên£ias da natureza haviam conquis-_Vtado. Assim, foi para replicar ao positivismo que Dilthey tentouAdotar as ciências do espírito de uma metodologia e de uma episte-\mologia tão respeitáveis quanto as das ciências da natureza.

É sobre o fundo desses dois grandes fatos_culturais que Dil-they coloca sua questão fundamental: como o conhecimento jüs-tórico é possível? jje_um modo ma^gejiénçoi.c^mo^s ciênciasdo espírito são_BQSSíveis? Essa questão nos conduz ao limiar dagrande oposição, que atravessa toda a obra de Dilthey, entre aexplicação da natureza e a compreensão da história. Essa questão érepleta de conseqüências para a hermenêutica, que se vê, assim,cortada da explicação naturalista e relegada do lado da intuição

Com efeito, é do lado da psicologia que Dilthey procura otraço distintivo do compreender. _Toda ciência do espirito ^_todas

jgjnodalidades do conhecimento dojiomem implicando uma rela-cão histórica — pressupõe rnnacapgcidade__primordial: a de setranspor na vida psígujça^e^utrgm. No conhecimento natural, ohomem só atinge fenômenos distintos dele, cuja coisidade funda-mental lhe escapa. Na ordem humana, pelo contrário, o homemconhece o homem. Por mais estranho que o outro homem nos

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seja, não é um estranho no sentido em que pode sê-lo a coisafísica incognoscível. A diferença de estatuto entre a coisa natural eo espírito comanda, pois, a diferença de estatuto entre explicar ecompreender. O homem não é radicalmente um estranho para ohomem, porque fornece sinaisjle_ jiua própria existência. Compre-ender esses sinais é compreender o homem. jiis_p_quea escolapositivista ignora por completo: a diferença de princípio entre qmundo psíquico e o mundo físico. Poder-se-á objetar: o espírito, omundo espiritual, não é forçosamente o indivíduo; não foi Hegel atestemunha de uma esfera do espírito - o espírito objetivo, oespírito das instituições e das culturas — que de forma alguma sereduz a um fenômeno psicológico? Maspüthev ainda pertenceraessa_geração de neokantianos para quemj^ pivô de todas as ciên-cias humanas é o indivíduo, considerMQ, é verdade^jni_suas_ie.la-ções sociais, mas fundamentalmente singular. É por isso que asciências do espírito exigem, como ciência fundamental, a psico-logia, ciência do indivíduo agindo na sociedade e na história. Emúltima instância, as relações recíprocas, os sistemas culturais, afilosofia, a arte^e a religião se constróem sobre essa base. Maisprecisamente - e foi isso que também marcou época - é como .atividade, como vontade livre, como iniciativa e empreendimentoque o homem procura compreender-se. Podemos reconhecer, aqui,

_Q_jjrme propósito de__s,e. Volta£^s_costasaHegel.jle sen passar_doconceito hegeliano do espírito dos pjwosj^jssim, de 'se retomar aP^rjjjectivajkantiana, mas no ponto em que, como dissemos acima.Kant havia parado.^^^chãve^a crítica do conhecimento histórico, que tanta faltafez ao kantismo, deve ser procurada do lado do fenômeno funda-jnental da conexão interna, ou do encadeamento mediante o qual j/a vida de outrem, em seu jorrar, deixa-se discernir e identificar. JÍ^ /vgorque a vida produz formas, exterioriza-se em configurações está-jygis, que o conhecimento de outrem torna-se possível: sentimento,avaliação, regras de vontade Jandem a depositar-se numa aquisiçãoestruturada, oferecida à decifração de outrem. Os sisjtemas organi- _Y/

.zados que a cultura produz sob forma de literaturaLconstituem yuma camada de segundo nível, construída sobre esse fenômenoprimário da estrutura teleológica das produções da vida. É sabidocomo Max Weber irá tentar, por sua vez, resolver o mesmo proble-ma com seu conceito dos tipos-ideais. Ambos, com efeito, defron-

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tavam-se com o mesmo problema: como conceitualizar na ordgmda vida, gue é a da exeriência flutuante^ situada no oposto da

"regula£ão_natural?~~~p * — -' ^ f.

se fixa ejn__goniuntos estruturados suscejrtíyejs_jie_jej3em-compre-endidos por^juitigin. A partir de 1900, Dilthey se apoia em Husserl

j>ara conferir certa consistência a essa noção de encadeamento. a.mesma época, Husserl estabelecia que o psiquismo se caracterizava\ pela intencionalidade, ou seja, pela propriedade de jisarjun sen-tido susceptível de ser identificado. Em si mesmo, o_psiguismo não

)pode ser atingido, mas podgmos_çaptar aquilo jiue^ele vjsa^g^cor-relato objetivo e idêntico no qual o psiquisrno_se_ultrapassa., Essaidéia da intencionalidade e do caráter idêntico do objeto inten-cional permitia a Dilthey reforçar seu conceito de estrutura psí-quica pela noção de significação.

Neste novo contexto, o que ocorria com o problema herme-nêutico recebido de Schleiermacher? A passagem da compreensão,definida amplamente pela capacidade de transpor-se em outrem, àinterpretação, no sentido preciso da compreensão das expressõesda vida fixadas pela escritaTcolocava um duplo problemãTPor umlado, a hermenêutica completavãTãT psicologia compreensiva, acres-centando-lhe um estágio suplementar; por outro, a psicologia com-preensiva infletia a hermenêutica num sentido psicológico. Issoexplica por que Dilthey reteve de Schleiermacher o lado psicoló-gico de sua hermenêutica, onde reconhecia seu próprio problema:

da compreensão por transferência a outrem. .Considerada desseprimeiro ponto de_vista, a hermenêutica comporta algo de espe-cífico: visa a reproduzir um encadeamento, um conjunto estrutu-rado^apoiando-se jiuma categoria de signojLps que foram fixadospela escrita ou por qualquer outro procedimento de inscrição equi-valente à escrita^ Torna-se impossível, pois, apreender a vidapsíquica de outrem em suas expressões imediatas; deve-se repro-duzi-la, reconstruí-la, interpretando os signos objetivados; regrasdistintas são exigidas por esse Nachbilden, por causa do investi-mento da expressão em objetos de natureza própria. Como em

/^Schleiermacher, é a filologia, isto é, a explicação dos textos, que\fornece a etapa científica da compreensão. Para ambos, o papel

J essencial da hermenêutica consiste no seguinte: "estabelecer teori-/ camente, contra a intromissão constante da arbitrariedade român-U tica e do subjetivismo cético (...), a validade universal da interpre-

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tação, base de toda certeza em história"1 . A hermenêutica cons-titui, assim, a camada objetivada da compreensão, graças às estru-turas essenciais do texto.

Contudo, a contrapartida de uma teoria hermenêutica fundadasobre a psicologia é o fato de esta continuar sendo sua últimajustificação. .A autonomia do texto, que estará no centro de nossas

^ jó_Pgde L_ .^ É justamente por isso que a questão da objetividadepermanece, em Dilthey, um problema ao mesmo tempo inelutávele insolúvel. É inelutável em razão da própria pretensão de contra-por-se ao positivismo por uma concepção autenticamente científicada compreensão. Foi por isso que Dilthey não cessou de remanejare de aperfeiçoar seu conceito de reprodução, de modo a torná-losempre mais apropriado à exigência da objetivação. TodaviaJ_a_subordinação do problema hermenêutico ao problema propria-mente psicológico do conhecimento deoui^em_condenava-o a pro-

° ~

ele, a objetivação começa muito cedo, desde ainterpretação de si mesmo. O que eu sou para mim mesmo sópode ser atingido através das objetivações de minha própria vida. Oconhecimento de si mesmo já é uma interpretação que não é maisfácil que a dos outros; provavelmente, é mais difícil, porque só mecompreendo a mim mesmo pelos sinais que dou de minha própriavida-^que me são enviados pelos outros. Todo conhecimento de sié (rnecüato, através de sinais e de obras.

Com tal confissão, Dilthey respondia à Lebensphilosophie, tãoinfluente em sua época. Com ela, partilha a convicção segundo aqual a vida é essencialmente um dinamismo criador. Todavia, con-tra a filosofia da vida, sustenta que o dinamismo criador não seconhece a si mesmo nem pode se interpretar senão pelo desvio dossinais e das obras. Desta forma, ele realizou uma fusão entre oconceito de dinamismo e o de estrutura, a vida aparecendo comoum dinamismo que se estrutura a si mesmo. Foi assim que Diltheyse viu tentado a generalizar o conceito de hermenêutica, inserin-do-o sempre mais profundamente na teleologia da vida. Significa-ções adquiridas, valores presentes, fins longínquos estruturam cons-tantemente a dinâmica da vida, segundo as três dimensões tem-

1. W. Dilthey, op. c/f., pp. 332s.

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porais do passado, do presente e do futuro. OJiernejrri_sejnsteuiaenasor_seus_atos, pela exteriorizaçãojie_sua vida e pelos efeitos

~~_ _ _

que ela produz sobre os outros.~dêsvjojda-fiQmpregnsão~que é, desde sempre, uma interpretação. A

_

ciai sociedade criou seus própj^s^jrgãos.jde^gmpreensãomu^Õs^ci3rFcülturaisjiQS_quais eJa_sj=gomRrgende.^A históriauniversal torna-se, assim, o próprio campo hermenêutico. Compre-ender-me, é fazer o maior desvio, o da grande memória que retémo que se tomou significante para o conjunto dos homens. A her-menêutica é o acesso do indivíduo ao saber da história universal, éa universalização do indivíduo.

A obra de Dilthey, mais ainda que a de Schleiermacher, elu-cida a aporia central de uma hermenêutica que situa a compreen-são do texto sob a lei da compreensão de outrem que nele seexprime. Se empreendimento permanejce_psicológico_em seufundo, é gorgue^ confere, por visada última, à interpretação, nãoggutJõ^qugjligj) texto, mas aquele que nele se expiessa. Aojnes-ino tempo, o objeto da hermenêutica Jjincejisantemente depo£tado_do texto, dê seu sentido e de sua referência, parao vivido que nele^êxprimgTHrG^Gãdamer exprimiu bem esse conflito latente naobra de Dilthey1 : o conflito se situa, finalmente, entre uma filo-sofia da vida, com seu irracionalismo profundo, e uma filosofia dosentido, possuindo as mesmas pretensões que a filosofia hegelianado espírito objetivo. Dilthey transformou essa dificuldade em axio-ma: em si mesma, a vida comporta o poder de ultrapassar-se emsignificações2. Ou, como diz Gadamer: "A vida faz sua própriaexegese: ela mesma possui uma estrutura hermenêutica"3. Mas ofato de essa hermenêutica da vida ser uma história é o que perma-nece incompreensível. A pjssagejn_djjC5mrffí!ensão-psicolQgica_à

1. H G. Gadamer, op. cit., pp. 205-208.

2. Cf. F. Mussner, Histoire de 1'herméneutique de Schleiermacherànosjours,Paris, 1972, pp. 27-30.

3. H. G. Gadamer, op. cit., p. 213.

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compreensão hist6rica_s.up5e^_com efeitQ.-q.ue oobras da vida não seja mais vivido nem experimentado p0r nin,guémT~Ê neste ponto que reside sua objetividade. É por isso que

'põHêmos nos perguntar se, para pensar as objetivações da vida etratá-las como dados, não foi preciso colocar todo o idealismoespeculativo na raiz mesma da vida, vale dizer, finalmente, pensar aprópjiâ-yidã_como^ espírito (Geisf). Do contraiu), cómõ~ compre^éndermos que seja na arte, na religião e na filosofia que a vida seexprime de modo mais completo, objetivando-se o máximo? Nãoseria por que o espírito se encontra, aqui, em sua morada? Nãoseria ao mesmo tempo confessar que a hermenêutica só é possívelcomo filosofia sensata mediante os empréstimos que faz ao con-ceito hegeliano? Torna-se, então, possível dizer da vida o queHegel diz do espírito: a vida apreende aqui a vida.\ jSJo_enjanto. Dilthey-pexcebeu-^eifeitameftte o âmago joj)ro^blema: a vida só ameende-a-vida- pela-mediação das unidades de,'séHtidcT que_ se_ele.vam acima—do-fluxo—histórico. Percebeu ummodo de ultrajMSsagem_daJfÍriitude.-sern sobrevôo, sem saber abso-luto, que é, propriamente._a_iníejr)retação._Goni isso, aponta adireção na qüãTo historicismo poderia ser vencido por ele mesmo,sem invocar nenhuma coincidência triunfante com qualquer saberabsoluto. Contudo, para levar adiante essa descoberta, será precisoque se renuncie a vincular o destino da hermenêutica à noçãopuramente psicológica de transferência numa vida psíquica estra-nha, e que se desvende o texto, não mais em direção a seu autor,mas em direção ao seu sentido imanente e a este tipo de mundoque ele abre e descobre.

B) Da epistemologia à ontologia

Para além de Dilthey, o passo decisivo não consistiu num aper-feiçoamento da epistemologia das ciências do espírito, mas numquestionamento de seu postulado fundamental: essas ciências

comjts_ciências d_metodologia que lhes seria própria. Essa pjessupos^ão.,__domi:

_umamodalidade de teoria do conhecimento e que o debate^entre=expjiscar e compreendél~põs^~sêr~mantido nos limites do Metho-

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Page 20: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

denstreit caio aos negkantianos^ É essa pressuposição de uma her-menêutica compreendida como epistemologia que é essencialmenteposta em questão por M. Heidegger e, em seguida, por H. G. Ga-damer. Portanto, sua contribuição não pode situar-se pura e sim-plesmente no prolongamento do empreendimento de Dilthey. Deveaparecer, antes, como a tentativa de cavar por debaixo do próprioempreendimento epistemológico, a fim de elucidar as suas condi-ções propriamente ontológicas. Se^pudemos situar o primeiro Jii:

^_

da revolução_ , _ _ _ _ _

que recolocaria as questões de método_£ob,_acpntrole deuma3^=?^*=1xa=^^:=^^~^~~*^LK=s^.;L,2KaB&**~***xS=^^^ --- - *=** -^*™*=^~*^J^M~~~a^^

ojjtdpgiajHévia., Não se deve esperar de Heidegger nem tampoucode Gadamer qualquer aperfeiçoamento da problemática metodoló-gica suscitada pela exegese dos textos sagrados ou profanos, pelafilologia, pela psicologia, pela teoria da história ou pela teoria dacultura. Em contrapartida, surge uma questão nova: ao invés denos perguntarmos como sabemos, perguntaremos qual o modo deser desse ser que só existe compreendendo.

M. Heidegger

A questão da Auslegung da explicação ou interpretação, coin-cide tão pouco com a da exegese, que se vincula, desde a intro-dução de Sein und Zeit1 , à questão do ser esquecida. Aquilo sobreo que nos interrogamos é a questão do sentido do ser. Contudo,nessa questão, somos conduzidos por aquilo mesmo que é procu-rado. A teoria do conhecimento é, desde o início, transformada

recede e que versa_sobie-.o_modo_mo umcomo um ser encontra

objeto que facaface a um sujeito^ Mesmo que a ênfase de Seinímd~z,eit recaS*sõbre o Dasein, sobre o ser-aí que somos nós, maisdo que o fará a obra ulterior de Heidegger, esse Dasein não é umsujeito para quem há um objeto, mas u,m ser noseijoasein de-signa o lugar onde a questão do ser surge, o lugar da manifestação.Compete à sua estrutura, como ser, ter uma pré-compreensão onto-lógica do ser. Assim, exibir essa constituição do Dasein não signi-

1. M. Heidegger, L'être et lê temps, trad., Paris, 1964, pp. 15-19s.

30

l

fica absolutamente "fundar por derivação", como na metodologiadas ciências humanas, mas "extrair o fundamento por exibição" (§3, pp. 24 s.). Cria^s^jssim.Juma_Qp.QSiC-ão_e_ntre fundaçãojMUoló-

t, no sentidoque acabamos_jde_falar,_e fundamento epistg-Seriaapnãsuma questão epistemológica se o problema

fosse o dos conceitos de base que regem regiões de objetos particu-lares: região-natureza, região-vida, região-linguagem, região-história.Sem dúvida, a própria ciência procede a semelhante explicitação deseus conceitos fundamentais, especialmente por ocasião de umacrise dos fundamentos. Mas a tarefa filosófica de fundação é algodistinto: ósa extrair osacompreensão préyiajdjLregião, fornecendo_j_base de todos o>-objetos temáticos de uma ciência e que orientam, assim, toda pes-quisa positiva f~Jp. 26). Õ desafio da filosofia hermenêutica con^"síItíraT pois7°ría "explicitação desse ente relativamente à sua consti-tuição de ser" (ibid). Essa explicitação nada acrescentará à meto-dologia das ciências do espírito; antes, cavará sob essa metodologiapara manifestar seus fundamentos: "Assim, em história (...), o queé filosoficamente primeiro não é nem a teoria da formação deconceitos em matéria histórica, nem a teoria do conhecimento his-tórico, nem mesmo a teoria da história como objeto de ciênciahistórica, mas a interpretação do ente propriamente histórico rela-tivamente à sua historicidade" (ibid). A L hermenêutica não é umareflexão sobre as ciências do espírjto,_mas jima exrjlicitação_dpsolo^Õntológicõ^sõBre^ o qual essas^cpr^i^ podem edificar-se.Donde é esta a frase-crtãve para nósT"E"nã"hermenêutica assmicompreendida que se enraíza o que se deve denominar de herme-nêutica num sentido derivado: a metodologia das ciências históricasdo espírito" (p. 56).

Essa primeira reviravolta operada por Sein und Zeit suscitauma segunda. Em Dilthey, a questão da .^compreensão estava ligadaao problema U t r m a _rência, a um psiqmsjnQ=ígstrgnho,_dojninava todas as ciências doespírito, dajgsjc^o^a^àjhistória. jOra, é extraordinário que, em

esteja inteiramente des-"vinculada ^ ^tulo que se intitula Mitsein — ser-com —', mas não é nesse capítulo

o com outrern. Há um capí-

que vamos encontrar a questão da compreensão, como se podiaesperar, numa perspectiva diltheyniana. Os fundamentos do pró-

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Page 21: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

blema ontológico devem ser procurados do lado da relação do sercom o mundo, e não da relação com outrera É na relação comminha situação, ha compreensão fundamental de minha posição noser, que está implicada, a título principal, a compreensão.^ Ora, é interessante lembrar as razões pelas quais Dilthey pro-cede dessa forma. Foi a partir de um argumento kantiario quecolocou a problemática das ciências do espírito: o conhecimentodas coisas, dizia, culmina em algo desconhecido, na própria coisa.Em compensação, no caso do psiquismo, não há coisa em si; o queo outro é, também o somos. Por conseguinte, o conhecimento dopsiquismo leva uma inegável vantagem sobre o conhecimento danatureza. Heidegger, que leu Nietzsche, não possui mais esta ino-cência. Ele sabe que o outro, tanto quanto eu mesmo, me é maisdesconhecido do que qualquer fenômeno da natureza. Sem dúvida,a dissimulação é mais espessa neste caso do que em qualquer ou-tro. Se existe uma região do ser onde reina o inautêntico, é justa-mente a relação de cada indivíduo com qualquer outro possível. Épor isso que o grande capítulo sobre o ser-com é um debate com o"se" (pri), como foco e lugar privilegiado da dissimulação. Não é dese estranhar, pois, que não seja por uma reflexão sobre o ser-com, mas sobre o ser-em, que possa começar a ontologia da com-preensão. Não se trata do ser-com um outro, que duplicaria nossasubjetividade, mas do ser-no mundo. Esse deslocamento do lugarfilosófico é tão importante quanlo^aJransJfórjnda^JOTOroblerna de

^Esse deslocamento ficou inteiramente desconhecido nas inter-v

pretações ditas existencialistas de Heidegger. As análises da preo-cupação, da angústia, do ser-para-a-morte foram tomadas no sen-tido de uma psicologia existencial requintada, aplicada a estados dealma raros. Não se deu a devida atenção ao fato de essas análisespertencerem a uma meditação sobre a muncten/cfocfe do mundo ede pretenderem, essencialmente, arruinar a pretensão do sujeitoi.ognpscente de erigir-se em medida da objetividade. O que se deveprecisamente reconquistar, sobre essa pretensão do sujeito, é a con-dição de habitante desse mundo, a partir da qual há situação,compreensão, interpretação. É por isso que a teoria do compre-ender deve ser precedida pelo reconhecimento da relação de enrai-

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zamento que assegura a ancoragem de todo o sistema lingüístico,por conseguinte, dos livros e dos textos, em algo que não é, atítulo primordial, um fenômeno de articulação no discurso. Énecessário, antes, encontrar-se (bem ou mal), encontrar-se aí esentir-se (de certa maneira), antes mesmo de orientar-se. Se Seinund Zeit explora a fundo certos sentimento|-£omo_o_jiiedo e a

~

avor Hessas experiênciasfimdamenJ|ljn|ejLjelação sujeito-objetp. Pelo conhecimento, colo-camos os objetos diãnte^de nos. O sentimento da situação precedeesse vis-à-vis ordenando-nos a um mundo.

Surge, então, o compreender. Mas ele não é ainda um fato delinguagem, de escrita ou de texto. Também a compreensão deve,antes, ser descrita, não em termos de retardo ou de discurso, masde "poder-ser". A primeira função o^o^p^gndgr_J^dAJitQS>

orientar wx^^ma£o.JQjsSíSS!^^àex^sSia^n, pois, à apre-ensão de um fato, mas à de uma possibilidade de ser. Não

m^possibilidade de ser indicada pelo texto. Desta forma, seremos fiéisao compreender heideggeriano que éTessencialmente, um projetarou, de modo mais dialético e mais paradoxal, um projetar numser-lançado prévio. Ainda aqui, o tom existencialista é enganador.Uma pequena expressão separa Heidegger de Sartre: sempre já:"Este projeto não possui nenhuma relação com um plano de con-duta que o ser-aí teria inventado e segundo o qual edificaria seuser: enquanto ele é ser-aí, este já se projetou sempre e permaneceem projeto enquanto for" (p. 181). O que importa, aqui, não é omomento existencial da responsabilidade ou da livre-escolha, mas aestrutura de ser a partir da qual há um problema de escolha. Oou ... ou então . . . não é primeiro, mas derivado da estrutura doprojeto-lançado.

Por cnMg^teésomene^_eia_íê|cjàta_osi ão^_na— tríade^.

gicoque interessa ao exegeta. Contudo, antes da exegese do texto,aparece a exegese das coisas. De fato, a interpretação é, inicial-mente, uma explicitação, um desenvolvimento da compreensão,desenvolvimento que "não a transforma em outra coisa, mas que a

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Page 22: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

faz tornar-se ela mesma" (p. 185). Fica, assim, previsto todo retor-no à teoria do conhecimento. £L9ueé ^PÜ^ââS- S- ""1"(ais) que se liga às articulações da experfênclãTfodavia, "a----•*- —=•_ f^Z _7ni :.. « «««4írt«.*^ alô Çif ananac rlar.lhp 111

Eressoíp . 186).Se a Analítica do Dasein, porém, não visa expressamente aos

problemas de exegese, em compensação, confere um sentido àquiloque pode parecer um fracasso no plano epistemológico, vinculandoesse fracasso aparente a uma estrutura ontológica insuperável. Essefracasso é o que freqüentemente foi enunciado nos termos docírculo hermenêutico. Nas ciências do espírito, como já foi mos-trado várias vezes, o sujeito e o objeto se implicam mutuamente. _0sujeito se dá a si mesmo no conhecimento do objeto. Em contra-partida, é determinado, em sua mais subjetívã~cílsposiçlo, pela to-mada que o objeto tem sobre o sujeito, antes mesmo que esteempreenda seu conhecimento. Enunciado na terminologia do su-jeito e do objeto, o círculo hermenêutico não pode deixar deaparecer como um círculo vicioso. Assim, a função! de uma onto-logia fundamental é a de fazer aparecer a estrutura que aflora noplano metodológico sob as aparências do círculo. É a essa estru-tura que Heidegger chama de a pré-compreensão. Mag jistajíamoscompletamente enganados se persistíssemos emdescrever a pré-

mds'~" As relações de familiaridade que podemos ter, por exemplo,com um mundo de instrumentos, podem nos fornecer uma pri-meira idéia sobre aquilo que pode significar a aquisição prévia apartir da qual oriento-me para um uso novo das coisas. Este cará-ter de antecipação pertence ao modo de ser de todo ser que com-preende historicamente. -Portanto, é nos termos da Analítica doDasein que devemos compreender esta proposição: "Aj?xplicitiç!ode algo, enquanto isso ou aquüo^JEunda^e^essencialmente sobre

- —.T""'"'' •*•*"*=•— T— *m.,,,,,,., |ti ...... _______ jmme=j= i.-J™==-™°°°*-°-~" ' "' "~'J*'r '"-•""" "•^™= 'd-*^^=^=Ks3iv=K_MliJ1ae»*

uma aquisição e jirnaçF^pTÍKfy O papel das pressuposições na exegese textual não

passa, pois, de um caso particular dessa lei geral da interpretação.Transposta para o domínio da teoria do conhecimento e avaliadasegundo a pretensão de objetividade, a pré-compreensão recebe aqualificação pejorativa de preconceito. Para a ontologia fundamen-tal, pelo contrário, o preconceito só é compreendido a partir da

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estrutura de antecipação do compreender. Por conseguinte, ofamoso círculo hermegêutico não passa da sombra projetada, sobreo plano metodológico, dessa estrutura de antecipação. Qualquerindivíduo que tenha compreendido isso sabe, doravante, que "oelemento decisivo não consiste em sair do círculo, mas em pene-trar nele corretamente" (p. 190).

Como podemos ter observado, o peso principal dessa medita-ção não se concentra sobre o discurso e, menos ainda, sobre aescrita. A filosofia de Heidegger — pelo menos a de Sein und Zeit- é tão pouco uma filosofia da linguagem, que a questão da lin-guagem só se introduz após as da situação, da compreensão e dainterpretação. A linguagem, na época de Sein und Zeit, permaneceuma articulação segunda, a articulação da explicitação em enun-ciados (Aussage, § 33, pp. 191 s.). Todavia, a filiação do enuncia-do, a partir da compreensão e da explicitação, prepara-nos a dizerque sua função primeira não consiste na comunicação com outrem,nem tampouco na atribuição de predicados a sujeitos lógicos, masno fazer-valer, na mostração,n& manifestação (p. 192). Essa funçãosuprema da linguagem outra coisa não faz senão lembrar a filiaçãodela mesma, a partir das estruturas ontológicas que a precedem:"O fato de a linguagem tornar-se, apenas nesse momento, um temade nosso exame, deve indicar que este fenômeno possui suas raízesna constituição existencial da abertura do ser-aí" (p. 199). E, mais (adiante: "O discurso é a articulação daquilo que é compreensão"(ibid). Portanto, precisamos ressituar o discurso nas estruturas doser, e não essas estruturas no discurso: "O discurso é articulação-*'"significante" da estrutura compreensível do ser-no-mundo" (p.200). ^

Nesta última observação, está esboçada a passagem à segundafilosofia de Heidegger: ela vai ignorar o Dasein e parte diretamentedo poder de manifestação da linguagem. Todavia, desde^p_5em und

e^o^s^^que_cai_na_£mpiria, É por isso que a primeira determinação dodizer não é o falar, mas o par escutar-calar-se. Ainda aqui,Heidegger toma a contrapartida da maneira ordinária e, mesmo,lingüística, de situar no primeiro plano a operação de falar (locu-ção, interlocução). Compreender é entender. Em outros termos,minha primeira relação com a palavra não é de produzi-la, mas de

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recebê-la: "O ouvir é constitutivo do discurso" (p. 201). Esta prio-ridade da escuta estabelece a relação fundamental da palavra com aabertura ao mundo e ao outro. As conseqüências metodológicassão enormes: a lingüística, a semiologia, a filosofia da linguagemmantêm-se inelutavelmente no nível do falar e não atingem o dodizer. Jjestejentido, a.^pjafiâ^fuadAraea.taLnão^apejfe^oj^a^lin^:güística mais do qujjja^az^gJcrejÇAntarAexeges^Ej^ujnío^ue.ÇLÍJSla£j^meJejpJhQjn^^ ^

Tendo chegado a esse ponto, certamente podemos nos pergun-tar: por que não pararmos aqui e nos proclamarmos simplesmenteheideggerianos? Onde está a famosa aporia anunciada? Será que

• não eliminamos a aporia diltheyniana de uma teoria do compreen-der, condenada alternadamente a opor-se à explicação naturalista ea rivalizar com esta em objetividade e em cientificidade? Será quenão a superamos ao subordinar a epistemologia à ontologia? Ameu ver, a aporia não está resolvida; foi simplesmente deslocada e,assim, agravada; não se encontra mais na epistemologia, entre duasmodalidades de conhecer, mas situa-se entre, a ontologia e a epis-temologia tomadas em bloco. Com a fdosofiahejdÊggejjajia!,_nãpcejS5mQA^de_pratiML.ajnoyime_nt^^jfdta_ao_s_fund_aroe.ntos^ mastornamo-npsjnwpazesJle^pjojijidjr^^^da pnÍdogia^fundament_a!,=i=aDn^* «lA/^rtn Ar* ac+otutr» rlae ^iÂnoiac Hr» PÇníritíY^ ^ ^

Ora, umajilosofia _aug_rornpe_j3^diálogp_£om as ciências só sedirige" a si mesm§. Além do mais, é somente sobre o trajeto de re-t^nre^quíTse T revela a pretensão de manter as questões de exegesee, em geral, de crítica his'tórica como questões derivadas. Enquantonão procedermos efetivamente a essa derivação, permanece pro-blemática a própria ultrapassagem para as questões de fundação.

-cjsjiüijé-so^

nifAsti_aj,erdadeka_filQsafia?_j>ara mim, a questão que perma-nece não resolvida, em Heidegger, é a seguinte:

.K^...^...^^ . No entanto, é sobre esse trajeto deretorno que^õderiaãtêslSf-se e revelar-se a afirmação segundo aqual o círculo hermenêutico, no sentido dos exegetas, está fun-dado sobre a estrutura de antecipação da compreensão no planoontológico fundamental. Mas a hermenêutica ontológica parece

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incapaz, por razões estruturais, de desvendar essa problemática deretorno. No próprio Heidegger, a questão é abandonada desde queé posta. Em Sein una Zeit lemos o que se segue: "O círculocaracterístico da compreensão (...) encerra, em si, uma possibili-dade autêntica do mais original conhecer; só a captamos correta-mente se a explicitação se der por tarefa primeira, permanente eúltima, não se deixar imporem suas aquisições e visão prévia, bemcomo suas antecipações por quaisquer intuições e noções popula-res, mas assegurar seu tema científico mediante o desenvolvimentodessas anticipações sobre as "coisas mesmas" (p. 190).

Assim colocamos, no princípio, a distinção entre a antecipação"segundo as coisas mesmas e uma antecipação que seria apenas ori-unda das idéias transversais (Einfàlle) e dos conceitos populares(Volksbegriffe). Mas como podemos ir adiante, posto que se decla-ra, imediatamente depois, que "os pressupostos ontológicos detodo conhecimento histórico transcendem, essencialmente, a idéiade rigor própria às ciências exatas" (p. 190), e que se elimina aquestão do rigor própria às ciências históricas? A preocupação emse enraizar mais profundamente o círculo que toda epistemologiaimpede que se repita a questão epistemológica após a ontologia.

H. G. Gadamer

Essa aporia torna-se o problema central da filosofia hermenêu-tica de Hans Georg Gadamer, em Wahrheit undMethode1 . O filósofode Heidelbejg-se— ptooSe— expressamente L a reavivar ociências do espfrito_a partir da _pntplogia_heidgggerianaprecisamente, de sua

ílsxpétiênHniuciear, em torno da qual se organiza toda aobra, e a partir da qual a hermenêutica erige sua reivindicação deuniversalidade, é a do escândalo provocado, na escala da cons-ciência moderna, pelo tipo de distanciamento alienante (Ver-fremdung) que lhe parece ser a pressuposição dessas ciências. Comejeito,a alienação é miuHo_jr^j^ue_umjejvtâ^nto_ou jiue_um

que asseguja_a_c£nduta_obj.ei,tiva das ciências humanasA

1. H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode. Grundzüge eiher PMlosophischenHermeneutik, 1960.

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Page 24: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

seus^^oj^jnejutavelrriente, certo distanciamento; esteLjgorg,sua-ve^__exrmrne a de^^^^ga^^gão primordi^j^^rtença (Zu-gehòrigkeit),sema qual não haveria relação com o rdstórico^en^&yfflÍ2=Ü,Este debate entre distanciamento aliénãnte e experi-ência de pertença é levado adiante por Gadamer nas três esferas

_entr.e~as_quais-se—Fepaj?te~a~exp_eriência hermenêutica: esfera esfé-_,üca. esfera^rãstòrica^e-jesfeja .da luigua^^^^ã^sfera estética, aexperiência de ser apreendido pelo objeto precede e torna possívelo exercício crítico do juízo, cuja teoria fora feita por Kant nocapítulo intitulado "Juízo de gosto"1. Na esfera histórica, a cons-ciência de ser carregado por tradições que me precedem é o quetorna possível todo exercício de uma metodologia histórica nonível das ciências humanas e sociais. Enfim, na esfera da lingua-gem, que de certa forma atravessa as duas precedentes, a co-per-tença às coisas ditas pelas grandes vozes dós criadores de discurso,precede e torna possível todo tratamento científico da linguagem,como um instrumento disponível, e toda pretensão de se dominar,por técnicas objetivas, as estruturas do texto de nossa cultura.Assim, uma única e mesma tese está presente nas três partes deWahrheit und Methode.

Por conseguinte, a filosofia de Gadamer exprime a síntese dosdois movimentos que descrevemos acima: das hermenêuticas regio-nais, em direção à hermenêutica geral; da epistemologia das ciên-cias do espírito à ontologia. Além disso, porém, Gadamer assinala,

f | em relação a Heidegger, o esboço do movimento de retorno daj ontologia em direção aos problemas epistemológicos. É desse ân-\ _ g u l o que tratarei aqui. Ojaròprio título de sua objg^Qnfmat&ja»

conceito heideggeriano de verdade c^m^oj;onceito^ltheyniano_de_méjgdo.^ A questão é a de saber até que ponto a obra merecedenominar-se: Verdade E Método', talvez fosse preferível intitu-lar-se Verdade OU Método. Com efeito, se Heidegger podia dirimiro debate com as ciências humanas por um movimento soberano deultrapassagem, Gadamer, ao contrário, pode apenas mergulhar numdebate sempre mais acalorado, justamente porque leva a sério aquestão de Dilthey. A parte consagrada à consciência histórica é, aesse respeito, extremamente significativa.\0 longo percurso his-tórico que se impõe Gadamer, antes de expor suas próprias idéias,

1. Kant, Critique dela faculte dejuger (1790), trad. fr., Paris, 1968.

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-tatesta que a filosofia hermenêutica deve começar por uma recapi- ltulação da luta da filosofia romântica contra a Aufklarung, da ldiltheyniana contra o positivismo, da heideggeriana contra o neo- lkantismo. ""

Sem dúvida, a intenção expressa de Gadamer é evitar recair naviseira do romantismo. A seu ver, o romantismo operou apenas umareviravolta das teses da Auflclarung, sem conseguir deslocar a proble-mática e a mudar o terreno do debate. P^rJsjOjJikgs^fi^^omântiça,seempjnhjyínijga]^Aufklà'rutig,^£^£&ní.mua. a depender de_uma filosofia, crítica-.^vale^dizer^de.uma.filosofia do iujjroTAlsim, o7òmantismo trava seu com-bate sobre um terreno definido pelo adversário, a saber, o papel datradição e da autoridade na interpretação. O problema consistejrsaber seo ponto de partida romântico da hermenêutica, e sesua afirmação,"

^situar-se, antes, no seio dasJffldifiães,CB^260)., consegue escapar aojogo das reviravoltas, no qual ele vê o romantismo filosófico en-cerrado, face às pretensões de toda filosofia crítica.

Dilthey foi

dajeona^trajicional do conhecimento" (p. 261).

tação docorrtrajOjcritérjos^id^filoso^jeflexiva^Esta polêmica anti-refle-xiva contribuirá mesmo para conferir a esse arrazoado a aparênciade um retorno a uma posição pré-crítica. Por mais provocante —para não dizer provocador - que tal arrazoado seja, ele é devido àreconquista da dimensão histórica sobre o momento reflexivo. Ahistória me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertejiggji^história antes de me pertencer a mim mesmo. Ora,JMíKéy_jiã0-pôde compreender isso, porque sua revolução permaneeeu^episte^mr>iAní?vi -"«-«rtWntsTsrTísísíi/rinfia™"-. "«~'Tsobre_siia_66nsciêncjaJhJstórica. Neste ponto, Gadamer éoherdeirn de tieidepger. É delequerecebe a con^çcjo_segundõTiqiíaTãquilo que chamamos de pre-conceito exprime a estrutura djjuitecipação da experiêncíã"humana."Ao^mesmo tempo" ã interpretação filológica deve permanecer ummodo derivado do compreender fundamental.

39

Page 25: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

Essa rede de influências, alternadamente recusadas e assumi-das, culmina numa teoria da consciência histórica, que marca oápice da reflexão de Gadamer sobre a fundação das ciências doespírito. A essa reflexão, ele dá o seguinte título: wirkungsges-chichtliches Bewusstsein, ou seja, literalmente, consciência-da-his-tória-dos-e feitos. Essa categoria não depende mais da metodologia,do Inquiry histórico, mas da consciência reflexiva dessa metodo-logia. rata^e_da_consciêncudesr expstoJà_hisíória_e_jLSuaação, de tal forma que não podemos obj

Kleine Schrif-lén, pode-se ler: ''Quero dizer com isso, antes de tudo, que nãopodemos nos abstrair do devir histórico, situar-nos longe dele, paraque o passado se torne, para nós, um objeto... Somos sempresituados na história... Pretendo dizer que nossa consciência é de-terminada por um devir histórico real, de tal forma que ela não'possui a liberdade de situar-se em face do passado. Por outro lado,pretendo afirmar que, novamente, trata-se sempre de tomar cons-ciência da ação que se exerce sobre nós, de tal maneira que todopassado, cuja experiência acabamos de fazer, leve-nos a nos respon-sabilizar totalmente, a assumir, de certo modo, sua verdade. . ."'.

É a partir desse conceito da eficiência histórica que gostaria decolocar meu próprio problema: como é possível introduzir qualquerinstância crítica numa consciência de pertença expressamente defi-nida pela recusa do distanciamento? A meu ver, isso só pode ocorrerna medida em que essa consciência histórica não se limitar a repudiaro distanciamento, mas de forma a também empenhar-se em assumi-lo.A este respeito, a hermenêutica de Gadamer contém uma série de su-gestões decisivas que se tornarão o ponto de partida de minha pró-pria reflexão, no segundo estudo.

1. R G. Gadamer, Kleine Schriften, l, Philosophie. Hermeneutik, Tübingen,1967, p. 158.

40

^tença e^distanciamento alienante, a consciência da história efi-

""ciente contém, j e m & mesma, um elemento de distância. Aí HisWfTa~dõs efeitos é jusjanignte a que se exerce sob a con-

doTbngínquo ou,^ m ^ O T t r o s ^ m i p ^ é a eficácia jia

djgtjmda^^Portanto, há um paradoxo da alteridade, "uma tensão

entre o longínquo e o próprio essencial à tomada de consciênciahistórica.

Outro indício da dialética da participação e do distanciamentonos é fornecido pelo conceito de fusão dos horizontes (Horízont-verschmelzung)' . De Ja^sggundo_Gadamer, Lse a condição de fini-tude ; dp_gonhecimento histórico exclui todo sobrevôo, toda síntese

J^^Be_ vista. Onde houve situação, haverá hori-

zonte susceptível de se estreitar ou de se ampliar. Devemos a Ga-damer essa idéia muito fecunda segundo a qual a comunicação adistância entre duas consciências diferentemente situadas faz-se emfavor da fusão de seus horizontes, vale dizer, do recobrimento desuas visadas sobre o longínquo e sobre o aberto. Mais uma vez, épressuposto um fator de distanciamento entre o próximo, o lon-gínquo e o aberto. Este conceito significa que não vivemos nemem horizontes fechados, nem num horizonte único. Na medidamesma em que a fusão dos horizontes exclui a idéia de um sabertotal e único, esse conceito implica a tensão entre o próprio e oestranho, entre o próximo e o longínquo e, por conseguinte, ficaexcluído o jogo da diferença na colocação em comum.

Finalmente, a mais precisa indicação em favor de uma inter-pretação menos negativa do distanciamento alienante está contidana filosofia da linguagem, com a qual se conclui a obra. O caráteruniversalmente "linguageiro" da experiência humana — com estetermo pode ser traduzido, com mais ou menos felicidade, o termode Gadamer Sprachlichkeit — significa que minha pertença a umatradição ou a tradições passa pela interpretação dos signos, dasobras, dos textos, nos quais se inscreveram e se ofereceram à nossa'decifração as heranças culturais. Sem dúvida, toda a meditação deGadamer sobre a linguagem está voltada contra a redução do mun-do dos signos a instrumentos que poderíamos manipular à vontade.Toda a terceira parte de Wahrheit und Methode é uma apologiaapaixonada do diálogo que somos e da concórdia prévia que nosimpulsiona. Mas a experiência "linguageira" só exerce sua funçãomediadora porque os interlocutores do diálogo anulam-se recipro-camente diante das coisas ditas que, de certo modo, conduzem odiálogo. Ora, onde esse reino da coisa dita sobre os interlocutores

1. H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode, pp. 289 s., 356, 375.

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mais aparente senão quando a Sprachlichkeit se torna Schnft-r0u seja, quando a mediação pela linguagem se converte em

rnediação pelo iexto? Assim, o que nos faz comumcar a distancia^!Ta coisa do texto que não pertence mais nem ao seu autor nem

30 tfuíima expressão, a coisa do texto, leva-me ao limiarJeprópria refleVao. É este limiar que transpore, no segundo

estudo.

2. A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DO DISTANCIAMENTO

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Em meu primeiro estudo, descrevi, em substância, o pano defundo sobre o qual tento, pessoalmente, elaborar o problema her-menêutico de um modo que seja significativo para o diálogo entrea hermenêutica e as disciplinas semiológicas e exegéticas. Essa des-crição levou-nos a uma antinomia que pareceu-me ser a mola essen-cial da obra de Gadamer, a saber, a oposição entre distanciamentoalienante de pertença. Esta oposição é uma antinomia, pois suscitauma alternativa insustentável: de um lado, dissemos, o distancia-mento alienante é a atitude a partir da qual é possível a objetiva-ção que reina nas ciências do espírito ou ciências humanas; masesse distanciamento, que condiciona o estatuto científico das ciên-cias, é, ao mesmo tempo, a degradação que arruina a relação fun-damental e primordial que nos faz pertencer e participar da reali-dade histórica que pretendemos erigir em objeto. Donde a alter-nativa subjacente ao título mesmo da obra de Gadamer, Verdade emétodo: ou praticamos a atitude metodológica, mas perdemos adensidade ontológica da realidade estudada, ou então praticamos aatitude de verdade, e somos forçados a renunciar à objetividadedas ciências humanas.

Minha própria reflexão procede de uma recusa dessa alterna-tiva e de uma tentativa de ultrapassá-la. Esta tentativa encontra suaprimeira expressão na escolha de uma problemática dominante eque me parece escapar, por natureza, à alternativa entre distan-ciamento alienante e participação por pertença. Essa problemática

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dominante é a do texto, pela qual, com efeito, reintroduz-se umanoção positiva e, se posso assim me expressar, produtora do distan-ciamento. O texto é, para mim, muito mais que um caso particularde comunicação inter-humana: e o paradigma do distanciamento nacomunicação. Por esta razão, revela um caráter fundamental daprópria historicidade da experiência humana, a saber, que ela éuma comunicação na e pela distância.

No que se segue, elaboraremos a noção de texto em vistadaquilo mesmo de que ela é a testemunha, a saber, da funçãopositiva e produtora do distanciamento, no cerne da historicidadeda experiência humana.

- - Proponho que essa problemática seja organizada em tomo decinco temas:

• a efetuação da linguagem como discurso;• a efetuação do discurso como obra estruturada;• a relação da fala com a escrita no discurso e nas obras de

discurso;• a obra de discurso como projeção de um mundo;• o discurso e a obra de discurso como mediação da com-

preensão de si.

Todos esses traços, tomados conjuntamente, constituem os cri-térios da textualidade.

Desde já, observaremos que a questão da escrita, se está situa-da no centro dessa rede de critérios, de forma alguma constitui aproblemática única do texto. Por conseguinte, não poderíamosidentificar pura e simplesmente texto e escrita. E isto, por váriasrazões: a) em primeiro lugar, não é a escrita enquanto tal quesuscita um problema hermenêutico, mas a dialética da fala e daescrita; b) em seguida, essa dialética se constrói sobre uma dialéticade distanciamento mais primitiva que a oposição da escrita à fala,e que já pertence ao discurso oral enquanto ele é discurso; por-tanto, é no próprio discurso que se deve procurar a raiz de todasas dialéticas ulteriores; c) enfim, entre a efetuação da linguagemcomo discurso e a dialética da fala e da escrita, pareceu-me neces-sário intercalar uma noção fundamental: a da efetuação do dis-

1 curso como obra estruturada. Pareceu-me que a objetivação dalinguagem, nas obras de discurso, constitui a condição mais pró-xima da inscrição do discurso na escrita. A literatura é constituída

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de .obras escritas, por conseguinte, antes de tudo, de obras. Masisso não é tudo: a tríade discurso-obra-escrita ainda não constituisenão o tripé que suporta a problemática decisiva, a do projeto deum mundo, que eu chamo de o mundo da obra, e onde vejo ocentro de gravidade da questão hermenêutica. Toda a discussãoanterior servirá apenas para preparar o deslocamento do problemado texto em direção ao do mundo que ele abre. Ao mesmo tempo,a questão da compreensão de si, que, na hermenêutica romântica,ocupara um lugar de destaque, vê-se transferida para o fim*, comofator terminal, e não como fator introdutório ou, menos ainda,como centro de gravidade.

A) A efetuação da linguagem como discurso

O discurso, mesmo oral, apresenta um traço absolutamenteprimitivo de distanciamento, que é a condição de possibilidade detodos os traços que consideraremos posteriormente. Este traço pri-mitivo de distanciamento pode ser caracterizado pelo título: a dia-lética do evento e da significação.

De um lado, o discurso se dá como evento: algo acontecequando alguém fala. Esta noção de discurso como evento impõe-sedesde que levemos em consideração a passagem de uma lingüísticada língua ou do código a uma lingüística do discurso ou da men-sagem. A distinção tem sua origem, como se sabe, em Ferdinandde Saussure1 e em Louis Hjelmslev2. O primeiro distingue a"língua" e a "fala"; o segundo distingue o "esquema" e o "uso".A teoria do discurso tira todas as conseqüências epistemológicasdessa dualidade. Enquanto a lingüística estrutural limita-se a colo-car entre parênteses a fala e o uso, a teoria do discurso suspende oparêntese e afirma a existência de duas lingüísticas, repousandosobre leis diferentes. Foi o lingüista francês Emile Benveniste3 quemmais se aprofundou nessa direção. Para ele, a lingüística do discursoe a lingüística da língua se constróem sobre unidades diferentes. Se

1. F. Saussute, Cours delinguistique générale, Paris, 1973, pp. 30 s., 36 s., 112,227.

2. L. Hjelmslev, Essais linguistiques, Copenhague, 1959.

3. E. Benveniste, Problèmes de linguistique générale, Paris, 1966.

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o "signo" (fonológico e léxico) é a unidade de base da língua,a "frase" é a unidade de base do discurso. É a lingüística dafrase que suporta a dialética do evento e do sentido, de ondeparte nossa teoria do texto.

Mas o que entendemos por evento?e^_ _ -

_ftjtísjcursp_é_realizado temporalmente e ngpresente, enquanto que£jisjejna_jia_língua é virtuaj_e_jQra_dVjg^o. NestiT sentidõTpodemos falar, com Benveniste, da "instância do discurso" paradesignar o surgimento do próprio discurso como evento,.-Ademais,enquanto que a linguagem não possui sujeito, no sentido jm_que a

~ s " ~ T u v ê l ^ 1 : l i s ^ u r s o remeteremete, taisa seu lõcutoirffié~diãnte

j»moj>sj>ronomes p.essoais. Jjejte sentidtydiremosjiue a^instânciado discurso é auto-referencial. O caráter de evento vincula-se,agora, à pessoa daquele que fala. O evento consiste no fato dealguém falar. jtejüguém se exprimir tomando a palavra. Num ter-ceiro sentido, ainda, o discurso é evento: enquanto que os signosda linguagem só remetem a outros signos, no interior do mesmosistema, e fazem com que a língua não possua mais mundo, comonão possui tempo e subjetividade, o discurso é sempre discurso arespeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever,exprimir ou representar. fLeyento, nesse terceiro sentido, é a vindaàjinguagemjle um mundg_mejijiante o~discursõ. Enfim, ao passoque_ajíngua não é senão a condição préyja_ja_c.omunicacj|o?Jij}ualelajjomece^seus códigos, é no discurso que todas as mensagens sãotrocadas. Neste sentido, só o discurso possui, não somente umInundo, mas o outro, outra pessoa, um interlocutor ao qual sedirige. Neste último sentido, o evento é o fenômeno temporal datroca, o estabelecimento do diálogo, que pode travar-se, prolon-gar-se ou interromper-se.

Todos esses traços, tomados conjuntamente, constituem o dis-curso em evento. É interessante notar como eles só aparecemno movimento de efetuação da língua em discurso, na atua-lização de nossa competência lingüística em performance.

Todavia, ao enfatizar, assim, o caráter de evento do dis-curso, só revelamos um dos dois pólos do par constitutivo dodiscurso. Precisamos agora elucidar o segundo pólo: o dasignificação. Porque é da tensão entre esses dois pólos ^úé~sur-

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gem a produção do discurso como obra, a dialética da fala e daescrita, e todos os outros traços do texto que enriquecerão anoção de distanciamento.

Jíara introduzir essa dialética do evento e do sentido, pro-ponho quTle^31gT^u1êrie~Tõ^b~dlsãiIrsõ~Téfetuado como evento,todo discurso é compreendido como significação.

Qjjuejpretendemos compreender não ç n eventçynajTiedidaem que-é-fugidio. mas sua significação que permanece. Este pontoexige a máxima clarificação: na realidade, poderia parecer que esta-mos dando um passo para trás, da lingüística do discurso à dalíngua. Não é nada disso. É na lingüística do discurso que o eventoe o sentido se articulam um sobre o outro. Esta articulação é onúcleo de todo o problema hermenêutico. _Assim_conip_a_língua,ao_articular-se sobre o discurso, ultrapassa-se como sistema e reali--^' ^ i__—•— —'———*——• —. —za-se como evento, da mesma forma, ao ingressar no processo dacompreensão, o discurso se ultrapassa, enquanto evento, na signifi-cação. Essa ultrapassagem do evento na significação é típica dodiscurso enquanto tal. Revela a intencionalidade mesma da lingua-gem, a relação, nela, do noema coni a noese. Se_a_linguagem é umfneinen^juma—yjsada significante, é precisamente em-vir-tude-dessaultrapassagjrr^dojevento"nã~sigmricação.

^H?o"r~conseguinte, o primeiro distanciamento é o distanciamentodo dizer no dito.

Mas o que é dito? Para elucidar de modo mais completo esseproblema, a hermenêutica deve recorrer não somente à lingüística- mesmo compreendida no sentido de lingüística do discurso, poroposição à lingüística da língua, como fizemos até aqui -, mastambém à teoria do Speech-Act, como pode ser encontrada emAustin1 e em Searle2.

O ato de discurso, segundo esses autores, é constituído poruma hierarquia de atos subordinados, distribuídos em três níveis:

• nível do ato locucionário ou proposicional: ato de dizer;• nível do ato (ou da força) ilocucionário: aquilo que fazemos

ao dizer;

1. J. L. Austin, How to do things with words, Oxford, 1962. (Trad. fr.:Quanddire, c'est faire, Paris, 1970.)

2. J. R. Searle, Speech-act, an essay in the philosophy of language, Cam-bridge, 1969.

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nível do ato perlocucionário: aquilo que fazemos pelo fato

de falar.

Se eu digo a alguém para fechar a porta, faço três coisas: a) re-firo o predicado de ação (fechar) a dois argumentos (alguém e a por-ta): é o ato de dizer; b) mas eu digo essa coisa a alguém com a forçade uma ordem, e não de uma constatação, de um desejo ou de umapromessa: é o ato ilocucionário; c) enfim, posso provocar certos efei-tos, tais como o medo, pelo fato de dar uma ordem a alguém;esses efeitos fazem do discurso uma espécie de estímulo queproduz certos resultados: é o ato perlocucionário.

Quais as implicações dessas distinções para nosso problema daexteriorização intencional pela qual o evento se ultrapassa na signi-

ficação?O ato locucionário se exterioriza nas frases enquanto proposi-

ção. Com efeito, é enquanto tal proposição que a frase pode seridentificada e reidentificada como sendo a mesma frase. Uma fra-se se apresenta, assim, como uma enunciação (Aus-sage), suscep-tível de ser transferida a outras, com este ou aquele sentido. O queaqui é identificado, é a própria estrutura predicativa, como deixaentrever o exemplo supracitado. Assim, uma frase de ação deixa-seidentificar por seu predicado específico (tal ação) e por seus doisargumentos (o agente e o paciente). Mas o ato ilocucionário tam-bém pode ser exteriorizado graças aos paradigmas gramaticais (osmodos: indicativo, imperativo etc.) e aos outros procedimentos que"marcam" a força ilocucionária de uma frase e, dessa forma, per-mitem identificá-la e reidentificá-la. É verdade que, no discursooral, a força ilocucionária se faz identificar pela mímica e pelosgestos, tanto quanto pôr traços propriamente lingüísticos, e que,no primeiro discurso, são os aspectos menos articulados, os quechamamos de prosódia, que fornecem os indícios mais probantes.Não obstante, as marcas propriamente sintáticas constituem umsistema de inscrição que torna possível, por princípio, a fixação,pela escrita, dessas marcas da força ilocucionária.

Precisamos reconhecer, no entanto, que o ato perlocucionárioconstitui o aspeto menos inscritível do discurso, e caracteriza, pre-ferencialmente, o discurso oral. Mas a ação perlocucionária é justa-mente aquilo que, no discurso, é o menos discurso. É o discursoenquanto estímulo. Neste caso, o discurso age, não pela trucagem

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do reconhecimento, por meu interlocutor, de minha intenção, mas,de certa forma, de um modo energético, por influência diretasobre as emoções e as disposições afetivas do interlocutor. Assim,o ato proposicional, a força ilocucionária e a ação perlocucionáriatornam-se aptos, numa ordem decrescente, à exteriorização inten-cional que torna possível a inscrição pela escrita.

Por isso torna-se necessário entender por significação do atode discurso, ou por noema do dizer, não somente o correlato dafrase, no sentido estrito do ato proposicional, mas também o daforça ilocucionária e, mesmo, o da ação perlocucionária, na medidaem que esses três aspetos do ato de discurso são codificados eregulados segundo paradigmas; na medida, pois, em que podem seridentificados ou reidentificados como possuindo a mesma signifi-cação. Portanto, dou aqui ao termo significação uma acepção bas-tante ampla, recobrindo todos os aspetos e todos os níveis daexteriorização intencional que torna possível, por sua vez, a exte-riorização do discurso na obra e nos escritos.

B) O discurso como obra

Proponho três traços distintivos da noção de obra. Em pri-meiro lugar, uma obra é uma seqüência mais longa que a frase, eque suscita um problema novo de compreensão, relativo à totali-dade finita e fechada constituída pela obra enquanto tal. Em se-guida, a obra é submetida a uma forma de codificação que seaplica à própria composição e faz com que o discurso seja umrelato, um poema, um ensaio etc. É essa codificação que é conhe-cida pelo nome de gênero literário. Em outros termos, compete auma obra situar-se dentro de um gênero literário. Enfim, uma obrarecebe uma configuração única, que a assimila a um indivíduo eque se chama de estilo.

Composição, pertença a um gênero, estilo individual caracte-rizam o discurso como obra. A própria palavra obra revela a natu-reza dessas novas categorias: são categorias da produção e do tra-balho. Impor uma forma à matéria, submeter a produção a gêne-ros, enfim, produzir um indivíduo, eis outras tantas maneiras deconsiderar a linguagem como um material a ser trabalhado e a serformado. Dessa forma, o discurso se toma o objeto de uma praxis

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e de uma techné. A este respeito, não há oposição radical entre otrabalho do espírito e o trabalho manual. A este propósito, pode-mos evocar o que diz Aristóteles da prática e da produção: "Todaprática e toda produção referem-se ao individual: de fato, não é ohomem que o médico cura, a não ser por acidente, mas Cálias ouSócrates, ou qualquer outro indivíduo assim designado e que seja,ao mesmo tempo, homem" (Metafísica A, 981 a, a 15). No mesmosentido, G. G. Granger escreve em seu Ensaio de uma filosofia doestilo: "A prática é a atividade considerada com seu contextocomplexo e, especialmente, com as condições sociais que lhe dãosignificação num mundo efetivamente vivido"1. O trabalho é,assim, uma das estruturas da prática, senão sua estrutura principal:é "a atividade prática objetivando-se em obras" (p. 6).

Da mesma maneira, a obra literária é o resultado de um traba-lho que organiza a linguagem. Ao trabalhar o discurso, o homemopera a determinação prática de uma categoria de indivíduos: asobras de discurso. É aqui que a noção de significação recebe umaespecificação nova de ser transferida para a escala da obra indivi-dual. Por isso há um problema de interpretação das obras, irredu-tível à simples inteligência das frases isoladamente. O fato de estiloressalta a escala do fenômeno da obra como significante, global-mente enquanto obra. Assim, o problema da literatura vem inscre-ver-se no interior de uma estilística geral, concebida como "medi-tação sobre as obras humanas" (p. 11) e especificada pela noção detrabalho, de que ela busca as condições de possibilidade: "Procuraras mais gerais condições da inserção das estruturas numa práticaindividual, esta seria a tarefa de uma estilística" (p. 2).

À luz desses princípios, o que ocorre com os traços do dis-curso enumerados no início desse estudo?.

Estamos lembrados do paradoxo inicial do evento e do sen-tido: o discurso, dizíamos, é efetuado como evento, mas compre-endido como sentido. Como a noção de obra pode situar-se comreferência a esse paradoxo? Ao introduzir na dimensão do dis-curso categorias próprias à ordem da produção e do trabalho, anoção de obra aparece como uma mediação prática entre a irracio-nalidade do evento e a racionalidade do sentido. O evento é aprópria estilização, mas essa estilização está em relação dialética

1. G. G. Granger, Essai d'une phttosophie du style, Paris, 1968, p. 6.

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com uma situação concreta complexa apresentando tendências,conflitos. A estilização surge no seio de uma experiência já estru-turada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo, indeter-minações. Apreender uma obra como evento é captar a relaçãoentre a situação e o projeto no processo de reestruturação.

A obra de estilização toma a forma singular de um acordoentre uma situação anterior que, de repente, aparece desfeita, nãoresolvida, aberta, e uma conduta ou uma estratégia que reorganizaos resíduos deixados pela estruturação anterior. Ao mesmo tempo,o paradoxo do evento fugidio e do sentido identificável e repe-tível, que está no ponto de partida de nossa meditação sobre odistanciamento no discurso, encontra na noção de obra uma notá-vel mediação. A noção de estilo acumula os dois caracteres doevento e do sentido. O estilo, como vimos, surge temporalmentecomo um indivíduo único e, a este título, diz respeito ao mo-mento irracional do parti prís, mas sua inscrição no material dalinguagem confere-lhe a aparência de uma idéia sensível, de umuniversal concreto, como diz W. K. Wimsatt, em The verbal icon1.O estilo é a promoção de um parti prís legível numa obra que, porsua singularidade, ilustra e enaltece o caráter acontecimental dodiscurso. Mas este acontecimento não deve ser procurado alhures,mas na forma mesma da obra. Se o indivíduo é inapreensível teori-camente, pode ser reconhecido como a singularidade de um pro-cesso, de uma construção, em resposta a uma situação deter-minada.

Quanto à noção de sujeito de discurso, recebe um estatutonovo quando o discurso se torna uma obra. A noção de estilopermite um novo enfoque da questão do sujeito da obra literária.A chave encontra-se do lado das categorias da produção do traba-lho. A este respeito, o modelo do artesão é particularmente ins-trutivo (a estampilha do móvel no século XVIII, a assinatura doartista, etc.). Com efeito, a noção de autor, que aqui vem qualifi-car a de sujeito falante, aparece como o correlato da individuali-dade da obra. A demonstração mais surpreendente deste fato éfornecida pelo exemplo menos literário possível, o estilo da cons-trução do objeto matemático, tal como Granger a expõe na pri-

1. W. K. Wimsatt, The verbal icon, studies in the meaning of poetry, Ken-tucky, 1954.

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meira parte de seu Ensaio de uma filosofia do estilo. Até mesmo aconstrução de um modelo abstrato dos fenômenos, a partir domomento em que é uma atividade prática imanente a um processode estruturação, traz um nome próprio. Tal modo de estruturaçãoaparece necessariamente como escolhido, de preferência a outro.Porque o estilo é um trabalho que individua, vale dizer, que pro-duz o individual, também designa, retroativamente, seu autor. As-sim, o termo autor pertence à estilística. Autor diz mais que locu-tor: é o artesão em obra de linguagem. Ao mesmo tempo, porém,a categoria do autor é uma categoria da interpretação, no sentidoem que é contemporânea da significação da obra como um todo.A configuração singular da obra e a configuração singular do autorsão estritamente correlativas. O homem se individua produzindoobras individuais. A assinatura é a marca dessa relação.

Todavia, a mais importante conseqüência da introdução da cate-goria de obra deve-se à noção mesma de composição. Realmente, aobra de discurso apresenta caracteres de organização e de estruturaque nos permitem estender ao próprio discurso os métodosestruturas que, inicialmente, foram aplicados com êxito nasentidades da linguagem mais curtas que a frase, em fonologia eem semântica. A objetivação do discurso na obra e o caráterestrutural da composição, a que se acrescentará o distancia-mento pela escrita, leva-nos a questionar por completo a opo-sição recebida de Dilthey entre "compreender" e "explicar".

Uma nova época da hermenêutica está aberta para o su-cesso da análise estrutural. Doravante, a explicação é o caminhoobrigatório da compreensão. Isto não quer dizer — é precisoesclarecê-lo desde agora — que a explicação possa, em contrapar-tida, eliminar a compreensão. A objetivação do discurso, numaobra estruturada, não suprime o traço fundamental e primeiro dodiscurso, a saber, que o é constituído por um conjunto de frasesonde alguém diz algo a alguém a propósito de alguma coisa. Ahermenêutica, como vimos, permanece a arte de discernir o dis-curso na obra. Mas este discurso não se dá alhures: ele se veri-fica nas estruturas da obra e por elas. Conseqüentemente, ainterpretação é a réplica desse distanciamento fundamental cons-tituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso,comparáveis' à sua objetivação nos produtos de seu trabalho e de

sua arte.

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C) A relação enite a fala e a escrita

O que ocorre com o discurso quando ele passa da fala à es-crita? À primeira vista, a escrita parece introduzir apenas um fatorpuramente exterior e material: a fixação, que coloca o evento dodiscurso ao abrigo da destruição. Na realidade, a fixação não passada aparência externa de um problema singularmente mais impor-tante concernindo a todas as propriedades do discurso que enume-ramos anteriormente. Em primeiro lugar,r JL esgrjta torna o textoautônomo relativamente à intenção do autor. O que o texto sig-nifica, não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. Signi-ficação verbal, vale dizer, textual, e significação mental, ou seja,psicológica, são doravante destinos diferentes.

Essa primeira modalidade de autonomia encoraja-nos a reco-nhecer na Verfremdung uma significação positiva que não se reduzà nuança de degradação que Gadamer pretende atribuir-lhe. Emcontrapartida, nessa autonomia do texto já está contida a possibi-lidade de aquilo que Gadamer chama de a "coisa" do texto sersubtraída ao horizonte intencional finido de seu autor. Jini_Qutras

.palavras, graças à escrita, o "mundo" do texto pode fazer explodir

Contudo, o que é verdadeiro das condições psicológicas, tam-bém o é das condições sociológicas da produção do texto. .F, essen-cial auma obra literária, a uma obra de arte em__ge£aL_flue ela

e que se abra, assim, a uma seqüência ilimitada de leituras, das'mesmas situadas ern_contextos sócio-culturais diferentes. Em suma,o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico quanto dopsicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontex-tualizar numa nova situação: é o que justamente faz o ato de ler.

Essa libertação em relação ao autor possui seu equivalente porparte daquele que recebe o texto. Diferentemente da situação dia-logai, onde o vis-à-vis é determinado pela situação mesma do dis-curso, o 'discurso escrito suscita para^si um_pjiWia}j:HíeJ_vÍ£tuaJ-mente, se estende a todo aquele que sabe_ler. j^escri tá encontra, .jiqui,^seu jnais notável efeito: a Jibertação _da^c^aje_sj?litajrelati-yarnente à CQndicjo__dlalogal do discurso. O resultado é que arelação entre escrever e ler não é mais um caso particular da relaçãoentre falar e ouvir.

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Essa autonomia do texto tem uma primeira conseqüência her-menêutica importante: o distanciamento não é o produto da meto-dologia e, a este título, algo de acrescentado e de parasitário. Ele éconstitutivo do fenômeno do texto como escrita; ao mesmo tem-po, também é a condição da interpretação; a Verfremdung não ésomente aquilo que a compreensão deve vencer, mas tambémaquilo que a condiciona. Estamos, assim, em condições de desco-brir, entre objetivação e interpretação, uma relação muito menosdicotômica e, por conseguinte, muito mais complementar que aque havia sido instituída pela tradição romântica.^Aj>assagem da

jalaàes^rita_jfeta_p_d^curso de vários modos; de uma maneiraespecial, o funcionamento dajrfêrênciãTcTilterã^õ^quandojiãonos é Tnãfi possível mostrar ajcoisa_de_ciue falamos como ge_rten-céndo_à__ãtuaçãojgo.rnum,aQ^, interlocutores do dialogo. Mas reser-vamos uma análise distinta para esse problema, intitulada de "mun-

do do texto".

D) O mundo do texto

O traço que colocamos sob este título vai levar-nos ao mesmotempo a ultrapassar as posições da hermenêutica romântica, queainda são as de Dilthey, mas também às antípodas do estrutura-lismo, que recuso, aqui, como o simples contrário do roman-

tismo.Estamos lembrados de que a hermenêutica romântica enfa-

tizava a expressão da genialidade. Igualar-se a essa genialidade,tomar-se contemporâneo dela, era a tarefa da hermenêutica. Dil-they, próximo ainda, neste sentido, da hermenêutica romântica,fundava seu conceito de interpretação sobre o de "compre-ensão", vale dizer, sobre a captação de uma vida estranha expri-mindo-se através das objetivações da escrita. Donde o caráter his-toricizante e psicologizante da hermenêutica romântica e dilthey-niana. Esta via não nos é mais acessível, a partir do momentoem que levamos a sério o distanciamento, pela escrita, e a objeti-vação, pela estrutura da obra. Significaria isto, porém, que aorenunciar a apreender a alma de um autor, limitamo-nos a re-constituir a estrutura de uma obra?

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A resposta a essa questão afasta-nos tanto do estruturalismoquanto do romantismo. A tarefa hermenêutica fundamental es-capa à alternativa da genialidade ou da estrutura. Vinculo-a ànoção do "mundo do texto".

Essa noção prolonga o que acima chamamos de a refe-rência ou denotação do discurso: em toda proposição podemosdistinguir, com Frege, seu sentido e sua referência1. Seu sentido éo objeto real que visa; este sentido é puramente imanente ao dis-curso. Sua referência é seu valor de verdade, sua pretensão deatingir a realidade. Por esse caráter, o discurso se opõe à língua,que não possui relação com a realidade, as palavras remetendo aoutras palavras na ronda infindável do dicionário. Somente o dis-curso, dizíamos, visa às coisas, aplica-se à realidade, exprime omundo.

A questão nova que se coloca é a seguinte: o que ocorre coma referência quando o discurso se torna texto? É aqui que aescrita, mas, sobretudo, a estrutura da obra, alteram a referência, aponto de torná-la inteiramente problemática. No discurso oral, oproblema se resolve, enfim, na função ostensiva do discurso. Emoutros termos, a referência se resolve no poder de mostrar umarealidade comum aos interlocutores; ou, se não podemos mostrar acoisa de que falamos, pelo menos podemos situá-la relativamente àúnica rede espácio-temporal à qual também pertencem os interlocu-tores. Finalmente, é o "aqui" e o "agora", determinados pela situa-ção do discurso, que conferem a referência última a todo discurso.Com a escrita, as coisas já começam a mudar. Não há mais, com efei-to, situação comum ao escritor e ao leitor. Ao mesmo tempo, as con-dições concretas do ato de mostrar não existem mais. Sem dúvida, éessa abolição do caráter mostrativo ou ostensivo da referência quetorna possível o fenômeno que denominamos de "literatura", ondetoda referência à realidade dada pode ser abolida. Contudo, éessencialmente com o aparecimento de certos gêneros literários,geralmente ligados à escrita, mas não necessariamente tributáriosdesta, que essa abolição da referência ao mundo dado é levada atésuas mais extremas condições. Este é, me parece, o papel da maiorparte de nossa literatura: destruir o mundo. Isto é uma verdade daliteratura de ficção — conto, mito, romance, teatro —, bem como

1. G. Frege, Êcríts logíques et philospphiques, trad. fr., Paris, 1971, pp. 102s

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de toda literatura denominada de poética, onde a linguagem pareceglorificada em si mesma, em detrimento da função referencial do

discurso ordinário.No entanto, não há discurso de tal forma fictício que não vá

ao encontro da realidade, embora em outro nível, mais funda-mental que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo,didático, que chamamos de linguagem ordinária. Minha tese con-siste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível,abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possi-bilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível,que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos ma-nipuláveis, mas no plano que Husserl designava pela expressão deLebenswelt, e Heidegger pela de "ser-no-mundo".

É essa dimensão referencial absolutamente original da obra deficção e de poesia que, a meu ver, coloca o problema hermenêu-tico mais fundamental. Se não podemos definir a hermenêuticapela procura de um outro e de suas intenções psicológicas que sedissimulam por detrás do texto; e se não pretendemos reduzir ainterpretação à desmontagem das estruturas, o que permanece paraser interpretado? Responderei: interpretar é explicitar o tipo deser-no-mundo manifestado diante do texto.

Vamos ao encontro, aqui, de uma sugestão de Heidegger di-zendo respeito à noção de Verstehen. Estamos lembrados de que,em Sein und Zeit, a teoria da "compreensão" não está mais vincu-lada à compreensão de outrem, mas torna-se uma estrutura doser-no-mundo. Mais precisamente, é uma estrutura cujo exame vemapós ao da Beflndlichkeit; o momento do "compreender" respondedialeticamente ao ser em situação, como sendo a projeção dospossíveis mais adequados ao cerne mesmo das situações onde nosencontramos. Dessa análise, retenho a idéia de "projeção dos possí-veis mais próximos" para aplicá-la à teoria do texto. De fato, oque deve ser interpretado, num texto, é uma proposição demundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetarum de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de o mundodo texto, o mundo próprio a este texto único.

O mundo do texto de que falamos não é, pois, o da linguagemquotidiana. Neste sentido; ele constitui uma nova espécie de dis-tanciamento que se poderia dizer entre o real e si mesmo. Trata-sedo distanciamento que a ficção introduz em nossa apreensão do

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real. Como vimos, um relato, um conto ou um poema não existemsem referente. Mas esse referente estabelece uma ruptura com o dalinguagem quotidiana. Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas pos-sibilidades de ser-no-mundo na realidade quotidiana. Ficção e poe-sia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-dado, mas sob amaneira do poder-ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se meta-morfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variaçõesimaginativas que a literatura opera sobre o real.

Conforme já mostrei em outra obra, tomando o exemplo dalinguagem metafórica1, a ficção é o caminho privilegiado da des-crição da realidade, e a linguagem poética é aquela que, por exce-lência, opera o que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, cha-mava de a mimesis da realidade. A tragédia, com efeito, só imita arealidade, porque a recria através de um mythos, de uma "fábula",que atinge sua mais profunda essência.

É este o terceiro tipo de distanciamento que a experiênciahermenêutica deve incorporar.

E) Compreender-se diante da obra

Gostaria de considerar uma quarta e última dimensão da no-ção de texto. Anunciava-a na introdução dizendo que o texto é amediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos. Este quartotema marca a entrada em cena da subjetividade do leitor. Prolongaesse caráter fundamental de todo discurso de ser dirigido a alguém.Todavia, diferentemente do diálogo, esse vis-à-vis não é dado na si-tuação de discurso. Ousaria mesmo dizer que ele é criado, instaura-do, instituído pela própria obra. Uma obra se dá a seus leitores ecria, assim, para si, seu próprio vis-à-vis subjetivo.

Dir-se-á que tal problema já é bem conhecido da hermenêuticamais tradicional: é o problema da apropriação (Aneignung) ou daaplicação (Anwendung) do texto à situação presente do locutor. Eé dessa forma que também o compreendo. Gostaria, no entanto,de ressaltar o quanto esse tema fica transformado quando o intro-duzimos depois dos precedentes.

1. P. Ricoeur, "La métaphore et lê problème central de l'herméneutique",Revue Philosophique de Louvain, 70,1972, pp. 93-112.

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SEGUNDA PARTE

Ciência e ideologia

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1. INTRODUÇÃO

Gostaria de começar este estudo sobre "Ciência e Ideologia"relembrando um texto de Aristóteles, no prólogo à sua Ética aNicômaco. Diz ele: "Teremos desempenhado satisfatoriamentenossa tarefa de fornecermos os esclarecimentos sobre a naturezado assunto que tratamos. Porque, na realidade, não devemosprocurar o mesmo rigor em todas as discussões indiferente-mente, como também não podemos exigir isso nas produçõesdas artes. As coisas belas e as coisas justas que constituem oobjeto da política dão margem a tais divergências, a tais incer-tezas, a ponto de termos acreditado que elas existiam somentepor convenção, e não por natureza... Portanto, devemos noscontentar, ao tratar de assuntos semelhantes e ao partir deprincípios semelhantes, em mostrar a verdade de um modo gros-seiro e aproximado... Por conseguinte, é no mesmo espírito quedeverão ser acolhidas as diversas visões que emitimos, pois épróprio do homem culto não procurar o rigor para cada tipo decoisa senão na medida em que o permite a natureza do assun-to . . . Desta forma, num domínio determinado, julga bem aqueleque recebeu uma educação apropriada; ao passo que, numa matériaexcluindo toda especialização, o bom juiz é aquele que recebeu umacultura geral".

Por que citei esse texto? Não foi pela comodidade da epígrafeou do exórdio, mas por uma questão de disciplina do raciocínio.

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tom efeito, o que pretendo mostrar é que o fenômeno da ideolo-gia é susceptível de receber uma apreciação relativamente positiva,

i caso mantenhamos a tese propriamente aristotélica da pluralidadedos níveis de cientificidade. O texto de Aristóteles nos diz várias

"coisas:

• que a política diz respeito a coisas variáveis e instáveis;. que os raciocínios possuem, aqui, por ponto de partida,

fatos geralmente, mas nem sempre, verdadeiros;• que devemos, por conseguinte, contentar-nos em mostrar

a verdade de modo grosseiro e aproximado (ou, segundooutra tradução, "de modo global e esquemático");

. finalmente, que isso é assim, porque o problema é denatureza prática.

Esse texto tem valor de advertência no limiar de nossa en-quête. Na realidade, ele pode precaver-nos contra múltiplas arma-dilhas a que o tema da ideologia pode nos lançar (tema este,diga-se de passagem, que não escolhi espontaneamente, mas queaceitei como um desafio). Acabo de falar dejnújgrdas-arjnadjlhas^..Elas são de dois tipos, e sua identificação introduzirá as duas pri-meiras partes propriamente críticas de meu estudo.

O que antes de tudo está em questão_J_aJIJêfiniclQ_miçial^doJfenômeno^E aqui, já estamos diante de várias armadilhas. A

termos_de_classes socjais .Isso nos parece hoje natural,Jão jorte.é a marca do marxismo sobre o problema da ideologia, muitoembora lenha lido Napoleão quem, pela primeira vez, fez dessetermo uma arma de combate (o que, como veremos, talvez nãodeva ser definitivamente esquecido). A^eitaraanálise^jip^gonto

> _

tempo, numa _p.olêmica_esj:érÜ pró ou, _ . _ ^aquilo de que precisamos, em nossos dias, é de um pensamentolivre com referência a toda operação de intimidação exercida poralguns, de um pensamento que tivesse a audácia e a capacidadede cruzar Marx, sem segui-lo nem tampouco combatê-lo. Creioque foi Merleau-Ponty quem falou de uTambém é isso que procuro praticar.

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Todavia, para evitar essa primeira armadilha, devemos evitaruma segunda. qjie^onsiste,.em_definir.jniciaimente...aideologi^p^

*sua funçãcTdíe Justificação, não somen^jgsjnteresses de uma clas-se. mas^de uma classe dominante. A meu _ver, precSâmõsÜêicãpar

jojascínio exercido pelo.problemajAAominac.ão^para considerar-mos um problema mais amplo, o da integração social, ànjueTádominação é uma dimensão, e não a condição única e essencial.Ora, se tomamos como adquirido o fato de a ideologia ser umafunção da dominação, é porque admitimos também, sem crítica, ode a ideologia ser um fenômeno essencialmente negativo, primo doerro e da mentira, irmão da ilusão. Na literatura contemporâneasobre o assunto, nem mesmo se submete mais ao exame a idéia"que já se tornou natural de que a ideologia é uma representaçãofalsa cuja função é dissimular a pertença dos indivíduos, professadaporjun indivíduo i ou pjMj^grup^^de^uè^t^t^êWinterésse

^mjilo^riscAnliecej^âJatg. Por conseguinte, 7ê~nlõ*q iserm6s eli-minar essa problemática da distorção interessada e inconsciente,nem tampouco mantê-la como uma aquisição, precisamos desatar oelo entre teoria da ideologia e estratégia da suspeita, deixando paramostrar, pela descrição e pela análise, por que o fenômeno da ideo-logia recorre à réplica da suspeita.

Este primeiro questionamento das idéias adquiridas, incorpo-rado à definição inicial do fenômeno, é solidário a um segundo,versando_sjoj^j>_£sj^uío._s|nsjtein^ideologias. Meu tema, ideologia e verdade, diz respeito, mais preci-samente, a essa segunda linha de interrogação. Também sobre essasegunda Unha uma série de armadilhas nos aguarda. Admite-se commuita facilidade que o homem da suspeita está isento da tara queele denuncia: a ideologia é o pensamento de meu adversário; é opensamento do outro. Ele não sabe, eu, porém, sei. Ora,jM]uestãoé_a_de saber je_jjxisté_ umjjpnto de vista sobre aação que seja

àA essa pretensão acrescenta-se uma outra: não somente

há um lugar não-ideológico, mas este lugar é o de uma ciência,semelhante à de Euclides com referência à geometria, e à de Gali-leu e de Newton, com referência à física e à cosmologia.

É interessante notar como essa pretensão, particularmente vivanos mais eleatas dos marxistas, é exatamente a que Aristóteles con-denava entre os platônicos de seu tempo, em matéria de ética e de

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política, à qual opunha o pluralismo dos métodos e o dos graus derigor e de verdade. Ora, possuímos razões novas para justificar essepluralismo, razões que se devem a toda a reflexão moderna sobre acondição propriamente histórica da compreensão da história. Estasimples observação, que antecipa todo um desenvolvimento, deixapressentir que a natu£eza_da relação entre ciência_e ideologia &&.

dar à noção de_ciência_nas^ta*4^

Jdêfllogia™., 'As duas linhas de discussão convergirão para uma questão que

é, de certa forma, a questão de confiança, e que será o objeto doquarto item deste estudo. Se não há ciência capaz de arrebatar-se àcondição ideológica do saber prático, devemos renunciar pura esimplesmente à oposição entre ciência e ideologia?

Apesar das fortes razões que militam neste sentido, tentareisalvaguardar a oposição, mas renunciando a formulá-la nos termosde uma alternativa e de uma disjunção. Para tanto, tentarei dar umsentido mais modesto — ou seja, menos peremptório e menos pre-tensioso — à noção de uma critica das ideologias, situando essacrítica no contexto de uma interpretação tendo consciência de serhistoricamente situada, mas que se esforça por introduzir, tantoquanto pode, um fator de distanciamento no trabalho que não ces-samos de retomar para reinterpretar nossas heranças culturais.

Eis, pois, o horizonte desse ensaio:.somen|e_a_Brjacura de umarelação intimamente™dialética»entre=-eiêneia^e^ideoLogia_p_ar.ecerfHe

^tpmpatível com o grajj <fo wrdqáe-ae-qttal- ios-é-jiQSiíyel aspirai,como dizia Aristóteles. nas,coisas-práticas e políticas.

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2. CRITÉRIOS DO FENÔMENO IDEOLÓGICO

O nível em que se situa minha tentativa de descrição do fenô-meno ideológico não-seiá, pois, de início, o de uma análise em ter-mos de classes sociais e de classe dominante. Minha intenção é Che-gar ao conceito de ideologiaque_corresponda acessa .análise.,, maisdo que partir dela.~Este será meu modo de "cruzar" o marxismo.

Procederei em três etapas*.

A) Função geral da ideologia

Meu ponto de partida é fornecido pela análise weberiana doconceito de ação social e de relação social. Para_Mpv Wihfíf, Mação social quando o comportamento humano é significante paraos agentes individuais e quando o comportamento de um é oriea^todo em função do comportamento dftjautrxu. Á idéia de relaçãojocial acrescenta a esse duplo fenômeno de significação de ação ede orientação mútua a idéia de uma_fistabilidade e-de iinia preitL.sibilidade de um_sisjema de jiguficàgões^ Pois bem, é nesse nível

* Os subtítulos dessas três etapas foram dados por mim, com o objetivo defacilitar a leitura (N. do T.).

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do caráter significante, mutuamente orientado e socialmente inte-grado da ação, que o fenômeno ideológico aparece em toda a suaoriginalidade. Está-Ugado^à .necessidade, para_um_grupo social, deconferir-se^ujna_jnwge.m_de^sijneMn^_d^j^jresjnlar^,ji£^^idote.atraLdo~teimo2jdjjepresent^e_jncenar.i Eis o primeiro traço deonde pretendo partir.

Por que isto ocorre? Num artigo que me impressionou bastan-te e me inspirou, Jacques Ellul1 considera como primitiva, a esserespeito, a relação que uma comunidade histórica mantém com oato fundador que a instaurou: a Declaração Americana dos Direi-tos, a Revolução Francesa, a Revolução Russa, etc. A ideologia _4função da distâncja_que separa a memòna_s^cjalJe-Jum-agoníecjLmentoque, no entanto, trata-se de retjgür. jeu-f>apel~não-é-sQmen^té o3è~diiundir ã~cbnviccãci_para alémjlo^cjírculojdps pais_fiin-

d^_g_grupflL_mas tambémo_de^perpetuar-.sua_energia-inicial_para além do período de efer-vescência. É nessa distância, característica de todas as situaçõespost factum, que intervém as imagens e as interpretações. Sempreé numa interpretação que o modela retroativamente, mediante umarepresentação de si mesmo, que um ato de fundação pode ser reto-mado e reatualizado-^Talvez não haja grupo social sem essa relação,

fmdireta^ com seu próprió"TdvêTlto7~Ér-por— isso^^ué^o fenômenoideológico começa demasiado cedo: porque, com a domesticação,

i pela lembrança, começa o consenso, mas também se iniciam a con-jvenção e a racionalização. Neste momento, a ideologia deixou de*sêr mobilizadora para tornar-se justificadora; ou antes, só continua

sendo mobilizadora com a condição de ser justificadora.Donde o segundo traço da ideologia, nesse primeiro nível: seu

dinamismo. A_idgologia dependg^daquilcuque^ poderíamos chamarde_uma_te.oria_4i-jngtivação social. Ela é, para a práxis social, aqui-lo que é, para um projeto individual, um motivo — um motivo éao mesmo tempo aquilo que-justiflc.3_e que compjomete^Da mes~ma forma, ajdeologia argumenta. Ela^é-movida-pelo— d§sejjo_de_áemonstráoiue o grupõ~que a professa-tem-jazão de ser o que é.Contudo, não se deve tirãTdãíTde modo apressado, um argumentocontra a ideologia: seu papel mediador_permanece insubstituível;

1. J. Ellul, "Lê role médiateur de 1'ideologie", Démythisation et Idéologie,Paris, Aubier, 1973, pp. 335-354.

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ele se exprime da seguinte forma: a ideologia é sempre mais queum reflexo, na medida em que também é justificação e projeto.Este caráter "gerativo" da ideologia exprime-se no poder fundadorde segundo grau que ela exerce com referência a empreendimentos,a instituições, que dela recebem a crença no caráter justo e neces-sário da ação instituída.

Mas como a ideologia consegue preservar seu dinamismo? Umterceiro traço se faz necessário: toda ideologia é simplificadora e.esquemática. Ela é uma grelha, um código, para se dar uma visãoaFTHJHJunfÕTnão somente do grupo, mas da história e, em últimainstância, do mundo. Esse caráter "codificado" da ideologia é ine-rente à sua função justificadora. Sua capacidade de transformaçãosó é preservada com a condição de que as idéias que veicula tor-nem-se opiniões, de que o pensamento perca rigor para aumentarsua eficácia, como se apenas a ideologia pudesse mediatizar nãosomente a memória, dos atos fundadores, mas os próprios sistemasde pensamento. É dessa forma que tudo pode tornar-se ideológico:

"~étiCâTTeflgiãoPfilosofía. "Essa-mutacão-jie um sistema de_pensa-intoern sistema-.de crença", diz Ellul, é o fenômeno ideológico.

A idealização da imagem que um grupo faz de si mesmo é apenasum corolário dessa esquematização. De fato, é através de uma ima-gem idealizada que um grupo se representa sua própria existência;e é essa imagem que, por contra-reação, reforça o código interpre-tativo. Isso pode ser visto no seguinte exemplo: desde as primeirascelebrações dos acontecimentos fundadores, aparecem os fenô-menos de ritualização e de estereotipia; já nasceu um vocabulárioe, com ele, uma ordem de "denominações corretas": é o reino dosismos. A ideologia é.ppr_excelência. o reino dos ismos: liberalis-mo,_socialismo, etc. E possível que só haja ismos, para o própriopensamento especulativo, por assimilação a esse nível de discurso:espiritualismo, materialismo, etc.

Esse terceiro traço permite-nos perceber o que chamarei de ocaráter dóxico da ideologia: o nível epistemológico da ideologia é

~Õ~Sã opirn!õ,~dl~zfoxa-ttos gregos. Ou, se preferirmos a termino-logia freudiana, é o momentpdajracionalizacão^É por isso que elase exprime preferencialmente por meio de máximas, de slogans, defórmulas lapidares. Também é por isso que nada é mais próximoda fórmula retórica — arte do provável e do persuasivo — que aideologia. Essa aproximação sugere que a coesão social não pode

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ser assegurada a não ser que seja ultrapassado o optimum dóxicoque corresponde ao nível cultural médio do grupo em questão.Todavia, ainda uma vez, não devemos ser demasiadamente apres-sados em denunciar a fraude ou patologia: esse esquematismo, essaidealização, essa retórica, são o preço a ser pago pela eficácia socialdas idéias.

Com o quarto traço, começam a se precisar os caracteres nega-tivos geralmente vinculados a uma ideologia. Entretanto, em simesmo, esse traço não é infamante. Consiste no seguinte: ocódigosinígrpretativo deumaàdeolQgiâ-é-mais_algo em que osiiamens ha-,

Para utilizar outra linguagem, direi que uma ideologia é opera-.tória, e não temática. Ela opera atrás de nós, mais do que a pos-suímos como um tema diante de nossos olhos. É a partir dela quepensamos, mais do que podemos pensar sobre ela. A possibilidadede dissimulação, de distorção, que se vincula, desde Marx, à idéiade imagem invertida de nossa própria posição na sociedade, pro-cede dela. 0rar-taly.ez-seja impossíyÍL^ainUndMdua_eJ-maÍ5 ainda.a umjffipjOjJformdar^^Qbjeta~.de— pensamento. É essa impossibilidade — à qual voltareidetidamente, ao criticar a idéia de reflexão total - que faz comque a idéia seja, por natureza, uma instância não-crítica. Ora, tudoindica que a não-transparência de nossos códigos culturais seja umacondição da produção das mensagens sociais.

O quinto traço complica e agrava esse estatuto não-reflexivo enão-transparente da ideologia. Pensa na inércia, no retardo queparece caracterizar o fenômeno ideológico. Tudo indica que essetraço é o aspecto temporal específico da ideologia. Significa que o'novo só pode ser recebido a partir do típico, também oriundo dasedimentação da experiência social. Aqui pode ser inserida a fun-ção de dissimulação. Ela se exerce sobretudo em relação a reali-dades efetivamente vividas pelo grupo, porém inassimiláveis peloesquema diretriz. Todo grupo apresenta traços de ortodoxia, deintolerância à marginalidade. Talvez nenhuma sociedade radical-mente pluralista, radicalmente permissiva, seja possível. Em algumsetor há algo de intolerável, a partir do qual surge a intolerância. Aintolerância começa quando a novidade ameaça gravemente a possi-bilidade, para o grupo, de reconhecer-se, de reencontrar-se. Esse

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traço parece contradizer a primeira função da ideologia, que é a deprolongar a onda de choque do ato fundador.

Mas o fato é que essa energia inicial possui uma capacidadelimitada: obedece à lei de usura.

A ideologia é ao mesmo tempo efeito de usura e resistência àusura. Este paradoxo está inscrito na função inicial da ideologiaque é a de perpetuar um ato fundador inicial segundo o modo da"representação". É por isso que a ideologia é ao mesmo tempointerpretação do real e obturação do possível. Toda interpretaçãose produz num campo limitado. Mas a ideologia opera um estrei-tamento^ do/ campo com referência às possibilidades de interpre-tação que pertencem ao élan inicial do evento. É neste sentido quepodemoscegueira, ideológica^ Todavia, mesmo que o fenômeno se convertaem patologia, conserva algo de sua função inicial^Éjmpossível que

"Se^efetue^de^outra-lar^a^ue^nàcr"_________ Assim, a ideologia fica afetada

pela esqueWtiza^ãeTneíutável que a ela se vincula; ao deixar-seafetar, ela se sedimenta, enquanto mudam fatos e situações. É esseparadoxo que nos leva ao limiar da função tão enfatizada de dis-simulação.

B) Função de dominação

Nossa análise atinge, aqui, o segundo conceito da ideologia.Parece-me que a função de_dissimulacão é claramentej)redomi-

C£^de dominação^_

que se vincula aos aspjçto^jyejár^uicos_da_organização social.Preferi situar a análise do segundo conceito de ideologia de-

pois do precedente, a fim de chegar a ele, ao invés de partir dele.Com efeito, precisamos ter compreendido as outras funções daideologia para entendermos a cristalização do fenômeno em facedo problema da autoridade. ^

explicar esse fenômeno, irei referir-me às ainda bemconhecidas análises de Max Weber concernentes à autoridade e à

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dominação. Toda autoridade, observa, procura legitimar-se, e ossistemas políticos se distinguem segundo seu tipo de legitimação.Ora, parece que, se toda pretensão à legitimidade é correlativa auma crença, por parte dos indivíduos, nessa legitimidade, a relaçãoentre a pretensão emitida pela autoridade e a crença que a elaresponde é essencialmente dissimétrica. Direi que há sempre maisna pretensão que vem da autoridade do que na crença que vai àautoridade. Vejo aí um fenômeno irredutível de mais-valia, se en-tendemos por isso o excesso da demanda de legitimação relativa-mente à oferta da crença. Talvez essa mais-valia seja a verdadeiramais-valia: toda autoridade reclamando mais do que nossa crençapode carregar, no duplo sentido de trazer e de suportar. É aquique a ideologia se afirma como o substitutivo da mais-valia e, aomesmo tempo, como o sistema justificativo da dominaçjg.

Esse segundo conceito de ideologia está intimamente ligadoao precedente, na medida em que o fenômeno de autoridadetambém é coextensivo à constituição de um grupo. O ato fun-dador de um grupo, que se representa ideologicamente, é poli-

,-tico em sua essência. Como Éric Weil não se cansou de ensinar,\ ! uma comunidade histórica só se torna uma realidade política

i tornando-se capaz de decisão; daí surge o fenômeno da domina-yção. É por isso que a ideologia-dissimulação interfere em todosos outros traços da ideologia-integração, especialmente no caráterde não-transparência que se vincula à função mediadora da ideo-logia. Max Weber nos ensinou que não há legitimação inteira-mente transparente. Sem identificar toda autoridade com a formacarismática, há uma opacidade essencial do fenômeno de autori-dade: é nele que nós queremos, mais do que não queremos.Finalmente, _ngnhuni fenômeno ratifica tão completamente quan-

- - ~ijieologia. Quanto a mim, sempre me intrigou e me preocupouàquilo que, de bom grado, chamarei de .acavalamento político,Cada poder imita e repete um poder anterior: todo príncipe querser César, todo César quer ser Alexandre, todo Alexandre quer hele->nizar um déspota oriental.

Por conseguinte, é quando o papel mediador da ideologia en-contra o fenômeno da dominação-que o caráter de distorção'e dedissimulação da ideologia passa ao primeiro plano. Contudo, namedida mesma em que a integração de um grupo jamais se reduz

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por completo ao fenômeno da autoridade e da dominação, todosos traços da ideologia, que referimos a seu papel mediador, tam-pouco passam para a função da dissimulação à qual, comjregüên-cia, redumnpjjydeglogia.

C) Função de deformação

Chegamos ao limiar do terceiro conceito de ideologia, o con-ceito propriamente marxista. Gostaria de mostrar que ele ganharáum realce todo especial se o integrarmos aos dois precedentes. Oque ele traz de novo? Essencialmente, a idéia de uma distorção.

"Se, em toda ideologia", escreveMarx, "os homens e suas relações nos aparecem situados com acabeça para baixo, como numa comera obscura, este fenômenodecorre de seus processos de vida histórica, absolutamente como ainversão dos objetos sobre a retína decorre de seu processo de vidadiretamente físico". No momento, não considero o caráter meta-fórico da expressão, sobre o qual voltarei na segunda parte, consa-grada às condições do saber sobre a ideologia. Interesso-me, aqui,pelo novo conteúdo descritivo. OJato decisivo é que a ideologia édefinida ao mesmojempo^por seu conteúdo. Sjejyjjnwreãg,^_ppr-

jnie^wjrtejgojucãft^áosLho^^^^^^Jal^é^^rilQ. Estalunção, para Marx, que nesse particular segue FeSrba^TTa reli-gião, que não é um exemplo de ideologia, mas a ideologia por ex-celência. Com efeito, é ela que opera a inversão entre céu e terra,

J3 que faz os homens andarem de cabeça para baixo. O que Marxtenta pensar, a partir desse modelo, é um processo geral pelo quala atividade real, o processo de vida real, deixa de constituir a base,para ser substituído por aquilo.que os homens dizem, se imaginam,je representam. Á ideologia é esse menosprezo que nos faz tomar aimagem pelo real, o reflexo pelo original.

Como se pode notar, a descrição é levada a efeito pela críticagenealógica das produções que procedem do real em direção ao imagi-nário. Essa crítica, por sua vez, opera uma inversão da inversão.Portanto, a descrição não é inocente, mas toma como uma aquisi-ção a redução, feita por Feuerbach, de todo o idealismo alemão e

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de toda a filosofia à religião, e da religião a um reflexo invertido.Isso não quer dizer que Marx repita simplesmente Feuerbach, poisacrescenta, à redução em idéias, a redução na prática, destinada arevolucionar a base da ideologia, j

Meu probelma, neste nível, e o de apreender o potencial des-çritivo, assim elucidado por essa genealogia, que interrogaremosdaqui a pouco,vdj^p^tp^de^stajejujs^pretejisões à clentjficj-2ade- Parece-me, em primeiro lugar, que a contribuição de Marxreside numa especificação do conceito de ideologia, que supõe osdois outros conceitos analisados anteriormente. Na realidade, deque forma as ilusões, fantasias e fantasmagorias poderiam ter umaeficácia histórica qualquer se a ideologia não possuíssernediador^iacQrp-Ojado ao mais elementarvíflc^F^^c^omo suaconstituição simbólica, no sentido dado por Maüssl eTevi-Strauss?

jssQ-nojL impede de falar de umajjtiyidade real pré-ideológLca_QU_."nãcfcideológica. Ade^S^TIêrrrtSnpoucÕ" compreenderíamos comouma representação invertida da realidade poderia servir aos interes-ses de urna classe dominante, se a relação entre dominação e ideo-logia não fosse mais primitiva que a análise em classes sociais esusceptível, eventualmente, de sobreviver-lhe. O que Marx fornecede novo destaca-se sobre esse fundo prévio de uma constituiçãosimbólica do vínculo social em geral e da relação de autoridade emparticular. E o que ele acrescenta é essa idji£-de-que-a_funcão jus-tifícadora da ideologia aplica-se, por pri«ilégiou-JLrelação_deL .do*minação oriunda da divisão_em_classes sociais e da_luta das classes—É dessa forma que lhe somos devedores dessa temática especí-fica do funcionamento ideológico em relação com a posiçãodominante de uma classe.

Todavia, atrever-me-ia a dizer que sua contribuição específicasó poderá ser plenamente reconhecida se libertarmos sua análisede uma estreiteza fundamental que não pode ser corrigida a nãoser que relacionemos o conceito marxista com o conceito maisenglobante sobre o-qual ele se destaca. ,A limitação^ fundamentaldo conceito marxista não se-dève~ae-seu vínculo eom-a-idéia_declasse dominante, mas à sua definição por um conteúdo espe-

^cfflço_^_a_reíigião —, e não por sua função. \Essa limitação é aherança de Feüerr5ãch,^comõ pode ítêTtar a quarta—tese sobreFeuerbach', Ora, a tese marxista vai muito mais longe em vigorque sua aplicação à religião, na fase do primeiro capitalismo;

74

aplicação essa que me parece, diga-se de passagem, perfeitamentebem fundada, mesmo que a religião constitua seu verdadeiro sen-tido em outra esfera da experiência e do discurso.

[A tese marxista se. aplica,, de .direito, a todo sistema de pen-samento possuindo a mesma função. Foi o que perceberam clara-mente Horkheimer, Adorno, Marcuse, Haberrnas e toda a escolade Frankfurt, Tjimbém agência e a tecnolojyií=ejnj«rt|Jper ^la,

Jmt6ria,,_Badêm,funciQna£^mozfflMloa^r O fato de a religiãopoder prestar-se a essa função, (enquanto inversão das relações docéu e da terra, significa que ela não é mais religilo.^yjle^zerjinserção da Palavra no mundo, porém, imagem invertida, dg^vida.Sendo, assim, só pode ser a ideologia denunciada por Marx. Con-tudo, a mesma coisa pode acontecer, e sem dúvida ocorre,^ coma_ciêncúi,e. com a_JecnolQgla, desde que mascarem,, por detrás de

rnjft^^É assim que a conjunção do critério marxista com os outros

critérios da ideologia pode liberar o potencial crítico desse crité-rio mesmo e, eventualmente, lançá-lo contra os usos ideológicosdo marxismo, que examinarei a seguir.

Todavia, essas conseqüências secundárias não devem levar-nosao esquecimento da tese fundamental que domina essa primeiraparte, a saber, ique a ideologia~á_um-totôjnjnQ^mguperáyel daexistência social, naj_me^ida_ein_g.Hê_.arealidade sociaL-Semprepossuiu uma cons.tiíuicão^simbólica,.e comporta^uma^interpreta-

Ao mesmo tempo, nosso segundo problema é posto em todaa sua acuidade: qual o estatuto epistemológico do discurso sobrea ideologia^ Existe um lugar_ nãotidepjógico,_de onde seja pos-sível falar cientificamente da_ ideologia?

75 .

Page 42: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

i

3. CIÊNCIAS SOCIAIS E IDEOLOGIA

Todas as disputas atuais sobre a ideologia partem do repúdioimplícito ou explícito do argumento de Aristóteles sobre o carátergrosseiro e esquemáticó da argumentação nas ciências que Aristó-teles recobria ainda com o nome de política, e que os modernoschamaram, sucessivamente. dejgiQtaLsciences. íleisteswissenschaften,ciências humanas, ciências

ra, o queme surpreende nas discussões contemporâneas não é somente —não é tanto — o que nelas se diz sobre a ideologia, mas a preten-ftão»de_.djizê;loi de^um lugar n^-id^plógico_charnado^ae-ciência. Porconseguinte, tudo o que se diz sobre a ideologia é comandado poraquilo que se,presume-seL-CÍência e ao qual se op6e ideóloga.No meu entender, na antítese ciência-ideologia, ambos os termosdevem ser questionados. Se a ideologia perde seu pjDeJLjBêdiadar,para conservar apenas seu papel mistificador de consciência ijals_a,js

nãpjdepjógjco. Ora, será que tal ciência existe? " ™— ™Na discussão, distingo duas etapas, conforme tomemos o ter-

mo ciência num sentido positivista ou não.Comecemos pelo sentido positivista. Minha tese é a de que

esse sentido é o único que nos permitiria conferir à op_QSicãQ,ciêni,e preciso, mas que infelizmente a

no qual

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Page 43: Interpretação e Ideologias - Paul Ricoeur

se,situa^a,discussão) não^ satisfaz ao eritérkupositivo de crèntifici-dade. De fato, foi tornando-se positiva que a física matemática deGalileu podei expurgar, para sempre, o impetus da física pré-gali-leana, e que a astrònomial de Kepler, de Copérnico e de Newtonpodei colocar um fim à carreira da astronomia ptolomaica. Á teoriasocial global estaria na mesma relação com a ideologia caso pu-desse satisfazer aos mesmos critérios adotados pelas ciências posi-tivas. Ora^a fraqueza ,

^

porcional à força com que denuncia a ideologia. Em parte alguma,com efeito, a teoria social acede ao estatuto de cientificidade quea autorizaria a fazer uso, de modo peremptório, dotermo^decorteepistemológico, para estabelecer sua distância com referência àideologia.

Ora, fazendo minhas as palavras de um jovem filósofo deQuebec, Maurice Lagueux, autor de um notável ensaio sobre "Ouso abusivo da relação ciência-ideologia"1 , podemos dizer que sópodem ser considerados científicos | os^ultados4niej§çtuais,que,

>4>j*imitejnjjma^x^(no nível superficial em que, de modo

ao

vão, tentamos explicá-los) g_resistem, corn_êxitQ, às tentativas defalsiflfiacão que, a sju resBejtfl._ejnpreendemos sistemática_ejigorosa-mem^_(verificação no sentido popperiano de não-falsificação" (p.202). O ponto importante não está na formulação separada dessesdois critérios, mas em seu funcionamento conjugado. Uma teoriapode ser poderosamente explicativa e fracamente apoiada em tenta-

Jivas rigorosas de falsificação. Ora, é essa coincidência dos dois crité-" rios que ainda faz falta, e talvez para sempre, nas teorias globais daseiências sociais. Ou possuímosjgonas globais, porém não verificadas,_ou então teorias pjr_cjajs=hastante=y^^cãdjís2,como einüdemografia e,

matemática^ouJt ambjçfxyte

sjrJntegradoras. De um modo geral, são os partidários das teoriasunificadoras, pouco exigentes, de fato, em matéria de verificação _e

_de_falsifiÊação, que denunciam com o màximò^de arrogância a ideo-logia de seus adversários. Gostaria de tentar demonstrar algumas dasarmadilhas em que (facilmente se pode cair.

1. M, Lagueux, "L'usage abusif du rappott science/idéologie", Cultweet langage, Cahiers du Quebec, Hattubise, Montreal, 1973, pp. .197-230.

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reaiSt—0 argumento • torna-se mais impressionante ainda quandopomos o caráter inconsciente dessas motivações reais ao carátersimplesmente consciente das motivações públicas ou oficiais. Ora,importa-nos observar que .alegar, o real, mesmo que ^eja incons-ciente, nãp^constitui, em si, uma garantia dj__cientifícida4e._^mudança de plano do ilusório ao real, do consciente ao incons-ciente, certamente possui grande poder explicativo. Mas é essepróprio poder explicativo que constitui uma verdadeira armadilhaepjstemológiea. Com efeito, a mudança de plano conferè7"dT1mè"-diato, uma grande satisfação de^ordjm Jntelectual levando-nos acrer que a^aber^^d^camjp^tócoj^tójUeJê a transferência,do_dis-curso èxpücativ.o_pjra^sje^jmpJo^c^rjgBiüêm, enquantojais,~uma

amos reforçados, nessa ingenuidade epistemológica, pela con-vicção de que,ções ^

^dVsubjetividade na explicação. Na realidade, se compararmos o mar-xismo de Althusser com a sociologia de Max Weber, veremos a expli-cação por motivações subjetivas dos agentes sociais substituída pelaconsideração de conjuntos estruturais onde a subjetividade- foi elimi-nada. Todavia, essa eliminação da subjetividade, do lado dos agenteshistóricos, de forma alguma assegura que o sociólogo que faz a ciên-cia tenha ele próprio acedido a um discurso sem sujeito. Neste pontoentra em jogo o que chamo de armadilha epistemológica. Por umaconfusão semântica, que é um"vèTo^e"ffô~^ofiSrrSra^êxplicação porestruturas, e não por subjetividade, é tomada por um discurso quenão seria assegurado por nenhum sujeito específico. Ao mesmo tem-po, fica enfraquecida a vigilância na ordem da verificação e da falsi-ficação. A ar^djltaÁtanto_mais_tm^J^uef^m>última análise, a

~ mracionalizaçSo-.funci

^-justameaíglf^^^^Qria_denuncia comojdeo-Jogia: uma racionaüzagão consiUuindo^iLteparo^real.

Para mascarar a fraqueza epistemológica dessa posição, diversastáticas foram empregadas. Citarei apenas duas.

Por um lado, procurou-se num reforço do aparelho formal umacompensação para a ausência das verificações empíricas. Mas este é

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ainda um modo de reforçar o critério explicativo às custas do critérioverificacionista. Mas ainda, estaria inclinado a pensar que, relegadoao plano do formalismo, um pensamento desmistificador, como o deMarx, perde seus melhores trunfos. Sua principal censura ao pensa-mento econômico contemporâneo não consistiria justamente emreduzir-se a conceber "modelos privados de toda verdadeira densi-dade"1?

Por outro lado, procurou-se num reforço mútuo de várias dis-ciplinas críticas uma compensação para as i insuficiências epistemo-lógicas de cada uma. É assim que assistimos a uma espécie de cru-zamento entre teoria social das ideologias e psicanálise. Tal cruza-mento toma a aparência dê um quiasma onde se supõe que aquiloque se alega ser mal verificado numa disciplina é melhor verificadoem outra. Esse cruzamento me parece tão interessante e decisivo,na perspectiva não-positivista que evocarei mais adiante, quantoseus efeitos são negativos com referência aos critérios de explica-ção e de falsificação evocados até aqui. Estaria mesmo tentado adizer que, o que se ganha de um lado, perde-se do outro.

De fato, o preço a ser pago pelo reforço mútuo do poder ex-plicativo das duas teorias é um enfraquecimento proporcional dos"caracteres de precisão e de decidibilidade" (ibid, p. 217) na des-crição dos fatos susceptíveis de decidirem entre hipóteses adversas.

Resulta, dessa primeira fase da discussão, que a teoria social estálonge de possuir, para denunciar as posições consideradas ideológi-cas, a autoridade que possibilitou a astronomia separar-se por com-pleto da astrologia, ou a química da alquimia.

Nem por isso a discussão fica encerrada. Na realidade, pode-mos objetar à argumentação anterior que ela impôs à teoria socialcritérios que não lhe convém, e que ela mesma ficou prisioneira deuma concepção positivista das ciências sociais. Quanto a isso, estoude acordo, e estou pronto para procurar outros critérios de cienti-ficidade para a teoria social, diferentes do critério de capacidadeexplicativa, associada à prova de falsificação. Mas então preci-samos estar bem conscientes daquilo que fazemos. Porque o aban-djonojlos critérios^ositivãtas^a|rj ,jjgs£_^ro, o abandono deumajjpncepção puramente disjuntiva das relaçoes_entreidfiõlogia7~Não plxiimoljíabándònar__^-&—,=«=™*1=~—•

para conferir_um_jêatido-^ceitáyel à idéia de_teoria social e\ aomesmo tempo, conservar o benefício desse modelo para ^tit\iir

venjre2a^ijjK^Infelizmente, é íTpTocõrre com muitaTrequencia nos discursoscontemporâneos sobre a ideologia.

Exploremos, pois, esta segunda via, reservando para a terceiraparte a questão de saber que novo tipo de relação pode ser desco-berto entre ciência e ideologia, desde que ultrapassemos os crité-rios positivistas da teoria social:

A segunda acepção que podemos dar ao termo ciência, em suarelação com a ideologia, é uma acepçãomfia!. Essa denominaçãoestá em conformidade com a exigêncial!oTriêgeliarios de esquerdaque, ao modificar o termo kantiano de crítica, exigiram uma crí-tica verdadeiramente crítica. E Marx, mesmo na fase que se dizhoje situada depois do corte epistemológico dos anos 41, não he-sita em dar a. O capital o seguinte subtítulo: "Crítica da economia

1. M. Lagueux, op. cit., p. 219.

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____A questão que se coloca, então, é a seguinte: será que a teoria \

social, concebida como crítica, pode aceder a um estatuto inteira-mente não-ideológico, segundo seus próprios critérios da ideolo-

/ejo três dificuldades. Deíer-me-ei especialmente na terceira,porque de sua solução dependeestatuto aceitável à dialética ciência-ideologia.

A primeira dificuldade que percebo é a seguinte: ao conferir àcrítica o estatuto de uma "ciência combatente, como podemos evi-tar relegá-la aos fenômenos quase patológicos denunciados noadversário? Quando falo de ciência combatente, penso sobretudona interpretação leninista do marxismo, retomada com vigor porAlthusser em seu ensaio sobre "Lenine e a Filosofia". Nele, Al-thusser defende duas teses complementares. Por um lado, afirmaque o marxismo representa a terceira grande ruptura radical na his-tória do pensamento, tendo sido a primeira o nascimento da geo-metria com Euclides e a segunda o da física matemática com Gali-leu. Da mesma maneira, Marx inaugura o recorte de um novo conti-nente chamado de História. Certo, muito embora a História comosaber e saber de si tenha outros ancestrais.

Mas não é isso que constitui problema. A dificuldade está napretensão simultânea de traçar o que Lenine chamava de a linha

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do partido entre essa ciência e a ciência burguesa e, assim, de con-ceber uma ciência partidária, no sentida forte do termo. ALreside_o perigo de a ciência marxista transfojmar;§e_em ideologasegundoseus próprios critérios. A este respeito, o destino posterior do mar-xismõ~Veriflca~õí^nds sombrios temores. Assim, a análise em clas-ses sociais — para tomarmos apenas um exemplo, especialmente atese segundo a qual, fundamentalmente, só há duas classes -, de-pois de ter sido uma hipótese de trabalho extremamente fecunda,torna-se um dogma que nos impede de ver com um olhar novo asnovas estratificações sociais das sociedades industriais avançadas ouas formações de classes, num sentido novo do termo, nas socieda-des socialistas. E isso, sem falarmos dos fenômenos nacionalistasque dificilmente se prestam a uma análise em termos de classessociais.

Mais grave que essa cegueira ao real, a oficialização da doutrinapelo partido provoca outro fenômeno terrível de ideologização:assim como a religião é acusada de ter justificado o poder da classedominante, da mesma forma o marxismo funciona como sistema dejustificação do poder do partido enquanto vanguarda da classe operá-ria, e do poder do grupo dirigente no interior do partido.ção justifjcadoya em relação ao

_ca o fato de a esclerose do marxismo fornecer o mais surpreendenteexemplo-de_idêologia nos tempos modernos. O paradoxo é que omarxismo, depois de Marx, é o mais extraordinário exemplo de seupróprio conceito de ideologia enqiiajLto_e^prjMSão,man.tidajdaj:ela-çãp, comjo_reake^nquantfíioçultafflentojdessa-rela,ção. É neste mo-mento preciso que talvez seja importante relembrarjnie foi Nappleãoquem fez dos termos~prestigiosos,de-ideologia e de ideólogo termosde polêmica.e.dç irrisão.

Essas obsepações-severas.nãp significam que o marxismo seja"falso. Pelo contrário,

Jelortodoxia;. se suas análises forem submetidas à prova de uma apli-cação direta à economia moderna, como o foram, por Marx, à eco-nomia da metade do século passado; enfim, se o marxismo conver-ter-se num instrumento de trabalho entre outros; em suma, se o capi-tal de Marx for ao encontro do Zaratustra de Nietzsche, que o consi-derava "um livro para ninguém e para cada um".

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Como veremos, minhas observações recobrem as de JacquesTaminiaux embora eu não chegue, com ele, a situar Marx na linha-gem da ontoteologia. Pelo fato de as palavras origem, fim e sujeitopossuírem tal polissemia e de receberem significações contextuaisde tal forma distintas, hesito em operar tais assimilações. Insistirei,antes, segundo uma observação anterior deixada em suspenso, nopapel mediador exercido pelos conceitos hegelianos e feuerba-chianos na conceitualização marxista. Sem dúvida, Marx acrescentaalgo à crítica feuerbachiana, mas permanece em sua fluidez quandofala de ideologia. Em primeiro lugar, é preciso ter concebido todaa filosofia alemã como um comentário da religião, e esta comouma inversão da relação entre o céu e a terra, para que a críticapossa, por sua vez, apresentar-se como uma inversão da inversão.

Ora, é surpreendente como Marx tem a maior dificuldade parapensar essa relação de outra forma que não em metáforas: metá-fora da inversão da imagem retiniana, metáfora da cabeça e dospés, do solo e do céu, metáfora do reflexo e do eco, metáfora dasublimação no sentido químico do termo, vale dizer, da volatili-zação de um corpo sólido num resíduo etéreo, metáfora da fixaçãonas nuvens . . . Como observou Sarah Kofman num ensaio influ-enciado por Derrida1 , essas metáforas permanecem presas a umfeixe de imagens especulares e a um sistema de oposições: teoria-prática, real-imaginário, luz-obscuridade, que atestam a pertençametafísica do conceito de ideologia enquanto inversão de umainversão.

Poderemos dizer que, depois., do corte epistemológico, a ideo.;.O texto de O capital

sobre o fetichismo da mercadoria não deixa nenhuma esperançaquanto a isso. A forma fantasmagórica que a relação de valor dosprodutos do trabalho reveste, ao tornar-se mercadoria, permaneceuni enigma que, longe de explicar a ilusão religiosa, apóia-se nela,pelo menos sob sua forma analógica. Finalmente, a religião - for-ma mãe da ideologia - fornece mais que a analogia, permanecendoo "segredo" da própria mercadoria. No dizer de Sarah Kofman, ofetiche da mercadoria não é "o reflexo das relações reais, mas o de

1. S. Kofman, Comera obscura. Del 1'ldéologíe, Paris, Editíons Galilée, 1973.

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um mundo já transformado, encantado. Reflexo de reflexo, fan-tasia de fantasia"1. Esse fracasso em pensar não metaforicamente aprodução de ilusão apresenta como que pelo avesso — encontra-mo-nos nas inversões de inversão! — a dificuldade tão enfatizadapor Aristóteles de se pensar a participação em Platão. Ele diziaque esta não passa de metáfora e de discurso vazio. Aqui, a parti-cipação funciona como o inverso, não da idéia à sua sombra, masda coisa a seu reflexo. A dificuldade, porém, é a mesma.

A razão do fracasso pode ser elucidada por nossa análise ini-cial. Se é verdade que as imagens que um grupo social atribui a simesmo são interpretações que pertencem imediatamente à consti-tuição do vínculo social; em outros termos, se o próprio vínculosocial é simbólico, é absolutamente vão procurarmos derivar asjimagens de algo anterior que seria o real, a atividade real, o pró-

vcesso de vida real, de que haveria, secundariamente, reflexos epoisas. Um discurso nãoideológico sobre a ideologia esbarra, aqui,na impossibilidade de atingir um real social anterior à simboliza-ção. Essa dificuldade vem confirmar-se na idéia de que não pode-mos partir do fenômeno de inversão para explicar a ideologia, masque precisamos concebê-lo como uma especificação de um fenô-meno muito mais fundamental que se deve à representação dovínculo social posteriormente à sua constituição simbólica. O tra-vestimento é um episódio segundo da simbolização.

Resulta daí, no meu entender, o fracasso de toda tentativapara se definir uma realidade social que seria, antes, transparente,em seguida, secundariamente obscurecida, e que poderíamos apre-ender em sua transparência original, aquém do reflexo ideali-zante. O que me parece muito mais fecundo, em Marx, é a idéiade que a transparência não se encontra atrás de nós, na origem,mas diante de nós, no término de um processo histórico talvezinterminável. Desta forma, precis^ros^Jex^goragejn de concluirjqu£jyiejgajaç|õ'<^ aidéJajimite.j3_-.Umite-.de_umJrabalho intemo^dejfemarcacão. e quenãossdis.p,omo.S~atua!mente de uma noçionMÕ^Íáêdógca^^g^eiedjLJdjologia,

fío entanto^a dificuldad^_jiais_±mdamental--amda_não_fbicolp^adai-diz-respeftoiãjrnpólslbüidadedeseexer^r umajaííica

1. S. Kofman, op. ei t., p. 25.

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que sejajbsoliitamente^iadigalj, Uma consciência radicalmente crí-tica deveria, com efeito, resultar de uma reflexão total.

,Permitam-me desenvolver com certo cuidado este argumento.Não versa sobre trabalhos de ciências sociais que não têm a preten-são de se constituir em teoria total, mas diz respeito a toda teoriasocial com pretensão totalizante, inclusive o marxismo.

Para elaborar meu argumento, vou levar em consideração osdois modelos de explicação que Jean Ladrière distingue num im-portante texto metodológico1 e que encontraríamos facilmenteoperando nos dois tipos fundamentais de interpretação contem-porâneos do próprio marxismo.

Pretendo mostrar que a pressuposição de uma reflexão totalnão é menos inelutável num modelo que no outro. "Podemos pro-por dois modelos de explicação", diz Ladrière, "a explicação emtermos de projetos e a explicação em termos de sistemas" (p. 42).Consideremos o primeiro modelo. A este primeiro modelo corres-ponde, evidentemente, a sociologia compreensiva de Max Weber,mas também o marxismo segundo Gramsci, Lukàcs, Ernst Bloch,Goldmann. Ora, esse modelo torna extremamente difícil a posiçãode "neutralidade axiológica" reivindicada por Max Weber2. A ex-plicação em termos de projetos é, necessariamente, uma explicaçãona qual o próprio teórico está implicado, por conseguinte umaexplicação exigindo que ele tire a limpo sua própria situação e seupróprio projeto no que se refere à sua situação pessoal. Nestaintervém a pressuposição não-explicitada da reflexão total.

O segundo modelo de explicação escaparia a essa pressuposi-ção possível? À primeira vista, parece que sim: não nos propondoa explicar a ação em termos de projetos, não precisamos elucidarpor completo a natureza do projeto, por conseguinte não devemosefetuar uma reflexão total. Contudo, a implicação do cientista, porseu instrumento de interpretação, não deixa de ser menos inelu-tável, em tal explicação, se esta pretende ser total. O ponto críticoda teoria dos sistemas, como mostra Ladrière na seqüência de seu

1. Reproduzido em L'articulation du sens, "Signes et concepts en science',Paris, Aubier Montaigne, 1970, pp. 40-50.

2. M. Weber, "Lê sens de Ia neutralité axiologique dans lês sciences sociologi-ques et économiques", Essais mr Ia théoríe de Ia science, trad. fr., Plon,1965, pp. 399-478.

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ensaio, reside na necessidade de se elaborar uma teoria relativa àevolução dos sistemas. Ora, diz ele, "neste trabalho, seremos leva-dos, quer a nos inspirar em teorias relativas aos sistemas físicos oubiológicos (por exemplo, servindo-nos de um modelo cibernético),quer a nos apoiar em teorias de caráter filosófico (conseqüente-mente, não-científicas), por exemplo, numa filosofia de tipo dialé-tico" (p. 42). Ora, em ambos os caminhos, a exigência de comple-tude responde à exigência de reflexão total no caso da explicaçãoem termos de projetos. Toda uma filosofia está tacitamente impli-cada, "segundo a qual existe, efetivamente, em cada momento, umponto de vista da totalidade; segundo a qual, ademais, este pontode vista pode ser explicitado e descrito num discurso apropriado."Novamente", conclui Ladrière, "somos forçados a invocar um dis-curso de outro tipo" (p. 43).

Assim, a explicação em termos de sistemas não se torna me-lhor demarcada que a explicação em termos de projetos. A explica-ção em termos de projetos só poderia subtrair a história a todacondição ideológica supondo tacitamente que se possa efetuar umareflexão total. Também a explicação em termos de sistemas supõe,embora de modo diferente, que o cientista possa ter acesso a umponto de vista definitivo, capaz de exprimir a totalidade, o queeqüivale à reflexão total na outra hipótese.

Eis a razão fundamental pela qual a teoria social não podedesvincular-se por completo da condição ideológica: nem podeefeluar_ajreflexão total, nem tampeuco_açeder^o^pjontojde^isíãcapaz de_expnmir a totiHdãaé que a subtramaàmediação-ideo-lógica,jju^sjtãp^submeíidos os outros .membros do-grupo-sociat.

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4. A DIALÉTICA DA CIÊNCIA E DA IDEOLOGIA

A questão que chamei na introdução de "a questão de con-fiança" coloca-se doravante nesses termos: o que podemos fazer daoposição — mal pensada e talvez impensável — entre ciência eideologia?

Devemos pura e simplesmente renunciar a tal oposição? Con-fesso que, com muita freqüência, estive prestes a fazê-lo, refletindosobre este quebra-cabeças. No entanto, não creio que isto seja pos-sível, se é que não queremos rejeitar a vantagem de uma tensãoque não pode reduzir-se nem a uma antítese de todo repouso, nemtampouco a uma confusão danosa dos gêneros.

Ma£_iaLv.ez^eja«nejejsJrjo>sjuitej^tincão. numa démarche que_pode encerrar um grande valor terá-

•- n5as="^5 ' "~* * - - - - - w

-pêütico. Pelo menos, foi o benefício que tirei da releitura da obrajá antiga e injustamente esquecida de Karl Mannheim, intituladaIdeologie una Utopie (original alemão de 1929). O mérito desselivro foi o de ter tirado todas as conseqüências da descoberta docaráter recorrente da acusação de ideologia, e o de ter assumidoaté o fim o contragolpe da idejalogia-à-posição-de-to_do_aquej.e_quA

^ejrçre«id^^pJcar-ao^ulroj_^rítÍÊaJdeoJógi£a.Karl Mannheim reconhece ao marxismo o mérito de ter desco-

berto que_ a ideologia não^um-er-roJagal,mente,jjnas_ uina_e^tnjtuia_4e_B§Bg^nientojgnculada a umuma^çlasse^social,~a_umanação. Em seguida, porém, ele censura o

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marxismo por ter parado no meio do caminho e por não ter apli-cado a si mesmo a manobra da desconfiança e da suspeita. Ora,segundo Mannheim, não compete mais ao marxismo parar a reaçãoem cadeia, por causa do fenômeno fundamental da desintegraçãoda unidade cultural e espiritual que lança todo discurso em guerracontra todo discurso. O que ocorre, porém, quando se passa,assim, da suspeita restrita à suspeita generalizada? Karl Mannheimresponde: passamos de uma ciência combatente a uma ciência pa-cífica, ou seja, à sociologia do conhecimento, fundada por Troeltsch, Max Weber, Max Scheler. O que_cpnstituía uma armadoOToletariadodação do condicionamento social de todo pensamento.

EETcõmo Mannheim generaliza o conceito de ideologia. Paraele, as ideologias se definem, essencialmente, por sua não-congruên-cia, por sua discordância em face da realidade social. Só diferemdas utopias por traços secundários. As ideologias são mais profes-sadas pela classe dirigente. E são as classes subprivilegiadas que asdenunciam. As utopias são, preferencialmente, professadas pelasclasses ascendentes. As ideologias olham para trás, ao passo que asutopias olham para frente. As ideologias se acomodam à realidadeque justificam e dissimulam, ao passo que as utopias enfrentam arealidade e a fazem explodir.

Essas oposições entre utopia e ideologia são enormes, sem dú-vida, mas jamais decisivas e totais, como se pode notar no próprioMarx, que classifica os socialismos utópicos entre os fantasmasideológicos. Ademais, somente a histórfo pristarfor poderá dgcjdirse uma utorjia_eia-fl_flU£_pretendia_ser. a saber, umajfisãojisva

_capaz_de LmudaLo^cuKOjiaJusjtôjia. Sobretudo, porém, a oposiçãoentre utopia e ideologia não pode ser uma oposição total: ambas sesituam sobre um fundo comUm de não-congruência (por atraso oupor antecipação) no que se refere a um conceito de realidade quesó se revela na prática efetiva. A ação só se torna possível se taldistância não tornar impossível a adaptação constante dó homem auma realidade incessantemente em fluxo. '

Admitamos como uma hipótese de trabalho esse conceitogeneralizado de ideologia, conjugado, além disso, de modo bastantecomplexo, com o de utopia, que ora é uma de suas espécies, oraum gênero contrário.

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Todavia, a questão — questão lancinante — é a seguinte: deque lugar fala o pesquisador numa teoria da ideologia generali-zada? É preciso que confessemos: este lugar não existe. E existeainda menos que numa teoria da ideologia restrita, onde só ooutro está na ideologia. Desta feita, porém, o cientista sabe que

A este respeito, o debate deMannheim consigo mesmo é exemplar, por sua honestidade inte-lectual sem limite. Porque sabe que a pretensão weberiana de sechegar a uma sociologia werfrei, axiologicamente neutra, é umengodo. Ela é apenas um estádio, embora estádio necessário: "Oque se exige, escreve, é uma disposição contínua a se reconhecerque todo ponto de vista é particular a certa situação e a se pro-curar, pela análise, em que consiste essa particularidade. Umadeclaração clara e explícita das pressuposições metafísicas implí-citas tornando possível o conhecimento fará mais para a clarifíca-ção e para o avanço da pesquisa que a rejeição verbal da existênciadessas pressuposições, vinculada à sua reintrodução sub-reptícia pelaporta de serviço" (p. 80).

Todavia, se permanecermos nesse ponto, cairemos no pleno.- relativismo, no pleno historicismo, e matamos a própria pesquisa.Porque, como observa Mannheim, aquele que não possui pressurjo-

jsições nãp coloca questões, e quernjiãp cojoja^qujsj^ej_nã^podeJojir^r=Mpátese5,e.-ao_mesrna.tempnQ^nada.maisgprocura. Ocorre,aqui com o

ggisas, Mas a morte das ideologias constituiria a mais estéril luci-dez. JPojgjie^um-g«if)0-s0eial^em--ideologia-e-sem-utopia_jena_sernprojeto._ser«-disíânciaj!m ^relação_a__sLni§snio,-sem_rejp.rJêsejitji.çãode»-Sfe=Seria uma sociedade sem projeto global, entregue a uma

conseguinte, insignific.antes..Mas então, como fazermos pressuposições, quando sabemos

que tudo é relativo? Como tomarmos uma decisão que não sejaum jogo de dados, urna pressão lógica, um movimento puramentefideísta?

Como já observei, Mannheim enfrenta essa dificuldade comuma coragem de pensamento exemplar. A todo preço, procuradistinguir um relacionismo de um relativismo. Mas a que preço?Ao preço de uma exigência impossível: ressituar todas as ideologias

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JL

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parciais numa visão total capaz de dar-lhes uma significação rela-tiva e, assim, passar de uma concepção não-valorativa de puro es-pectador a uma concepção valorativa arriscando-se a dizer que estaideologia é congruente, aquela não. Eis-nos, uma vez mais, con-duzidos à impossível exigência de um saber total: "Dar ao homemmoderno uma visão reformulada de um processo histórico globaf(p. 69). Assim, um hegelianismo insidioso constitui a diferençaentre relacionismo e relativismo. No dizer de Mannheim, trata-seda "tarefa de descobrir, através da mudança de normas, de formas,de instituições, um sistema cuja unidade e significação precisamoscompreender" (p. 82). E, mais adiante: "Descobrir na totalidadedo complexo histórico o papel, a significação, o sentido de cadacomponente elementar" (p. 83). "É com esse tipo de abordagemsociológica da história que nos identificamos" (p. 83).

Eis o preço a pagar para que o pesquisador possa escapar aoceticismo e ao cinismo, e avaliar o presente para ousar dizer: estasidéias são válidas em tal situação determinada, aquelas constituemobstáculo à lucidez e à mudança. Contudo, para administrar essecritério de acomodação a uma situação dada, o pensador deveriater concluído sua ciência. Com efeito, para se avaliar as distorçõesna realidade, seria preciso conhecer a realidade social total. Ora, éjustamente no^finaLdo^EOcesso^qu^sedetermina o sentido do

^ãlP^entar^apjtJ^s^torçãci-ideolégiea-é^tl^^^^^S^^rria.armlisg^B^seMn^u^a^do^rRaEL, .(P- 87). Encontramo-nos nova-mente no impasse, como Marx, segundo o qual o real a que seopõe inicialmente a ilusão ideológica só será conhecido, final-mente, quando as ideologias forem praticamente dissolvidas. Tam-bém aqui, tudo é circular: "Somente quem estiver inteiramenteconsciente do alcance limitado de todo ponto de vista", diz Man-nheim, "encontra-se no caminho da compreensão procurada dotodo" (p. 93). Contudo, o contrário não é menos constrangedor:

visão total impiica-ao^mesníojempo a_a§sjmüaclQ-ê-a-ultta-s" (p- 94).

Desta forma, Mannheim se viu obrigado a superar o histori-cismo por seus próprios excessos, conduzindo-o de um historicismoparcial a um historicismo total. A este respeito, não é sem signifi-cação que Mannheim tenha se interessado, ao mesmo tempo, peloproblema social da intelligentsia. Porque a síntese dos pontos devista supõe um agente social, que não pode ser uma classe média,

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mas um estrato relativamente sem classe, não situado de modo pordemais firme na ordem social. Esta é a intelligentsia relativamentesem vínculo de Alfred Weber, a freischwebende Intelligenz. Assim,a própria teoria da ideologia repousa sobre a utopia de um "espí-rito totalmente esclarecido do ponto de vista sociológico" (p.175).

Precisamos confessar que a tarefa de uma síntese total é im-possível.

Mas será que, por isso, ficamos reduzidos, sem nenhum pro-gresso de pensamento, à crítica da reflexão total? Será que saímossimplesmente vencidos dessa luta estafante com as condições ideo-lógicas de todo ponto de vista? Devemos renunciar a todo juízode verdade sobre a ideologia? Não creio.

Como já afirmei, mantenho a posição de Karl Mannheim parao ponto de reversão a partir do qual pode ser percebida a direçãode uma solução viável.

As condicj)ej^a_sghicj|ojjugcjy^curso de caráter hermenêutico sobre as ,^ndjcõeénsIoTe caráter histórico. Retomo, aqui, pelo longo atalho de

u i n. ..... iimniii ii r i ______ __ _______ n ii iiiTfTTTTT-

uma discussão sobre as condições de possibilidade de um sabersobre a ideologia, as análises que abordara no Colóquio de Castellisobre a ideologia1 . Nessa ocasião, elaborei uma reflexão de tipoheideggeriano, sob a direção de Gadamer, para me dirigir ao fenô-meno central da pré-compreensão, cuja estrutura ontológica pre-cede e comanda todas as dificuldades propriamente epistemológicasencontradas pelas ciências sociais sob o nome de preconceito, deideologia, de círculo hermenêutico. Essas dificuldades epistemoló-gicas — aliás, diversas e irredutíveis umas às noutras — possuem amesma origem. Elas são devidas à estrutura mesma de um ser quenão se encontra jamais na posição soberana de um sujeito capaz deseparar de si mesmo a totalidade de seus condicionamentos.

Hoje em dia, porém, não quis comprazer-me com um discursoque se instalaria, de imediato, numa ontologia da pré-compreensão,para julgar, de cima, os embaraços da teoria das ideologias. Preferia via longa e difícil de uma reflexão de tipo epistemológico sobre

1. P. Ricoeui, "Herméneutique et critique dês idéologies", Démythisation etidéologíe, ed. E. Castelli, Aubier, 1973, pp. 25-64. (Essas análises consti-tuirão o capítulo seguinte - N. do T.)

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as condições de possibilidade de um saber sobre a ideologia e, emgeral, sobre as condições de validação do discurso explicativo nasciências sociais. Tentei então descobrir, do interior, pelo fracassodo projeto de reflexão total ou de saber total das diferenças ideo-lógicas, a necessidade de outro tipo de discurso, o da hermenêutica

Não reproduzirei, aqui, a análise desse outro discurso. Limitar-me-ei, à guisa de conclusão, a formular algumas proposições sus-ceptíveis de conferirem um sentido aceitável ao par ciência-ideo-

logia..Primeira, proposiçjo: todo saber objetivante sobre nossa po-

sição na sociedãdê7~numa classe social, numa tradição cultural,numa história, é precedido porpoderemos refletir inteiramente. Antes de qualquer distância crí-tica, pertencemos a uma história, a uma classe, a uma nação, auma cultura, a uma ou a tradições. Ao assumir essa pertença quenos precede e nos transporta, assumimos o primeiro papel da ideo-logia, o que descrevemos como função mediadora da imagem, darepresentação de si. Pela função mediadora das ideologias, tambémparticipamos das outras funções da ideologia: funções de dissimu-lação e de distorção. Todavia, sabemos agora que a condição onto-lógica de pré-compreensão exclui a reflexão total que nos colocariana situação privilegiada do saber não-ideológico.

Segunda proposição: se o saber objetivante é sempre segundorelativamente à relação de pertença, não obstante pode constituir-se numa j^tíwuytonomia^ Com efeito, o momento crítico que oconstitui é fundamentalmente possível, em virtude do fator de dis-tanciamento que pertence à relação de historicidade. Este temanão é explicitado por Heidegger que, no entanto, assinala seu espa-ço vazio quando declara: "O círculo característico da compreensão( . . . ) encerra em si uma autêntica possibilidade do mais originalconhecer: só o apreendemos corretamente se a explicitação (Aus-legung) se der por tarefa primeira, permanente e última, impedir quelhe sejam impostas suas aquisições e visões prévias, bem como suasantecipações por quaisquer idéias arrevezadas (Einfãüe) e noçõespopulares, para assegurar seu tema científico mediante o desen-volvimento de suas antecipações, segundo as coisas mesmas"1.

1. M. Heidegger, L'êtreetle temps, trad. fr., p. 187.

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Assim é colocada, no princípio, a necessidade de se incluir ainstância crítica no movimento de ascensão à estrutura mesma dapré-compreensão que nos constitui e que somos nós. Uma demar-cação crítica entre pré-compreensão e preconceito torna-se, assim,exigida pela própria hermenêutica da pré-compreensão. É estetema, apenas esboçado por Heidegger, e talvez abafado pela preo-cupação de radicalidade de seu empreendimento, que Gadamer le-vou um pouco mais longe, sem conferir-lhe, talvez, a amplitudeque merece. Em todo caso, ele tocou no problema capital, a meusolhos — o do distanciamento, que não é somente distância tempo-ral, como na interpretação dos textos e dos monumentos do pas-sado, mas um distanciar-se positivo. CompeieJLc.Qndicao.-de-.uma.

^condTçao' .Idi&tãncia^do^distanciamentQ. Quanto a mim, tentoavançar na mesma direção. A meus olhos, a mediação dos textos éde um valor exemplar sem igual. Compreender um dizer significa,antes de tudo, opor-se a ele como um dito, acolhê-lo em seu texto,desligado de seu autor. Este distanciamento pertence intimamentea toda leitura que só pode tornar próxima a coisa do texto nadistância e pela distância.

No meu entender, essa hermenêutica dos textos, sobre a qualtento refletir, contém preciosas indicações para uma justa aceitaçãoda crítica das ideologias. Porque todo distanciamento é, como nosensinou Karl Mannheim, generalizando Marx, um distanciar-se desi, um distanciamento de si a si mesmo. É desta forma que acrítica das ideologias pode e deve ser assumida num trabalho sobresi mesmo da compreensão. Este trabalho implica organicamenteuma crítica das ilusões do sujeito. Portanto, eis minha secundaproposição: o distanciamento, dialeticamente oposto à pertença— é.

ou_cgntra=a-hermenêutiça.=maj^ na hermenêutica.e a crítica das ideo pode libertar-se

parcialmente de sua condição inicial de enraizamento na pré-com-preensão; por conseguinte, se ela pode organizar-se em saber, in-gressando na dinâmica daquilo que Jean Ladrière indica comosendo a passagem à teoria, este saber não pode tornar-se total; ficacondenado a permanecer saber parcial, fragmentário, insular; suanão-completude se funda hermeneuticamente na condição originale intransponível fazendo com que o próprio distanciamento seja

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um momento da pertença. O esquecimento dessa condição absolu-tamente intransponível é a fonte de todos os embaraços, tambémeles insuperáveis, que se vinculam à recorrência da ideologia sobreo saber da ideologia. A teoria da ideologia padece, aqui, de umconstrangimento epistemológico de não-completude e de não-tota-lização que tem sua razão hermenêutica na condição mesma dacompreensão.

É dessa forma que, quanto a mim, assumo a tese de_Haberrnasjgguado a qual todo saber está baseado num interesse, e^também ateoria cntTea dasnoeologias está tundada num interesse, no inte-resse pela emancipação, vale dizer, pela comunicação sem limites esem entraves. Contudo, precisamos notar que esse interesse fun-ciona como uma ideologia ou como uma utopia. E não sabemosqual das duas, pois somente a história ulterior decidirá entre asdiscordâncias estéreis e as discordâncias criadoras. Não somentedevemos ter presente no espírito o caráter indistintamente ideoló-gico ou utópico do interesse que funda a crítica das ideologias,mas precisamos também, e mais ainda, ter presente no espírito quetal interesse está organicamente vinculado aos outros interesses des-critos pela teoria: interesse pela dominação material e pela manipu-lação aplicada às coisas e aos homens; interesse pela comunicaçãohistórica, fundado pela compreensão das heranças culturais. Porconseguinte, o interesse pela emancipação nunca opera um cortetotal no sistema dos interesses, corte susceptível de introduzir, nonível do saber, um verdadeiro corte epistemológico.

Eis, pois, minha terceira proposição: a crítica das ideologias,fundada

cial é cair na ilusão de uma teoria^r,ítica!-ele,vada,ao.níveLde_sâber^absoluta , ~ "

MnhaquartaeúltimaDiz respeito ao bom uso da crítica das ideologias. De toda essameditação, resulta que a crítica das ideologias é uma tarefa quedeyemos sempre começar, mas que, por princípio, não podemosconcluir. O saber está sempre em vias de se arrebatar à ideologia,mas a ideologia sempre é aquilo que permanece a grelha, o códigode interpretação, mediante o qual não somos intelectuais semamarras e sem pontos de apoio, mas continuamos sendo trans-portados por aquilo que Hegel chamava de a "substância ética"

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(Sittlichkeii). Chamo de deontológica minha última proposição,pjrguejigda rvgs £ majs^njicessário,Lej^ngjs^s_djaj^u^a ffnüncia

và=arrogância dacnticj^para empreendCTrrrósljpm^ac^

^dejngssa, condiçãojmtónga..

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TERCEIRA PARTE

Crítica das ideologias

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O debate que o presente título evoca ultrapassa em muito oslimites de uma discussão sobre o fundamento das ciências sociais.Ele coloca em jogo o que chamarei de gesto filosófico de base.Seria esse gesto o reconhecimento das condições históricas nasquais toda compreensão humana está submetida, sob o regime dafinitude? Ou seria, em última instância, um gesto de desafio, umgesto crítico, indefinidamente retomado e incessantemente dirigidocontra a "falsa consciência", contra as distorções da comunicaçãohumana, por detrás das quais dissimula-se o exercício permanenteda dominação e da violência? Eis o desafio de um debate que,desde o início, parece estar estreitamente vinculado ao domínio daepistemologia das ciências humanas. Esse desafio parece enunciar-senos termos de uma alternativa: ou a consciência hermenêutica ou aconsciência crítica. Mas seria isso mesmo? Não é a própria alter-nativa que deve ser recusada? Seria possível uma hermenêuticacapaz de fazer justiça à crítica das ideologias, quer dizer, susceptí-vel de mostrar sua necessidade do fundo mesmo de suas própriasexigências? Como se pode notar, o desafio é por demais complexo.Inicialmente, não iremos nos aventurar nele em termos muito gené-ricos e assumindo uma atitude bastante ambiciosa. Preferimos tomarpor eixo de referência uma discussão contemporânea, pois tem a van-tagem de apresentar o problema em forma de alternativa. Se estadeve, enfim, ser ultrapassada, pelo menos não será na ignorância dasdificuldades a serem superadas.

Os dois protagonistas da alternativa são: do lado hermenêu-tico, Hans-Georg Gadamer, do lado crítico, Jürgen Habermas. O

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dossiê de sua polêmica pertence hoje ao domínio público. Foi parcial-mente reproduzido no pequeno volume Hermeneutik und Ideolo-gickrítik, publicado por Suhrkamp, em 1971!. É desse dossiê queextrairei as linhas de força do conflito que opõe hermenêutica eteoria crítica das ideologias. Tomarei por pedra de toque do de-bate a apreciação da tradição nas duas fiolosofias. À sua apreciaçãopositiva, pela hermenêutica, responde o enfoque suspeitador dateoria das ideologias, que pretende ver nesta apenas a expressãosistematicamente distorcida da comunicação, sob os efeitos de umexercício não reconhecido da violência. A escolha dessa pedra detoque apresenta a vantagem de se evidenciar, de imediato, umconfronto versando sobre a "reivindicação de universalidade" dahermenêutica. Se, com efeito, a crítica das ideologias tem certointeresse, é na medida em que constitui uma disciplina não-her-menêutica, que se inscreve fora da esfera de competência de umaciência ou de uma filosofia da interpretação, e que marca seulimite fundamental.

Limitar-me-ei, na primeira parte do presente estudo, a apresen-tar as peças do dossiê, o que farei em termos de uma alternativasimples: ou a hermenêutica, ou a crítica das ideologias. Reservarei

Eis, em poucas palavras, o histórico do debate. Em 1965 aparece asegunda edição de Wahrheit und Methode, de H. G. Gadamei, publi-cado, pela primeira vez, em 1960. Essa edição contém um prefácio queresponde a um primeiro grupo de críticas. Habermas lança um primeiroataque em 1967 em sua Lógica das ciências humanas. Tal ataque édirigido contra a parte de Verdade e método que estamos analisando, asaber, contra a reabilitação do preconceito, da autoridade e da tradição,e contra a famosa teoria da "consciência histórica eficiente". No mes-mo ano, Gadamer publica os Kleine Schríften I, uma conferência de1965, intitulada "A universalidade do problema hermenêutico", de quese encontra uma tradução francesa Archives de fhüosophie (1970, pp.3-17), bem como outro ensaio sobre "Filosofia, hermenêutica e críticadas ideologias", também traduzido nos Archives de Phttosophie (1971,pp. 207-230). Habermas responde num longo ensaio: "A reivindicaçãode universalidade da hermenêutica", publicado na Festschrift, em ho-menagem a Gadamer, intitulada Hermenêutica e dialética I (1970).Todavia, a obra principal de Habermas que consideraremos intitula-seErkenntnis und Interesse (Connaissance et intérêts, 1968). Esta obracontém, no apêndice, uma importante exposição de princípio e demétodo publicada em 1965 intitulada "Perspectives". Sua concepçãodas formas atuais da ideologia encontra-se em Tecnologia e ciênciacompreendidas como ideologia, obra dedicada a Herbert Marcuse porocasião de seu 70.° aniversário em 1968.

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para a segunda parte uma reflexão de caráter mais pessoal, cen-trada sobre as duas seguintes questões:

• em que condições uma filosofia hermenêutica pode darconta da exigência legítima de uma crítica das ideologias?Seria ao preço de sua reivindicação de universalidade e deuma reformulação bastante profunda de seu programa ede seu projeto?

• em que condições uma crítica das ideologias é possível?Pode ser, em última instância, despojada de pressupostoshermenêuticos?

Devo dizer que nenhum intuito de anexação e que nenhumsincretismo presidirão a esse debate. Sou tentado a dizer, comGadamer, aliás, que cada uma das duas teorias fala de um lugardiferente, mas que cada uma pode reconhecer a reivindicação deuniversalidade da outra, de tal forma que o lugar de uma se ins-creva na estrutura da outra.

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1. A ALTERNATIVA

A) Gadamer: a hermenêutica das tradições

Podemos ir diretamente ao ponto crítico - ao Brennpunkt -que Habermas ataca desde sua Lógica das ciências sociais, a saber,a concepção da consciência histórica e a reabilitação, em forma deprovocação, dos três conceitos interligados de preconceito, autori-dade e tradição. Na verdade, esse texto não é secundário, acessórioou marginal. Liga-se diretamente à experiência central ou, comoacabo de dizer, ao lugar de onde fala essa hermenêutica e de ondeformula sua reivindicação de universalidade. Essa experiência é ado escândalo constituído, na escala da consciência moderna, pelotipo de distanciamento alienante - de Verfremdung - que é muitomais que um sentimento ou que um humor: é a pressuposiçãoontológica que sustenta a conduta objetiva das ciências humanas.A metodologia dessas ciências implica inelutavelmente um distan-ciamento, o qual, por sua vez, pressupõe a destruição da relaçãoprimordial de pertença - de Zugehõrigkeit —, sem a qual nãohaveria relação com o histórico enquanto tal.

Esse debate entre distanciamento alienante e experiência depertença é levado a efeito por Gadamer nas três esferas entre asquais se reparte a experiência hermenêutica: esfera estética, esferahistórica e esfera da linguagem. Na esfera estética, a experiência deser apreendido é aquilo que sempre precede e torna possível o

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exercício crítico do juízo, cuja teoria foi elaborada por Kant. Naesfera histórica, é a consciência de ser carregado por tradições queme precedem que torna possível todo exercício de uma metodo-logia histórica no nível das ciências humanas e sociais. Enfim, naesfera da linguagem, que de certa forma atravessa as duas anterio-res, a copertença às coisas ditas pelas grandes vozes dos criadoresde discurso precede e torna possível toda redução instrumental dalinguagem e toda pretensão de se dominar, por técnicas objetivas,as estruturas do texto de nossa cultura. Assim, uma única teseperpassa as três partes de Wahrheit una Methode. Se nosso debatese localiza na segunda parte, já se vincula — e, de certa forma, jáse trava — na estética, ao mesmo tempo que só chega ao seu termona experiência da linguagem, onde consciência estética e consci-ência histórica são elevadas ao nível do discurso. A teoria da cons-ciência histórica constitui, assim, o microcosmo de toda a obra e aminiatura do grande debate.

Ao mesmo tempo, porém, que a filosofia hermenêutica declaraa amplitude de sua visada, aponta o lugar de seu ponto de partida.O lugar de onde fala Gadamer é determinado pela história dastentativas para resolver o problema do fundamento das ciências doespírito no romantismo alemão, depois em Dilthey, enfim, baseando-se na ontologia heideggeriana. O próprio Gadamer o confessa, quan-do afirma a universalidade da dimensão hermenêutica. Essa universa-lidade não é abstrata. Para cada pesquisador, ela está centrada numaproblemática dominante, numa experiência privilegiada: "Minha pró-pria tentativa", escreve, "está vinculada à retomada da herança doromantismo alemão por Dilthey, naxrnedida em que ele toma por te-ma a teoria das ciências do espírito, embora fazendo-a repousar so-bre um fundamento novo e muito mais amplo. A experiência da arte,com a experiência vitoriosa da contemporaneidade que lhe é própria,constitui a réplica ao distanciamento histórico nas ciências do espí-rito"1 . Por conseguinte, a hermenêutica tem uma visada que prece-de e ultrapassa toda ciência. Essa visada é testemunhada pelo "cará-ter de linguagem universal do comportamento relativo ao mundo"(p. 208). Contudo, a universalidade dessa visada é a contrapartida daestreiteza da experiência inicial onde ela se enraíza.

1. H. G. Gadamer, Rhétorique, herméneutique et critique de 1'idéologie, ir.,nos Archives de Phüosophie, 1971, pp. 207-208,

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Portanto, não é indiferente, para o debate com os partidáriosda crítica das ideologias, que sejam enfatizados, ao mesmo tempo,a pretensão à universalidade e o reconhecimento do lugar da expe-riência inicial. De fato, também poderia ter sido possível tomarnão a consciência histórica enquanto tal, mas a teoria da exegese,da interpretação dos textos na experiência da leitura, como forapossível, baseando-se na herança, a hermenêutica de Schleierma-cher. Ao escolher esse ponto de partida, até certo ponto diferente,e que eu mesmo me proponho a elaborar na segunda parte desseestudo, estaríamos nos preparando para conferir ao problema dodistanciamento, da alienação, uma significação mais positiva doque a que pode ser encontrada na avaliação de Gadamer. Não é emabsoluto indiferente que Gadamer tenha justamente afastado comomenos significativa uma reflexão sobre "o ser para o texto" (Seinzum Texte), de vez que parece reduzi-la a uma reflexão sobre oproblema da tradução, erigida em modelo do caráter da linguagem,do comportamento humano com referência ao mundo. No entan-to, é a essa reflexão que voltarei na segunda parte do presenteestudo, com a esperança de retirar dela uma orientação de pensa-mento menos submissa que a de Gadamer à problemática da tradi-ção e, dessa forma, mais acolhedora da crítica das ideologias.

Ao privilegiar, como eixo de reflexão, a consciência histórica e.a questão das condições de possibilidade das ciências do espírito,

/ Gadamer orientava inevitavelmente a filosofia hermenêutica para areabilitação do preconceito e para a apologia da tradição e da

v autoridade. Inclusive, situava essa filosofia hermenêutica numa po-sição conflitual com relação a toda crítica das ideologias. Ao mes-mo tempo, o próprio conflito, apesar da terminologia moderna, erareduzido à sua formulação mais antiga, contemporânea da lutaentre o espírito do romantismo e o da Aufklarung, e devia assumira forma de uma repetição do mesmo conflito ao longo de percursoobrigatório, partindo do romantismo como ponto inicial, passandopela etapa epistemológica das ciências do espírito, com Dilthey, esubmetido à transposição ontológica, com Heidegger. Em outraspalavras, ao adotar a experiência, privilegiada da consciência his-tórica, Gadamer também adotava certo percurso filosófico quedevia inelutavelmente reiterar.

Com efeito, foi na luta entre o romantismo e o iluminismoque nosso próprio problema se constituiu, e que a oposição entre

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duas atitudes filosóficas fundamentais adquiriu corpo: de um lado,a Aufklãnmg e sua luta contra os preconceitos; do outro, o roman-tismo e sua nostalgia do passado. O problema consiste em saber seo conflito moderno entre a crítica das ideologias, segundo a escolade Frankfurt, e a hermenêutica, segundo Gadamer, revela qualquerprogresso em relação a esse debate.

No que concerne a Gadamer, seu propósito expresso é claro:trata-se de não recair na viseira romântica. O grande desenvolvi-mento da segunda parte de Verdade e método, que culmina nafamosa teoria da "consciência exposta aos efeitos da história",contém uma vigorosa censura à filosofia romântica, por ter ope-rado apenas uma reviravolta do pró ao contra, ou, antes, do contraao pró, sem ter conseguido deslocar a própria problemática e mu-dar o domínio do debate. O preconceito, com efeito, é uma cate-goria da Aufklãnmg, a categoria por excelência, sob a dupla formada precipitação (julgar demasiadamente rápido) e da prevenção(seguir o costume, a autoridade). O preconceito é aquilo de queprecisamos nos desembaraçar para começarmos a pensar, paraousarmos pensar - segundo o famoso adágio sapere aude —, paratermos acesso à idade adulta, à Mündigkeit.

Para descobrirmos um sentido menos univocamente negativo dotermo "preconceito" (tornado quase sinônimo de juízo não funda-do, de juízo falso), e para restaurarmos a ambivalência que o praeju-dicium latino pôde ter na tradição jurídica anterior ao iluminismo,deveríamos poder questionar a pressuposição de uma filosofia queopõe razão e preconceito. Ora, tais pressuposições são as mesmas deuma filosofia crítica. De fato, é para uma filosofia do juízo — e umafilosofia crítica é uma filosofia do juízo — que o preconceito cons-titui uma categoria negativa dominante. O que deve ser questionadoé o primado do juízo no comportamento do homem com referênciaao mundo. Ora, só é capaz de erigir o juízo em tribunal uma filosofiaque faça da objetividade, cujo modelo é fornecido pelas ciências, amedida do conhecimento. Juízo e preconceito só são categoriasdominantes no tipo de filosofia oriundo de Descartes, fazendo daconsciência metódica a chave de nossa relação com o ser e com osseres. Por conseguinte, é sob a filosofia do juízo, sob a proble-mática do sujeito e do objeto, que devemos cavar, para levarmos abom termo uma reabilitação do preconceito que não seja umasimples prescrição do espírito das luzes.

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T É neste ponto que a filosofia romântica se apresenta comosendo ao mesmo tempo uma primeira fundação do problema e umfracasso fundamental. Uma primeira fundação, porque ousa nãoreconhecer o "descrédito lançado sobre o preconceito pela Auf-którung" (é o título do texto que se inicia na página 256 deWahrheit und Methodé). Um fracasso fundamental, porque apenasinverteu a resposta, sem inverter a questão. De fato, o romantismotrava seu combate sobre o terreno definido pelo adversário: o pa-pel da tradição e da autoridade na interpretação. É sobre essemesmo terreno, sobre esse mesmo solo de questão, que se enalteceo mythos ao invés de celebrar o logos, que se advoga o Antigo emdetrimento do Novo, a Cristandade histórica contra o Estado mo-derno, a Comunidade fraterna contra o Socialismo jurídico, oinconsciente genial contra a consciência estéril, o passado míticocontra o futuro das utopias racionais, a imaginação poética contrao raciocínio frio. A hermenêutica romântica liga, assim, seu des-tino a tudo o que se assemelha a Restauração.

Eis a viseira na qual a hermenêutica da consciência históricanão pretende recair. Ainda uma vez, a questão consiste em saber sea hermenêutica de Gadamer ultrapassou realmente o ponto de par-tida romântico da hermenêutica, e se sua afirmação segundo a qual"o ser-homem encontra sua finitude no fato de situar-se, antes, noseio das tradições" (p. 260) escapa ao jogo das reviravoltas no qualele vê encerrado o romantismo filosófico, face às pretensões detoda filosofia crítica.

Não é antes da filosofia de Heidegger, pensa Gadamer, que aproblemática do preconceito pôde ser reformulada enquanto preci-samente problemática. A este respeito, a etapa propriamentediltheyniana do problema de forma alguma é decisiva. Pelo contrá-rio, é a Dilthey que devemos a ilusão segundo a qual há duascientificidades, duas metodologias, duas epistemologias: a das ciên-cias da natureza e a das ciências do espírito. É por isso que, apesarde sua dívida para com Dilthey, Gadamer não hesita em escrever:"Dilthey não soube libertar-se da teoria tradicional do conheci-mento" (p. 261). Seu ponto de partida continua sendo a consci-ência de si, o domínio de si mesmo. Com ele, a subjetividadepermanece a referência última. O reino da Erlebnis é o reino deum primordial que sou eu. Neste sentido, o fundamental, é oInnesein, a interioridade, a tomada de consciência de si.

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Portanto, é contra Dilthey, bem como contra a Aufklàrungsempre renascente, que Gadamer proclama: "eis por que os precon-ceitos do indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem arealidade histórica (geschichtliché) de seu ser" (p. 261). A reabilita-ção do preconceito, da autoridade, da tradição será, pois, dirigidacontra o reino da subjetividade e da interioridade, vale dizer, contraos critérios da reflexividade. Essa polêmica anti-reflexiva contribuirámesmo para conferir ao arrazoado que exporemos a seguir a aparên-cia de um retorno a uma posição pré-crítica. Por mais provocante —para não dizer provocador - que seja tal arrazoado, ele é devido àreconquista da dimensão histórica sobre o momento reflexivo. Ahistória me precede e antecipa-se à minha reflexão. Pertenço àhistória antes de me pertencer. Ora, Dilthey não pôde compreenderisso, porque sua revolução permanece epistemológica e porque seucritério reflexivo prima sobre sua consciência histórica.

Não obstante, podemos nos perguntar se a vivacidade do propó-sito contra Dilthey não possui a mesma significação que o ataquecontra o romantismo. Não é a fidelidade a Dilthey - mais profundaque a crítica a seu respeito — que explica o fato de ser a questão dahistória e da historicidade, e não a do texto e da exegese, quecontinua a fornecer o que eu chamaria, num sentido próximo ao decertas expressões do próprio Gadamer, a experiência princeps dahermenêutica? Ora, talvez seja nesse nível que precisamos interrogara hermenêutica de Gadamer, isto é, num nível em que sua fidelidadea Dilthey é mais significativa que sua crítica. Remetemos essa ques-tão à segunda parte de nosso estudo, para seguirmos o movimentoque passa da crítica ao romantismo e da epistemologia diltheyniana àfase propriamente heideggeriana do problema.

Recuperar a dimensão histórica do homem exige muito mais queuma simples reforma metodológica. Quer dizer: exige muito maisque uma legitimação simplesmente epistemológica da idéia de "ciên-cias do espírito" com referência às exigências das ciências da nature-za. Somente uma reviravolta fundamental, subordinando a teoria doconhecimento à ontologia, faz surgir o verdadeiro sentido da pré-es-trutura (ou da estrutura de antecipação) do compreender (Vors-struktur dês Verstebens) que condiciona toda reabilitação do pre-conceito.

Cada um de nós está lembrado do texto de Sein una Zeit sobreo compreender (p. 31), texto em que Heidegger, acumulando as

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T expressões que contêm o prefixo vor (Vor-habe, Vor-sicht, Vor-gríff), funda o círculo hermenêutico das "ciências do espírito" sobreuma estrutura de antecipação que pertence à posição mesma dê nos-so ser no ser. Gadamer tem razão ao dizer: "a ponta do pensamentohermenêutico de Heidegger consiste menos em provar que aí há umcírculo do que em provar que este círculo possui um sentido positi-vo" (p. 251). Mas é interessante notar que Gadamer não remete ape-nas ao parágrafo 31, que pertence ainda à Analítica fundamental doDasein (é o título da primeira seção), mas ao parágrafo 63, que des-loca claramente a problemática da interpretação em direção à ques-tão da temporalidade enquanto tal. Não se trata somente do Da doser-aí, mas de seu poder-ser integral (Ganzseinskõnnen), que se atestanas três êxtases temporais da preocupação. Gadamer tem razão deperguntar: "Poderíamos nos interrogar sobre as conseqüências queacarreta, para a hermenêutica das ciências do espírito, o fato de Hei-degger derivar fundamentalmente a estrutura circular do compreen-der, da temporalidade do Dasein" (ibid.).

Todavia, o próprio Heidegger não se colocou tais questões, quetalvez nos levem de modo inesperado ao tema crítico que quisemosexpurgar, com a preocupação puramente epistemológica ou metodo-lógica. Se seguirmos o movimento de radicalização que não somenteconduz de Dilthey a Heidegger, mas, no interior mesmo do Sein undZeit, do parágrafo 31 ao parágrafo 63, vale dizer, da analítica prepa-ratória à questão da totalidade, parece que a experiência privilegiada— se é que ainda podemos falar assim — não é mais a história doshistoriadores, porém a própria história da questão do sentido de serna metafísica ocidental. Tudo indica, pois, que a situação herme-nêutica, na qual se desdobra a interrogação, é marcada pelo fato de aestrutura de antecipação, a partir da qual interrogamos o ser, ser for-necida pela história da metafísica. É ela que ocupa o lugar do precon-ceito.

Iremos nos perguntar mais adiante se a relação crítica que Hei-degger institui a respeito dessa tradição já não contém em germe umareabilitação, não mais do preconceito, mas da crítica dos precon-ceitos. Eis o deslocamento fundamental que Heidegger impõe ao pro-blema do preconceito. O preconceito - Vormeinung - faz parteda estrutura de antecipação (Sein und Zeit, p.-l50; tr. fr., p. 187).O exemplo da exegese do texto é, aqui, mais que um caso particu-lar: é um revelador, no sentido fotográfico do termo. Heidegger

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Tpode chamar de "modo derivado" a interpretação fdológica; elapermanece a pedra de toque. É nela que pode ser percebida anecessidade de se elevar ao círculo vicioso, no qual gira a interpre-tação Biológica, enquanto ela se compreende a partir de um mo-delo de cientificidade comparável ao das ciências exatas, ao círculonão-vicioso da estrutura de antecipação do ser mesmo que somosnós.

Heidegger, porém, não está interessado no movimento de re-torno da estrutura de antecipação que nos constitui no círculohermemêutico, em seus aspectos propriamente metodológicos. Éuma pena, porque é sobre esse trajeto de retorno que a hermenêu-tica poderia reencontrar a crítica e, mais particularmente, a críticadas ideologias. É por essa razão que nosso próprio questionamentode Heidegger e de Gadamer partirá das dificuldades colocadas poresse trajeto de retorno, pois é somente sobre ele que se legitima aidéia segundo a qual a interpretação filológica é um "modo deri-vado do compreender fundamental". Enquanto não tivermos pro-cedido a essa derivação, ainda não teremos mostrado que a pré-es-írutura pode ser fundamental. Porque nada é fundamental, enquan-to algo não for derivado dele.

É sobre esse tríplice fundo - romântico, diltheyniano e hei-deggeriano — que precisamos ressituar a contribuição própria deGadamer à problemática. A este respeito, seu texto é como umpalimpsesto, no qual podemos sempre distinguir, tanto em espes-sura quanto em transparência, uma camada romântica, uma ca-mada diltheyniana e uma camada heideggeriana; por conseguinte,ele pode ser lido em cada= um desses níveis. Em compensação, cadaum desses níveis pode ser* remetido ao que Gadamer diz agora emseu próprio nome. Como bem perceberam seus adversários, a con-tribuição própria de Gadamer diz respeito, em primeiro lugar, aoelo que ele institui, num nível até certo ponto puramente fenome-nológico, entre preconceito, tradição e autoridade; em seguida, àinterpretação ontológica dessa seqüência, a partir do conceito de"consciência exposta aos efeitos da história" ou "consciência daeficácia histórica"; enfim, à conseqüência epistemológica que elechama de a conseqüência metacrítica; esta consiste em dizer queuma crítica exaustiva dos preconceitos — por conseguinte, dasideologias - é impossível, na ausência do ponto zero de onde elapoderia ser feita.

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Retomemos cada um desses três pontos: a fenomenologia dopreconceito da tradição e da autoridade, a ontologia da consciênciaexposta aos efeitos da história, a crítica da crítica.

Não é sem um quê de provocação que Gadamer tenta reabi-litar conjuntamente preconceito, tradição e autoridade. Á análise é"fenomenológica", no sentido em que tenta extrair uma essênciadesses três fenômenos que teriam sido obscurecidos pela apreciaçãopejorativa da Aufklárung. Começando pelo preconceito, ele não éo pólo oposto de uma razão sem pressuposição, mas um compo-nente do compreender, vinculado ao caráter historicamente finitodo ser humano, É falso que haja apenas preconceitos não funda-dos; no sentido jurídico, há pré-juízos podendo ser ou não fun-dados posteriormente e, mesmo, "preconceitos legítimos". A esterespeito, se os preconceitos por precipitação são mais difíceis deser reabilitados, os preconceitos por prevenção possuem uma signi-ficação profunda que desaparece numa análise empreendida a par-tir de uma posição puramente crítica. O preconceito contra o pre-conceito procede, com efeito, de um preconceito enraizado maisprofundamente contra a autoridade, que rapidamente identificamoscom a dominação e com a violência. O conceito de autoridade nosintroduz no cerne do debate com a crítica da ideologia. Tampoucodevemos nos esquecer de que esse conceito também encontra-se nocerne da sociologia política de Max Weber: o Estado é, por exce-lência, a instituição que repousa sobre a crença na legitimidade desua autoridade e de seu direito legítimo de, em última instância,fazer uso da violência.

Ora, para Gadamer, a análise padece de uma distorção desde otempo da Aufklárung, devido à confusão entre dominação, autori-dade e violência. É aqui que se impõe a análise de essência. Para aAufklárung, a autoridade possui necessariamente, como contrapar-tida, a obediência cega: "Ora, em sua essência, a autoridade nadaimplica disso. Sem dúvida, é antes de tudo a pessoas que ela dizrespeito. Somente a autoridade de pessoa não se funda num ato desubmissão e de abdicação da razão, mas num ato de aceitação e dereconhecimento, pelo qual conhecemos e reconhecemos que boutro nos é superior em juízo e em argúcia, que seu juízo nosprecede, que ele tem prioridade sobre o nosso. Da mesma forma,para dizer a verdade, a autoridade não é algo que se concede, masque se conquista: precisa necessariamente ser adquirida por todo

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aquele que a ela pretende. Repousa sobre a consideração, por con-seguinte, sobre um ato da razão mesma que, consciente de seuslimites, concede a outros uma perspicácia maior. Assim compre-endida em seu verdadeiro sentido, a autoridade nada tem a vercom a obediência cega a uma ordem dada. Seguramente, ela nãopossui nenhuma relação imediata com a obediência, pois repousasobre o reconhecimento" (Wahrheit una Methode, p. 264).

Por conseguinte, o conceito-chave é o de reconhecimento(Anerkennung), substituído ao de obediência. Ora, tal conceitoimplica certo momento crítico: "O reconhecimento da autoridadeestá sempre vinculado à idéia segundo a qual o que diz a autori-dade não é arbitrário, nem tampouco irracional, mas pode seradmitido em seu princípio; nisso consiste a essência da autoridadereivindicada pelo educador, pelo superior e pelo especialista"(Ibid). Em favor desse momento crítico, torna-se impossível arti-cular essa fenomenologia da autoridade com a crítica da ideologia.

Todavia, não é este o aspecto das coisas finalmente enfatizadopor Gadamer. Apesar de sua crítica anterior, é a um tema doromantismo alemão que Gadamer retorna, ligando autoridade etradição. "Porque a autoridade é a tradição. O romantismo defen-deu com ardor especial a tradição. Tudo o que é consagrado pelatradição transmitida e pelo costume possui uma autoridade que setornou anônima, e nosso ser historicamente finito é determinadopor essa autoridade das coisas recebidas que exerce uma poderosainfluência (Gewalt) sobre nosso modo de agir e sobre nosso com-portamento, e não somente aquilo que se justifica por razões.Toda educação repousa sobre isso ( . . . ) Costumes e tradições sãorecebidos em toda liberdade, mas de forma alguma são criados emtoda liberdade de discernimento ou fundados em sua validade. Éexatamente isso que chamamos de tradição: o fundamento de suavalidade. E, efetivamente, devemos ao romantismo essa retificaçãoda Aufkldrung restabelecendo o direito que a tradição conservafora dos fundamentos racionais, bem como seu papel determinantepara nossas disposições e nosso comportamento. É na perspectivado caráter indispensável da tradição que a ética antiga funda apassagem da ética à política, que é a arte de bem legislar. Podemosdizer que é isso que constitui a superioridade da ética dos antigossobre a filosofia moral dos modernos. Em comparação, z Aufkldrungmoderna é abstrata e revolucionária" (p. 265).

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Certamente Gadamer não pretende recair nas malhas do debatesem saída entre romantismo e iluminismo. Precisamos reconhecerque ele tentou aproximar, ao invés de opor, autoridade e razão. Aautoridade tira seu verdadeiro sentido de sua contribuição à maturi-dade de um juízo livre: "receber a autoridade", também é passá-lapelo crivo da dúvida e da crítica. Mais profundamente, o elo entreautoridade e razão deve-se ao fato de "a tradição não cessar de serum fator da liberdade e da própria história" (p. 265). Isso não é no-tado se confundirmos a "preservação" (Bewahmng) de uma herançacultural com a simples preservação de uma realidade natural. Umatradição exige ser apreendida, assumida e mantida. Nisto, ela é umato de razão: "A preservação não resulta de um comportamento me-nos livre que o transtorno e a inovação" (p. 266).

No entanto, podemos observar que Gadamer emprega o termoVemunft. razão, e não Verstand entendimento. Sendo assim, tor-na-se possível um diálogo com Habermas e K. O. Apel, preocupadostambém em defender um conceito de razão distinto do entendimentoplanificador, que vêem submetido ao projeto puramente tecnológico.Não fica excluído que a distinção, cara à escola de Frankfurt, entre aação comunicativa (obra da razão) e a ação instrumental (obra doentendimento tecnológico) só se mantém pelo recurso à tradição(pelo menos à tradição cultural viva), em oposição à tradição politi-zada e institucional. A distinção, que também estabelece Eric Weil,entre o racional da tecnologia e o razoável da política, estaria aqui,igualmente, bem situada. Para Eric Weil. esse razoável (raisonnablé)só se realiza num diálogo entre o espírito de inovação e o espírito detradição.

A interpretação propriamente "ontológica" da seqüência pre-conceito, autoridade e tradição cristaliza-se de certa forma na cate-goria de consciência da história dos efeitos que marca o ápice dareflexão de Gadamer sobre a fundação das "ciências do espírito".

Essa categoria não depende mais da metodologia, da Forscnunghistórica, mas da consciência reflexiva dessa metodologia. Trata-se deuma categoria da tomada de consciência da história. Veremos maisadiante que certos conceitos de Habermas, tais como a idéia regula-dora de comunicação ilimitada, situam-se no mesmo nível da com-preensão de si das ciências sociais, importa-nos, pois, analisar com omáximo de lucidez esse conceito de consciência da história dos efei-tos. De um modo geral, podemos dizer que se trata da consciência

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de estar exposto à história e a sua ação, de tal forma que não podemosobjetivar essa ação sobre nós, pois essa eficácia faz parte de seu sen-tido enquanto fenômeno histórico. Por exemplo, podemos ler emKleine Schriften (I, p. 158): "Com isso, estou querendo dizer, emprimeiro lugar, que não podemos nos subtrair ao devir histórico, nosdistanciar dele para que o passado seja, para nós, um objeto . . . Esta-mos sempre situados na história... Pretendo dizer que nossa cons-ciência é determinada por um devir histórico real, de tal forma queela não possui a liberdade de situar-se em face do passado. Por outrolado, pretendo dizer que se trata de sempre retomar consciência daação que se exerce, assim, sobre nós, de sorte que o passado, cujaexperiência acabamos de fazer, force-nos a tomá-la totalmente emmãos, a assumir de certa maneira sua verdade".

Contudo, podemos analisar esse fato maciço e global de per-tença e de dependência da consciência no que concerne àquilo mes-mo que a afeta, antes mesmo de ela nascer para si como consciência.Esta ação propriamente previdente, incorporada à tomada de cons-ciência, deixa-se articular com o nível do pensamento da linguagemfilosófica como se segue.

Quatro temas parecem concorrer para essa categoria de cons-ciência da história da eficácia.

1. Em primeiro lugar, esse conceito deve ser posto a par e emtensão com o de distância histórica, que Gadamer elaborou anterior-mente, e de que a Fórschung constitui uma condição metodológica.A distância é um fato. O distanciamento é um comportamento meto-dológico. A história dos efeitos ou da eficácia é justamente a que seexerce na dependência da distância histórica. É a proximidade dolongínquo. Donde a ilusão, combatida por Gadamer, segundo a quala "distância" põe fim a nosso compromisso com o passado e, ao mes-mo tempo, cria uma situação comparável à objetividade das ciênciasda natureza, na medida mesma em que, com a familiaridade perdida,também rompemos com a arbitrariedade. Contra essa ilusão, con-vém restaurarmos o paradoxo da "alteridade" do passado. A históriaeficiente é a eficácia na distância.

2. Segundo tema incorporado a essa idéia da eficácia histórica:não há sobrevôo que nos permita dominar, com o olhar, o conjuntodesses efeitos. Entre finitude e saber absoluto, precisamos fazer umaescolha. O conceito de história eficiente é um conceito numa onto-logia da finitude. Desempenha o mesmo papel que o de "projeto

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lançado" e de "situação' na ontologia heideggeriana. O ser históricoè o que jamais passa para o saber de si. Se há um conceito hegelianocorrespondente, não seria o de Wissen, de saber, mas o de Substanzque Hegel emprega todas as vezes que é necessário dizer o fundo não-controlável que surge no discurso pela dialética. Mas então, parafazer-lhe justiça, precisamos subir o curso da Fenomenologia doespírito, e não descê-lo em direção ao saber absoluto.

3. O terceiro tema corrige um pouco o precedente: se não hásobrevôo, também não há situaçâ"o que nos limite absolutamente.Onde há situação, há horizonte, como aquilo que pode encurtar-seou ampliar-se. Como testemunha o círculo visual de nossa existên-cia, a paisagem se hierarquiza entre o próximo, o longínquo eo aberto. O mesmo ocorre na compreensão histórica: pensamos terficado quites com esse conceito de horizonte ao identificá-lo coma regra de método de transportar-nos para o ponto de vista dooutro; dessa forma, o horizonte é o horizonte do outro. Cremos,assim, ter alinhado a história sobre a objetividade das ciências: nãoconsistiria a objetividade em adotar o ponto de vista do outro, noesquecimento de nosso próprio ponto de vista? No entanto, nadaé mais pernicioso que tal assimilação falaciosa: porque o texto,assim tratado como objeto absoluto, fica privado de sua pretensão denos dizer algo sobre a coisa. Ora, tal pretensão só se sustenta pelaidéia de um consenso prévio sobre a coisa mesma. Nada arruina maiso sentido mesmo do empreendimento histórico que esse distancia-mento objetivo que suspende ao mesmo tempo a tensão dos pontosde vista e a pretensão da tradição de transmitir uma palavra verda-deira sobre aquilo que é.

4. Se restabelecemos a dialética dos pontos de vista e a tensãoentre o outro e o próprio, chegamos ao mais elevado conceito —nosso quarto tema — o de fusão dos horizontes. Trata-se de umconceito dialético procedendo de uma dupla recusa: a do objetivis-mo, segundo o qual a objetivação do outro se faz no esquecimentodó próprio; e a do saber absoluto, segundo o qual a história universalé susceptível de articular-se num único horizonte. Não existimosnem em horizontes fechados nem num único horizonte. Não háhorizonte fechado, pois podemos nos transportar para outro pontode vista e para outra cultura. Seria uma robinsonada pretendermosque o outro seja inacessível. Mas não há horizonte único, pois atensão do outro e do próprio é insuperável.

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Por vezes Gadamer parece admitir a idéia de um único horizonteenglobando todos os pontos de vista, como na monadologia deLeibniz (p. 288). Mas isto foi para lutar contra o pluralismo radicalde Nietzsche que levaria à incomunicabilidade e arruinaria a idéia de"entender-se sobre a coisa", essencial à filosofia do logos. É por issoque a posição de Gadamer tem maior afinidade com Hegel, namedida em que a compreensão histórica exige um "entendimentosobre a coisa", por conseguinte, um único logos da comunicação.Sua posição, porém, é apenas tangencial à de Hegel, porque suaontologia heideggeriana da finitude impede-o de fazer desse únicohorizonte um saber. O próprio termo "horizonte" indica uma repug-nância última à idéia de um saber onde seria aceita a fusão doshorizontes. O contraste em virtude do qual um ponto de vista sedestaca sobre o fundo dos outros (Abhebung) indica a distânciaentre a hermenêutica e todo hegelianismo.

Desse conceito insuperável de fusão dos horizontes a teoria dopreconceito recebe sua característica mais típica: o preconceito é ohorizonte do presente, é a finitude do próximo em sua abertura parao longínquo. Dessa relação com o próprio e com o outro o conceitode preconceito recebe seu último toque dialético: é na medida emque me transporto para o outro, que me descubro a mim mesmo,com meu horizonte presente, com meus preconceitos. É somentenessa tensão entre o outro e o próprio, entre o texto do passado e oponto de vista do leitor, que o preconceito se torna operante,constitutivo de historicidade.

As implicações epistemológicas desse conceito ontológico deeficiência histórica são facilmente discerníveis. Dizem respeito aoestatuto mesmo da pesquisa nas "ciências do espírito". É a esseponto que Gadamer queria chegar. A pesquisa científica (a Fors-chung, a inquiry) não escapa à consciência histórica daqueles quevivem e fazem a história. O saber histórico não pode libertar-se dacondição histórica. É por isso que o projeto de uma ciência livre depreconceitos torna-se impossível. É a partir de uma tradição que ainterpela que a história coloca ao passado questões significativas,persegue uma pesquisa significativa, atinge resultados significativos.A insistência sobre o termo Bedeutung não deixa dúvidas: a históriacomo ciência recebe suas significações, no início e no fim da pes-quisa, do vínculo que conserva com uma tradição recebida e reco-nhecida. Entre a ação da tradição e a investigação histórica forma-se

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um pacto que nenhuma consciência crítica poderá desfazer sobde tornar insensata a própria pesquisa. A história dos historiado(Historie) pois, não faz senão elevar a um mais alto grau de consci-ência a vida mesma na história (Geschichte): "A pesquisa históricamoderna não é somente pesquisa, investigação, mas transmissão detradições" (p. 268). O elo do homem com o passado precede eengloba o tratamento puramente objetivo dos fatos do passado. Aquestão que permanece consiste em saber se o ideal de uma comuni-cação sem limite e sem coação, que Habermàs opõe ao conceito detradição, escapa ao argumento de Gadamer: a idéia de conhecimentoacabado da história é impensável bem como, ao mesmo tempo, a deum objeto em si da história.

Qualquer que seja o alcance desse argumento contra uma críticadas ideologias erigida em instância suprema, no final de contas ahermenêutica pretende erigir-se em crítica da crítica, ou em meta-crítica.

Por que metacrítica? Esse termo coloca em jogo o que Gadamerchama de "universalidade do problema hermenêutico". Vejo trêssignificações para essa moção de universalidade:

1. Em primeiro lugar, significa a pretensão de a hermenêuticapossuir a mesma amplitude que a ciência. A universalidade é, inicial-mente, uma reivindicação elevada por excelência, dizendo respeitoao nosso saber e ao nosso poder. A hermenêutica pretende cobrir omesmo domínio que a investigação científica, mas fundando-a numaexperiência do mundo que precede e engloba tanto o saber quanto opoder da ciência. Portanto, essa reivindicação de universalidade ele-va-se ao mesmo domínio que a crítica; também esta se dirige àscondições de possibilidade do conhecimento do saber e do poderlevadas a efeito pela ciência. Esta primeira universalidade procede,pois, da tarefa mesma da hermenêutica: "de restabelecer os vínculosunindo o mundo dos objetos que se tornaram disponíveis por seuintermédio e submetidos ao nosso arbítrio, que chamamos de omundo da técnica, às leis fundamentais de nosso ser, subtraídas aonosso arbítrio, e que não nos compete mais fazer, porém dignifi-car"1 . Subtrair ao nosso arbítrio o que a ciência submete ao nossoarbítrio, eis a primeira tarefa metacrítica.

1. H. G. Gadamer, L 'universalité du problème herméneutique, Kleine Schríften1,10l;tra.A.ü.,ArcMvesdePhilosophie, 33,1970, p. 4.

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2. Mas poderíamos dizer que essa universalidade ainda é deempréstimo. A hermenêutica, segundo Gadamer, possui uma univer-salidade própria que, paradoxalmente, só atingimos a partir de algu-mas experiências privilegiadas, com vocação universal. Com efeito,sob pena de tornar-se uma Methodik, a hermenêutica só pode elevarsua pretensão à universalidade a partir de domínios bastante concre-tos, por conseguinte, a partir de hermenêuticas regionais que elaprecisa sempre desregionalizar. É nesse esforço de desregionalizaçãoque talvez encontre uma resistência que se deve à natureza mesmadas experiências-testemunhas sobre as quais ela se destaca. Essasexperiências são, por excelência, experiências de alienação (Verfrem-gung), quer na consciência estética, na consciência histórica ou naconsciência da linguagem. Essa luta contra o distanciamento meto-dológico faz ao mesmo tempo da hermenêutica uma crítica dacrítica. Ela sempre tem necessidade de escalar o rochedo de Sísifo,de restaurar o solo ontológico degradado pela metodologia. Aomesmo tempo, porém, a crítica da crítica leva-nos a assumir umatese que aparecerá corno bastante suspeita aos olhos da "crítica", asaber: já há um consenso que funda a possibilidade da relaçãoestética, da relação histórica e da relação da linguagem. A Schleier-macher, que definia a hermenêutica como a arte de evitar a não-com-preensão (Missverstündnis), Gadamer replica: "Será que, na verdade,toda não-compreensão não é precedida por algo semelhante a um"acordo" que constitui seu suporte? "

3. Essa idéia de "acordo" é absolutamente fundamental. Aafirmação de que entendimento prévio inclui a própria não-com-preensão constitui o tema metacrítico por excelência. Ele nosconduz, ao mesmo tempo, ao terceiro conceito de universalidadeem Gadamer. O elemento universal que nos permite desregionalizara hermenêutica é a própria linguagem. O acordo que nos orienta éo entendimento no diálogo. Não se trata, forçosamente, do face-a-face tranqüilo, mas da relação questão-resposta em sua radicali-dade: "Trata-se do fenômeno hermenêutico primitivo, segundo oqual não há asserção possível que não possa ser compreendidacomo resposta a uma questão: este é o modo como ela pode sercompreendida". É por isso que toda hermenêutica culmina no con-ceito de "dimensão de linguagem" (Sprachlichkeii). É claro que,por linguagem, deve ser entendido aqui não o sistema das línguas,mas as coletâneas das coisas ditas, a síntese das mensagens mais

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T significativas veiculadas, não somente pela linguagem ordinária maspor todas as linguagens eminentes que fizeram de nós o que so-mos.

Chegaremos mais perto da crítica de Habermas ao nos pergun-tarmos se "o diálogo que somos nós" constitui o elemento univer-sal permitindo-nos desregionalizar a hermenêutica, ou então, se nãoconstitui uma experiência por demais particular, englobando tantoa possibilidade de ficarmos cegos à verdadeira situação de fato dacomunicação humana, quanto a de conservarmos a esperança numacomunicação sem entraves e sem limites.

B) A crítica das ideologias: Habermas

Gostaria de apresentar agora o segundo protagonista desse de-bate, que será reduzido, para a clareza da discussão, a um simplesduelo.

Situarei em quatro itens sucessivos sua crítica das ideologias,enquanto alternativa a uma hermenêutica das tradições.

1. Onde Gadamer toma de empréstimo ao romantismo filo-sófico seu conceito de preconceito, reinterpretado mediante a no-ção heideggeriana de pré-compreensão, Habermas desenvolve umconceito de interesse, oriundo do marxismo reinterpretado porLvkàcs e pela escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Marcuse,K. O. Apel, etc.).

2. Onde Gadamer se apoia sobre as ciências do espirito, com-preendidas como reinterpretação da tradição cultural no presentehistórico, Habermas recorre às ciências sociais críticas, diretamentedirigidas contra as reificações institucionais.

3. Onde Gadamer introduz a não-compreensão como obstá-culo interno à compreensão, Habermas desenvolve uma teoria dasideologias, no sentido de uma distorção sistemática da comunica-ção pelos efeitos dissimulados da violência.

4. Enfim, onde Gadamer funda a tarefa hermenêutica sobreuma ontologia do "diálogo que somos nós", Habermas invoca oideal regulador de uma comunicação sem limite e sem coação que,longe de nos preceder, dirige-nos a partir do futuro.

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Propositalmente apresento a alternativa de modo bastanteesquemático, com um objetivo de clarificação. No entanto, o deba-te perderia seu interesse, caso essas duas posições aparentementeantitéticas não comportassem uma zona de recobrimento que deve-ria, a meu ver, tornar-se o ponto de partida para uma nova fase dahermenêutica, que esboçarei na segunda parte. Retomemos, porém,cada uma das linhas de desacordo.

1. O conceito de interesse, pelo qual começo, e que oponhopolarmente ao de preconceito e de pré-compreensão, leva-nos adizer algumas palavras sobre as relações de Habermas com o mar-xismo, bastante comparáveis às de Gadamer com o romantismofúosófico. O marxismo de Habermas é bastante original: nada tema ver com o de Althusser e, ao mesmo tempo, conduz a umateoria muito diferente das ideologias. Em Conhecimento e interes-se, publicado em 1968, o marxismo é ressituado no interior deuma arqueologia do saber que, diferentemente da de Foucault, nãovisa a extrair estruturas descontínuas que não são constituídas oumanipuladas por nenhum sujeito, mas visa, pelo contrário, a retra-çar a história contínua de uma mesma problemática, a da reflexão,desfigurada num objetivismo e num positivismo crescentes.

O livro de Habermas pretende ser a reconstrução da "pré-his-tória do positivismo moderno" e, a esse título, a história da disso-lução da função crítica, com um objetivo que podemos chamar deapologético: o de "recuperar a experiência perdida da reflexão"(Prefácio). O marxismo, ressituado na história das conquistas e dosesquecimentos da reflexão, só pode aparecer como um fenômenobastante ambíguo. Por um lado, ele pertence à história da reflexãocrítica: está numa extremidade de uma linha que se traça a partirde Kant, passando por Fichte e Hegel. Não tenho tempo de mos-trar como Habermas vê essa série de radicalizações da tarefa dareflexão, através das etapas do sujeito kantiano, da consciênciafenomenológica hegeliana, do sujeito produtor fichteano, para cul-minar na síntese do homem e da natureza na atividade produtora.Essa simples maneira de afirmar a filiação ao marxismo a partir daquestão crítica já é, em si mesma, bastante reveladora. Conceber omarxismo como uma solução nova trazida ao problema das condi-ções de possibilidade da objetividade e do objeto, dizer que "no ;materialismo o trabalho desempenha a função da síntese" é esco-

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lher, para o marxismo, uma leitura propriamente "crítica" no stido kantiano e pós-kantiano do termo. É por isso que, para Ha-bermas, a crítica da economia política, em Marx, toma o lugar dalógica no idealismo.

Assim ressituado na história da função crítica da reflexão omarxismo não pode deixar de aparecer como a mais avançada for-ma da metacrítica, na medida em que o homem produtor toma olugar do sujeito transcendental e do espírito hegeliano, e comouma etapa na história do esquecimento da reflexão e no avançodos positivismos e dos objetivismos. A apologia do homem pro-dutor leva-nos a hipostasiar uma categoria da ação em detrimentodas outras, a ação instrumental.

Para compreendermos essa crítica, que pretende ser interna aomarxismo, precisamos introduzir o conceito de interesse. Seguireiaqui o ensaio de 1965, inserido como apêndice a Conhecimento einteresses, antes de analisar essa obra.

O conceito de interesse é oposto a toda pretensão do sujeitoteórico de situar-se além da esfera do desejo; pretensão que Haber-mas vê agindo em Platão, Kant, Hegel e Husserl. A tarefa de umafilosofia crítica consiste justamente em desmascarar os interessessubjacentes ao empreendimento de conhecimento. Tal conceito,por mais diferente que seja do conceito de preconceito e de tradi-ção em Gadamer, possui certa familiaridade que deverá ser tirada alimpo mais adiante. Para começar, digamos que ele nos permiteintroduzir, uma primeira vez, o conceito de ideologia, no sentidode um conhecimento pretensamente desinteressado, servindo paradissimular um interesse sob a forma de uma racionalização, numsentido bastante próximo ao de Freud.

É importante, para avaliarmos a crítica de Habermas a Marx,compreendermos que há interesses ou, mais exatamente.um plura-lismo das esferas de interesse. Habermas distingue três interesses debase, cada um regulando uma esfera de Forschung, de enquête e,por conseguinte, um grupo de ciências.

Em primeiro lugar, há o interesse técnico ou instrumental,regulando as "ciências empírico-analíticas". Ele as regula, no sen-tido em que a significação dos enunciados possíveis de caráterempírico reside em sua explorabilidade técnica: os fatos que de-pendem das ciências empíricas são constituídos por uma organi-zação a priori de nossa experiência no sistema behaviorista da ação

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instrumental. A tese, próxima do pragmatismo de Dewey e dePeirce, será decisiva para compreendermos o jogo daquilo queHabermas, depois de Marcuse, considera como a ideologia moder-na, a saber, a ciência e a técnica em si mesmas. A mais próximapossibilidade da ideologia deve-se a essa correlação entre o conhe-cimento empírico e o interesse técnico, que Habermas define maisexatamente como "interesse cognitivo no controle técnico aplicadoa processos objetivados".

Mas há uma segunda esfera de interesse, que não é mais téc-nico, porém prático, no sentido kantiano do termo. Em outrosescritos, Habermas opõe ação comunicativa a ação instrumental.Trata-se da mesma coisa: a esfera prática é a esfera da comuni-cação inter-humana, Ele estabelece uma correspondência entre estae o domínio das "ciências histórico-hermenêuticas". A significaçãodas proposições produzidas nesse domínio não procede da previsãopossível e da explorabilidade técnica, mas da compreensão do sen-tido. Essa compreensão é feita através do canal da interpretaçãodas mensagens trocadas na linguagem ordinária, mediante a inter-pretação dos textos transmitidos pela tradição, enfim, graças àinterpretação das normas que institucionalizam os papéis sociais.

Evidentemente, é aqui que nos encontramos mais próximos deGadamer e mais distantes de Marx. Mais próximos de Gadamer,porque, nesse nível da ação comunicativa, a compreensão está sub-metida às condições da pré-compreensão pelo intérprete, e essa pré-compreensão é feita sobre o fundo das significações tradicionaisincorporadas à apreensão de todo fenômeno novo. Nem mesmo aênfase dada por Habermas às ciências hermenêuticas é, fundamental-mente, estranha a Gadamer, na medida em que este vinculava ainterpretação do outrora e do distante à "aplicação" (Anwendung)aqui, hoje. Mais próximos de Gadamer, também estamos mais distan-tes de Marx. Com efeito, é da distinção entre esses dois níveis deinteresse — interesse tecnológico e interesse prático —, entre essesdois níveis de ciência — ciência empírico-analítica e ciência histórico-hermenêutica — que procede a crítica interna do marxismo (retomo,aqui, Conhecimento e interesses).

A crítica pretende ser interna, no sentido em que Habermasdiscerne, no próprio Marx, o esboço de sua própria distinção entredois tipos de interesse, de ação e de ciência. Ele a vê na famosa tdistinção entre "forças produtivas" e "relações de produção", essas

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últimas designando as formas institucionais nas quais se exerce aatividade produtora. O marxismo repousa, com efeito, sobre a dis-cordância entre força e forma. A atividade de produção só deveriaengendrar uma única humanidade autoprodutora, uma única "es-sência genérica" do homem. É das relações de produção que pro-cede a clivagem do sujeito produtor em classes antagônicas.

Habermas vê neste ponto o esboço de sua própria distinção,no sentido em que os fenômenos de dominação e de violência, adissimulação dessas relações de força em ideologias e o empreen-dimento político de libertação transferem-se para a esfera dasrelações de produção, e nãp para a das forças de produção. Por-tanto, precisamos tomar consciência da distinção das duas esferasda ação instrumental e da ação comunicativa, para darmo-nosconta dos próprios fenômenos analisados por Marx: antagonismo,dominação, dissimulação, libertação. Mas é justamente isso que omarxismo não pode fazer, na compreensão que ele propõe de seupróprio trabalho de pensamento. Ao situar forças e relações sob omesmo conceito de produção, ele se impede de desdobrar realmen-te os interesses e, por conseguinte, também os níveis de ação e asesferas de ciência. É nesse particular que ele pertence explicita-mente à história do positivismo, à história do esquecimento dareflexão, mesmo que pertença implicitamente à história da tomadade consciência das reificações que afetam a comunicação.

2. Mas não falamos ainda do tqrceiro tipo de interesse, queHabermas chama de interesse pela emancipação. É a ele que se ligaum terceiro tipo de ciência: as ciências sociais críticas.

Atingimos, aqui, o mais importante ponto de discordância emrelação a Gadamer. Enquanto este toma por referência inicial as"ciências do espírito", Habermas invoca as "ciências sociais crí-ticas". Essa escolha inicial é repleta de conseqüências. Porque as"ciências do espírito" estão próximas daquilo que Gadamer chamade humaniora, as humanidades, que são essencialmente ciências dacultura, da retomada das heranças culturais no presente histórico;são, portanto, por natureza, ciências da tradição, sem dúvida datradição reinterpretada, reinventada por sua implicação aqui eagora, mas da tradição continuada. É a essas ciências que a herme-nêutica de Gadamer liga, inicialmente, seu destino. Podem com-portar um momento crítico, mas, por natureza, tendem a lutar

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contra o distanciamento alienante da consciência estética, histórica»e de linguagem. Com isso, elas nos impedem de situar a instânciacrítica acima do reconhecimento da autoridade, da tradição, mes-mo reinterpretada. A instância crítica só pode desenvolver-se comoum momento subordinado à consciência de finitude e de depen-dência no que concerne às figuras da pré-compreensão que sempreprecede e engloba a instância crítica.

Ocorre algo inteiramente diferente nas ciências sociais críticas.Elas são críticas por constituição. É o que as distingue, não somen-te das ciências empírico-analíticas do funcionamento social, masdas ciências histórico-hermenêuticas descritas acima e colocadassob o signo do interesse prático. As ciências sociais críticas se dãopor tarefa discernir, sob as regularidades observáveis das ciênciassociais empíricas, formas de relações de dependência "ideologica-mente fixas", reificações que só podem ser transformadas criti-camente. Portanto, é o interesse pela emancipação que regula oenfoque crítico. Habermas chama esse interesse também de auto-reflexão; ele fornece o quadro de referência para as proposiçõescríticas: a auto-reflexão, escreve no texto de 1965, liberta o sujeitoda dependência a poderes hipostasiados.

Como podemos notar, esse interesse é o mesmo que animava osfilósofos do passado. Trata-se do interesse pela autonomia (Selb-stàndigkeit), pela independência. Mas a ontologia o dissimulavanuma realidade já pronta, num ser que nos transporta. Esse interessesó é ativo na instância crítica que desmascara os interesses operandonas atividades de conhecimento, que mostra a dependência do sujei-to teórico às condições empíricas oriundas das coações institucionaise que orienta o reconhecimento dessas formas de coação em direçãoà emancipação.

A instância crítica se situa, assim, acima da consciência her-menêutica, pois se afirma como empreendimento de "dissolução"das coações oriundas, não da natureza, mas das instituições. Umabismo separa, assim, o projeto hermenêutico, que coloca a tradiçãoassumida acima do juízo, e o projeto crítico, que situa a reflexãoacima da coação institucionalizada.

3. Chegamos, pois, gradativamente, ao terceiro ponto de discor-dância, o que constitui o objeto mesmo de nosso debate. Eu oenuncio da seguinte forma: o conceito de ideologia ocupa, numa

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ciência social crítica, o lugar que ocupa o conceito de mal-enten-dido, de não-compreensão, numa hermenêutica das tradições. FoiSchleiermacher quem, antes de Gadamer, aliou a hermenêutica aoconceito de não-compreensão. Há hermenêutica onde houver não-compreensão. Mas há hermenêutica porque há a convicção e aconfiança de que a compreensão que precede e engloba a não-compreensão tem condições de reintegrar a não-compreensão nacompreensão, pelo movimento mesmo da questão e da resposta,baseado no modelo dialogai. A não-compreensão é — se assimpodemos dizer — homogênea à compreensão, do mesmo tipo queela. Por isso a compreensão não recorre a procedimentos explica-tivos, que são remetidos para o campo das pretensões abusivasdo "metodologismo".

O que ocorre com o conceito de ideologia é completamentediferente. O que constitui a diferença? Habermas recorre, aqui,constantemente ao paralelismo entre psicanálise e teoria das ideo-logias. Esse paralelismo repousa sobre os seguintes critérios:

Primeiro traço: na escola de Frankfurt e numa linha queainda podemos chamar de marxista, num sentido bastante geral,a distorção é constantemente vinculada à ação repressiva de umaautoridade, por conseguinte, à violência. A "censura", no sentidofreudiano, constitui aqui o conceito-chave, pois é um conceito deorigem política que aparece no campo das ciências sociais crí-ticas depois de ter passado pela psicanálise. Esse elo entre ideo-logia e violência é capital, porque introduz no campo da reflexãograndezas que, sem estarem ausentes da hermenêutica, não sãoenfatizadas por ela: o trabalho e o poder. Digamos, num sentidomarxista amplo, que é por ocasião do trabalho humano que seexercem fenômenos de dominação de uma classe sobre outra eque a ideologia exprime, do modo como veremos em breve, essesfenômenos de dominação. Na linguagem de Habermas, o fenô-meno de dominação produz-se na esfera da ação comunicativa; énela que a linguagem é distorcida em suas condições de exercício,no plano da competência comunicativa. Por isso uma hermenêuticaque se restringe à dimensão de linguagem (Sprãchlichkeif) encontraseu limite num fenômeno que só afeta a linguagem como talporque a relação entre as três grandezas — trabalho, poder elinguagem — fica alterada.

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Segundo traço: posto que as distorções da linguagem nãoprovêm do uso como tal da linguagem, mas de sua relação com otrabalho e o poder, tornam-se ignoradas pelos membros da comuni-dade. Esse desconhecimento é específico do fenômeno da ideolo-gia. Para fazer sua fenomenologia, precisamos recorrer a conceitosde tipo psicanalítico: a ilusão enquanto distinta do erro, a projeçãoenquanto constituição de uma falsa transcendência, a racionaliza-ção enquanto rearranjo ulterior das motivações, segundo as aparên-cias de urna justificação racional. Para dizer a mesma coisa naesfera das ciências sociais críticas, Habermas fala de "pseudocomu-nicação" ou de "compreensão sistematicamente distorcida", poroposição à simples não-compreensão.

Terceiro traço: se o desconhecimento é insuperável pela viadialogai direta, a dissolução das ideologias deve tomar o atalho deprocedimentos explicativos, e não mais simplesmente compreensi-vos. Tais procedimentos colocam em jogo um aparelho teórico quenão podemos derivar de nenhuma hermenêutica que apenas pro-longaria, no plano da arte, a interpretação espontânea do discursoordinário na conversação. Ainda aqui, a psicanálise fornece umbom modelo: esse exemplo é amplamente desenvolvido na terceiraparte de Conhecimento e interesses e no artigo intitulado Areivindicação de universalidade da hermenêutica*.

Habermas adota, aqui, a interpretação proposta por A. Lo-renzer da psicanálise como Spmchanalyse, segundo a qual a"compreensão" do sentido se faz por "reconstrução" de uma"cena primitiva", relacionada com duas outras "cenas": a "cena"de ordem "sintomática" e a "cena" artificial da situação de"transferência". Sem dúvida, a psicanálise permanece na esfera docompreender e de um compreender que culmina na tomada deconsciência do paciente. Neste sentido, Habermas a chama de uma"hermenêutica das profundezas" (Tiefenhermeneutik). Contudo,esse compreender do sentido exige o atalho de uma "reconstru-ção" dos processos de "dessimbolização" que a psicanálise percorreem sentido inverso, segundo as vias de uma "ressimbolização".Portanto, a psicanálise não é inteiramente exterior à hermenêutica,pois podemos ainda exprimi-la em termos de dessimbolização e de

1. Habermas, Hermeneutik una Ideologiekrítik, pp. 120s.

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ressimbolização. Ela constitui, antes, uma experiência limite, porcausa da força explicativa ligada à "reconstrução" da "cenaprimitiva". Em outras palavras, para "compreender" o quê dosintoma, devemos "explicar" seu porquê. É nessa fase explicativaque atua o aparelho teórico que estabelece as condições de possibi-lidade da explicação e da reconstrução: conceitos tópicos (as trêsinstâncias e os três papéis), conceitos econômicos (mecanismo dedefesa, recalques primário e secundário, cisão). No que diz res-peito, em especial, às três instâncias Ego-Id-Superego, Habermasafirma que elas se ligam à esfera da comunicação através do pro-cesso dialogai de elucidação pelo qual o doente é reconduzido àreflexão sobre ele mesmo. A metapsicologia, conclui Habermas,"só pode ser fundada como meta-hermenêutica"1.

Infelizmente, Habermas não nos diz nada sobre o modo noqual seria preciso transpor o esquema ao mesmo tempo explicativoe meta-hermenêutico da psicanálise para o plano das ideologias.Penso que deveríamos dizer que as distorções da comunicação,ligadas ao fenômeno social de dominação e de violência, tambémconstituem fenômenos de dessimbolização. Por vezes Habermasfala — e de maneira bastante.feliz — de "excomunhão", pensandona distinção wittgensteiniana entre linguagem pública e linguagemprivada. Seria preciso também mostrar em que sentido a compre-ensão desses fenômenos exige uma reconstrução onde poderiam serencontrados certos traços da compreensão "cênica", até mesmo, datríplice "cena" atual, original e transferenciai. Em todos os casos,seria preciso mostrar como a compreensão exige uma etapa deexplicação tal, que o sentido só será compreendido se a origem donão-sentido for explicada. Enfim, seria preciso mostrar como essaexplicação põe em jogo um aparelho teórico comparável à tópicaou à econômica freudianas, cujos conceitos diretrizes não podemser tomados de empréstimo nem à experiência dialogai, no con-texto da linguagem ordinária, nem a uma exegese dos textos enxer-tada na compreensão direta do discurso.

Estes são os traços principais do conceito de ideologia; impac-to da violência no discurso, dissimulação cuja chave escapa à cons-ciência, necessidade do desvio para a explicação das causas. Median-te esses três traços, o fenômeno ideológico constitui uma expe-

1. Habermas, op. cit., p. 149.

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riêncía limite para a hermenêutica. Enquanto que a hermenêuticaleva apenas a desenvolver uma competência natural, temos neces-sidade de uma meta-hermenêutica para fazer a teoria das defor-mações da competência comunicativa. A crítica é essa teoria dacompetência comunicativa que engloba a arte de compreender, astécnicas para vencer a não-comprensão e a ciência explicativa dasdistorções.

4. Não gostaria de concluir essa apresentação demasiadosumária do pensamento de.Habermas, sem dizer algumas palavrassobre a divergência — talvez a mais profunda — que o separa deGadamer.

Para Habermas, o principal defeito da hermenêutica de Ga-damer consiste em tê-la ontologizado. Com isso, ele entende suainsistência sobre o consenso, sobre o acordo, como se o consensoque nos precede fosse algo de constitutivo, de dado no ser. Gada-mer não diz que a compreensão é mais Sein que Bewusstsein?Não fala, com o poeta, do "diálogo que somos nós"? Não con-sidera a "dimensão de linguagem" como uma constituição ontoló-gjca, como um meio em que nos movemos? Mais fundamental-mente ainda, não enraíza a hermenêutica da compreensão numaontologia da finitude? Habermas só pode ter desconfiança no queconcerne àquilo.que lhe parece ser a hipóstase ontológica de umaexperiência rara, a saber, a experiência de ser precedido, em nossosmais felizes diálogos, pelo entendimento que carrega. Todavia, nãopodemos canonizar essa experiência e fazer dela o modelo, o pa-radigma, da ação comunicativa. O que nos impede de procederassim é justamente o fenômeno ideológico. Se a ideologia fosseapenas um obstáculo interno à compreensão, uma não-compre-ensão, podendo ser reintegrada apenas pelo exercício da questão eda resposta, então poderíamos dizer que "onde há não-com-preensão, há consenso prévio".

Compete a uma crítica das ideologias pensar em termos deantecipação aquilo que a hermenêutica das tradições pensa em ter-mos de tradição assumida. Em outros termos, a crítica das ideolo-gias implica que coloquemos como idéia reguladora, adiante denós, o que a hermenêutica das tradições concebe como existindona origem da compreensão. Aqui entra em jogo o que chamamosde o terceiro interesse que move o conhecimento: o interesse pela

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emancipação. É esse interesse, como vimos, que anima as ciênciassociais críticas. Portanto, também é ele que fornece um quadro dereferência a todas as significações postas em jogo na psicanálise ena crítica das ideologias. A auto-reflexão é o conceito correlato dointeresse pela emancipação. É por isso que não podemos fundar aauto-reflexão sobre um consenso prévio. Ao invés disso, o queocorre é justamente a comunicação interrompida. Não podemosfalar, com Gadamer, de entendimento que leve à compreensão,sem presumirmos uma convergência das tradições que não existesem hipostasiarmos o passado, que também é 'o lugar da falsaconsciência, enfim, sem ontologizarmos a língua que é apenas uma"competência comunicativa" desde sempre distorcida.

Por conseguinte, precisamos situar toda a crítica das ideo-logias sob o signo de uma idéia reguladora: a de uma comunicaçãosem limite e sem coação. A marca kantiana é, aqui, evidente. Aidéia reguladora é mais dever-ser do que ser, mais antecipação doque reminiscência. É essa idéia que confere sentido a toda críticapsicanalítica ou sociológica, porque só há dessimbolização para umprojeto de ressimbolização, e só há tal projeto na perspectiva revo-lucionária do fim e da violência. Onde a hermenêutica das tradi-ções empenhava-se em detectar a essência da autoridade, para vin-culá-la ao reconhecimento de uma superioridade, o interesse pelaemancipação conduz à nona das Teses sobre Feuerbach: "Os filóso-fos interpretaram o mundo; trata-se, agora, de transformá-lo". Umaescatologia da não-violência constitui, assim, o horizonte filosóficoúltimo de uma crítica das ideologias. Esse escatologismo, próximodo de Ernst Bloch, toma o lugar que ocupava a ontologia doentendimento de linguagem numa hermenêutica das tradições.

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2. POR UMA HERMENÊUTICA CRITICA

A) Reflexão crítica sobre a hermenêutica

Gostaria agora de elaborar minha reflexão pessoal sobre aspressuposições de ambas as concepções e abordar os problemas colo-cados desde minha Introdução. Esses problemas, afirmávamos, dizemrespeito à significação do gesto filosófico mais fundamental. O gestoda hermenêutica é um gesto humilde de reconhecimento das con-dições históricas a que está submetida toda compreensão humanasob o regime da finitude. O da crítica das ideologias é um gestoaltivo de desafio, dirigido contra as distorções da comunicaçãohumana. Pelo primeiro, insiro-me no devir histórico ao qual estouconsciente de pertencer; pelo segundo, oponho ao estado atual dacomunicação humana falsificada a idéia de uma libertação da pala-vra, de uma libertação essencialmente política, guiada pela idéialimite da comunicaçãç sem limite e sem entrave.

Meu intuito não é o de fundar a hermenêutica das tradições ea crítica das ideologias num supersistema que as englobaria. Comodis.se desde o início, cada uma fala de um lugar diferente. E é issoque realmente ocorre. Todavia, pode ser exigido que cada uma delasreconheça a outra, não como uma posição estranha e pura-mente adversa, mas como uma formulação, a seu modo, de urnareivindicação legítima.

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É nesse espírito que retomo as duas questões apresentadas naIntrodução.

A que condição uma filosofia hermenêutica pode, em si mes-ma, dar conta da exigência de uma crítica das ideologias? A preçode que reformulação ou de refundição de seu programa?

A que condição uma crítica das ideologias é possível? Podeser, em última análise, desprovida de preconceitos hermenêuticos?

A primeira questão coloca em jogo a capacidade da herme-nêutica de justificar uma instância crítica em geral. Como podehaver crítica em hermenêutica?

Em primeiro lugar, observo que reconhecer a instância críticaé uma veleidade da hermenêutica incessantemente reiterada, massem cessar abortada. Com efeito, a partir de Heidegger, a herme-nêutica está completamente engajada no movimento de volta aofundamento que, de uma questão epistemológica concernente ascondições de possibilidade das "ciências do espírito", leva à estru-tura ontológica do compreender. Podemos então nos perguntar seé possível o trajeto de retorno. No entanto, é sobre esse trajeto deretorno que poderia impor-se e revelar-se a afirmação de que asquestões de crítica exegético-histórica são questões "derivadas", deque o círculo hermenêutico, no sentido dos exegetas, está "fun-dado" sobre a estrutura de antecipação da compreensão no planoontológico fundamental.

Todavia, a hermenêutica ontológica parece incapaz, por razõesestruturais, de revelar essa problemática de retorno. No próprioHeidegger, a questão é abandonada logo que é colocada. Em O sere o tempo lemos o seguinte: "O círculo característico da compre-ensão ( . . . ) encena uma autêntica possibilidade do mais originalconhecer; só a apreendemos corretamente se a explicitação (Ausle-gung= interpretação) se der por tarefa primeira, permanente eúltima, impedir que lhe sejam impostas suas aquisições e visõesprévias, bem como suas antecipações por quaisquer intuições (Ein-fàllé) e noções populares, para assegurar seu tema científico me-diante o desenvolvimento dessas antecipações, segundo as coisasmesmas" (p. 153). Por conseguinte, assim é colocada, no princípio,a distinção entre a antecipação segundo as coisas mesmas e umaantecipação oriunda das idéias arrevesadas e das noções populares(Volksbegriffé). Esses dois termos possuem um parentesco visívelcom os preconceitos por "precipitação" e por "prevenção". Mas

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como podemos ir adiante, de vez que declaramos, logo depois, Q,"os pressupostos ontológicos de todo conhecimento histótictranscendem, essencialmente, a idéia de rigor própria às ciências e^tas", e que omitimos a questão do rigor próprio às ciências histo_ricas? A preocupação de enraizar o círculo mais fundo que to<ja

epistemologia impede-nos de repetir a questão epistemológíca

depois da ontologia.Significaria isto que não há em Heidegger nenhum desenvol-

vimento que corresponda ao momento crítico de uma epistemolo-gia? Sim, mas esse desenvolvimento se aplica alhures. Ao passar daAnalítica do Dasein, à qual ainda pertence a teoria do compre-ender e do interpretar, à teoria da temporalidade e da totalidade, àqual pertence a segunda meditação sobre o compreender (§ 63),parece que todo o esforço crítico é utilizado no trabalho de des-construção da metafísica. E compreendemos por que: desde que ahermenêutica se torna hermenêutica do ser — do sentido do ser —,a estrutura de antecipação própria à questão do sentido do ser éfornecida pela história da metafísica, que ocupa justamente o lugardo preconceito. A partir de então, a hermenêutica do ser revelatodos os seus recursos críticos em seu debate com a substânciagrega e medieval, com o cogito cartesiano e kantiano. O confrontocom a tradição metafísica do Ocidente ocupa o lugar de umacrítica dos preconceitos. Em outras palavras, numa perspectivaheideggeriana, a única crítica interna que podemos conceber comoparte integrante do empreendimento de desocultamento é a des-construção da metafísica. E uma crítica propriamente epistemoló-gica só pode ser reassumida indiretamente, na medida em que po-dem ser discernidos resíduos metafísicos operando até mesmo nasciências pretensamente positivas ou empíricas. Todavia, essa críticados preconceitos de origem metafísica não pode ocupar o lugar deum verdadeiro confronto com as ciências humanas, com sua meto-dologia e com suas pressuposições epistemológicas. Em outros ter-mos, é a preocupação lancinante com a radicalidade que nos im-pede de fazer o trajeto de retorno da hermenêutica geral às her-menêuticas regionais: filologia, história, psicologia das profundezas,etc.

Quanto a Gadamer, é certo que tenha compreendido perfeita-mente a urgência dessa "dialética descendente", do fundamentopara o derivado. Por isso, declara: "Poderemos nos interrogar sobre

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as conseqüências que acarreta, para a hermenêutica das ciências doespírito, o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estruturacircular do compreender da temporalidade do Dasein (Véríté etMéthode, p- 250). São essas conseqüências, na realidade, que nosinteressam. Porque é no movimento de derivação que a partilhaentre pré-compreensão e preconceito constitui problema, e que no-vamente surge a questão crítica, no cerne mesmo da compreensão.Assim, ao falar dos textos de nossa cultura, Gadamer não cessa deinsistir nesse fato: esses textos são signiílcantes, por eles mesmos ehá uma "coisa do texto" que se dirige a nós. Mas como deixarmosfalar a "coisa do texto" sem enfrentarmos a questão crítica damistura da pré-compreensão com o preconceito?

Ora, a meu ver, a hermenêutica de Gadamer não está emcondições de engajar-se a fundo nesse caminho, não somente por-que, como em Heidegger, todo o esforço do pensamento está in-vestido na radicalização do problema do fundamento, mas porquea experiência hermenêutica, em si mesma, evita lançar-se nos ca-minhos do reconhecimento de toda instância crítica. A experiênciafundamental que determina o lugar de onde a hermenêutica fazsua reivindicação de universalidade contém a refutação do "dis-tanciamento alienante" que comanda a atitude objetivante das ci-ências humanas. Por conseguinte, toda a obra toma um caráterdicotômico que se revela até mesmo no título: Verdade e método.A alternativa prima sobre a conjunção. É essa situação inicial dealternativa, de dicotomía que, a meu ver, impede-nos de reconhe-cer realmente a instância crítica e, por conseguinte, de fazer justiçaa uma crítica das ideologias, expressão moderna e pós-marxista dainstância crítica.

Minha própria interrogação procede dessa constatação. O queme pergunto é se não conviria deslocar o lugar inicial da questãohermenêutica, reformular a questão de base da hermenêutica, detal forma que certa dialética entre a experiência de pertença e odistanciamento alienante torne-se a própria mola, a chave da vidainterna da hermenêutica.

A idéia de tal deslocamento do lugar inicial da questão her-menêutica me é sugerida pela história mesma do problema herme-nêutico. Ao longo dessa história, a ênfase sempre foi dada à exe-gese, à filologia, vale dizer, ao tipo de relação com a tradição quese funda sobre a mediação de textos, de documentos, de monu-

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mentos cujo estatuto é semelhante ao dos textos. Schleiermacher gexegeta do Novo Testamento e tradutor de Ratão. Quanto a Dithey, vê a especificidade da interpretação (Auslegung), com refe,réncia à compreensão direta de outrem (Verstehung), no fenômenoda fixação pela escrita e, mais geralmente, da inscrição.

Ao retornarmos, assim, a uma problemática do texto, da exe-gese e da filologia, parece que restringimos a visada, o alcance e oângulo de visão da hermenêutica. Todavia, como toda reivindicaçãode universalidade é emitida de algum lugar, podemos esperar que arestauração do elo da hermenêutica com a exegese faça aparecer,por sua vez, traços de universalidade que, sem contradizer real-mente a hermenêutica de Gadamer, retificam-na num sentido deci-sivo para a solução do debate com a crítica das ideologias.

Gostaria de esboçar quatro temas que constituem uma espéciede complemento crítico à hermenêutica das tradições.

1. O distanciamento, no qual essa hermenêutica tende a veruma espécie de decadência ontológica, aparece como um compo-nente positivo do ser para o texto. Ele pertence propriamente àinterpretação, não como seu contrário, mas como sua condição.Esse movimento de distanciamento está implicado na fixação, pelaescrita, e em todos os fenômenos comparáveis, na ordem da trans-missão do discurso. Com efeito, a escrita de forma alguma se reduzà fixação material do discurso: esta é a condição de um fenômenomuito mais fundamental, o da autonomia do texto. Autonomiatríplice: com referência à intenção do autor, à situação cultural e atodos os condicionamentos sociológicos da produção do texto; e,enfim, ao destinatário primitivo. O que significa o texto não coin-cide mais com aquilo que o autor queria dizer. Significação verbale significação mental possuem destinos diferentes. Essa primeiramodalidade de autonomia já implica a possibilidade de a "coisa dotexto" escapar ao horizonte intencional limitado de seu autor, e deo mundo do texto fazer desmoronar o mundo de seu autor.

Todavia, o que é verdadeiro das condições psicológicas, tam-bém o é das condições sociológicas, embora o que possa liquidar oautor esteja menos pronto a fazer a mesma operação na ordemsociológica. No entanto, o que é próprio da obra de arte, da obraliterária, da obra pura e simplesmente, consiste em transcendersuas próprias condições psicossociológicas de produção e em

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abrir-se, assim, a uma série ilimitada de leituras, que também seencontram situadas em contextos sócio-culturais sempre diferentes.Em suma, compete à obra se descontextualizar, tanto do ponto devista sociológico quanto do psicológico, para poder recontextua-lizar-se de outra forma: eis o que constitui o ato de leitura. Oresultado é que a mediação do texto não poderá ser tratada comouma extensão da situação dialógica. De fato, no diálogo, o vis-à-visdo discurso é dado de antemão pelo próprio colóquio. Com aescrita, transcende-se o destinatário original. Para além deste, aobra cria para si uma audiência, virtualmente estendida a todoaquele que sabe ler.

Podemos ver nessa liberação a mais fundamental condição parao reconhecimento de uma instância crítica no interior da interpre-tação. Porque, aqui, o distanciamento pertence à própria mediação.

Essas observações, num certo sentido, não fazem senão pro-longar o que o próprio Gadamer diz, de um lado, da "distânciatemporal" (vimos como ela é um componente da "consciência ex-posta à eficácia da história") e de outro, da Schriftlichkeit, queacrescenta novos traços à Sprachlichkeit. Contudo, ao mesmo tem-po que essa análise prolonga a de Gadamer, desloca sua ênfase.Porque o distanciamento revelado pela escrita já está presente nopróprio discurso que mantém, em germe, o distanciamento do ditotio dizer, segundo uma análise famosa de Hegel no início da Feno-menologia do espírito: o dizer se desvanece, mas o dito permanece.A este respeito, a escrita não apresenta nenhuma revolução radicalna constituição do discurso, mas realiza seu desejo mais profundo.

2. Á hermenêutica deve satisfazer a uma segunda condição, seé que pretende explicar uma instância crítica a partir de suas pró-prias premissas. Deve superará dicotomia danosa, herdada de Dil-they, entre "explicar" e "compreender". Esta dicotomia, como sesabe, procede da convicção segundo a qual toda atitude explicativaé tomada de empréstimo à metodologia das ciências da natureza eindevidamente estendida às ciências do espírito. O aparecimento,no campo da teoria do texto, de modelos semiológicos, conven-ce-nos de que nem toda explicação é naturalista ou causai. Osmodelos semiológicos, aplicados especialmente à teoria do relato,são tomados de empréstimo ao domínio da'linguagem, por exten-são das unidades menores que a frase às unidades maiores que a

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frase (poemas, relatos, etc.). A categoria sob a qual devemos situaro discurso não é mais, aqui, a da escrita, porém, a da obra, valedizer, uma categoria que depende da práxis, do trabalho. Competeao discurso poder ser produzido à maneira de uma obra apresen-tando estrutura e forma. Mais ainda que a escrita, a produção dodiscurso como obra opera uma objetivação graças à qual ele se põea ler em condições existenciais sempre novas.

Todavia, diferentemente do discurso simples da conversação,que entra no movimento espontâneo da questão e da resposta, odiscurso enquanto obra é "tomado" em estruturas exigindo umadescrição e uma explicação que mediatizam o "compreender".Enconíramo-hos, aqui, numa situação próxima à que foi descritapor Habermas: a reconstrução é o caminho da compreensão. Con-tudo, essa situação não é própria à psicanálise e a tudo o queHabermas designa pelo termo de "hermenêutica das profundezas".Esta condição é a da obra em geral.

Portanto, se há uma hermenêutica — e estou convencido dofato, contrariamente ao estnituralismo, que gostaria de limitar-se àetapa explicativa -, não se constitui no sentido oposto ao daexplicação estrutural, mas através de sua mediação. Com efeito, atarefa do compreender é d de elevar ao nível do discurso aquiloque, inicialmente, se dá como estrutura. Contudo, devemos ir tãolonge quanto possível, no caminho da objetivação, até o ponto emque a análise estrutural revela a semântica profunda de um texto,antes de pretender "compreender" o texto a partir da "coisa" quedele nos fala. A coisa do texto não é aquilo que uma leituraingênua do texto revela, mas aquilo que o agenciamento formal dotexto mediatiza. Se é assim, verdade e método não constituemuma alternativa, porém, um processo dialético.

3. De uma terceira maneira, a hermenêutica dos textos sevolta para a crítica das ideologias. O momento propriamente her-menêutico, parece-me, é aquele em que a interrogação, transgre-dindo o fechamento do texto, volta-se para aquilo que o próprioGadamer chama de "a coisa do texto", a saber, o tipo de mundoaberto por ele. Esse momento pode ser chamado de o momento dareferência, em memória da distinção fregeana entre sentido e refe-rência. O sentido da obra é sua organização interna, sua referênciaé o"modo de se manifestar diante do texto.

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Devo observar, de passagem, que aqui se situa a ruptura maisdecisiva com a hermenêutica romântica. Não há intenção oculta aser procurada detrás do texto, mas um mundo a ser manifestadodiante dele. Ora, esse poder do texto de abrir uma dimensão derealidade comporta, em seu princípio mesmo, um recurso contratoda realidade dada e, dessa forma, a possibilidade de uma críticado real. É no discurso poético que esse poder subversivo se revelade modo mais nítido. Toda a estratégia desse discurso se mantémno equilíbrio de dois momentos: suspensão da referência da lin-guagem ordinária e abertura de uma referência de segundo grau,que é outro nome para aquilo que designamos anteriormente pormundo da obra, mundo aberto pela obra. Com a poesia, a ficção éo caminho da redescrição ou, para falar com Aristóteles na Poé-tica, a criação de um mythos, de uma "fábula", é o caminho damimesis, da imitação criadora.

Ainda aqui, desenvolvemos um tema esboçado pelo próprioGadamer, especialmente em suas magníficas páginas sobre o jogo.Contudo, levando até o fim essa meditação sobre a relação entreficção e redescrição, introduzimos um tema crítico que a herme-nêutica das tradições tende a proscrever de suas fronteiras. Noentanto, esse tema estava potencialmente contido na análise hei-deggeriana do compreender. Estamos lembrados como Heideggerliga ao compreender a noção de "projeção de meus possíveis maispróprios". Isto significa que o modo de ser do mundo aberto pelo'texto é o modo do possível, ou melhor, do poder-ser. Reside aí aforça subversiva do imaginário. O paradoxo da referência poéticaconsiste justamente no seguinte:, a realidade só é redescrita na me-dida mesma em que o discurso se eleva ao nível da ficção.

Por conseguinte, compete a uma hermenêutica do poder-servoltar-se para uma crítica das ideologias, de que ela constitui amais fundamental das possibilidades. Ao mesmo tempo, o distan-ciamento se inscreve no cerne da referência: é do real quotidianoque o discurso poético se distancia, visando ao ser como poder-ser.

4. De uma última maneira, a hermenêutica dos textos designao lugar vazio de uma crítica das ideologias. Esse último ponto dizrespeito ao estatuto da subjetividade na interpretação. Se, comefeito, a primeira preocupação da hermenêutica não é a de desco-brir uma intenção oculta por detrás do texto, mas a de manifestar

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um mundo diante dele, á compreensão de si autêntica é aquelaque, segundo Heidegger e Gadamer, deixa-se de instruir pela "coisado texto". A relação do texto com o mundo toma o lugar darelação do autor com a subjetividade. Ao mesmo tempo, desloca-setambém o problema da subjetividade do leitor. Compreender não éprojetar-se no texto, mas expor-se ao texto: é receber um "si"mais vasto da apropriação das proposições de mundo revelada pelainterpretação. Em suma, é a coisa, do texto que dá ao leitor suadimensão de subjetividade. A compreensão deixa, -então, de seruma constituição de que o sujeito seria a chave. Se levarmos até ofim essa sugestão, deveremos dizer que a subjetividade do leitornão é menos colocada em suspenso, irrealizada, potencializada, queo mundo revelado pelo texto. Em outras palavras, sé a ficção éuma dimensão fundamental da referência do texto, não é menosuma dimensão fundamental da subjetividade do leitor. Ao ler, eume irrealizo. A leitura me introduz nas variações imaginativas doego. A metamorfose do mundo segundo o jogo também é a meta-morfose lúdica do ego.

Vejo, nessa idéia de 'Variação do ego", a possibilidade maisfundamental para uma crítica das ilusões do sujeito. Esse elo podiaficar dissimulado, ou não desenvolvido, numa hermenêutica dastradições, correndo o risco de introduzir prematuramente um con-ceito de apropriação (Aneignung) cuja ponta se dirige contra odistanciamento alienante. Todavia, se o distanciamento de si mes-mo não é um modo errado a se combater, mas a condição depossibilidade da compreensão de si mesmo diante do texto, a apro-priação é o complemento dialético do distanciamento. Assim, acrítica das ideologias pode ser assumida num conceito de compre-ensão de si que implica organicamente uma crítica das ilusões dosujeito. O distanciamento de si mesmo exige que a apropriação dasproposições de mundo, fornecidas pelo texto, passe pela desapro-priação de si. A crítica da consciência falsa pode tornar-se, assim,parte integrante da hermenêutica e conferir à crítica das ideologiasa dimensão meta-hermenêutica que Habermas lhe assinala.

B. Reflexão hermenêutica sobre a crítica

Gostaria agora de elaborar, sobre a crítica das ideologias, umareflexão simétrica à precedente^ que visaria a pôr à prova a reivin-

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dicação de universalidade da crítica das ideologias. Não espero queessa reflexão conduza a crítica das ideologias ao aprísco da herme-nêutica, mas que comprove o intuito de Gadamer, segundo o qualas duas "universalidades" — a da hermenêutica e a da crítica dasideologias — interpenetram-se. Também poderíamos apresentar aquestão nos termos de Habermas: em que condições a crítica podese apresentar como unja meta-hermenêuíica? »

Proponho que sigamos a ordem das teses que me serviu paraapresentar esquematicamente o pensamento de Habermas.

1. Começarei pela teoria dos interesses que subentende a crí-tica das ideologias, a da fenomenologia transcendental e a do positi-vismo. Podemos nos perguntar o que autoriza a seqüência das te-ses: que toda Forschung é regulada por um interesse que confereàs significações de seu campo um quadro prévio de referências; quetais interesses são três (e não um, dois ou quatro): interesse téc-nico, interesse prático e interesse emancipatório; que esses inte-resses se enraízam ha história natural da espécie humana, emboraenfatizem a emergência do homem acima da natureza e assumamforma no meio do trabalho, do poder e da linguagem; que, nareflexão sobre si, conhecimento e interesse se identificam; que aunidade do conhecimento e do interesse se comprova numa dialé-tica que discerne os traços históricos da repressão do diálogo ereconsírói o que foi reprimido.

Seriam essas "teses" susceptíveis de uma descrição empírica?Não, porque, do contrário, cairíamos sob o jugo das ciências em-pírico-analíticas, e vimos que elas dependem de um interesse, oprimeiro denominado. Seriam essas teses uma teoria, no sentidodado a esse termo, por exemplo, em psicanálise, vale dizer, nosentido de um feixe de hipóteses explicativas permitindo a re-construção da cena primitiva? Não, porque, se assim o fossem,elas se tomariam regionais como toda teoria, e seriam ainda justi-ficadas por um interesse, o interesse pela emancipação, e a justifi-cação se tornaria circular.

Por conseguinte, será que não devemos reconhecer que a des-coberta dos interesses na raiz do conhecimento, que a hierarqui-zação dos interesses e sua relação com a trilogia trabalho-poder-linguagem depende de uma antropologia filosófica semelhante àAnalítica do Dasein de Heidegger, especialmente à sua hermenêu-

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tica da "preocupação"? Se é assim, tais interesses não são nemobserváveis, nem entidades teóricas como o ego, o superego e o idem Freud, mas "existenciais". Sua análise depende de uma her-menêutica, na medida em que são ao mesmo tempo "o mais pró-ximo" e "o mais dissimulado", e em que precisamos desocultá-lospara conhecê-los.

Se quisermos, podemos muito bem chamar essa .analítica dosinteresses de meta-hermenêutica, se é que admitimos que a herme-nêutica consiste principalmente numa hermenêutica do discurso,até mesmo num idealismo da vida da linguagem. Mas vimos quenão é nada disso, que a hermenêutica da pré-compreensão é, fun-damentalmente, hermenêutica da finitude. É por isso que de bomgrado aceito dizer que a crítica das ideologias expressa sua reivin-dicação a partir de um lugar distinto da hermenêutica, a saber,daquele onde se conjuga a seqüência trabalho-poder-linguagem.Contudo, as duas reivindicações se cruzam num lugar comum: ahermenêutica da finitude que assegura, a príori, a correlação entreo conceito de preconceito e o de ideologia.

2. Gostaria agora de considerar novamente o pacto que Ha-bermas instaura entre ciência social crítica e interesse pela eman-cipação. Opusemos vigorosamente esse privilégio das ciências so-ciais críticas ao das ciências histórico-hermenêuticas que se orientamais para o reconhecimento da autoridade das tradições que para aação revolucionária voltada contra a opressão.

A questão que a hermenêutica coloca à crítica das ideologias éa seguinte: podemos conferir ao interesse pela emancipação, quemotiva esse terceiro ciclo de ciências, um estatuto tão distintoquanto podemos supor com referência ao interesse que anima asciências,, histórico-hermenêuticas? Essa distinção é afirmada bas-tante 'dogmaticamente, como que para cavar o fosso entre interessepela emancipação e interesse ético. Mas as análises concretas deHabermas desmentem esse intuito dogmático. É extraordináriocomo as distorções que a psicanálise descreve e explica são inter-pretadas, no nível meta-hermenêutico em que Habermas se situa,como distorções da competência comunicativa. Tudo indica tam-bém ser nesse nível que operam as distorções dependentes da crí-tica das ideologias. Estamos lembrados como Habermas interpretao marxismo baseando-se numa dialética entre ação instrumental e

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ação comunicativa. É no cerne da ação comunicativa que a institu-cionalização das relações humanas sofre a reificação que a tornamal conhecida dos protagonistas da comunicação. Por conseguinte,todas as distorções, as que a psicanálise descobre e as que,a críticadas ideologias denuncia, são distorções da capacidade comunicativados homens.

Será, então, que podemos tratar o interesse pela emancipaçãocomo um interesse distinto? Parece que não se, além disso, levar-mos em conta que, tomado positivamente como um motivo pró-prio, e não mais negativamente a partir das reificações que com-bate, esse interesse não tem outro conteúdo senão o ideal dacomunicação sem entrave e sem limite. Com efeito, o interessepela emancipação seria abstrato e exangue se não se inscrevesse noplano mesmo em que se exercem as ciências histórico-hermenêu-ticas, vale dizer, na ação comunicativa. Mas, se é assim, será queuma crítica das distorções pode separar-se da experiência comu-nicativa, justamente onde ela começou, onde é real e exemplar? Atarefa da hermenêutica das tradições é a de lembrar à crítica dasideologias que é sobre o fundo da reinterpretação criadora dasheranças culturais que o homem pode projetar sua emancipação eantecipar uma comunicação sem entrave e sem limite. Se não pos-suíssemos nenhuma experiência da comunicação, por mais reduzidae mutilada que seja, poderíamos desejá-la para todos os homens eem todos os níveis de institucionalização do vínculo social? Nomeu entender, parece-me que uma crítica jamais pode ser primeirae última. Só criticamos distorções em nome de um consenso quenão podemos antecipar simplesmente no vazio, à maneira de umaidéia reguladora, a não ser que esta seja exemplificada; um doslugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamentenossa capacidade de vencer 'a distância cultural na interpretaçãodas obras recebidas do passo. É bem provável que quem não écapaz de reínterpretar seu passado, também não seja capaz de pro-jetar concretamente seu interesse pela emancipação.

3. Chego ao terceiro ponto de desacordo entre hermenêuticadas tradições e crítica das ideologias. Diz respeito ao abismo quesepararia a simples má-compreensão da distorção patológica ouideológica. Não quero retornar aos argumentos já expostos há pou-co e que tendem a atenuar a diferença entre má-compreensão e

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distorção. Uma hermenêutica das profundezas ainda é uma herme-nêutica, mesmo que a chamemos de meta-hermenêutica. Prefeririainsistir num aspecto da teoria das ideologias que nada deve aoparalelismo entre psicanálise e teoria das ideologias. Toda umaparte da obra de Habermas destina-se não à teoria das ideologiastomada abstratamente, mas às ideologias contemporâneas. Ora,quando a teoria das ideologias se desenvolve, assim, concretamenteno contexto de uma crítica do tempo presente, revela aspectosexigindo que aproximemos concretamente, e não mais simples-mente de modo teórico, o interesse pela emancipação, do interessepela comunicação, no contexto das tradições reinterpretadas.

Segundo Habermas, 'qual é a ideologia dominante do tempopresente? Sua resposta é semelhante à de Herbert Marcuse e à deJacques Ellul: é a ideologia científico-tecnológica. Não vou desen-volver aqui os argumentos de Habermas que colocam em jogo todauma interpretação do capitalismo avançado e das sociedades indus-triais desenvolvidas. Vou direto ao traço principal que, no meuentender, ressitua imperiosamente a teoria das ideologias no campohermenêutico. A sociedade industrial moderna, segundo Habermas,substituiu as legitimaçSes tradicionais e as crenças de base utili-zadas como justificação do poder por uma ideologia da ciência eda tecnologia. O Estado moderno, com efeito, não é mais umEstado destinado a representar os interesses de uma classe opres-sora, mas a eliminar as disfunções do sistema industrial. Justificar amais-valia, dissimulando seu mecanismo, não é mais a primeira fun-ção legitirnadora da ideologia, como na época do capitalismo li-beral descrita por Marx, simplesmente porque a mais-valia não émais a fonte principal de produtividade, nem sua apropriação é otraço dominante do sistema. O traço dominante do sistema é aprodutividade da própria racionalidade, incorporada nos compu-tadores. Aquilo que precisa ser legitimado é, pois. a manutenção eo. crescimento do próprio sistema. Ê para isso que serve o aparelhocientífico-técnico convertido numa ideologia, vale dizer, numa le-gitimação das relações de dominação e de desigualdade necessáriasao funcionamento do sistema industrial, mas dissimuladas pelasgratificações do sistema sob todas as formas de gozos. A ideologiamoderna difere, pois, sensivelmente da ideologia descrita por Marx,que só vale para o curto período do capitalismo liberal, não tendo,portanto, nenhuma universalidade no tempo. Aliás, também não há

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ideologia pré-burguesa, e a ideologia burguesa está expressamentevinculada à camuflagem da dominação sob a instituição legal dolivre contrato de trabalho.

Admitida essa descrição da ideologia moderna, o que isso'sig-nifica em termos de interesse? Significa que o subsistema da açãoinstrumental deixou de ser um subsistema, e que suas categoriasinvadiram a esfera da ação comunicativa. Nisso consiste a famosa"racionalização" de que falava Max Weber: não somente a racio-nalidade conquista novos domínios da ação instrumental, mas sesubordina o domínio da ação comunicativa. Max Weber havia des-crito esse fenômeno em termos de "desencantamento" e de "desdi-vinização". Habermas o descreve como esquecimento e perda dadiferença entre o plano da ação instrumental, que também é o dotrabalho, e o plano da ação comunicativa, que também é o dasnormas consentidas, da troca simbólica, das estrururas de persona-lidade, dos procedimentos de decisão racional. No sistema capita-lista moderno, que parece identificar-se, aqui, pura e simplesmentecom o sistema industrial, a velha questão grega do "bem viver"fica abolida em proveito do funcionamento de um sistema manipu-lado. Os problemas de práxis ligados à comunicação - especialmenteo desejo de submeter à discussão pública e à decisão democrática aescolha das grandes opções políticas — não desapareceram. Conti-nuam subsistindo, mas de modo recalcado. E é justamente porquesua eliminação não é automática, e porque permanece insatisfeita anecessidade de legitimação, que se torna sempre necessária uma ideo-logia para legitimar a autoridade que assegura o funcionamento dosistema. Técnica e ciência assumem, hoje em dia, esse papel ideoló-gico.

Dessa forma, a questão que o hermeneuta dirige ao crítico dasideologias contemporâneas é a seguinte: admitamos que a ideologiaconsista, hoje, na dissimulação da diferença entre a ordem normativada ação comunicativa e o condicionamento burocrático, porconseguinte, na dissolução da esfera de interação mediatizadapela linguagem nas estruturas da ação instrumental; se isto ocor-re, o que devemos fazer para que o interesse pela emancipaçãonão permaneça um desejo piedoso, a não ser que o encarnemos nodespertar da ação comunicativa? E sobre o que podemos apoiarconcretamente o despertar da ação comunicativa, senão sobre aretomada criadora das heranças culturais?

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4. Essa aproximação inelutável entre o despertar dalidade política e a reanimação das fontes tradicionais <ja açãocomunicativa leva-me a dizer uma palavra, para concluir, sobre aquarta e mais formidável diferença entre consciência hermenêuticae consciência crítica. A primeira, dizíamos, está voltada para umentendimento, para um consenso que nos precede e, neste sentido,que está aí; a segunda antecipa o futuro de uma liberação cujaidéia reguladora não é um ser mas um ideal, ô ideal da comunica-ção sem limite e sem entrave. / "'

Com essa antítese aparente, atingimos o mais vivo e talvez oque há de mais vão do debate. Porque, afinal de contas dirá ohermeneuta: de onde vocês falam quando recorrem à Selbstre-flexion, senão desse lugar que vocês mesmos denunciaram comosendo um não-lugar, o não-lugar do sujeito transcendental? É dofundo de uma tradição que vocês falam. Talvez essa tradição nãoseja a mesma que a de Gadamer. Talvez seja justamente a daAufklàmng, enquanto que a de Gadamer seria a do romantismo.Mas ainda é uma tradição, a tradição da emancipação, mais que atradição da rememoração. A crítica também é uma tradição. Diriamesmo que ela penetra na mais impressionante tradição, a dos atoslibertários, a do Êxodo e da Ressurreição. Talvez não houvessemais interesse pela emancipação, mais antecipação da libertação, sefosse apagada do gênero humano a memória do Êxodo, a memóriada Ressurreição.

Se é assim, nada mais enganador que a pretensa antinomiaentre uma ontologia do entendimento prévio e uma escatologia dalibertação. Encontramos essas falsas antinomias várias vezes nodecorrer dos colóquios precedentes: como se fosse necessário esco-lher entre a reminiscência e a esperança! Em termos teológicos,dizemos: a escatologia nada é sem o recitativo dos atos de liberta-ção do passado.

Ao esboçar essa dialética da rememoração das tradições e daantecipação da libertação, de forma alguma pretendo abolir a dife-rença entre uma hermenêutica e uma crítica das ideologias. Cadauma, repito, possui um lugar privilegiado e, diria mesmo, prefe-rências regionais diferentes: aqui, uma atenção às heranças cultu-rais, talvez polarizada de modo mais decidido na teoria do texto;ali, uma teoria das instituições e dos fenômenos de dominação,polarizada na análise das reifícações e das alienações. Na medida

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em que ambas têm necessidade de sempre se regionalizar para seassegurarem o caráter concreto de suas reivindicações de universa-lidade, suas diferenças devem ser preservadas contra todo confusio-nismo. Mas é a tarefa da reflexão filosófica colocar ao abrigo dasoposições enganadoras o interesse pela emancipação das herançasculturais recebidas do passado e o interesse pelas projeções futu-ristas de uma humanidade libertada.

Se esses; interesses se separarem radicalmenfe, a hermenêutica ea crítica ficarão reduzidas a meras ... ideologias!

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QUARTA PARTE

Sinal de contradição ede unidade?

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O presente estudo tem os seguintes objetivos: em primeirolugar, tentar descrever os novos conflitos que surgem em nossa socie-dade; em seguida, na segunda parte, situar, face a esses neoconflitos,algumas das atitudes de caráter ideológico que mascaram ssu sentido,ou mesmo sua realidade, e que nos engajam em comportamentosestéreis: ideologia do diálogo ou ideologia do confronto — tática defuga diante do conflito ou cultivo do conflito a todo preço; enfim,na terceira parte, extrairei da crítica dessas motivações-anteparo al-gumas sugestões teóricas e práticas voltadas para a busca de umanova estratégia do conflito.

1. OS NEOCONFLITOS NAS SOCIEDADES INDUSTRIAISAVANÇADAS

Gostaria de submeter à discussão uma análise que não pretende,em absoluto, ser exaustiva, mas que se limita expressamente àquiloque chamarei de conflitos de ponta da sociedade industrial avan-çada. Sem dúvida, farei deles uma análise por demais parcial epartidária, de vez que não possuo uma experiência direta do mun-do do trabalho industrial, só tendo observado um meio limitado eparticular, o meio universitário. É bem verdade que minhas obser-vações se aplicam a um estudo comparativo bastante amplo dosmeios universitários na Europa e nos Estados Unidos, que venhofazendo há mais de quinze anos. Isto significa que não considerarei

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diretamente o problema da luta das classes, nem no interior denossas sociedades, nem na escala dos continentes, entre povos ricose pobres. Não que eu negue esse problema; pelo contrário, acreditoquê, se as^ novas contradições, que são contradições específicas,colocam um difícil problema paraf nossa sociedade, é justamenteporque se sobrepõem às contradições, não-resolvidas, herdadas doséculo passado. É como se uma segunda onda se sobrepusesse àprimeira, antes mesmo de seu refluxo.

Neste sentido, admito que as novas contradições, as que seoriginaram do desenvolvimento, são mal colocadas e difíceis de serresolvidas, porque cruzam sobre o solo das contradições anteriores,herdadas do século XIX. Por conseguinte, é com toda a reservaque proponho a análise de algumas contradições que possuem umcaráter comum e que Marx, por exemplo, não podia analisar, poiso desenvolvimento não as produzira ainda.

A) Ausência de projeto coletivo

Um primeiro traço me surpreende, como professor e comoeducador: a ausência de projeto coletivo em nossas sociedades.Reconhecemos claramente o projeto dos povos subdesenvolvidos:alcançar os,países ditos avançados - ou fazer outra coisa, como aChina. Mas quanto aos superdesenvolvidos? Sua ausência de pro-jeto coletivo conjuga-se com oaniquilamento das normas e com oesquecimento das heranças tradicionais. Ao dizer "conjuga-se", nãopretendo decidir entre uma interpretação que acusaria o desmoro-namento das normas e uma interpretação que acusaria a ausênciade projeto. Falemos, antes, de um fenômeno de esgotamento. Comefeito, uma herança só é viva enquanto pode ser «interpretada,criativamente, em situações novas. Ora, a experiência dramatica.denosso tempo consiste na convicção difusa, invasora, segundo aqual, pela primeira vez, nossa herança cultural não parece maiscapaz de «interpretação criadora, de projeção para o futuro.Donde o recurso à experiência "selvagem" a partir do zero. Pelomenos, esta é a impressão que colhi, sobretudo nos Estados Uni-dos, nos meios universitários mais atingidos pelo modo de vidadesintegrado dos marginais.

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Ora, para mim esta é uma situação conflituosa impregnada denovo tipo de violência. Porque é ela a provocadora da polarizaçãoque caracteriza especialmente as sociedades mais avançadas: pola-rização entre o que chamarei de ilusões da dissidência e tentaçõesda ordem.

Ilusões da dissidência. Todas as instituições aparecem comoum bloco indivisível de poder e de repressão; todas as autoridadessão o establishment: dos bancos às igrejas, passando pelas empre-sas, pelo meio universitário e pela polícia. Assim esquematizada, asociedade só pode depender de uma estratégia do confronto e dapolarização, destinada a revelar a fisionomia repressiva que se ocul-ta por detrás de toda máscara liberal. E se a própria palavra, cativado poder, não é mais ouvida, o que permanece, então, é a açãopontual, a violência muda. Instala-se, assim, na dissidência, umadas juventudes mais inteligentes e mais honestas. Doravante, é forados aparelhos da democracia formal, à margem da burocracia dospartidos e dos sindicatos, que ela vai instalar-se. Por sua vez, ela sevê ameaçada pela grupusculização, que introduz a dissidência nadissidência. De tudo isso, a sociedade vê apenas as exterioridadescoloridas: as vestes, os costumes, o nomadismo e a anticultura, emsuma, uma imagem alternadamente terna e agressiva.

Tentações da ordem. O outro pólo nos é bastante conhecido: es-sencialmente reativo, alimenta-se de medo e de Ódio. O que mais estar-rece é que a tentação da ordem parece, hoje em dia, afetar por comple-to a classe média, colocada em posição defensiva Trata-se, à primeiravista, de um curioso paradoxo o fato de o ingresso na abundância sever acompanhado de tanta insegurança. É como se aqueles que ultra-passaram a fronteira de abundância sentissem toda vantagem social co-mo uma aquisição ameaçada pelo menor sinal de retrocesso, devendoser defendida contra a camada social imediatamente inferior. Donde adefesa avarenta de todo privilégio e o apetite obsessional de segurança.

Voltarei mais adiante à expressão política desse medo: a lei ea ordem. Na verdade, surpreende-nos que as democracias liberaisconsigam oferecer tão pouca resistência a essa ameaça. Proporei,no momento oportuno, uma hipótese.

A reação moral, que aqui nos interessa de modo especial, émais significativa, embora mais dissimulada. Diante daquilo que

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aparece como a dissolução das normas, sob a ação corrosiva dosgrupos dissidentes, a tendência é a de reafirmar essas normas deum modo não-criatívo e puramente conservador: a concepção pura-mente defensiva do cristianismo, que se apoderou dos meios reli-giosos, constitui outro aspecto surpreendente dessa reação moral.A religião institucional tende a se congregar em torno dos gruposresidenciais homogêneos, face à ameaça que para eles representa odesenvolvimento dos grupos informais, subterrâneos, não-estrutu-rados, e a replicar, mediante um reforço institucional, às intromis-sões do imprevisto.

É assim que a tentação da ordem se insinua no cerne da vidapessoal. Cada um se apega àquilo que lhe parece conservar certaconsistência no seio da confusão geral: família, métier, lazeresconcebidos segundo a dimensão privada. Até mesmo a vida espiri-tual fica infetada por um sentimento de desesperança e de impo-tência, no meio dos grandes perigos e das grandes incertezas. Faceao nomadismo mais ou menos agressivo dos dissidentes, o homemda ordem se concebe a si mesmo como um sedentário sitiado oucomo um náufrago numa ilha sacudida por ameaças.

Eis a grande polaridade que me parece caracterizar a sociedadecontemporânea. Procurei evitar identificá-la com um conflito degerações. Este, que é real, constitui apenas a expressão, em termosde idade, de uma polarização fundamental possuidora de aspectoseconômicos, sociais, políticos, culturais e espirituais.

B) O mito do simples

Sobre esse fundo situarei o segundo grande tema: somos astestemunhas do esgotamento do sonho tecnológico e do renasci-mento daquilo que Alfred Sauvy chama de o "mito do simples".

Talvez nos encontremos no final de um sonho de dominaçãoda natureza, duplicado por um sonho de crescimento qu.antitativoilimitado dos gozos. A este respeito, é interessante notar como acrítica do sistema, sobretudo entre os esquerdistas americanos,ataca diretamente esse aspecto de nossa situação. Ao eliminarem,talvez erradamente, a crítica propriamente econômica e social des-sa sociedade, eles atacam diretamente esse aspecto de esgotamento

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do sonho de dominação. E se atacam o lucro, é menos como atara do sistema econômico do que como o sintoma de uma doençamais profundamente enraizada que o próprio capitalismo, e queatinge o conjunto dos comportamentos coletivos e individuais emrelação aos nomens e até mesmo à natureza. Como todos sabem, adenúncia, por Marcuse, do homem "unidimensional" é o teste-munho mais surpreendente desse tipo de crítica. O sucesso fulmi-nante das campanhas contra a poluição e os impasses para a ecolo-gia são outros tantos indícios. Baseados nessa crítica, vemos renas-cerem temas românticos que, no século passado, na época da in-dustrialização nascente, passavam por reacionários: processo dacidade, processo da. cultura civilizada e livresca. De tudo isso sealimenta "o mito do simples". Entendo, com isso, a tentação de sereconstruir, ao lado da sociedade global, por demais complexa,uma sociedade neo-arcaica, artesanal e agreste, fracamente institu-cionalizada (voltarei a esse ponto) ou pelo menos instituída nonível de uma economia de subsistência e de troca.

Nada é mais perigoso que o "mito do simples". A sociedadefutura não será mais simples que a nossa: ainda haverá cidades ecomputadores. Os problemas de comunicação serão sempre maiscomplexos, não só no sentido material do termo, mas também nosplanos administrativo e político.

Ora, não poderemos subestimar o potencial de violência quese acumula sobre essa fronteira entre a sociedade organizada e asociedade "alternativa". Por violência, não entendo somente, nemmesmo principalmente, aquilo que por vezes chamamos de "sub-versão", mas também, e sobretudo, a massa de intolerância que asociedade organizada já começa a acumular: a caça aos jovens eo ódio dos dissidentes já são seus sinais precursores. Pela segundavez, somos conduzidos a este círculo vicioso (da dissidência e darepressão.

C) Esgotamento da democracia representativa

Uma terceira fonte de conflitos resulta de outro fenômeno: oesgotamento da democracia representativa, ao qual se contrapõemtentativas diversas de democracia direta.

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Gostaria de insistir, aqui, sobre um aspecto de nossa sociedadeque me preocupa enormemente. Há alguns anos ouvimos - e continua-mos a ouvir ocasionalmente - o seguinte slogan: eleições-traição.Antes de protestar, compreendamos. Por que esse esgotamento dademocracia representativa? Disse há pouco que proporia uma hi-pótese. Ei-la: a democracia anglo-saxônia forneceu ao mundo ummodelo institucional tendendo, essencialmente, a fazer prevalecer alei da maioria sobre a minoria, mediante eleições livres destinadas adesignar os representantes do povo. Este princípio democrático,bem como a prática que o fez funcionar de forma mais ou menosfiel, constituíram a grande conquista e o grande êxito, sobretudonos países anglo-saxões, dos dois ou três últimos séculos, no planopolítico. Mas esse princípio só conservou um valor progressivo - emesmo progressista —, enquanto a própria maioria representou aconjunção entre os explorados e a parte esclarecida da opinião,ávida de mudança, de liberdade e de justiça.

Podemos nos perguntar se a tendência atual não é inteira-mente diferente. Tudo indica que a idéia de maioria, pela enormeampliação da classe média, tende a identificar-se com a defesa desuas aquisições e com a resistência à mudança. Donde a tentaçãoinversa de um militantísmo deliberadamente minoritário e as tenta-tivas esporádicas de democracia direta.

Para além das instituições, o que talvez deva ser questionado é"o homem liberal" que instaurou essas instituições. Podemos legiti-mamente acusar os liberais de terem tolerado a injustiça durantetodo o tempo em que foi salvaguardada sua liberdade de expressão,ou seja, essencialmente, sua liberdade de palavra, de reunião, depublicação. Há uma traição dos liberais: foram eles que fizeram asguerras coloniais e que, até recentemente, sustentaram a guerra doVietnã. Tudo se passa como se a tolerância mútua entre pessoas depalavra se convertesse sub-repticiamente em tolerância à injustiça eem cegueira em relação aos estados de violência, enquanto se exa-cerbava a sensibilidade aos atos de violência.

Donde o sonho da democracia direta, que é, para a política,aquilo que o mito da vida simples é para a tecnologia e, de modomais geral, aquilo que a experiência selvagem é para a ausência deprojeto coletivo, para o afrouxamento das normas e para o esque-cimento das heranças.

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Ora, também esse sonho de democracia direta está repleto deviolência. Enorme é a-tentação de curto-circuitar os procedimentosjurídicos para se encaminhar diretamente aos tribunais populares.Também é enorme a tentação de curto-circuitar todas as delega-ções de poder para se recorrer diretamente à reivindicação selva-gem e sem intermediário. Esquece-se, então, que a democraciapolítica foi uma conquista muito laboriosa e bastante frágil, basea-da em sutis procedimentos de discursos e em convenções complexasde arbitragem dos conflitos. Alguém já dizia: "a democracia é oprocedimento". E é verdade. Se perdemos seu Sentido, surgem ter-ríveis ilusões — as de uma política direta das massas sem interme-diários organizados. Talvez se viole, aqui, uma regra insuperável daação política eficaz. O preço a pagar é bastante conhecido: é aânsia de depuração que espreita todo exercício de poder, pouco seimportando com o procedimento. Da mesma forma, o modo comoeste ou aquele grupo luta pelo poder já deixa entrever o modocomo ele o exercerá. Hegel descreve essa situação na Fenomeno-logia do Espirito, quando analisa o fenômeno do Terror em 1793.Fala, então, do "furor de destruição" que se apodera da liberdadesem instituição.

Do outro lado, porém, do lado da sociedade institucional, astentações de réplica não são menos temíveis. É assim que o espec-tro do Estado policial, alimentado por todas as reações defensivo-agressivas da classe média — e talvez de uma parte da classe ope-rária — paira sobre as velhas democracias.

Portanto, estas são as análises que proponho com referênciaaos neoconflitos da sociedade industrial avançada.

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2. DOIS ANTEPAROS IDEOLÓGICOS

Gostaria de proceder agora a uma análise de motivações. Até omomento, só consideramos sintomas: a tentação da ordem e ailusão da dissidência; o esgotamento do sonho tecnológico e omito do simples; o esgotamento da democracia representativa e atentação da democracia direta. Minha intenção é extrair dessessintomas algumas linhas de força subjacentes. Em primeiro lugar,abordarei o que chamarei de motivações-anteparo ou, se preferir-mos, de ideologias, vinculando a esse termo as duas seguintes sig-nificações:

— uma esquematização imposta, pela força, aos fatos;— uma concepção cega, falsificadora, que nos impede de reco-

nhecer a realidade.Evidentemente, sempre há ideologia nas análises sociais e polí-

ticas. Pretendo detectar duas motivações-anteparo, duas ideologias.Elas são o inverso uma da outra, e se alimentam uma da outra.

A) A ideologia da conciliação a todo preço

Deter-nos-emos mais na primeira, por ser secretada em meiocristão. Trata-se da ideologia de paz a todo preço. É uma ideologiaoriunda do cristianismo, no sentido em que pretende fundar-se napregação cristã do amor, tanto em sua forma teológica quanto

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prática. Pregação teológica: "Deus é Amor". Pregação prática:"Amai-vos uns aos outros".

É um fato que essa confissão de fé — que é a minha —leva-nos com muita freqüência a negar, teórica e praticamente, afecundidade de todo e qualquer conflito. Teoricamente, relegandoo conflito do lado do mal e do pecado; praticamente, recusandotodo recurso a uma estratégia conflitual. É curioso observarmoscomo a recusa da luta de classes, da violência revolucionária, daguerrilha urbana e de todas as formas de violência nova que hápouco evocava, vem substituir a antiga objeção de consciência àguerra e ao serviço militar. Em contraposição a essa recusa, privi-legia-se a todo preço a conciliação e a reconciliação. Devemos reco-nhecer que esse debate dilacera, atualmente, a consciência cristã,dividida entre um centrismo fundamental e de princípio, sempre àcata de uma terceira via, e um esquerdismo que procura numateologia da revolução uma expressão mais adequada da exigênciaradical do Evangelho.

Gostaria de combater essa ideologia do diálogo (que é umaidéia cristã que se enlouqueceu, ou, antes, que se tornou sábia) noplano dos fatos e no dos princípios.

1. Em primeiro lugar, no plano dos fatos. Minha crítica seapoia na tomada de consciência do caráter irredutível das situaçõesde conflito na sociedade contemporânea. Não vou voltar à descri-ção dos neoconflitos proposta anteriormente. Limito-me a respon-der a duas objeções. A primeira objeção afirma que o conflito éum traço arcaico de nossa sociedade, e que um pouco mais deracionalidade colocar-lhe-ia um fim. A segunda objeção pretendeafirmar que, com a racionalidade tecnológica, ficará neutralizado opapel da política como lugar dos conflitos (é conhecido o famosoadágio: um dia a administração das coisas substituirá o governo doshomens).

À primeira objeção, responderei dizendo que se trata de umaidéia ingênua acreditar que uma sociedade da previsão e do cálculo— uma sociedade do planejamento, definida recentemente peloantiacaso — deva suprimir as fontes de conflitos. O recuo do acaso,em nossas sociedades, revela, antes, a extensão da esfera de con-trole e de decisão dos homens. Ao mesmo tempo, os homens sãolevados a escolher lá onde, no passado, o acaso e as fatalidadesjogavam com ou contra o homem, mas segundo determinações não

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dominadas e mal conhecidas, se não desconhecidas. Qra, quem dizextensão da previsão, diz extensão da escolha; e quem diz extensãoda escolha, diz multiplicação das alternativas concernentes às or-dens de prioridade: as sociedades da previsão são sociedades daescolha. Toda planificação democrática desemboca, em última ins-tância, na seguinte questão: que espécie de sociedade queremos,afinal? Responder a essa questão, é ordenar projetos parciais comreferência a um projeto global; é introduzir uma prioridade entrepreferências possíveis: sobre o que colocamos a ênfase? Sobre oconsumo máximo? Sobre o prestígio? Sobre o poder? Sobre aqualidade da vida, da saúde e da cultura?

Ora, é ilusório acreditar que os homens se porão facilmentede acordo quanto a um projeto global. Pelo contrário, podemospensar — e mesmo esperar — que, com a extensão da consultademocrática e a ampliação do número das instâncias consultadas,a escolha global venha a tornar-se o desafio de uma competiçãocada vez mais acirrada. Uma simples reflexão mostra que épouco provável que os desejos de curta visão — e de vida curta— dos indivíduos jamais possam coincidir, sem conflito, com ointeresse coletivo de longo alcance de uma sociedade, tal comopoderá ser concebido e projetado pelos indivíduos competentes.(Por competentes entendo, não somente os tecnocratas, os espe-cialistas, mas todos aqueles que, por uma reflexão global aplicadaà dinâmica das sociedades, conseguem escapar ao fascínio docurto termo, tal como o alimenta um homem de desejo e demorte.) Portanto, o conflito não será diminuído nem aumentadopela extensão da previsão.

A ilusão ligada à segunda objeção não é menos perigosa que aprimeira. Com efeito, é um erro acreditar que o desaparecimentodo político esteja no horizonte de nossa história. Por um tempoindefinido, a decisão política — à qual, em última análise, remetetoda escolha de prioridade nos planos econômico e tecnológico -permanecerá uma fonte irredutível de conflitos.

Quanto a mim são profundamente merecedoras de crédito asanálises sobre o político desenvolvidas por um pensador como Ju-lien Freund (em L'essence du politiqué). Segundo ele, a ação po-lítica obedece a condições próprias. A lei da ação política é, essen-cialmente, a lei do conflito, da luta visando ao poder. O poder,não podendo ser partilhado por todos, sempre constitui objeto de

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competição. Por essa razão, a relação amigo-inimigo permanece urnacategoria irredutível do político.

Por conseguinte, parece-me perigoso sonharmos com a morte doEstado. Pelo contrário, aquele que sonha com a dissolução do po-lítico corre o risco de não prestar atenção aos procedimentos que sedeve incessantemente renovar para limitar os efeitos e os malefíciosdo poder. Max Weber, ao se dirigir a pacifistas alemães logo depoisda Primeira Guerra Mundial, e ao refletir com eles sobre a naturezado político, observava que o uso da força fazia parte da ética de res-ponsabilidade que preside ao exercício político do poder. A seu ver,aquele que não integrou essa idéia em sua visão do mundo descamba,mais cedo ou mais tarde, do pacifismo ao terrorismo. Aliás, não se vêemcom freqüência as mesmas pessoas defenderem alternadamente apena de morte e declararem-se pela justiça expeditiva dos tribunaispopulares?

Hegel já havia meditado sobre essa brusca inversão da negaçãoteórica do conflito no furor destruidor do terror. Da mesmamaneira, foi por não ter refletido sobre os conflitos próprios aoexercício do poder — sobre a disputa e a conquista, a derrubada ea manutenção do poder — que o marxismo se encontra inteira-mente desarmado, teórica e praticamente, diante de um fenômenocomo o stalinismo. Para o marxismo, a essência dos conflitos épuramente econômica e social. Os conflitos políticos fazem apenasrefletir as contradições da esfera econômico-social. Por conse-guinte, uma política que se proponha a delimitar as contradiçõesdessa esfera é considerada boa, quaisquer que sejam as contradiçõespróprias que desenvolva.

A fonte do erro está na própria teoria: se admitirmos que osconflitos possuem apenas uma origem econômica, ficaremos sem de-fesa contra a patologia propriamente política e, mais especialmente,contra a patologia que sempre pode se enxertar na resolução políticados conflitos econômicos. Somente aqueles que reconheceram, teó-rica e praticamente, a natureza irredutivelmente polêmica e conflitualdo exercício do poder — como Maquiavel, Rousseau, Hegel, MaxWeber — podem se considerar armados contra a patologia engen-drada por essa estrutura conflitual. O caráter de decisão que se vin-cula ao político enquanto tal, com seu cortejo de coação, de força ede violência, parece constituir um traço essencial da ação política, talcomo a conhecemos em nossos dias.

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Talvez poder-nos-á ainda ser objetado que esse estatuto conflitual do político desaparecerá com certos conflitos maiores da socie-dade, justamente os conflitos de classes. Quanto a mim, consideroimprovável que a soluçãq, dos conflitos descritos por Marx, tidoscomo oriundos unicamente da apropriação privada dos meios deprodução, ponha um termo a todo antagonismo entre grupos sociais.A experiência de meio século de exercício do poder nos países socia-listas mostra, antes, que não é nada disso. E não há nada de surpre-endente nisso, porque os conflitos de prioridade ligados à previsão,os conflitos de competição ligados ao exercício da decisão, consti-tuem os traços inelutáveis de nossa sociedade. Uma análise da dinâ-mica dos sistemas atualmente existentes leva-nos diretamente à con-clusão de que os meios empregados para resolver um tipo de contra-dição desenvolvem novas contradições que, ao se deslocarem, deslo-cam também o lugar e a forma do conflito.

Todos esses exemplos, bem como as análises e reflexões que aeles se ligam, convergem para a mesma conclusão: as relações sociaiseconômicas e, sobretudo, políticas, desenvolvem formas de conflitos,impedindo-nos de aplicar-lhes diretamente, e sem mediação, um mo-delo de conciliação ou de reconciliação que valha para as relações depessoa a pessoa. Os conflitos sociais e políticos são irredutíveis àsituação de diálogo engendrada por nossa experiência interpessoal.

2. Isto no que se refere aos fatos. Mas gostaria de combater, noterreno mesmo dos princípios, o que chamei de ideologia da recon-ciliação a todo preço. E gostaria de combatê-la em seu próprio plano,que é propriamente teológico.

No meu entender, é a tarefa de uma teologia do amor assumiressa dialética do conflito inelutável. Digo isso com a consciência deopor-me àqueles — especialmente marxistas — que considerariamtoda teologia do amor como uma ideologia da camuflagem, desti-nada a tomar suportável a exploração. O que é ideológico, não é ateologia do amor, mas sua redução a um modelo demasiado simples,o do diálogo, e a colagem desse modelo reduzido sobre situaçõespara as quais ele não foi elaborado. É por isso que nossa tarefaconsiste em restituir à teologia do amor suas dimensões comunitá-rias, políticas e, mesmo, cósmicas, que foram sufocadas pela ideo-logia individualista ("privatista", como diz o teólogo alemão Metz).

Ora, como restituir sua plena dimensão a uma teologia doamor? Em primeiro lugar, parece-me, ressituando esse tema em seu

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meio teológico global. Porque o separamos deste fizemos dessa no-ção de amor uma abstração ideológica. O meio teológico global danoção de amor é expresso no conceito de Reino de Deus. É comreferência a esse tema do Reino em marcha que adquire sentido nãosó a afirmação de que Deus é amor, mas também o mandamentoprático "Amai-vos uns aos outros". Assim ressituado sobre o fundoda pregação do Reino, o tema do amor recebe a dimensão longada esperança, isto é, da certeza das coisas últimas.

Contudo, este primeiro passo na direção de uma teologia doamor completa e concreta exige um segundo. Se o amor é umacategoria do Reino de Deus e, a este título, comporta uma dimen-são escatológica, identifica-se com a justiça. É isso que não com-preendemos, ou compreendemos bastante mal, quando fazemos dacaridade a contrapartida, o complemento ou o substitutivo da jus-tiça. O amor tem a mesma extensão que a justiça. Ele é sua alma,seu impulso, sua motivação profunda; confere-lhe sua visada que éo outro, cujo valor absoluto ele atesta; acrescenta a certeza docoração àquilo que corre o risco de tomar-se jurídico, tecnocrá-tico, burocrático no exercício da justiça. Em compensação, porém,é a justiça a realização efetiva, institucional, social do amor.

Terceiro passo na direção de uma autêntica teologia do amor (eeste passo nos conduz ao nosso problema do conflito): se o amor ésolidário da visada escatológica da esperança, e se o caminho de suarealização é a justiça, então ele — que em nós quer que o outro sejalivre e reconhecido — deve ser capaz de assumir os conflitos. O amoré revolucionário. Assume o poder de mudança radical da esperança eda justiça. Engendra o conflito. Eis o paradoxo que precisamosassumir teológica, humana e politicamente.

É isso o que pretendíamos dizer sobre a primeira ideologia,sobre a primeira motivação-anteparo, a mesma que nós, cristãos,cultivamos incessantemente.

B) A ideologia do conflito a todo preço

Quanto à segunda ideologia, embora proveniente de fora docristianismo, tende hoje a identificar-se, do interior, com aquiloque há pouco chamava de esquerdismo cristão.

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Chamá-la-ei de ideologia do conflito a todo preço.Ela chega até nós através de uma "hegelianização" difusa de

todos os nossos pensamentos e de todos os nossos comporta-mentos — hegelianização que, deve ser dito, tem pouco a ver coma filosofia de Hegel, que só pensou uma coisa: a contradição supe-rada, ultrapassada, na ação, na arte, na religião e na filosofia. Refi-ro-me a um hegelianismo popular, que nos foi transmitido medi-ante todas as popularizações de Marx e de Nietzsche. É esse fenô-meno cultural global que precisamos tentar apreender, porque é eleque está subjacente a todos os comportamentos de dissidência quedescrevi na primeira parte. Ora, assim como a ideologia do diálogotorna-nos cegos a alguns fatos maciços, especialmente de naturezapolítica, da mesma forma a ideologia do conflito a todo preçotorna-nos cegos a outros fatos maciços, que não se conciliam facil-mente com os precedentes. Tais fatos são, no meu entender, dedois tipos:

• o primeiro fato maciço consiste na atenuação de um dostipos de conflitos — os que surgiram do século XIX, da penúria —e que dominaram as situações industriais avançadas de tipo capi-talista até nossos dias. Testemunham-nos o avanço das legislaçõesde tipo Previdência Social (que não derivam da ideologia da lutadas classes, mas de uma ideologia do tipo Centrum alemão) e,sobretudo, o avanço dos procedimentos de conciliação e das estra-tégias de "concertação", especialmente na Europa Ocidental. Essaatenuação dos conflitos, daqueles sobre os quais todos os teóricossocialistas do século passado estabeleceram suas análises, cria umasituação teórica de frustração exigindo, por compensação, um re-forço da ideologia do conflito a todo preço;

• o segundo fato maciço vem reforçar o primeiro: a tendênciadas grandes potências nucleares a evitarem, até o fim, a escaladanos conflitos armados. Sem dúvida, isso não suprimiu as guerras. Ea ameaça atômica está sempre presente. Mas toma cada vez mais ocaráter do acidente não-querido, que a diplomacia e a estratégiatendem justamente a circunscrever e a reduzir. De repente, torna-secada vez mais difícil reintroduzir comportamentos de ruptura naestratégia social de concertação e na estratégia internacional e mili-tar de dissuasão e de equilíbrio do terror. Donde a tentação de seaplicar, e mesmo de se impor, uma estratégia essencialmente arti-ficial, minoritária e voluntarista a situações que tornam as ações de

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ruptura cada vez mais improváveis. É sobre essa ideologia do con-flito a todo preço e sobre essa estratégia do artifício que gostariade refletir agora e chamar a atenção do leitor, pois creio que nesteponto se encontra a fonte de uma patologia social de um tipobastante novo, que será escalonada por quatro palavras: provo-cação, marginalização, teatralização e não-comunicação.

Com efeito, há um caminho inelutável que leva da busca dapolarização a todo preço à vontade de fazer fracassar toda tenta-tiva institucional de concertação por ações de ruptura, até a táticada provocação (cito como exemplo as "reivindicações não-nego-ciáveis" propostas pelos estudantes de certos compus americanos).Que essa engrenagem dependa da patologia social é um fato que,infelizmente, não é contestável. Em seu último estádio, o da pro-vocação, essa tática oferece uma saída para as pulsões agressivas eneuróticas dos "chefetes" e dos terroristas. O termo "provocador"é bem significativo. Numa sociedade muito evoluída, onde os me-canismos sociais são muito frágeis, a tática de provocação pare-ce-me fundamentalmente an ti pedagógica. Com efeito, o problemafundamental para a esquerda revolucionária, hoje em dia, consisteem ganhar novas camadas sociais para a crítica do sistema. Ora, seelas forem alienadas e distanciadas da tomada de consciência, agolpe de traumatismos e de provocações, a massa da opinião pú-blica se lançará numa atitude defensivo-repressiva.

A marginalização constitui, sem dúvida, o maior perigo, quecorrem atualmente os grupos de contestação. Essa marginalização éa contrapartida do reforço de todos os poderes estabelecidos, numsentido cada vez mais repressivo e policialesco. A polarização —que se pretende nos impor a todo preço — está em vias de pro-duzir no mundo todo seus frutos amargos: o ciclo contestação-repressão está esboçado, mas funciona cada vez mais em proveitodo poder e em detrimento das liberdades públicas.

Quanto à ação, ou antes, à pseudo-ação, já se encontra con-taminada pela busca do espetacular, pela teatralização. Ê interes-sante notar como a ação, ao tornar-se ineficaz, tende a converter-seem espetáculo. Certamente' compreendo a intenção: quando a pa-lavra ordinária perdeu sua eficácia, pode parecer hábil aplicar umaterapêutica de choque nas massas cloroformadas. Mas o efeito étão desastroso sobre aqueles que aplicam o remédio quanto sobreos que o recebem. É o que chamo de a teatralização. Por teatra-

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lização, entendo a substituição da política real por uma espécie depolítica-ficção, incapaz de separar a fantasia do real, e reduzida auma encenação. Bem que eu gostaria que a "guerilla-theater", talcomo a vi funcionar nas universidades americanas, fosse um meionovo e eficaz para abrir as massas à política, mas parece que elaindica apenas que a própria ação se tornou teatral. Sem dúvida, aação simbólica tem sua força, como a tinham os gestos simbólicosdos antigos profetas de Israel. Mas o que há de mais perigoso queuma ação reduzida a uma fantasia e sub-repticiamente subtraída àscondições reais da ação eficaz? A ação possui suas leis, sua racio-nalidade própria. Um dos sinais da contracultura consiste em negaressas leis e essa racionalidade. Mas há um preço a pagar: a impo-tência de influir sobre a sociedade.

O mais grave de tudo é o progresso da não-comunicação nasociedade. A patologia do conflito em nossa sociedade chega aocúmulo quando o adversário nem mesmo é reconhecido. Já sefalou da sociedade em migalhas, em todos os planos: profissional,cultural, religioso. O aspecto mais grave da sociedade em migalhasconsiste na ruptura do vínculo social no nível do casamento, dosestilos de vida, e no surgimento de uma sociedade paralela ou,como dizem os americanos, da altemative society. Mas que alter-nativa, senão a dissidência que deixa tudo no mesmo lugar, queinquieta e ameaça, mas sem lançar as sementes de mudança?

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3. RÉPLICA À IDEOLOGIA: POR UMA NOVA ESTRATÉGIADO CONFLITO

Eis o que pretendia dizer sobre as motivações-anteparo, sobreas ideologias. Atualmente, nosso problema é o de atravessar essasmotivações-anteparo e liquidar, em nós, essa apreensão ideológicados conflitos. Tratei a ideologia como uma esquematízação im-posta pela força aos fatos, seja para minimizar, seja para impor oconflito, mas sobretudo como uma concepção-anteparo que nosimpede de reconhecermos a realidade.

A réplica à ideologia deve ser ao mesmo tempo empírica, teó-rica e prática.

- Réplica empírica: hoje em dia, precisamos ter o espíritomuito flexível, bastante experimental, muito atento às formas anti-gas e novas do conflito; precisamos não nos contentar com análisesde mais de um século, e tornar-nos descritivos, discernir os verda-

i deiros conflitos, não só contra as ideologias que os mascaram, mascontra as ideologias que os reforçam. É o que tentei analisar noprimeiro item.

t; — Réplica teórica: temos necessidade de uma reflexão fun-damental sobre o conflito, sobre a função do conflito. Gostaria,aqui, de trazer a contribuição de uma reflexão mais propriamentefilosófica, e discernir o desafio de todos os conflitos descritos.Surpreende-me o fato de não conseguirmos mais, em nossos dias,colocar juntos estes dois termos: liberdade e instituição. O desafio

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que se dissimula sob o conflito da sociedade repressiva e da liber-dade selvagem, da ideologia do diálogo e da ideologia do conflito atodo preço, está contido na seguinte questão: como podemos con-jugar os progressos da liberdade e os da instituição? Para mim, aíse situa o lugar, o cerne do drama e do dilaceramento contempo-râneos. Já possuímos uma crítica dos sistemas econômicos, querdo capitalismo, quer do socialismo autoritário. Todavia, os conflitosde ponta nos conduzem além dessa crítica dos sistemas. O que meparece em questão é a possibilidade mesma de vivermos em insti-tuições.

Com efeito, de um lado, as instituições se tornaram iÜsíveis,indecifráveis, estranhas e alienantes, pesadas e insuportáveis; dooutro, estamos fascinados pelo fantasma de uma liberdade seminstituições. É esse paradoxo que me parece subjacente ao quechamei de ilusão da dissidência e de tentação da ordem.

Ora, para enfrentar essa vertigem de duplo sentido, vertigemda ordem e vertigem da liberdade selvagem, precisamos refazertodo um trabalho de pensamento: o que fizeram os grandes filóso-fos políticos Platão e Aristóteles, entre os antigos, Maquiavel,Rousseau e Hegel, entre os modernos. A tarefa, ontem como hoje,consiste em interrogarmos sobre o que pode ser uma liberdadesensata, vale dizer, uma liberdade portadora de sentido. Precisa-mos, em cada época histórica, reinventar o problema do Contratosocial de Rousseau, isto é, a idéia de um pacto segundo o qual"cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém". Em outraspalavras, a idéia de uma mútua desistência pela qual a liberdadeselvagem é trocada contra a liberdade civil. Para Rousseau, é ver-dade, o contrato era apenas um contrato político colocando emjogo o Estado e a soberania deste. Para nós, hoje em dia, o pro-blema é o do vínculo social mais elementar, no nível da linguagem,da sexualidade, e no exercício de todos os tipos de autoridade.Tomado em sua extensão mais ampla, o desafio do Contrato socialé o do "ingresso nas instituições". Por conseguinte, a tarefa denosso tempo consiste em passar do "contrato social restrito" (aopolítico e à soberania) a um "contrato social generalizado" (a todainstituição).

Se recusarmos essa problemática, nossa liberdade permaneceráuma arbitrariedade intransigente e devastadora, aquilo que Hegel,retomando Rousseau, chamava de "liberdade do vazio, fúria de

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destruição". De fato, uma liberdade que não se insere numa insti-tuição é potencialmente terrorista. Portanto, a pedra angular deuma filosofia social consiste, hoje, em repensar todas as institui-ções em função de um único critério: a realização e o desabro-chamento da liberdade.

A instituição nada é em si mesma. Ela consiste num conjuntode regras, aplicadas aos papéis e aos comportamentos sociais, per-mitindo à liberdade de cada um realizar-se sem prejudicar a dosoutros. Todo pensamento político fundamental deve levar emconta esse ponto crucial em que a instituição e a liberdade seentrelaçam, ou melhor, se engendram mutuamente. Se a instituiçãonão se situa nesse trajeto inteligível, que Hegel chamava de "rea-lização da liberdade", ela se torna, então, opaca, ilisívelj indeci-frável, e cada um começa a sonhar com sua liberdade fora das leis.Em contrapartida, uma coisa é certa: o que é mais contrário atodo pensamento político — e, finalmente, a toda ação política —é a reivindicação do informe. Em termos positivos, o ingresso nainstituição faz parte do conceito de liberdade, se é que a liberdadesensata deve ser outra coisa que a liberdade arbitrária e selvagem.Uma apologia da liberdade selvagem, eliminando a questão do sen-tido, conduz necessariamente à "fúria de destruição".

A partir dessa convicção fundamental podemos retornar, ago-ra, aos problemas concretos que evocarei para concluir.

Somente aquele que conserva no mais profundo de sua convic-ção a exigência de uma síntese da liberdade e do sentido, do arbitrá-rio e da instituição, pode viver de modo sensato o conflito central dasociedade moderna. E mesmo que não consigamos, em nossos dias,dar uma forma à nossa esperança, pelo menos já podemos dar umnome ao nosso descontentamento, pensá-lo e compreendê-lo. É ver-dade que, tanto no mundo capitalista quanto no mundo comunista,a história humana não conseguiu realizar uma síntese feliz entre opoder de decidir, detido pelos diversos poderes e concentrado nopoder do Estado, e a pulsão das liberdades movidas por um sonho deespontaneidade, de autodeterminação e de autogestão, em suma, decriatividade. Todavia, ao conferir um nome a nosso descontenta-mento, atribuímos também uma tarefa ao nosso desejo.

- Réplica prática, enfim. Sob esse título, situarei algumas su-gestões concernentes ao que chamarei de uma nova estratégia dos

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conflitos. Contudo, encontramo-nos, aqui, num terreno tão novo,estamos tão desprovidos de recursos, que precisamos deixar nossassugestões sob a forma da seguinte questão: "o conflito, sinal decontradição ou de unidade? "

l- Uma primeira questão obceca os educadores e todos aque-les que detêm certa responsabilidade, possuem certa autoridade, eque têm a tarefa de manter em estado de funcionamento umainstituição qualquer: até que ponto, e como, assumir na condutasocial o tipo de experimentação selvagem que vimos manifestar-seno plano dos costumes, das relações sociais e políticas? Devemosaumentar a tolerância da sociedade no que se refere a todos oscomportamentos "anômicos"? Devemos e podemos? Ouvi recen-temente dizer que uma sociedade só funciona na base de umalealdade. Se isso é verdade, será que todo relaxamento das tole-râncias abaixo de um limiar crítico não provocaria, cedo ou tarde,a réplica de uma nova "ordem moral", de direita ou de esquerda,capaz de fornecer — e, quando necessário, de impor — uma novalealdade? Em suma, até onde não se deve deixar ir o laissez-faire,o laisser-passerl Talvez não haja resposta abstrata, fora da recons-tituição de certo consenso social concernente a limiares, a limites,e fora de uma espécie de tato, qualidade máxima do estadista deamanhã, concebido como educador da comunidade, tanto quantodepositário da decisão política.

2. Uma segunda questão diz respeito ao bom uso das ações deruptura, simbólicas ou não, violentas ou não. Gostaria de acreditarque elas possam despertar as massas de seu sono. Mas, também aeste propósito, há, em algum lugar, um limiar crítico. Para alémdesse limiar, elas não são mais compreendidas, e só provocammedo, ódio e cólera. O problema, atualmente, é o de fazer com-preender, de concientizar, como dizem muito bem nossos amigossul-americanos. A essa tarefa não convém ações por demais teatra-lizadas, porém verdadeiras campanhas de explicação. Temos neces-sidade de mediadores sociais que não procurem conciliar a todopreço, nem tampouco polarizar a todo preço, mas que ajudemcada indivíduo a reconhecer seu adversário. No meu entender, omediador social é aquele que explica ao homem do poder as mo-tivações profundas da contestação, que lhe revela ser ele aquele

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que não possui projeto global — e não, como ele crê, seu adversá-rio, que tão facilmente acusa de "querer tudo destruir sem saber oque colocar no lugar". Mas o mediador social também é aqueleque explica ao anarquista a necessidade e o sentido do ingresso nainstituição. Para tanto, dar-lhe-á algumas aulas sobre Hegel!

Contudo, trata-se também de uma questão de saber o que sepode esperar, hoje, de tal esforço para concientizar, que oponho a"traumatizar". Como fazê-lo, quando os lazeres e a cultura popularsão captados e modelados pelas mesmas forças que imperam sobrea produção e o consumo?

3. Uma terceira questão, bastante importante, consiste emsaber o que ocorre e o que se passará com o velho debate entrereforma e revolução. Sou inclinado a dizer que, posto em termosde alternativa, o debate é puramente acadêmico e escolástico. Oessencial, em cada situação, consiste em saber que mudanças sãotidas por desejáveis e razoáveis; trata-se de uma questão de opor-tunidade e de ocasião de se conhecer a estratégia apropriada. Por-que, se as reformas podem ser acusadas de consolidar e de prolon-gar o sistema, as revoluções - sobretudo as frustradas - apresen-tam um custo econômico, social e, sobretudo, humano que se evitaavaliar. Nossas sociedades talvez tenham ultrapassado o ponto des-sa alternativa. Talvez tenhamos ingressado no momento da estraté-gia complexa, durante o qual fases de negociação, de concertação,alternarão com fases de agitação, de ruptura, até mesmo de violên-cia, mas sem que o ritmo de crescimento fique fundamentalmenteameaçado. Esta cláusula coloca hoje à ação revolucionária condi-ções desconhecidas das sociedades menos avançadas e, por issomesmo, menos frágeis que as nossas.

Estaria inclinado a dizer que a revolução e a reforma, nestecaso, não se situam no mesmo plano de referência. A revolução sesitua no nível das convicções e das motivações: ela é o não da granderecusa. A reforma caracteriza o nível da ação: designa as mudançasde fundo impostas à realidade social e política. Talvez sejam neces-sários os momentos de, ruptura violenta. Mas devem ser pensadosapenas como uma peripécia. A revolução não é uma peripécia: é apressão contínua da convicção sobre a ação responsável. Uma novarepartição se esboça, assim, entre os grandes termos que servem paradefinir uma estratégia da ação política.

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Todavia, não pretendo eliminar a forma interrogativa dessa ter-ceira sugestão, que deixo à reflexão dos leitores: será que nossassociedades ultrapassaram as formas clássicas da ação revolucionária,tais como foram codificadas pelos grandes pensadores socialistas,de Proudhon e Marx a Lenine e Trotsky?

Com essa sugestão, que incomoda muitas idéias adquiridas,pretendo finalizar. Mas será que não somos destinados a sermosincomodados em nossas idéias recebidas, se é que queremos per-manecer atentos às novas formas de conflitos e projetar os traçosnovos da própria ação?

Nosso modo de tomar parte nos "gemidos da criação" consisteem inscrever nossa esperança numa leitura atenta e numa açãoinovadora.

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métodos explicativo e compre-ensivo. Critica o pensamentoesquizóide que opõe radicalmen-te ciência e ideologia, por nãover, entre ambas, uma relação detipo dialético. Ora, nenhumcientista social fala de um lugarnão-ideológico. Nenhuma ciênciagoza do privilégio de uma ima-culada concepção. A pretensaneutralidade axiológica não pas-sa de um engodo. Tampoucoexiste uma imaculada concepçãoda Razão. Donde a necessidadede ser desmitificada. Assim, acrítica da consciência falsa cons-titui uma tarefa da- hermenêu-tica. Mas a crítica das ideologiasprecisa submeter-se a uma refle-xão interpretativa chamada demeta-hermenêutica.

A parte final da presente obratem um tríplice objetivo: a)descrever os novos conflitos dassociedades industriais avança-das; b) situar, face a esses neo-conflitos, algumas das atitudesde caráter ideológico que masca-ram seu sentido e sua realidade,engajando-nos em comportamen-tos estéreis; c) extrair dessas mo-tivações-anteparo sugestões teó-ricas e práticas para a elabora-ção de uma nova estratégia dosconflitos. Talvez essa elaboraçãopressuponha uma reflexão capazde descobrir as raízes do homemque não vive somente de pão,bem como esse gemido de umacriação que não se faz sem con-flito, nem tampouco no conflitoa todo preço, mas no coraçãomesmo dos conflitos vividos naesperança.