interpretação das leis processuais (1956)

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Interpretação Das Leis Processuais (1956)

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Page 1: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS

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Page 2: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

COLEÇÃO PHILADELPHO AZEVEDO

EDUARDO J. COUTURE -: \

\

·.::. ~><.f' '· · .. \

\\{;>·····/

Interpretação das Leis Processuais

DEDALUS -Acervo - FD

20400007757

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... :: ~L.~.-~~' , 1956

MAX LIMONAD llUA QUINTINO BOCAIUVA, 191 - 1.•

8ÃO PAULO - BMIIL

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Page 3: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

~L\-:t~ C..91~.\ é> 1

Page 4: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

Tradução da

DRA. GILDA MACIEL CoRRÊA MEYER RusSOMANO

(Profesaóra da Faculdade Católica de Filosofia de Pelotas. Assistente da Faculdade de Direito de Pelotas, da Universidade do Rio Grande do Sul. Do Instituto de Direito do Trabalho do Rio Grande do Sul)

Page 5: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

A NrcETO ALcALÁ-ZAMORA y CASTILLO

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Page 7: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

fNDICE ANALíTICO

Págso

N.- do tradutor .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 9 Nota do autor na edição mexicana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

CAPÍTULO I

UMA AULA IMAGINÁRIA

Que é interpretar a lei? .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 13 Interpretação e tradição o .... 00 .. o .. o .. o .... o 00 .. o o .... o o o o o 14 Interpretação e jurisprudência .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 15 Exegese e interpretação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Ambiente vital e interpretação progressiva . , . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 Interpretação no .. common law'" e no direito codificado . . . . . . 19 Interpretação e vontade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Reoumo o o o 00 o o 00 .. o o 000 o o o o o o· .......... 00 o o o o o .... o o •• o 22

CAPÍTVLO 11

OBJETO DA INTERPRETAÇÃO

Objeto, sujeitos e resultado da interpretação . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 A Constituição e as leis ............... 00 ................. o 26 A lei civil ...... oo .............. 00 ... 00 .... 00 ....... oo .. o 27 A lei penal ....... 00 ............................ oo 00 .... o 28 A lei processual ...... 00 ........... 00 00 .......... 00 00 .. .. • 29

CAPÍTVLO Ili

SUJEITOS DA INTERPRETAÇÃO

Dlveraldade de intérpretes .. o .......... 00 .... oo oo ....... 00 o 33 Interpretação legislativa ou autêntica ....................... o 34 Interpretação judicial ....... 00 • 00 • 00 .. • .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 35 lnterpretaçlo doutrinária ....... 00 • 00 ......... 00 ... 00 00 .. 00 • 36

Page 8: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

II EDUARDO Jo COUTURE

CAPÍTuLO IV

RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO

18. Interpretação e integração da. lei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 l9o As lacunas da lei .... 00. oo 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00.... 41

CAPÍTIJLO v

INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS

20. Natureza processual da lei ....................•... , . . . . . . . . 45 21. Mandainentos prQcessuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 22. Principias processuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..• . 48 23. Leis processuais •.......•...........••........ , • • • • . . . . . . . 49 24. O problema da interpretação da lei processual . . . . . . . . . . . . . . . . 50 25o Deficiências do léxico legal .......... 00 00 oo ..... 00 00....... 51 26. Colisão de textos e de princípios .............. , . • . . . . . . . . . 53 27. O caso processual não previsto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 28, Interpretação e integração das leis no Projeto de Código de Processo

Civil de 1945 (Uruguai) .... 00 00 • 00 .. 00 00 00 .......... 00 oo o 58

DEBATE

Nota explicativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Texto dos arts. 1,0 a 9.0 do Projeto de Código de Processo Civil . . . . 65 Palavras do Professor Al.CALÁ-ZAMORA y CASTn.LO • • • • • • • • • • • • • • • • 66 Resposta do Professor CoUTURE • . . . . • • • • • . . . • • . • . . • . . . . • • . • • • • . . . 75 Palavras do Professor JosÉ CASTILLO LARRAN AGA •••••••• , . • • • • . • • • • • 79 Resposta do Professor COVTURE • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • 80 Palavras do Professor RoBERTO A. EsTEVA Rmz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 Resposta do Professor COUTURE • • • . • . . • • • . • • • • . • • . • • . • . • • . . • • • • • • 84 Palavras do Professor GARciA M.AYNEz . . . . . • • • . • . . . . • . . • • . • • • • • • . 89 Resposta do Professor CounmE . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 Palavras do Professor GAIIRIEL GARCIA RoJAS o o o o o o o o o • o • o • o o o o •• o 101 Resposta do Professor CoUTURE . 00 00 00 .. 00 oo ... 00 ........ 00 00 .. 00 107 Pal&vras do Professor IGNActO MEDINA .. o 00 00 ..... 00 .. o ....... o 00 111 Resposta do Pr<>fessor CoUTURE o 00 .. 00 ...... oo 00 o 00 oo .. 00 00 o 00 00 o 113 Palavru do Professor EMÍLIO PA11Do ASPE o oo oo oo oo ...... o o 00 .. o 00 117 Resposta do Professor CoUTURE o .. o o 00 .. o o oo oo o .. o 00 ..... o 00 .... o 119

Page 9: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

.. MITAÇlO DAS LEIS PROCESSUAIS 111

do PtofessOl" RAFAEL J)E l'INA . . . . . . . . . . • . . • . . . . . . . . . . . . . 121 lltp- do Professor CoUTUIIE • • • • • • • • • • • • • . • . • • • • • • • . . • • • • • • • • • 125

do Professor Luis IIEcASÉNs StCBES • . • • • • . • • . • . . • . • . . • . . • 131 do Professor ColJTUIIE • • • • • • • • • • • . • • • . • • • • • • • • • • • • • . • • • • 136

iJ5:; do Professor ALBERTO TRUEBA URBINA • • • • • • • • • • . . • • • • . • • 141

do Professor CoVTURE . . . • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • . • • • . . • • 143 do Professor VmcÍLto DoMINGUEZ, Presidente da sessão..... 147 ..,.,.ta do Professor CoVTURE • • • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • • • • • 149 ...,.,.enio da sessão pelo Professor Vmcluo Do:i.m<cUEz . . . . . . . . 153

INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS

1'Jocoaso e conduta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Cltllcia e técnica do processo . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . 157 Proposições 16gicas do direito processual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158 Proposições ontológicas do direito processual . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Propollções axiológicas do direito processual . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

A INTERPRETAÇÃO LITERAL DAS LEIS (Nolo8 para um Vocabul6rio de Dit"ello Processual Civil)

QUE E UM VOCABULÁRIO JURlDICO?

Aclverttacla Conceitos preliminares ...........•.....•..•................ Vocabulário e euclclopédia ..........................•..... VocabuiArio e dicionário .......................••...•...... Vocabulário e repertório .......••.•..•..•.................. Vocabulário e lndlce •...•.....................•........... Que ' um vocabulário juridlco? ........................... .

G.u>ÍruLO II

LEVANTAMENTO LEXICOGIIÃFICO DE UMA CIENCIA

169 169 170 172 175 176 177

O pmblema do levantamento . . . . . • . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 179 a.ndu naturall o cltDcias culturais • . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . • 179

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IV EDuARDo Jo Cou:ruRE

10. CMncía do direito e direito positivo . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . 181 llo O léxico do direito positivo .......... o . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 181 120 Temporalidade e espacialidade da lioguagem juridica o o o o o o o o 183 13. Solução do problema do levantamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

CAPÍTuLo IIl

PLANO PARA UM VOCABULÁRIO

13. Materiais a insertar ................................. , .... , 187 14o O problema das definições ............................ \.... 187 15 o O indice de vocábulos ............... 00 00 • 00 ............. o 191 16 o A exemplificação o ............. o .... o o o ....... o . .. .. .. .. . 193 17. A etimologia . .. .. .. .. . .. .. .. . .. . .. . .. .. . .. .. .. . .. .. .. .. .. 194 18. A tradução para outros idiomas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

CAPÍTuLO IV

ClltNCJA E IDIOMA

• 19. Do equívoco à precisão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 20 o Plano de trabalho futuro o ...... o ................. oo .. o ... o 198

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NOTA DO TRADUTOR

Em 1947, nos cursos de inverno da Escola Nacional de Jurisprudência, da Universidade do México, o professor EDuARDO !r. CouTURE, catedrático da Faculdade de Direito de Montevidéu, realizou uma série de conferências, que colheu aplausos unânimes e entusiásticos dos juristas daquele país.

Depois de proferidas essas memoráveis lições, discutiram­-se, em sessão de mesa redonda, os dispositivos do Capítulo Preliminar do Projeto de Código de Processo Civil elaborado, em 1945, para o Uruguai, pelo professor EDuARDO J. CoUTURE.

As conferências e o debate foram divulgados, em primeira mão, pela "Revista de la Escuela di!! Jurisprudencia", em 1949. A ressonância alcançada pelas palavras do ilustre jurista uru­guaio, entretanto, reclamou que tais estudos fôssem enfeixados em volume, o qual veio à publicidade no México.

Ainda cheios de atualidade científica e de interêsse prá­tico, conferências e debate, agora, reaparecem, em uma tra­dução brasileira.

Esta, como a edição original, é constituída de duas partes distintas: ao lado do curso que o professor CouTURE realizou na Universidade mexicana, encontrar-se-á, neste livro, a ampla troca de idéias que, naquela ocasião, foi feita sôbre os pontos introdutórios de seu Projeto.

• • •

A Interpretação das Leis Processuais surge, no amplo cenário das letras jurídicas brasileiras, algum tempo depois da publicação, em português, das conferências que o seu autor

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10 EDUARDO J. C011tl!RE

reali:wu na Faculdade de Direito de Paris, que constituem a Introdução ao Estudo do Processo CiviL

Um lz'vro completa o outro. São elos representativos de uma longa cadeia de realizações culturais, de investigações pessoais na vida concreta do mundo jurídico e de infatigáveis pesquisas científicas que o professor EDuARDO J. CouTURE

está forjando, na sua brilhante peregrinação pelas principais Universidades modernas, em prol do desenvolvimento do Di­reito e, em particular, do Direito Processual Civil, que nAle encontra uma de suas mais altas e mais completas expressões.

Pelotas (Rio Grande do Sul), outubro de 1955

GILDA MAciEL ConliÊA MEYER RussoMANO

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;·. í' ' l, I.

NOTA DO AUTOR NA EDIÇÃO MEXICANA

A versão taquigráfica do curso que realizei na Escola NacionaL de Jurisprudência, do México, foi, posteriormente, corrigida e anotada com as referências bibliográficas consi­deradas indispensáveis para assinalar a posição destas pales­tras em face de estudos anteriores sôbre temas análogos ou para indicar as fontes de informação mais importantes sôbre a matéria abordada.

Da mesma forma, a dissertação ficou dividida em capí­tulos e parágrafos, para que se tornasse mais amena a sua leitura.

EnuAIIDO J. CouTURE

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CAPÍTULO I

UMA AULA IMAGINARIA

IVMARIO: 1 - Que é Interpretar a lei? 2 - Interpretação e tra­dição. 3 - Interpretação e jurisprudência. 4 - Exegese e Interpretação. 5 - Ambiente vital e Interpretação progressiva. 6 - Interpretação no common law e no direito codificado. 7 - Interpretação e vontade. 8 - Resumo.

I

QUE !f. INTERPRETAR A LEI?

Através de uma ficção singela, imaginemos que nos encontramos em uma aula universitária, na qual o professor

' formulou a vários estudiosos do Direito esta simples pergunta: · Que é interpretar a lei?

A pergunta é, ao mesmo tempo, muito fácil e muito dllicil. Interpretar é inter pretare, que deriva de interpres, isto é, mediador, corretor, intermediário. O intérprete é um Intermediário entre o texto e a realidade; a interpretação consiste em extrair o sentido, desenterrar o conteúdo, que o

. texto encerra com relação à realidade. Até aí, é fácil a pergunta. A partir dêste momento co­

. meçam as dificuldades. O primeiro empecilho será apresentado pelo aluno que

: levantar sua voz para chamar a atenção sôbre o fato de que Interpretar a lei não é interpretar o Direito. O Direito é o

; todo do objeto interpretado; a lei é, apenas, uma parte. A lei · ti interpretada, extraindo-se dela um significado mais ou me­nos oculto; a extração dêsse significado, entretanto, pressupõe a consideração de todo o Direito. A lei sempre é Direito, mas nem todo Direito é lei.

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14 EDUARDO J. COUTUIIE

A questão inicial consiste, portanto, em sublinhannos que interpretar a lei não é interpretar o Direito, mas um frag­mento dêste. Interpretar o Direito, isto é, averiguar o sentido de uma norma em sua acepção integral, pressupõe o conhe­cimento do Direito em sua totalidade, bem como a necessária coordenação entre a parte e o todo.

II

INTERPRETAÇÃO E TRADIÇÃO

Aceita a observação, levantar-se-á um aluno, para evocar o conceito ingênuo que se teve, no passado, da interpretação.

Os jurisconsultos romanos conseguiram reunir, em suas recompilações, alguns conceitos interpretativos, que atendiam, primordialmente, ao valor das palavras. Somente quando se perder a clareza do texto será preciso entrar em seu espirito, porque in claris non fit interpretatio.

O direito romano formulou uma série de apótemas sim­ples de interpretação da lei. Antes de tudo, o sentido das palavras. 1 Nunca se devem alterar as disposições que sempre tiveram uma interpretação certa.2 O costume é a melhor interpretação da lei. 3 E, caso não bastassem essas máximas, primeiramente, a liberdade;• ou, quando muito, a bondade e a indulgência.~

O professor advertirá, então, que não é êsse, propria­mente, um método de interpretação e muito menos uma ati­tude filosófica a que corresponda essa posição. As máximas dos jurisconsultos romanos constituem, antes, a sua política da lei.

1. ULPIANO, Digesto, 4, 4, !, 9. 2. PAULO, Digesto, 1, 3, 2, 5. S. PAULO, Digesto_, ], 8, S, 7. 4. PoMPÔNIO, Digesto, 50, 17, 20. 5. MARCELO, Digesto, 50, 17, 198; PAULO, Digtsto, 50, 17, 157.

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DAS LEIS PROCESSUArB 15

III

INTERPRETAÇÃO E JURISPRUDmCIA

Outro aluno mostrará, agora, que êsse mesmo conceito dt interpretação ainda subsiste em nosso tempo, nos amplos .-tores da experiência jurídica.

A margem da discussão das diversas escolas interpreta­Uvas se vem formando, através da obra secular dos juízes, um conjunto de máximas de bom senso sôbre como deve ser inter­pretado o Direito.

Seria possível mostrar, por exemplo, de que maneira, 'reunindo centenas e centenas de dísticos, que se repetem com ,uma freqüência obstinada nas sentenças dos juízes, se pode

".construir, em suas linhas gerais, um sistema interpretativo.• ' A jurisprudência anglo-americana não procede, nessa ma­teia, de maneira muito diferente.7

O exame dêsse estranho modo de operar, ao mesmo tempo antigo e tão moderno, mostra-nos uma utilização sucessiva diversos métodos.

Uma doutrina que se tornou famosa8 distinguiu diversos Jplroc:cdimentos nessa tarefa.

De um lado, o processo gramatical, tratando de descobrir, primeiro lugar, o sentido próprio das palavras da lei. Nu­

~m,er.os<>< códigos modernos fixaram, neste assunto, com certa :PJ'ecisão, o valor que se deve atribuir à lei e às suas palavras.

De outro lado, o processo lógico, procurando que o tra-l!;"-•ll;,n de interpretação não infrinja os preceitos que a lógica :'•.a:pont·ou ao pensamento humano. São, de certo modo, regras

Assim, por exemplo, PARRY, Interpretación de la Ley, Buenos Aires, 1941. :In Rev. de Derecho, ]urisp. y A.dministración, t. 38, 1940, pág. 285, Montevidéu.

mesma forma, Busso, Código Civil Anotado, Buenos Aires, 1944, t. I, págs. e segs. 7. V .• Ultimamente, FRANKFURTER, Some Reflections on the Reading of Sta­

in Columbia Law Review, t. 47, n.0 4, pág. 527. SAVIGNY, Traité de Droit Romain, trad. de GufNOVX, t. I, pág. 205.

Page 17: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

16 EDUARDO J. COUTUaE

de higiene mental que conduzem o raciocínio ao seu exato ponto de chegada.

De outro lado, ainda, o processo histórico. A lei é um produto da experiência histórica. Surge em determinado mo­mento, para determinada necessidade, procurando determi­nada solução. A história lhe imprime, pois, o seu sêlo e o intérprete deve ser fiel a essa inspiração.

Por último, o processo sistemático, visando a que cada parte da lei conserve com o todo a devida correspondência e harmonia. 9

IV

EXEGESE E INTERPRETAÇÃO

Os conceitos precedentes constituem um bom método para superar a exegese. Tôda interpretação da lei, porém, é, em primeiro lugar, uma operação de exegese. O chamado método gramatical nada mais é do que o reconhecimento de que a lei é expressa em palavras e que sempre é necessário começar pelo conhecimento delas.

(!) O mais grave, entretanto, é que as palavras têm signi­ficações imprecisas e ondulantes. As palavras da lei nascem, VIvem7 se transformam e morrem. O famoso Dicionário de EscRICHE se inicia com o vocábulo abacerias, cujo significado ninguém, hoje, conhece: isto é, inicia-se com um cadáver de palavra. Os dicionários jurídicos de nossa época estão po­voados de expressões ininteligíveis para os juristas do século anterior.

9. O Código Civil uruguaio colheu &ses preceitos, indiJtintamente, do Có­digo francês, do chileno, do italiano e dos Projetos de GAII.CIA GoYENA e de ACEvEDO. Suas disposições sa.o algo parecido com as legum leges, de BACON; verdadeiras leis das leis. A exegese de nossos textos foi feita por GUILLOT, Comentarias del Código Civil~ 2.3 ediÇão, Montevidéu, 1928, t. I, págs. 64 e aegs.; seu original chileno foi anotado por CLARO Sol.All., Explica.ciones de Derecho Civil Chileno y Comparado, 2.a ed., Santiago, 1942, t. I, págs. 120 e segs.; sua exposição, adaptada ao estado atual da do.utrina, foi abordada por JIM!NEZ DE .AúcHAGA,

lnterpretacidn e lntegracion del Derecho, in Revista de Derecho Publico 'I l'rl· vado, Montevidéu, 1942, t. 9, pág. 299; t. 10, págs. 159 e 271.

Page 18: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 17

E não ocorre apenas o fato de que as palavras têm signi­ficações variáveis e ondulantes, naturalmente imprecisas, que tornam virtualmente impossível uma obra exata de interpre­tação; ocorre, além disso, que a lei se exprime não só em palavras como também em conceitos. Nêles, combinações quase misteriosas de vocábulos, os possíveis significados são ilimitados. A incerteza natural de cada têrmo se junta a incerteza natural de suas combinações recíprocas.

A idéia de bons costumes é definida por dois vocábulos, um dos quais se refere à ~ndade e outro, aos hábitos de com­portamento social. A bondade admite uma escala infinita de matizes entre o bem e o mal. Os modos de comportamento social variam de um século para outro; de um lugar para outro, no mesmo século; de uma pessoa para outra, no mesmo lugar e ao mesmo tempo. tj.;,

O próprio conceito de bons costumes não foi uma idéia abstrata no Direito Romano, mas uma remissão concreta às máximas de conduta da filosofia estóica.'0 Hoje, não se refere a nenhuma filosofia, bem como a nenhuma moral determi­nada. Aquela dama inglêsa que, vendo dançar um jovem par, exclamou: "Se êsse moço fôr um cavalheiro, depois dêste baile, terá de casar com essa senhorinha!" - mostrava como a idéia de bons costumes é flutuante no tempo, no espaço e na avaliação dos atos de comportamento social.

Ainda em nossos dias, a idéia derivada do conceito de bom comportamento humano, que os romanos configuraram no conceito de bom chefe de família, protótipo da virtude e da prudência no Direito Privado, vem sendo substituída, sob a pressão das exigências do Direito Público, pelo conceito de homem das ruas, tipo médio de cidadão sereno e repousado

10. SENN, Des Origines et du Contem' àe la Notion de Bonnes Moeurs~ in Recueil Gény, t. I, pág. 59. No mesmo volume, RADIN, La Cen.nne des Coutumes, I. I, pág. 89.

Page 19: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

18 EDu ARDO J. COUTUIIE

que, nas democracias, julga, imparcialmente, os atos de s<Jus governantes.11

,_f; Concluamos, pois, que não existe operação de exegese que possa ser esgotada em uma simples apreciação grama­tical e que não há operação interpretativa do Direito que possa ser esgotada em um simples trabalho de exegese.

v

AMBIENTE VITAL E INTERPRETAÇÃO PROGRESSIVA

A quem se coloque, assim, de sobreaviso contra o sentido da~ palavras, outro aluno mostrará que não se trata de que as palavras nasçam, vivam ou morram, mas de que elas nada mais são do que representações: representam pensamentos e vontades.

{jf) Que é, então, interpretar? Será representar os pensa­mentos e vontades do tempo da sanção ou representar os novos e variáveis sentidos que essas palavras vão adquirindo no futuro?

A lei é, em sua origem, um ato de govêrno, uma norma; nesse sentido, a interpretação seria, de acôrdo com a lingua­gem que, freqüentemente, 12 se utiliza, a determinação do am­biente vital da lei, isto é, do clima sob o qual foi forjada; a representação dos atos que a fizeram nascer.

Essa tese, porém, não resiste à crítica que adverte que interpretar a lei, descobrindo o ambiente vital em que se pro­cessou sua gestação, significa restringir o sentido da mesma à época histórica em que foi plasmada. O certo é que a lei,

11. SANTI ROMA.''W, Frammenti di un Diz.ionario Giuridico1 Milio, 1947, pág. 2S4.

12. GÉ.NY, Méthode d'Interpretation el Sources em Droit Priv~ Positif, 2.• ed., Paris, 1919, t. I, págs. 269 e segs.

Page 20: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

j

I

}NTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAm 19

uma vez nascida, segue vivendo ao longo do tempo e muito mais além da significação originária que lhe emprestou o legislador: os atos de responsabilidade por prejuízos causados pelos automóveis não estavam na idéia de PoRTALIS; conti­nuamos, entretanto, a nos guiar pelos princípios do Código Napoleônico na determinação dessa responsabilidade.

~ "A lei- diz-se- é mais inteligente que o legislador".

A interpretação histórica do tempo da sanção deve, então, ser substituída pela inteq>retação progressiva, isto é, por um método de interpretação que projete, através da história do futuro, o conteúdo da lei.'"

VI

INTERPRETAÇAO NO "COMMON LAW" E NO DIREITO CODIFICADO

Outra voz se levantará, contudo, para formular uma con­sideração muito especial.

O direito anglo-americano - dirá - não concebe a inter­pretação da lei senão como um achado do direito existente, de um estatuto ou do precedente que resolve um caso.

Tratando de expressar o sentido dessa concepção norte­-americana da interpretação da lei se tem dito: Nosso mé­todo é histórico e não lógico; não procuramos fazer lógica jurídica, mas averiguar, mediante o achado de uma lei, o sentido de uma solução jurídica; não aspiramos a que o Di­reito seja completo, porque a nossa experiência nos ensina que êle não o é; buscamos, apenas, no tesouro de nossos prece-

13. A chamada interpretação progressiva aparece estudada em BINDING, Handbuch des Strafrechts, págs. 454 e aegs.; KÕHLER, em Zeitschrift für das Privat und lJffentliches Recht, XIII, págs. 1 e segs.; HÕLDER., Pandekten, Fri.burgo, 1891, págs. 42 e segs. Veja-se, nesse mesmo sentido. Rocoo, L'lnterpretazione delle Leggi Proces.suali, Roma, 1906.

Page 21: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

20 EDUARDO J. COUTUU:

dentes, a lei escrita ou consuetudinária que solucione o caso particular. 14

Por sua vez, porém, êsse ponto de vista pode ser obje­tado, dizendo-se que, na realidade, a forma de redação do texto, seja articulada, seja mediante recompilação de prece­dentes, não faz variar o significado do ato interpretativo.

A doutrina citada, entretanto, não coincide com a de AusTIN, o grande clássico da jurisprudência analítica. Para êste, o Direito é um sistema de regras completas e prontas para serem aplicadas, sem que se considere o processo de sua criação.15 Dada a existência da norma jurídica, a forma par­lamentar, judicial ou consuetudinária é indiferente. O fun­damental é que essa norma seja, de fato, uma norma e que · tenha, na dinâmica do Direito, uma hierarquia específica. Existindo ela dêsse modo, a tarefa do intérprete, dirigida a descobrir seu conteúdo, não varia em razão da forma da regra.16

VII

INTERPRETAÇÃO E VONTADE

A complexidade natural do ato interpretativo, a luta contra as palavras, contra o tempo, contra a unidade plena

14. POUND, no prefácio do livro de SILVEIRA, O Fator Polltico·Social da Inter· pretação das Leis, Slio Paulo, 1946. Do mesmo, More A.bout th• Natur~ of Law, in Legal Essays in Tribute to Orrin Kip Mac Murray, Califórnia, 1985, pág. 51!. O mais importante esfôr~ da doutrina americana a ~ reapeíto 1e encontra enfeixado no volume Science of Legal Method_, vol. IX, da 1érie Modem Legal Philosophy Series, Boston, 1917. Veja-se, também, AscARELLI, L'/dea di Codice nel Diritto Privato e la Funzione della Interprt:taziontJ, in Saggi GiurídiciJ Milfo, 1949, espec. pág. 53.

15. AUSTIN, Lectures on ]urisprudence, Londres, 1911, 5.• ed., t. I, pág. 31. / Veja-se a nota de BLEDEL, no estudo de KEI.sl.N, La Teoria Pura del Derecho y la jurisprudencia Analítica, in La Ley, t. 24, pág. 202.

16. Nesse sentido, K.ELSEN, La Teoria Pura del Derecho 'I La ]urispmdencia I Analítica, cit., pág. 205. Em sentido opooto, coincidindo, por~. no CIIC:ncia.l, SoLAIU, Filosofia de! Derecho Privado, trad. espanhola, Buenos Aires, 1946, cap. Utilitarismo y Codificación, t. I, págs. 381 e segs.

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do Direito conduzirão algum assistente de nossa aula imagi­nária a pôr em relêvo que, em todo ato de interpretação, não há uma simples conduta lógica, mas um ato da vontade.

Embora pretenda o intérprete ser, absolutamente, neu­tro, não pode sê-lo. Sua operação não é matemática, nem geométrica, Ê um ato vital e, por isso, estará carregado, inconscientemente, de volições.

Todo intérprete é um filósofo que faz filosofia apesar de si próprio. Por trás de cada teoria interpretativa, por trás de cada método, encontra-se escondida uma tendência filo­sófica.

Até mesmo se pode, atuando com sagacidade, seguir o rastro de cada tendência para colocar em destaque a atitude filosófica a que corresponde.11

E essa afirmativa será, ainda, corroborada por outro assis­tente que acrescentará o vocábulo politica ao vocábulo filo­sófica.

:l!.ste último ponto não havia sido claramente percebido, até que certos doutrinadores dos últimos tempos, não satis­feitos com servir-se da lei, necessitaram servir-se da sua inter­pretação para fins políticos. Não somente a lei foi, então, um instrumento político em si mesma; o seu próprio manejo também o foi. 18

E, contudo, em um plano mais rigoroso, poder-se-ia mos­trar como não apenas filosofia e política se ocultam atrás da interpretação, mas, também, uma verdadeira escala de cate­gorias: primeiramente, conhecer o objeto interpretado; em seguida, representá-lo e fazer com que o entendam; por últi­mo, extrair dêle uma regra de conduta para a vida.19 E tudo

17. Veja·se CassiO, El Sustrato Filosófico de los Métodos Interpretativos~ in Universidad~ Santa Fé, 1940, n.0 6, págs. 63 e Begs.

18. Existe, nesse particular, uma copiosa literatura. A título de resumo, cfr. SILVEIRA, O Fator Politico-Social da lnterpretaçdo das Leis, São Paulo, 1946.

19. Veja-se BETTI, Le Categorie Civilistiche delta Interpretazione~ in Rivista Italiana per le Sciem.e Giuridiche, Milão, 1948, págs. 34 e segs.

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22 EDU ARDO J. COU'ruRE

isso, como é fácil compreender, não se pode realizar sem uma enorme parcela de vontade e de subjetivismo.

VIII

RESUMO

Em algum momento, a nossa aula imaginária terá de terminar. Para que ela tenha certa significação construtiva, ao menos, será preciso que as idéias versadas obedeçam a uma certa coordenação antes de extrairmos delas seu verda­deiro significado.

Será prudente, pois, antes de passarmos adiante, que reunamos em algumas proposições fundamentais o material que, neste terreno, serve de ponto de partida.

Em primeiro lugar, cumpre dar como admitido que inter­pretar a lei não é interpretar o Direito. A lei está para o Direito como a parte para o todo c o que rege a conduta humana é o todo, não a parte.

Em segundo lugar, cumpre proclamar que a exegese, isto é, a determinação das palavras e dos conceitos da lei, não pode esgotar a tarefa interpretativa. Com uma metáfora feliz, já foi dito que não se pode conhecer a estátua exami· nando-se o metal que um dia foi derramado no crisol. 20

Em terceiro lugar, cumpre reconhecer que os ensina­mentos de SAVIGNY mantêm, nesta matéria, sua atualidade. Seus quatro métodos, já referidos, não bastam, por si sós, para a obra interpretativa; reunidos, porém, cumprem-na em grande parte. Se algo existe para se acrescentar a essa união de gramática, lógica, história e sistema, é a idéia de atualidade na vigência do Direito. O fenômeno de interpretação não tende a revelar o pensamento do legislador, mas sim a exten­são da eficácia atual da norma. O Direito protToga, indefini-

20. MAcciORE, L'lnterpretazione delle Leggi come A.tto Creativo,. Palermo, 1914.

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damente, a sua vigência no sentido do futuro. A regra jurí­dica nasce um dia, para uma certa sociedade c para uma determinada época histórica, mas estende seu diâmetro tem­poral de validade a todo o porvir, até o dia da sua derrogação. O tempo da lei e seu sentido não são, apenas, o tempo e o sentido de sua sanção, mas também o tempo e o sentido de sua vigência.

E por último: 1!: verdade que, em cada atitude inter­pretativa, existe un1 pressuposto, ou, como se disse, um subs­trato filosófico. Interpretar é, ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção do Direito, o que significa dizer, por uma concepção do mundo c da vida. Interpretar e dar vida a uma norma. Esta é uma simples proposição hipotética de uma conduta futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível (já que o texto escrito é a representação da norma, mas não a própria norma) e suscetível de ser percebido pelo raciocinio e pela intuição. O raciocínio e a intuição, todavia, pertencem a um determinado homem e, por isso, estão prenhes de subjetivismo. Todo intérprete é, embora não o queira, um filósofo e um político da lei.21

Se essas observações são, em sua essência, exatas, as idéias que passaremos a expor constituirão o seu justo complemento.

21. Não é propósito destas exposições enfrentar o problema da interpretação em geral.

A introduça.o aspira, sOmente, a deixá-lo apresentado e a esboçar as soluções que sustentam a nossa concepção da teoria particular das leis processuais.

No campo doutrinário, êsse problema foi exposto, com brilhantismo, coleti­vamente, na obra que, há mais de um decênio, EoouARD I..AMBERT dirigiu e que foi publi<:ada em honra de GÉNY, sob o título RecueU d'.l!tudes sur les Sources du Droit en l'Honneur de François Gény.# Paris, ~ vols., edit, Sirey, sf data.

O caráter universal da colaboração dada a êsse volume constitui uma verda­deira fixaç:lo do estado da doutrina naquele momento.

Preocupar-nos-emas em fv:er, no posslvel, referência a alguns subsídios de data posterior, que possam revelar novos pontos de vi5ta da doutrina a êsse respeito.

Alguns anos depois, teve lugar um novo acontecimento no campo do direito ameticano, que permitiu a realização de uma obra coletiva análoga, no Curso Colectivo sobre Interpretación de la Ley. realizado. no ano de 1946, na Escola de Jurisprudência do México. Suas dissertações principais podem ser lidas na Revista de la Escuela Nacional de ]urisprudencia, México, t. 9, 1947, ns. 85/~6.

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CAPÍTULO li

OBJETO DA INTERPRETAÇÃO

SUMARIO: 9 - Objeto, sujeitos e resultado da Interpretação. 10 -A Cou.t!tulção e a. leis. 11 - A lei civil. 12 - A lei penal. 13 - A lei processual.

I

OBJETO, SUJEITOS E RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO

A discussão precedente reconstrói, dentro de sua rusti­cidade e de sua simplificação de idéias, o panorama das várias tendências interpretativas.

Tratemos, agora, com nossos próprios meios, de seguir adiante.

Comecemos por estabelecer uma distinção que, provà­velmente, concorrerá para esclarecer os diversos elementos em jôgo em tôda interpretação jurídica.

Distingamos, por um lado, a res interpretanda; por outro, a res interpretam; por outro, a res interpretata. Em outros têrmos: o objeto da interpretação, o sujeito da inter­pretação e o resultado da interpretação.

O objeto da interpretação - dizíamos - é o Direito. Direito tanto é a Constituição, como a lei, o regulamento, a sentença, o contrato, o testamento. Tôdas essas manifestações do Direito devem ser interpretadas. Não há métodos inter­pretativos para cada uma delas. Mas a hierarquia que existe entre a Constituição, a lei, o regulamento, a sentença, o con­trato e o testamento, como atos jurídicos, faz com que a dou-

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26 EDUARDO J. CoVTURE

trina tivesse de aplicar seus esforços no sentido de averiguar a ordem de idéias que preside a cada um dêles.

Considerando que êste estudo se refere, exclusivamente, à interpretação da lei ( rectius: do direito) processual, torna­-se necessário apontar a posição que a esta corresponde no ordenamento jurídico.

Dos demais elementos, porém, nesta ocasião, deveremos prescindir. Nosso objeto é a lei processual.

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A CONSTITUIÇÃO E AS LEIS

Consideremos um objeto vital, tutelado pelo Direito: um dêsses objetos jurídicos, solidamente protegidos, que, como a vida, a honra, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, constituem o patrimônio da convivência em uma ordem ju­rídica.

Façamos com êle a experiência de perguntarmo-nos: Onde se situa, no direito positivo, a proteção à vida humana e como se efetiva essa proteção?

A Constituição nô-lo diz, sob a forma de um manda­mento; em lugar do não matarás, prescreveu: ninguém po­derá ser privado de sua vida. Aqui, a estrutura normativa dissimula bastante seu dever ser; basta, porém, refletir um pouco para compreender que há neste caso uma regra, cuja cópula seria: "dada a existência da vida humana, deve ser ela tutelada ou protegida". Não assume nenhuma impor­tância o fato de que êsse preceito esteja redigido sob a forma de não matarás ou sob a forma de ninguém poderá ser pri­vado de sua vida; o essencial é a regra genérica que tutela e protege a vida humana.

Já se tem dito que os capítulos de direitos e garantias com que se encabeçam, habitualmente, as Constituições mo­dernas constituem declamações e não verdadeiras normas ju-

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rídicas.1 Nem sempre, porém, isso é exato. Por trás de cada um dêsses postulados constitucionais, encontra-se um preceito, cuja estrutura é, como acabamos de dizer: "consideradas (a vida, a honra, a liberdade, a arte, a riqueza histórica, a fa­mília, a infância, a Pátria, etc.) devem ser elas protegidas". O complemento dessa circunstância de fato e sua conseqüência seria: "nos têrmos estabelecidos pela lei".

A natural generalidade da norma constitucional repre­senta uma espécie de remessa às previsões particulares e deta­lhadas do legislador. E se o legislador nada determina, supõe­-se que a vida esteja, igualmente, protegida.'

III

A LEI CIVIL

Ao lado de cada preceito constitucional dêsse tipo, há mil formas, por assim dizer, polarizadas que previnem ou sancionam o homicídio. Poderemos escolher qualquer um, ao acaso, como aquêle que, no Código Civil, institui para o pai a obrigação de alimentar seus filhos. Representa isso a tu­tela da vida humana, no sentido de que ninguém será privado de sua existência pela miséria ou pela fome. O mandamento da Constituição adquiriu, aqui, no Código Civil, uma formu­lação e uma redação diferentes: é instituído sob a forma de obrigação para o pai c de direito para o filho.

I. ''Determinação negativa", como os chama KELsEN, La Teoria Pura dei Derecho, trad. espanhola, Buenos Aires, 1941, pág. 109.

2. Assim é porque, se a lei não pode ser inconstitucional, o silêncio da lei não pode ter um significado contrário à Constituiça.o. O art. 282, da Constituição uruguaia, resolve o problema, mediante texto expresso: "Os preceitos da presente Constituiçao que reconhecem direitos aos indivíduos, assim como os que atribuem faculdades e impõem deveres às autoridades públicas, nlo deixarão de ser apli­cados pot falta de regulamentação respectiva, pois esta será suprida recorrendo­-se aos fundamentos de leis análogas, aos prindpios gerais de direito e às dou­trinas geralmente admitidas".

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Neste ponto, a estrutura da lei civil é um excelente exem­plo para que meditemos sôbre a estrutura própria de cada um dêsses tipos de nonnas.

O Código Civil, na realidade, legisla sôbre os atos da vida social, familiar, na forma de numerus apertus; na vida civil, cada qual pode fazer o que, livremente, quiser; os atos jurí-dicos, quanto à sua formulação, são ilimitados; o Código ci- / tado limitou-se a estabelecer uma série de previsões esque-máticas de atos, regulando as suas conseqüências. A estru-tura da lei civil assume uma aparência, digamos, universal e aberta. O chamado contrato inominado é o tipo dessa figura jurídica.

Essa mesma tutela da vida iremos encontrar no Código Comercial, quando impede que o homicida possa alegar seu caráter de beneficiário do seguro de sua vítima; no Código de Menores, através das abundantes regras de proteção à in­fância; no Direito Administrativo e Municipal, sob a forma de polícia dos alimentos, de salubridade, de tráfego, etc.

IV

A LEI PENAL

Dentro de tôdas essas estruturas legais, a que encerra maior importância, por sua natureza e sua visível diferen­ciação da ordem civil, é a lei penal.

Transforma-se nela, completamente, a estrutura formal da lei, porque o Direito Penal, diferentemente do Direito Civil, não se nos apresenta a numerus apertus, mas sim a numerus clausus. Não existem delitos senão aquêles defi­nidos pela lei penal; os delitos são cunhados em tipos e não há atitude humana que não seja ou ato lícito ou delito. Se a conduta dos homens não se adapta à descrição típica do legis­lador, deve ser considerada como lícita, repudiando-se, então,

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a idéia de delito.3 Não existem delitos por extensão, nem delitos inominados, nem delitos por analogia; o que existe é uma atitude jurídica ou uma atitude anti-jurídica; e se esta última não é característica, nem voluntária, e não foi objeto de uma previsão expressa na lei penal, não há delito e preva­lece a liberdade.4

Tinha BrNDING, por isso, razão quando dizia que o delin­qüente não viola a lei penal, mas a cumpre: a lei penal que prevê o homicídio e sua pena condigna. Aquilo que o homi­cida infringe é o mandamento: não matarás.

A previsão do ato anti-jurídico estabelecida na lei penal é, de certo modo, realizada por desafio. O criminoso desafia o mandamento e se submete, tàcitamente, ao cumprimento da lei que o pune, arcando com suas conseqüências.

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A LEI PROCESSUAL

Se passarmos da lei civil e da lei penal ao exame da lei processual, observaremos que êsse mesmo bem jurídico - que é a vida - foi objeto de uma disposição especial no Código de Processo, quando êle institui a ação de alimentos.

Uma espécie de fio lógico une a proteção à vida, insti­tuída pela Constituição, a obrigação alimentar do Código

3. Sôbre êsse tema, Ultimamente, de forma exaustiva, veja-se SoLER, De-recho Penal Argentino~ Buenos Aires, 1945, t. I, pág. 117, onde achará, além disso, uma copiosa bibliografia.

4. SALVAGNO CAMPOS, El Delito lnnominado y la Interpretaci6n Analógica, in Revista de la Asociación de Estudiantes de Abogacia, Montevidéu, 1933, pág. 295, mostrou certa inclinação para tais soluções, rodeando-as de garantias. JIMfNEZ DE AsúA, La Ley y el Delito, cit., pág. 165, distingue entre "analogia" e "interpretação analógica". Pelas razões expostas por SOLER, op. cit., t. I, pág. 145, cremos que no Direito Penal nem a analogia, nem a interpretação analógica da lei podem elevar à categoria de delito aquilo que não foi objeto de previsão espe­cifica e descrição tipica.

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Civil, a sanção para a omissão e a coerção para a prestação reguladas pelo Código de Processo.

Ocorre, somente, que, quando nos perguntamos se a lei processual é numerus apertus, como o Código Civil, ou nu­merus clausus, como o Código Penal, experimentamos uma grande perplexidade.

A lei processual não está redigida nem como um manda­mento, nem como um status; nem tampouco está escrita como uma delimitação jurídica para determinar a ilicitude da con­duta humana. A lei processual é uma descrição. O legis­lador descreve como se realizará, no futuro, um processo. Algumas leis, como, por exemplc, as italianas, são redigidas no tempo presente. Nas leis de formação espanhola, o habi­tual é a disposição no tempo futuro. O certo, porém, é que, em um ou outro tempo verbal, o legislador determina, descri­tivamente, a evolução e o desenvolvimento do processo.

11: esta uma relação dinâmica, em marcha desde a petição inicial até a sentença e sua execução.5 Tal como se fôsse a descrição de um itinerário a ser percorrido, o legislador des­creve como deve ser êsse itinerário. Existe, nesse relato, sem dúvida, uma grande margem de liberdade. Quando o Có­digo de Processo Civil estabelece como se redigirá uma petição, enumera suas partes essenciais e deixa ao arbítrio do reque­rente o conteúdo dessa petição, dentro do esquema fornecido pelo legislador. Quando êste diz quais devem ser os requi­sitos da sentença, deixa ao arbítrio do juiz o conteúdo de sua estrutura ou seu esqueleto de sentença. Os outros atos, noti­ficações, provas, medidas de segurança, etc. foram, porém, escrupulosamente, descritos em seus detalhes.6

5. CHIOVENDA, lstituz.ioni, t. I, pág. 55. 6. Há, aqui, entretanto uma antinomia que LLA.MBJAS DE AzEVEDO repre·

sentou nos seguintes térmos: "O paradoxal destino do Direito Judiciário consiste em que êle regula os atos que, na conduta humana, se encontram como antfpodas: de um lado, embargos, entrega da coisa, privaçlo da liberdade de ir e vir (prislo) , etc.; de outro lado, petição, sentença, interpretaçlo, etc.; ações lá, pensamentos aqui". Eidetica y Aporitica del Derecho~ Buenos Aires, 1940, pág. 42.

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Mas, no caso processual não previsto, prevalece ou não prevalece a liberdade? Quando o legislador, dentro dessa des­crição, omitiu um evento que se verifica na prática juridica, poderemos interpretar a lei processual por analogia? Não estaremos frente a uma limitação necessária devida ao prin­cí{>io que rege o Direito Penal? Poderemos, ao contrário, interpretar, analogicamente, a lei processual, procurando, .na economia geral do sistema, a solução necessária para êsse caso e determinar suas conseqüências, como no Código Civil?

Isso é o que trataremos de fixar no capítulo final dêste estudo. Antes de chegarmos, contudo, até êle, devemos ainda fazer uma incursão no tema correspondente ao sujeito da interpretação.

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CAPÍTULO III

SUJEITOS DA INTERPRETAÇÃO

SUMARIO: 14 - Diversidade de intérpretes. 15 - Interpretação legislativa ou autêntica. 16 - Interpretação judicial. 17 -Interpretação doutrinária.

I

DIVERSIDADE DE INTÉRPRETES

O Direito, em tôdas objeto da interpretação. os seus sujeitos.

as suas formas, - dizíamos - é o Os diversos intérpretes possíveis são

O legislador, o juiz e o professor são três dos mais quali­ficados intérpretes da lei. O encargo que cada um dêles de­sempenha faz variar a transcendência de sua obra interpre­tativa. Não são os únicos: o governante, o funcionário da administração pública, o advogado, o escrivão, o jornalista são outros tantos intérpretes da lei que projetam sua atividade sô bre a vida social.

Mas, ~ legislador, o juiz e o professor trazem seu apoio à tradicional classificação que distingue entre interpretação le­gislativa ou autêntica, interpretação judicial e interpretação doutrinária.

É possível que fique, assim, esclarecido que essas três formas de interpretação não são três maneiras diferentes de ler a lei ou de lhe extrair o sentido. São, apenas, variantes da função do sujeito que interpreta. O objeto é o mesmo; a

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operação é a mesma; só o sujeito varia e, com êle, a transcen­dência da obra.'

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INTERPRETAÇÃO LEGISLATIVA OU AUT~NTICA

Não nos podemos referir, por enquanto, à interpretação autêntica, isto é, a que é feita pelo legislador, limitando, assim, os exageros tão freqüentes nessa matéria, senão como sendo a interpretação que de uma lei faz outra lei posterior?

Não constitui interpretação autêntica o que disse êsse deputado ou aquêle senador, no recinto legislativo; a crise dos trabalhos preparatórios da lei se tem tornado evidente, sobretudo depois do notório esfôrço que, nesse sentido, desen­volveu CAPITANT. 3 Hoje, já não há ninguém que possa, seria­mente, admitir que os antecedentes parlamentares de uma lei constituam uma interpretação autêntica. Tão pouco será uma interpretação autêntica o que disser o legislador sôbre os fun­damentos ou na justificativa de outra lei posterior.

Interpretação autêntica é, apenas, o texto rigorosamente dispositivo de uma lei posterior que determine o alcance da lei anterior.

Não se podem, entretanto, verificar aqui senão duas supo­sições: ou a nova lei limita-se a estabelecer, normativamente, o mesmo que a lei precedente e, nesse caso, a interpretação se reduz a uma simples confirmação, redigida com outras pa­lavras; ou diz algo mais ou algo menos e, então, já não esta­mos em presença de uma lei interpretativa, mas sim em face de uma nova norma, com conteúdo próprio e autônomo.

1. A unidade epistemológica dêsses três métodos de interpretação foi subli­nhada, de modo persuasivo, por AFTALION, Acerca del Método Jurldico, em La Ley, t. 56, 11 de novembro de 1949.

2. Cfr., eôbre todo êste tema, FERNÁNDEZ GlANOTTI, Normas Legoles Inter­pretativas, em La Ley, t. 26, pág. 963.

S. Les Travaux Préparatoires et l'lnterprétation des Lois, no já citado Recuei/ Gény, t. 2, pág. 204.

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A chamada interpretação legislativa torna-se, assim, con­sideràvelmente limitada como meio de revelação do sentido de uma lei. Em sua acepção normativa, se apenas repete a norma anterior, só lhe acrescenta clareza; se representa algu­ma coisa mais, constitui uma nova regra.4

III

INTERPRETAÇÃO JUDICIAL

A interpretação judicial foi o tema preferido por todos os que trabalharam neste campo da Teoria Geral do Direito.

O dilema de saber se a interpretação judicial é ato criador ou não, se a jurisdição é meramente declaratória do direito ou é criadora do mesmo, constitui um tema, pràticamente, inesgotável.5 Já nos pronunciamos, pessoalmente, em diversas oportunidades, no sentido de que a atividade jurisdicional é atividade criadora do direito. 6 Devemos respeitar os pontos de vista divergentes; mas devemos, também, deixar claro, em consideração à verdade, que chegamos a essa conclusão após muitas reflexões, muitas incertezas e - por que não o dizer? - após muitas vigílias.

Aconteceu, porém, que, uma vez assumida essa posição, todo o tempo e tôda a meditação posteriores nada mais fizeram do que firmar a exatidão dêsse modo de entender.

4. Veja-se FEIUt.ARA, Trattato di Diritto Civile Italiano,. Milão, 1921. Fêz-se dessa obra uma tradução para o português, com relaçio ao nosso tema: Inter­pretação e Aplicação da.s Leis, Slo Paulo, 1934. SObre a chamada "interpretação autêntica", veja-se a pág. 24 desta última ediçlo.

5. A mais recente exposiçlo, copiosamente documentada, é de CAsrÁN, Teoria de la Aplicación e Investigación del DeTecho, pág. 199.

6. Assim nos pronunciamos em Fundamentos del Derecho Procesal Civil, Buenos Aires, 1942, e 2.a edição, S!o Paulo, 1946. Igualmente, em Las Garantias Constitucionales del Proceso Civil~ in &tudios de Derecho Procesal Civil, t. I, pág. 76, Buenos Aires. Da mesma fonna, em Introduccidn al &tudio del Proceso Civil, Bumos Aires, l949; edição francesa, Paris, 1950; ediçto brasileira, Rio de Janeiro, 1951.

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IV

INTERPRETAÇÃO DOUTRINARIA

Costuma-se falar de interpretação doutrinária, quando se faz referência à interpretação que os jurisconsultos dão a uma lei.

A verdade, entretanto, é que a interpretação doutrinária não é um ato acadêmico, nem também o que foi a famosa Lei de Citas, na qual se estabelecia a ordem de preferência das opiniões. A interpretação a que se deu o nome de dou­trinária é, realmente, uma atividade jurídica muito mais pro­funda.

Como tal, deve entender-se não só a interpretação que é feita pelos jurisconsultQs, como também aquela que a própria vida faz da lei.

O fenômeno, tanto mais profundo quanto mais meditado, consiste na chamada realização espontânea do Direito.?

Existe, no Uruguai, desde 1946, a lei de direitos civis da mulher, que vem, justiceiramente, complementar seus direitos políticos, já há muitos anos adquiridos.

São contados, até hoje, os escritores que analisaram, dog­màticamente, essa lei; não possuímos, tão pouco, sentenças importantes que tenham decidido casos duvidosos; na vida, entretanto, no comércio jurídico, foi necessário aplicar essa lei centenas de vêzes. O comprador exige tílis ou quais requi­sitos na manifestação do consentimento da sociedade conjugal vendedora; ou requer a autorização judicial, em determinadas condições, para certos atos de alienação, etc. O vendedor con-

7. Sóbre todo êste tema, consulte-se o excelente livro de PEKELIS, ll Diritto Come Volontà Costante, especialmente o capitulo I, ll Diritto Come P'olizione di Legge.

Da mesma fonna, em um plano análogo, veja-se o capitulo La Virtud como único Realizador, do livro de SoLER, Ley, Historia y Libertad, Buenos Airee, 1943, pág. 181.

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corda com essas exigências. Não são estas, indubitàvelmente, interpretações legislativas, nem doutrinárias. Não são, tam­bém, interpretações judiciais. Que são, então? Constituem realizações espontâneas do Direito; revelações de conteúdos juridicos através de atos humanos livremente realizados, sem mais propósito que o de ajustar a conduta social às disposições estabelecidas pelas normas.

Que maneira mais viva de interpretar a lei, de descobrir · seu significado, que a consistente em adaptar o comporta­

mento, livremente e sem coações materiais, a uma disposição anteriormente determinada no preceito? O grande campo da produção juridica é constituido pela realização espontânea do Direito: os pais sustentam seus filhos, os devedores pagam suas dívidas e os contribuintes seus impostos, sem outra coação além daquela que emana de seu convencimento - formado através de sucessivas e seculares instâncias de educação -de que essa é a melhor conduta para a convivência humana.

Os homens procedem assim porque nesse sentido os im­pulsiona sua própria natureza, sua propensão ao gôzo tran­qüilo de seus bens: a virtude da qual, poeticamente, dizia S~NECA, "que ama a paz e detém a mão".8

Se os vocábulos interpretação doutrinária aludem, imica­mente, ao trabalho interpretativo dos jurisconsultos, a classi­ficação tripartida é insuficiente: exige um quarto têrmo que abranja a ·realização espontânea do Direito, que é uma forma de interpretar (e de aplicar, porque, em última análise, aplicar também é interpretar) a lei. Se, ao contrário, essas palavras alcançam a realização espontânea do Direito, sua designação será insuficiente, devendo ser substituida por outra que com­preenda todo ato interpretativo que não seja o legislativo ou o judicial.

8. De Clementia, 111, 2.

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Pensamos, por exemplo, que a denominação interpretação privada, em oposição às anteriores, que provêm dos órgãos do Poder Público, satisfaz essa necessidade. E se nos dissessem que também o professor que interpreta a lei em sua cadeira universitária está desempenhando uma função pública, ser­-nos-ia permitido responder que as U niversidadcs não possuem um modo oficial de raciocinar. As opiniões emitidas pelos professôres, com amparo na liberdade de cátedra, são opiniões privadas que o órgão público não referenda, nem repele.

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CAPÍTULO IV

RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO

SUMARIO: 18- Interpretação e integração da lei. 19- As lacunas da !e!.

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INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DA LEI

Se o direito é o objeto da interpretação, se o intérprete é o seu sujeito, qual é o seu resultado? - A própria inter­pretação.

Por obra do intérprete o direito é interpretado, ou melhor ainda, revelado em todo o seu conteúdo.

Essa revelação de um conteúdo, entretanto, não é só uma operação de descoberta: é, também, um ato de relação. Nela - dizíamos - está presente o todo. Interpretar é alguma coisa além de descobrir: é relacionar.

Realizar essa operação equivale a integrar. Ao lado da interpretação encontramos a integração do direito, a inserção, no mundo da ordem jurídica, dêsse microcosmo que é a lei, o contrato, o testamento.

Em um dos mais difundidos trabalhos de SAVIGNY,1 ana­lisando o Título Preliminar do Código Napoleônico e fazendo uma crítica severa às suas concepções, encontra-se, com extra­ordinária clareza, a distinção entre interpretação e integração .

1. De la J'ocaci6n de nuestro Sigla para la Legislación y la Ciencia del IHrecho, trad. espanhola, Buenos Aires, 1946, pág. 101. Além de SAvroNY, no trecho que se menciona, a distinção entre interpretação e integraçlo se acha, claramente, desenvolvida por muitos outros escritores alemães do século anterior,

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Para SAVIGNY, o Código citado não levou em consideração o mais elementar dos meios supletivos, que é o de descobrir o sentido de um texto particular em função da economia geral de todo o sistema da lei?

Ninguém, certamente, considera que interpretar a lei seja interpretar a passagem de um artigo ou de um inciso, colocando-o ao microscópio e examinando suas partículas, absolutamente desinteressado de todo o organismo vivo, do qual faz parte êsse fragmento. Isso não é interpretar, é apenas ler um texto. A leitura pode ser tão inteligente e compre­ensiva quanto se queira; poderá o leitor conhecer a etimo­logia de tôdas e de cada uma de suas palavras, dominando suas raizes históricas; poderá êle ser um sagaz crítico grama­tical, capacitado a pôr em relêvo as exatidões ou os erros do trecho examinado. Mas se o trabalho não vai além disso, se se limita a examinar o fragmento que se encontra ao micros­cópio, não haverá interpretação.

Tôda tarefa interpretativa pressupõe trabalho de rela­cionar a parte com o todo. O sentido é extraído inserindo-se a parte no todo.'

A diferença entre interpretação e integração implica, por­tanto, em dar ao conceito da primeira um sentido ilimitativo que tentamos superar, desde as primeiras páginas dêste estudo.

Em sua marcha para encontrar o significado de um texto, o intérprete nunca tem a sensação de que atravessa a barreira

quais sejam os que discutiram a identidade ou a divenidade dessas duas ope· rações; KÕHLER distingue a interpretação da nova formaçoto {Neubildung); a idéia foi reputada por HÕELDER (Pandekten, 1, 8, pág. 50), que, por sua vez, foi replicado por KÕHLER com um brilhante argumento: as figuras elaboradas pela jurisprudência com base nos princípios se acham na mesma relação que as fólhas, as floreJ e os frutos com respeito ao germe. Cfr. 'VINDSCHF.ID, Pandette, notas de FADDA e BENSA, Turim, 1902, t. I, pág. 129. Posteriormente, FERRARA, Interpre­tação e Aplicação das Leis, trad. portuguêsa cit., pág. 54. No campo processual, CAP.NELUTII, Sistema, trad. espanhola, t. I, pág. 125~ ALSINA, Tratado, t. I, pág. ?4.

2. SObre todo êste tema, que aqui foi, apenas, ~pontada, BoBBIO, L' Analogia nella Logica del Diritto, em Memoria dell'lstituto ]uridica, Turim, 1938, espe­cialmente cap. Xl, Analogia e lnterpretazione, págs. 152 e segs.

3. Assim, CI\RNELLUTI, Lo. Acción Proçesal, em La Ley, t. 44, pág. 849.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 41

interpretativa e entra na zona da integração. Um dispositivo legal só adquire sentido em função de todo o c~m junto siste­mático do direito. Resulta daí que, em sua direção intelec­tual, a função interpretativa é, na realidade, pràticamente inseparável da obra de integração do direito. 4

Tal fato nos coloca frente a um dos problemas que mais inquietações tem provocado dentro do campo da Teoria Geral: o problema das lacunas da lei.

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AS LACUNAS DA LEI

Passou-se com o problema das lacunas da lei o que se passa com tôdas as metáforas.

Afirmou-se, certo dia, que no direito havia falhas;' isto é, espaços nos quais não existia o direito. A imagem não era, de fato, feliz e, provàvelmente, dessa infelicidade de expressão derivou, em grande parte, a divergência.

4. Contrariando a optmao dominante, RASELLI considera, também, que a integração não difere da interpretação em nada que seja substancial (ll Potere Discrez.ionale del Giudice Civile, Pádua, 1-937, t. I, págs. 115 e segs.). A distinção, sob a forma de "interpretação exteruiva" e "analogia", é atacada, acertadamente, por BoBBIO, L'A.nalogia nella Logica del Diritto, clt., pág. 145, onde são feitas amplas refer~ncias à doutrina anterior.

5. A literatura sôbre o assunto é, virtualmente, inesgotável. · Como não se trata, aqui, de enumerar livros, remetemos o leitor às seguintes fontes essenciais. Para a doutrina alemli, ZITELMANN, Lucken im Recht~ Leipzig, 1903. A avaliação dessa obra foi feita por GÉNY, na segunda edição, já citada, do Méthode d'Inter~ prétation, t. 2, pág. 358. Para a doutrina italiana, DoNATI, Le Lacune dell'Ordi· namento Giuridico, Milão, 1910; Ultimamente, BoBBIO, L'Analogia nella Logica del Diritto, já citado, e o excelente livro de CALOCERO, La Logica del Giudice e il suo ControlLo in Ca.ssazione, Pádua, 1937. Na doutrina espanhola, re<:entemente, CASrÁN ToBERAs, Teoria de la Aplicaci6n e Investigación del Derecho. Metodo· logia y Técnica Operatoria en Derecho Privado Positivo, já mencionado; para a doutrina rioplatense, CossiO, Las Lagunas del Derecho, Córdoba, 194-2, e, poste­riormente, MARTiNEZ PAz, Tratado de Filosofia del Derecho, Córrioba, 1946. No direito mexicano, GARCIA MARTINEZ, Introductión ai Estudio del Derecho1 México, 1941/1942.

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Sustentou-se, por um lado, que as lacunas não são falhas do direito, mas da lei; por outro lado, foi dito que elas não são inerentes ao texto, e sim ao conjunto do direito; e se disse, como não se podia deixar de dizer, que não existem lacunas, nem no texto, nem no direito.

No plano positivo do direito, o problema das lacunas da lei apresenta-se da seguinte forma: se não existe uma norma para decidir o assunto, impera o preceito tudo que não é proibido é permitido; se esta outra norma implícita não é suficiente para resolver o caso, já que no direito nem todos os problemas são inerentes à liberdade, onde iremos buscar o preceito necessário?

Assim exposto, o problema é, pràticamente, insolúvel, como há bem pouco tempo se afirmou em páginas de singular delicadeza."

Nesse sentido, a concepção empírica do direito anglo­-americano, dentro de sua simplicidade técnica, teve um achado mais feliz que a dos países continentais da Europa. No direito anglo-americano, fala-se, muito mais simplesmente, do caso não previsto _7

Para essa escola, o caso não previsto representa a supo­sição prática que escapou à imaginação do legislador. Não se trata de afirmar, previamente, a chamada plenitude lógica necessária do direito (logische Geschlossenheitt des Rechtes), pressuposto forçado dos espaços vazios (rechtsleerer Raum), mas sim de advertir, empiricamente, que determinado fato, determinado estado jurídico ou determinada forma de conduta humana foram omitidos, não existindo para êles uma dispo­sição especiaL Ocorre, algumas vêzes, que o legislador teve pouca imaginação; em outras, ocorre que o fenômeno lhe era, na época, imprevisível.

6. GARCIA MAYNEZ, Didlogo sobre las Fuentes Formates del Derecho, México. 1949, pág. 25 da sepanta da Revista de la Escudo de ]uris}n'udencia.

7. Assim, DICKINSON, The Problem of the Unprovided Case, in Recueil Gény, cit .• t. 2, pág. 503. Cfr. LJNAREs, El Caso Administrativo no Previsto, em IA Ley, t. 24, pág. 178.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 4.3

Em virtude de uma série de características próprias da juridicidade, o direito poderá ter casos não previstos, mas não contém vazios. , ...

Já se disse que o direito é impenetrável, completamente hermético,8 porque existem juízes; êstes integram, necessària­mente, a ordem jurídica, tendo, por sua função, o encargo de completar c preencher as supostas lacunas do direito.

f: essa, sem dúvida, uma construção apta para a inter­pretação iudicial da lei; mas ela atribui uma significação excessiva à atividade jurisdicional. Não podemos falar de lacunas da lei ou do direito, porque não há, dentro da finali­dade lógica dêste último, uma situação que não possa ser resolvida pelos métodos próprios de sua aplicação. Não pode haver, virtualmente, um problema jurídico que seja insusce­tível de solução, ou por via da realização espontânea ou por via jurisdicional, em virtude do processo natural que se deno­mina fôrça de expan.sãn da lei. 9

Mesmo aquêles casos que, devido ao preceito constitu­cional, ficam "isentos da autoridade dos magistrados" têm uma solução jurídica: a liberdade individual para agir, dentro de uma medida lícita e correta, sem coações externas de ordem judicial, mas em obediência às restantes nonnas do direito. 10

O direito é completo, mas não impenetrável. Muitos de seus elementos são, por assim dizer, abertos à vida. O direito, já se disse, está submetido a um constante intercâmbio com a vida.11 Os conceitos jurídicos mais importantes constituem

8. Cossto, La Plenitud ckl Orden ]uridico y la InteTtm:tación Judicial de la Ley, Buen01 Aires, 1959, págs. 72 e oegs ..

9. BoBBJO, L'A.114logia ntlla Logica del Diritto~ dt., pág. 119. 10. Assim, o caso que recentemente examinamos em La Ley 10.783 $obre

Derechos de la Muj~r. Sus Aspectos Proce.sales, Montevidéu, 1948. Encara-se, ali, o caso da determinação do dom.idlio conjugal "pelos esposos, de comum acôrdo". A ausência do ac6rdo n!o tem, em nosso modo de entender, 50luçao coativa de ordem judiciária ficando a soluçAo confiada à liberdade individual (pág. 101).

11. REcASEN9 SICHES, Vida Humana, Sociedad y Derecho, 2.a ediçao, México, 1945, pág. 199. Em sentido análogo, Bossro, Scienza e Tecnica del Diritto, Turim, 1934, págs. 35 e segs.

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44 EDUARDO J. COUTURE

referências vitais e não estritamente jurídicas: o costume, a ordem pública, a boa-fé, o prudente arbítrio dos juízes, a dili­gência de um bom chefe de família.

Essa espécie de abertura vital repele impenetrável que se quis dar ao direito. troca, seu caráter integral.l2

a qualificação de Mas acentua, em

Não é, finalmente, prudente, por motivo de rigor cien­tífico, recorrer ao uso de uma metáfora como a das lacunas do direito, para nos referirmos aos casos concretos que hajam escapado às previsões do legislador. A atitude do intérprete, em face da situação não prevista, é apontada pelo próprio direito, quando dispõe que tais casos se resolvem por aplicação de leis análogas, das doutrinas mais aceitas ou dos princípios gerais do direito.

Esses conceitos são, por certo, necessàriamente imprecisos. Significam muito mais ou muito menos do que aquilo que se pretendeu dizer. Em todo caso, porém, o que fica em des­taque é que a lei contém em si mesma tôda a ordem jurídica, em sua integridade. Quando seu texto o reflete, sem margem para dúvidas, o caso será resolvido por êle; quando não tiver sido prevista, de maneira expressa, a situação de fato apre­sentada pela vida, será todo o ordenamento jurídico, em sua integridade, que estará presente para decidir a questão.

Não existem, aqui, conseqüentemente, lacunas do direito. Haverá, quando muito, omissões de previsão expressa.

E são essas omissões de previsão expressa, justamente, as que nos impulsionam a levar adiante esta reflexão no campo das leis processuais.

12. A remissão que o legislador, freqüentemente, faz aos "princípios gerais de direito" não é nada mais do que o reconhecimento dessa osmose necessária entre o direito e a vida. Se não fôsse assim, diz DEL VECCHIO, se o ÍÔS!emos circunscrever às mesmas normas particulares já formuladas e pretendêssemos que aquelas fôssem obtidas, exclusivamente, destas, significaria levantar o obstáculo que o legislador quis remover. DEL VECCHIO, Los Principias Generales det De· recho~ trad. espanhola, Barcelona, 1933, pág. 16.

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I CAPÍTULO v

. INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS

SUMARIO: 20 - Natureza processual da lei. 21 - Mandamentos processuais. 22 - Princípios processuais. 23 - Leis processuais. 24 - O problema da Interpretação da !e! processual. 25 -Def!clênc!as do léxico legal. 26 - Colisão de textos e de pr!n-

j' · cip!os. 27 - O caso processual não previsto. 28 - Interpre-1 , tação e Integração das leis no Projeto de Código de Processo

Clv!l de 1945 (Urugua!J.

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NATUREZA PROCESSUAL DA LEI

A primeira dificuldade que se apresenta ao tratarmos de dar a resposta que atrás ficou pendente, consiste em sabermos quando uma lei é processual.

:E:ste tema faz parte de uma copiosa literatura nos países de organização federal, onde o pacto constitucional concede às provindas ou estados particulares a faculdade de elaborar suas leis processuais, reservando, porém, à Federação as de caráter material ou substancial.'

I. Veja-se MERCADER, PodereJ de la Nilcidn y de las Provincias para Instituir Normas de Procedimiento~ Buenoe Aires, 1939, onde pode ser encontrada a vastís­sima bibliografia existente em tôrno do assunto. Posteriormente, A.ctas del Primer Congreso de Ciencias Procesales~ Córdoba, 1942, págs. 177 e segs. ültimamente, ANZALONE, Unificación de los Procedimientos ]udiciale.s en la Republica Argen­tina, in Revista de Derecho Procesal, 1946, t. I, pág. 1S6, Buenos Aires.

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Tratando de reduzir êsse problema aos seus têrmos finais, pensamos acertado firmar a proposição de que a natureza pro­cessual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio. Con­siste êste na regulamentação de fenômenos estritamente pro­cessuais, isto é, na programação do debate judicial, no que se refere ao seu fim, que é a decisão de um conflito de interêsses2

A questão básica, na doutrina, é relativa às normas da prova. Durante muito tempo, acreditou-se que essas normas eram inerentes ao Código Civil ou ao Código Comercial. Hoje, entretanto, podemos aceitar como admitido que as regras da prova são normas essencialmente processuais. É completa­mente indiferente o texto codificado no qual estejam elas ins­critas. O preceito que regula a oposição ao casamento, em­bora se encontre incorporado ao Código Civil, é uma lei pro­cessual; o dispositivo que regula o concurso de credores ou a falência, seja qual fõr o Código em que esteja incluído, cons­titui uma lei processual."

O que devemos apreender, em face de cada caso parti­cular é a essência processual ou não processual da lei. Se esta, por seu conteúdo, inclina-se a descrever êsse tipo tão especial de relação contínua e dinâmica que chamamos processo, reve­lado por uma noção de marcha que vai desde a petição inicial até a execução; se encontrarmos na lei essa marca; se achar­mos nela a descrição de como se deve realizar ou ordenar o conjmlto de atos tendentes a obter uma decisão judicial susce­tível de ser executada, coativamente, pelos órgãos do Estado, essa lei será processual e como lei processual deverá ser tratada.

2. Vejam-se, sóbre êsse partí~;ular, as excelentes páginaa de ALCALA ZAMoRA Y CASTILLO, Proceso, A.utocomposición jl Autodeftnsa, México, 1947, pág!. 9 e segs., que tornam desnecessárias quaisquer referências a trabalholl destinados à deter­minação da natureza da lei processual.

3. Cfr. CHIOVENDA, La Natura Processuale delle Norme sul/a Prova e l'Efji­cacia della Legge Processuale nel Tempo~ in Saggi di Diritto Processuale, Roma, 1930, t. I. págs. 241 e segs.

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MANDAMENTOS PROCESSUAIS

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Analisando a estrutura dêsse tipo de normas, encontra­remos a norma processual sob aparências muito diferentes. Existem regras processuais na Constituição; assim, por exem­plo, aquela que reconhece aos cidadãos o direito de petição perante tôda e qualquer autoridade do Estado;4 aquela, tam­bém constitucional, que estatui que ninguém pode ser conde­nado sem ser ouvido; os preceitos constitucionais que reco­nhecem a gratuidade da Justiça para todos os cidadãos ou para os declarados pobres, de acôrdo com a lei,' etc.

A Constituição nos oferece, pois, uma primeira estrutura basilar da ordem processuaL Ocorre, apenas, que, em virtude da caracteristica das normas constitucionais, consistente na sua generalidade, veremos aparecer diante de nós o maior campo possível no ordenamento normativo, o mais vasto panorama de aplicação de um preceito adjetivo.

Talvez pudéssemos denominar essas normas, utilizando uma antinomia, o direito substancial do processo, a parte bá­sica, a que institui direitos processuais que deverão, no futuro, ser desenvolvidos pelo legislador. Quando, anteriormente, nos referimos às "garantias constitucionais do processo civil", fi­zemo-lo pensando nessa categoria de direitos processuais fun­damentais, assegurados pela Constituição"

4. S6bre todo êsse tema, consulte-se Las Garantias Constitucionales del Proceso Civil, in Estudios de Derecho Procesal Civil~ t. I, Buenos Aires, 1946.

5. Sóbre êsse tema, veja-se o ensaio contido na obra e no volume referidos, Protección Constitucional de la ]usticia Gratuita en caso de Pobreza.

6. De "direito judiciário material" também falou, em sentido que nã.o está muito distante daquele que acima deixamos exposto, GOLDSCHMIDT, Materielles ]ustizrecht, no volume em homenagem a HÜBLER. &se trabalho aparece tradu· zido na Revista de Derecho Procesal~ 1946. t. I, pág. 1. Buenos Aires. Foi feita por GoLDSCHMIDT (R.) uma atualizaÇão dessas idéias, Derecho ]usticial Material Civil, na obra intitulada Estudios en Honor de tf.lsina, Buenos Aires, 1946, pág. ~15.

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O Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal são, segundo já expusemos, a lei regulamentadora das garan­tias de Justiça contidas na Constituição. Encontramos nelas a outra escala do ordenamento normativo. O legislador, dentro do campo que lhe é delimitado pela Constituição, deter­mina suas estruturas legais.

III

PRINCíPIOS PROCESSUAIS

Como desenvolve a lei os mandamentos da Constituição? Seria uma visão muito ingênua a que se limitasse a

acreditar que ela o faz escrevendo artigos em um Código. Um trabalho prévio ao de escrever artigos em um Código exige a determinação dos princípios que regerão êsse Código. O que, em primeiro lugar, se apresenta ao legislador não é a tarefa de redigir leis, mas a de formular princípios.

Em um livro que não teve, ainda, tôda a difusão que merece/ realizou-se uma análise, de fato feliz, do conjunto de princípios que se deparam ao legislador como programa de ação. Mostra-se nêle de que maneira o legislador processual deve optar, por exemplo, entre o processo oral e o escrito; entre o impulso processual ex-officío e o impulso decorrente da iniciativa da parte; entre o processo dispositivo e o pro­cesso inquisitório; entre as provas racionais e as provas legais; entre a seqüência ou desenvolvimento discricionário do pro­cesso e o princípio de preclusão.

O legislador deve, finalmente, estruturar a lei processual, tendo como ponto de referência alguns dêsses princípios. De-

7. MILLAR, Los Principias Formativos del Procedimiento Civil1 Buenos Aires, 1945. !.sse livro apareceu, originàriamente, in lllinois Law Review, t. 18, sendo, logo após, muito ampliado, para encabeçar, sob o título de Prolegomena, o volume editado pelo próprio MILLAR, A History of Continental Civil Procedure~ sob os auspicios da Association of A.merican Law Schools, Boston, 1927.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 49

vemos esclarecer que, historicamente, quase todos êles se mes­claram uns com os outros; não houve, no passado, processos dispositivos puros, nem processos inquisitivos puros; nem pro­vas racionais absolutas, nem provas exclusivamente legais, etc. O legislador dosa êsses princípios, mas não os pode contrariar, como o construtor que executa uma obra não pode contrariar as linhas diretivas fundamentais consignadas no plano do arquiteto e sem as quais é impossível iniciar a realização do edificio que lhe foi confiado.

Assim observadas as coisas, compreendemos de que modo os mandamentos adquirem vigor através dos princípios.

Os princípios processuais, entretanto, por sua vez, são revelados nas leis processuais.

IV

LEIS PROCESSUAIS

Dentro de uma ordem normativa muito restrita, não parece ser um artifício distinguir princípios processuais e leis processuais.

Do ponto de vista conceitual, essa apresentação, por assim dizer em planos, do que pode ser um mandamento, um prin­cípio e uma lei, contribui para deixar suficientemente claro o campo de nosso trabalho.8

8. A concepção descritiva do processo foi atribuiçfo do procedimento civil; sua concepção sistemática, do direito processual civil. Entre uma e outra ativi· dade medeia a mesma diferença que existe entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento racional. É essa a direção das preocupações dêsse ramo do Direito, embora nem todos os seus propósitos sejam atingidos. "É que o saber intuitivo armazena muitos conhecimentos válidos e o saber crítico nem sempre consegue ser tão crítico quanto imagina", disse, sagazmente, RoMERo, Saber Ingenuo )' Saber Critico, em Filosofia de la Persona, pág. 88; da mesma fonna, Rio, Las Especies del Saber ]uridico, no volume Curso Colectivo de Filosofi4 dei Derecho,

"' Buenos Aires1 1948, pág. 67.

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Antes de chegar à revelação de seus detalhes particulares, deve o legislador realizar aquilo que poderíamos chamar o programa de sua maneira de fazer justiça. 9

O sistema legal é, pois, um sistema de princípios que constituem uma espécie de esqueleto, a estrutura rígida e in­terna da obra, seu arcabouço lógico, sôbre o qual se ordenam os detalhes da composição. A lei processual é a lei que deter­mina as minúcias por meio das quais se realiza a justiça.

Tôda lei processual, todo texto particular que regula um trâmite do processo é, em primeiro lugar, o desenvolvimento de um principio processual; êsse princípio é, em si mesmo, um partido adotado, uma escolha entre vários postulados aná­logos feita pelo legislador para assegurar a realização da jus­tiça, enunciada pela Constituição.

v O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO DA LEI

PROCESSUAL

Interpretar - dizíamos - é extrair um sentido. Mas, extrair um sentido dentro de uma ordem normativa da índole da que se acaba de referir, própria da esfera processual, é não só descobrir a razâo do texto, como, também, seu significado dentro do sistema de princípios. 10

A tarefa interpretativa constitui uma referência ao con­junto de princípios que, por sua vez, constituem o desenvolvi­mento de algo anterior, genericamente estabelecido.

Quando a letra da lei desfalece, quando seu texto é noto­riamente errôneo, quando uma regra colide com a outra, ou

9. Essa idéia já tinha sido, claramente, percebida por JHERINc;, El Fin en et Derecho, trad. espanhola, Buenos Aires, 1946, pág. 192.

10. A tese da interpretação das leis processuais, que n4o tivera - na lite­ratura que nos é familiar - outro trabalho monográfico além do de RoÇCO, já citado, mereceu, Ultimamente, amplas coruiderações de SILVEIRA, La lnterpre· tación de las Leyes en el Proceso Civil, publicado na Revista de Derecho Procesal, Bljl'noo Aires, 1945, t. 3, I, pág. 852.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 51

quando se nos apresenta um dispositivo em luta com um prin-• cípio, ou um princípio em contradição com outro princípio, ou quando o silêncio submerge o leitor em perplexidade, o trabalho interpretativo adquire sua hierarquia própria.

Tentaremos expor, em continuação, algumas das situações mais freqüentes nessa ordem de coisas.

VI

DEFICI!?.NCIAS DO LÉXICO LEGAL

São muito comuns os casos em que o legislador utiliza, por imperícia, uma palavra que não é, tecnicamente, a apro-priada. ·

No direito uruguaio, por exemplo, diz-se, na parte refe­rente à prova, que o autor tem o dever ou a obrigação de provar êstes e aquêles fatos. Da estrutura da lei processual decorre, entretanto, que isso não constitui uma obrigação, nem um dever, mas um ônus." O emprêgo pouco feliz dos vocá­bulos ônus, deveres, obrigações deflui, de certo modo, do estado em que se encontrava a ciência do Direito Processual, em meados ou em fins do século passado, quando foram redi­gidos os nossos Códigos.

:l<:sse primeiro problema de interpretação, provocado pelo léxico inapropriado do legislador, suas palavras confusas ou o desajuste entre dois ou mais conceitos, é muito freqüente nas codificações americanas que, em grande parte, foram copiadas de diferentes Códigos estrangeiros. A utilização de fontes diferentes produz, impensadamente, já seja por êrro do codi-

11. Sóbre êsse ponto, que é elementar, GoLDSCHMIDT, Teoria General del Proceso~ Barcelona, 1936, pág. 82; Ultimamente, MICHELI, L'Onere della Prova, Roma, 1932, Milão, 1942; posteriormente, TORAL, Deberes y Cargas de las Partes en el Proceso Civil Mexicano, in jus, México, t. 16, 1946, pág. 225; e BARRios DE

ANGELIS, Contribución al Estudio de la Carga Procesal, in La .Revista de Derecho, ]urisprudencia y Administración, Montevidéu, t. 46, pág. 253. No 2.0 tomo de nossos Estudios de Det·echo Procesal Civil se encontrarão abundantes exemplos derivados da circunstância apontada no desenvolvimen.to dêstc tnbalho.

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52 EDUARDO J. CoUTURE

ficador, já seja por imprevisão das comissões revisoras, essas panes da técnica juridica.

Frente a essas situações, o primeiro subsídio deve ser o do método gramatical. A lei, em última análise, é forjada com palavras e as palavras têm o significado que lhes corresponde no tempo e no lugar de vigência da lei. Nem sempre êsse significado coincide com o que lhe atribuem as autoridades lingüísticas. Em caso de dúvidas, é êsse último o que preva­lece; mas, se mudou o sentido da palavra e esta passou a encerrar um significado específico, é êste que procede, e não o indicado pelas autoridades lingüísticas.12

No art. 230, do Código de Organização dos Tribunais Civis e da Fazenda (Uruguai), utilizou-se a palavra curiales. Nenhuma das acepções acadêmicas, nem sequer entre as con­signadas nos dicionários juridicos, corresponde ao sentido que ela tem no sistema de nossas leis.l3 Nesse caso, pois, deverá prevalecer a acepção temporal do vocábulo. E essa acepção, deve o jurista tomá-la da linguagem comum das gentes, dos escritores, dos documentos oficiais e de tudo aquilo que con­tribua para determinar seu exato sentido atual.

A lei nasce como ato de autoridade e vive como norma. Vontade e norma são objetos juridicos, plenos de história, e· não é possível, por mais rigorosa que seja a concepção norma­tiva e lógica do Direito, desvencilharem-se de sua carga de tradições. O Direito vive para o tempo e para o lugar e sua existência está condicionada a êsse tempo e a êsse lugar. A primeira regra de interpretação, portanto, depois de superado o plano meramente gramatical, é a que consiste em dar às palavras da lei o significado que a elas corresponde por seu confronto entre a época histórica em que foram sancionadas e a época histórica de sua aplicação.

12. Supra: § 3.0 , cfr., da mesma forma, Bau.ERA, L6gica, Historia y Norma ]urldica, em La Ley, t. 44. pág. 1.035.

J,, Veja-se, sóbre êsse·tema, o estudo que aparece em La Rtvi.sta de Derecho1

]urisprudencia y ~dministración, Montevidéu, t. 48, pág. 79.

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VII

COLISAO DE TEXTOS E DE PRINCíPIOS

A interferência de textos e de princípios e suas possíveis colisões constituem coisa comum na atividade interpretativa.

O art. 374, do Código de Processo Civil do Uruguai, per­mite a apresentação dos documentos que hajam sido conse-

. guidos tardiamente até a citação para a sentença. O art. 605, do mesmo Código, porém, estabelece que, depois da citação para a sentença, não mais será admitida nenhuma prova, a não ser a instrumental, no caso do art. 374.

Que decidir? Até a citação para a sentença ou mesmo depois dela? A diversidade das fontes lançou o legislador nesse difícil impasse.14

Ocorre, outras vêzes, que não é um texto que colide com outro texto, mas sim um texto que colide com um princípio. Assim, por exemplo, o mesmo dispositivo declara que o juiz poderá ordenar as diligências que julgar oportunas para o andamento do processo. Ao dizer as que julgar oportunas, não poderíamos chegar a outra conclusão que não seja a de que não existe nenhuma limitação para a atividade do juiz nas diligências por êle determinadas. Se a nós mesmos apre­sentássemos, entretanto, o problema de saber se o juiz pode impor a uma das partes que responda, sob juramento, a per­gunta que lhe deveria ser formulada a pedido da parte con­trária ou se pode ordenar o juramento decisório, a conclusão deveria ser negativa. Por que? Porque um e outro caso são da essência do processo dispositivo e a disposição do processo dentro dessa estrutura corresponde às partes e não ao juiz.15

14. Sôbre êsse ponto, consulte-se Prueba Instrumental desput!s de la Citación para Sentencia, em La Revista de Derecho, Jurisprudencia y Administracidn, Montevidéu, t. 47, pág. 153.

15. Assim o sustentamos, em Teoria de las Diligencias para Mejor Proveer, Montevidéu, 1932, pág. 115.

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A idéia de que o juiz poderá ordenar as diligências que con­siderar oportunas não pode significar, em uma passagem aci­dental da lei, a destruição de todo um sistema que pertence à própria arquitetura do processo.

Falar de colisão de texto com princípio pareceria uma antinomia, porque não pode haver outro princípio senão o que surge dos textos. Se chegarmos, entretanto, à conclusão de que os princípios são extraídos de uma harmonização siste­mática de todos os textos, levando em consideração suas suces­sivas repetições, suas obstinadas e constantes reaparições, a tarefa interpretativa, nesse caso, deverá realizar-se mediante o predomínio do princípio, já que êle constitui a revelação de uma posição de caráter geral, assumida ao longo de um conjunto consistente de soluções particulares.16 A situação especial, então, deve ser interpretada como um afastamento do princípio e não como aplicação ou vigência do mesmo.

VIII

O CASO PROCESSUAL NÃO PREVISTO

O problema interpretativo mais grave é criado pelo si­lêncio do legislador.

O silêncio do legislador, dentro da idéia de plenitude da ordem jurídica, é, por assim dizer, um silêncio cheio de vozes. Nesse silêncio, naquele ponto exato em que o legislador foi omisso, é onde se entrecruzam tódas as outras normas. O trabalho consiste em fazer Cl!lm que a ordem jurídica se encon­tre presente na operação interpretativa da qual devem ser extraídas as devidas conseqüências. O caso não previsto con­tém, pràticamente, tódas as previsões possíveis.

(fual deve ser a reação do intérprete em sua tarefa em face do silêncio da lei processual?

16. Em sentido análogo, ASCOLJ, La Interpretación de las Leyes1 trad. espa· nhola, Buenos Aires, 1947, págs. 86 e segs.

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Seria de desejar que fôsse possível responder essa per­. gunta com uma só palavra. Tal coisa, porém, é impossível. Para sa bcr como reage o intérprete frente ao silêncio da lei, resta, como único remédio, penetrar ainda mais a fundo na análise da estrutura da lei processual.

Dizíamos que, ao contrário dos outros Códigos, a lei pro­cessual é a descrição dos atos que integram o processo. A descrição se faz com relação a atos. O processo nada mais é do que uma relação continuada, ou um conjunto de relações, de atos processuais especialmente descritos na lei.

O silêncio da lei processual pode representar uma sim­ples omissão involuntária. Assim, por exemplo, no Uruguai, durante muitos anos, apresentou-se o problema de interpretar o art. 874, que enumera os títulos executivos, porque êsse dis­positivo, diferentemente de tôdas as fontes utilizadas pelo codificador, não incluiu a confissão como título executivo. Que significado tem essa omissão? Poderia parecer que se trate de um simples caso de lógica jurídica: em uma enu­meração taxativa, a omissão de um elemento supõe, neces­sàriameute, a sua exclusão deliberada.'7 O silêncio, em uma enumeração taxativa, só pode significar a exclusão do ele­mento encontrado nas fontes aproveitadas pelo legislador. Se êste foi infeliz em sua solução, a culpa não deve ser atribuída ao intérprete.

Pode dar-se, entretanto, o caso de que a omissão não apareça em uma enumeração taxativa, mas sim dentro da estrutura geral do sistema.

Na lei uruguaia, o processo civil consta de uma etapa preliminar: petição inicial e contestação; a seguir, há o pe­ríodo probatório e, vencida essa fase de produção das provas, surge a contradita, para impugnação das testemunhas da parte contrária. Terminada a contradita, apresentam-se as razões finais e o processo é concluso ao juiz para sentença. O

17. Sôbre êsse problema, veja-se Conciliación y Titulo Eiecutivo, em Estudio1 de Derecho Procesal Civil, t. I, pág. 237, Buenos Aires, 1948.

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problema interpretativo é o seguinte: O legislador limita-se a dizer que, encerrada a fase probatória, se promoverá, na forma legal, a contradita e que, feita a prova relativa a êste incidente, cada parte apresentará suas razões finais. Pois bem: 1!. notório que, pela mesma razão por que as testemunhas do juízo principal podem ser impugnadas por venalidade, paren­tesco, inímizade, etc., também as testemunhas ouvidas na ins­trução da contradita podem ser venais, mentirosas ou pa­rentes. Levanta-se, então, o problema interpretativo de sa­bermos se é admissível uma outra contradita para impugnar as testemunhas da contradita. 18

Se nos guiássemos, exclusivamente, pelo preceito de que onde existe a mesma causa existe o mesmo efeito, a resposta só poderia ser afirmativa. Mas, a verdade é que essa constitui uma maneira ingênua de enfrentar o problema da interpre­tação, pois o certo é que, no caso de contradita das testemunhas ouvidas na contradita, colidem dois princípios. De um lado, acha-se o princípio da igualdade das partes no processo, que é um princípio inerente a tôda sua estrutura e que participa da característica da bilateralidade própria do Direito. A igualdade das partes no processo não é nada mais do que uma manifestação da igualdade das partes ante a lei19 e não é possível deixar uma delas à mercê de depoimentos venais, mentirosos ou interessados. :E.sse princípio, contudo, que exi­giria o máximo zêlo recíproco para depurar a prova de todos os seus vícios e fazer com que o juizo não falhasse baseado em declarações testemunhais falsas, se choca com o princípio da preclusão, segundo o qual o juízo civil algum dia deve ser encerrado. Pelo mesmo motivo por que se admite uma pri­meira contradita feita às testemunhas do juízo principal; deve­ríamos admitir a contradita das testemunhas ouvidas na con-

18. Cfr. GALLINAL, Testigos. Tachas de Testigos, 2.a ed., Montevidéu, 1929, polg. 397. .

19. Cfr., Ultimamente, CoLORNI, L'Uguaglianm come Limite delta Legge nel Diritto lntermedio e Moderno, Milão, 1946.

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tradita e, por sua vez, outra contradita das testemunhas ouvi­das na segunda contradita, e assim por diante. A colisão dos dois princípios é evidente.

Nesse exemplo, não podemos falar de um choque de dis­poslçoes. Um artigo não colide com outro; o que se choca são dois princípios diretivos do processo: o da igualdade e o da preclusão. A qual dêles daremos prioridade? Daremos preferência ao princípio de igualdade, que regula o contra­ditório sôbre tôda a atividade da prova, ou daremos prefe­rência ao princípio da preclusão, que estrutura o processo sôbre a base de uma série de etapas que se sucedem de ma­neira articulada e que, ao procurar sua ordenada elucidação, visam, antes de tudo, à segurança jurídica?

Nossa jurisprudência e nossa doutrina têm sido muito firmes nesse caso, dando príoridade ao princípio da preclusão.

Não cumpre examinar êsse assunto, em um estudo desta natureza. Utilizou-se o exemplo somente para mostrar como a função interpretativa deve olhar; em primeiro lugar, tanto os príncípios que estão em jôgo como a disposição particular na qual se adverte o silêncio da lei.

O caso não previsto na lei processual deve ser resolvido em função dos príncípios inerentes a todo o sistema e não em função de analogias aparentes com esta ou aquela solução. As máximas ubi eadem est ratio, idem jus ou ubi lex non dis­tinguit, nec nos distinguere debemus não constituem, em si mesmas, soluções interpretativas, mas simples fórmulas que nos legou a tradição e cuja críse é notória. Um mínimo de lógica, êsse mínimo de lógica que costumamos chamar técnica jurídica, impõe a substituição dessas velhas receitas do pensa­mento por príncípios de integração sistemática do Direito, recolhidos da índole própria do direito particular que nos re­clama a atividade interpretativa.20

20. "tsses axiomas - dizia BELIME - jamais ensinarto a raciocinar os que têm o espírito hesitante e servirão, sOmente, para confundir aquêles que têm o espírito esclarecido" (Philosophie du Droit, t. 2, 1, IV, Cap. X).

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IX

INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DAS LEIS NO PROJETO DE CóDIGO DE PROCESSO CIVIL

DE 1945 (URUGUAI)

Permita-se-nos concluir esta exposição citando, como exemplo, uma experiência pessoal que tem êsse assunto como centro de tôda e qualquer reflexão.

Na tarefa de redação do Projeto de Código de Processo Civil que tivemos de realizar, em virtude da lei uruguaia n.' 10.418, de 11 de março de 1943,21 deparou-se-nos o problema de saber se era ou não possível que o legislador, em sua pró­pria obra, enfrentasse o trabalho de determinar os princípios diretores de seu Código. Em vez de deixar que o intérprete extraia êsses princípios - iniciativa, direção, impulso, bilate­ralidade, etc. - do conjunto de tôdas as normas, o legislador dirige-se para êle, apresentando-lhe os princípios diretivos do Código e determinando que os silêncios ou as omissões inevi­táveis do texto sejam interpretados em função dêsses mesm0s princípios.

O art. 3.9, do citado Projeto de Código, diz: "A direção do processo é confiada ao juiz, que a exercerá de acôrdo com as disposições dêste Código. Em caso de obscuridade ou insu­ficiência das mesmas, caberá ao juiz esclarecer as dúvidas que surgirem, aplicando os princípios contidos no presente ca­pítulo".

Para assim proceder, serviu-nos de inspiração o Capítulo Preliminar do Código Civil francês.'2

21. Dito Projeto foi publicado em um volume que continha o texto, a expo­siça.o de motivos e a nota de apresentação do mesmo, bem como os índices. A edição foi lançada por R. DEPALMA, Montevidéu-Buenos Aires, 1945.

22. Quando, concluída a guerra, abOTdou-se o problema de revisio do Código Civil franc~s, a "Associação Henri Capitant em prol da Cultura Jurídica Fran· ccsa", em sessão especial, debateu a tese de se saber se êsse capítulo deveria ser mantido ou eliminado e, no primeiro caso, se deveria ser ampliado, no estilo do

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Será possível - perguntamo-nos - tentar emprêsa aná­loga com a teoria da justiça civil? Ao dar uma resposta afir­mativa, por motivos que não é preciso desenvolver aqui, pro­curamos, desde a página inicial dêsse Projeto, ir ao encontro dos princípios, expondo-os com a máxima clareza possível.

Bom ou mau o resultado, nosso propósito foi o de inverter os têrmos em que, tradicionalmente, se apresenta a questão: o legislador, consciente da solidez da estrutura interna de sua obra, prefere, êle próprio, acusá-la, num ato espontâneo -com tudo aquilo que êste pode sugerir, como risco e como aventura do pensamento humano - a deixar que o intérprete realize, trabalhosamente, essa tarefa. Em última essência, o Direito Positivo é uma elaboração esquematizada; fazer dos esquemas particulares um esquema ainda mais geral não Cons­titui uma contradição."'

Dir-se-á, e com razão, que êsses princípios nada signi­ficarão se não forem, imediatamente, referendados pelas con­seqüentes disposições, através de todo o Código.

Assim é, efetivamente, e o Projeto teve o máximo cui­dado em consolidar êsse postulado em numerosos disposi­tivos especiais. Se ocorrer, entretanto, que a omissão de um caso particular crie um impasse para o intérprete, por não saber êle a que outra norma análoga recorrer, então o prin­cípio geral situará a tarefa interpretativa no plano dos prin­cípios e não na fórmula isolada de um artigo em especial.

Código Civil alemão ou do Código Civil suíço. O relatório foi confiado a Mr. BoULANGER e interferham no debate NIBOYET, ROVAST, ANCEL, MAZEAUD, ESMEIN, R. CAPITANT, LEPAULLE, jVLLIOT DE LA MORANDrb.E, DELLEPINE, CHAUVEAU, FRÉJA· vtLLE, Sows e alguns outros juristas. A conclusão foi a de que se afastasse a idéia de uma introduçlo feita nos moldes do Código Civil alemão, compreendendo a teoria do ato jurídico. Em troca, deviam ser conservados alguns preceitos, precisos e rigorosos, dos quais se pudesse extrair a teoria geral da lei. Cfr. Travaux de l'Association Henri Capitant pour la Culture ]uridique Française, Paris, 1946, págs. 73 e aegs.

23. Pode encontrar-se uma excelente fundamentação para essas idéias no livro de DABIN, LA Technique de l'-tlaboration du Droit Positif, Bruxelas-Paris, 1935, especialmente no capitulo 11, pág. 57. Ultimamente, no mesmo tentido, Ascou, La Concepción de[ Derecho, Buenos Aires, 1947, pág. 51.

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O Projeto não enuncia todos os princípios, porque são muitos os que fazem parte da sistemática de um Código." Coloca, porém, em primeiro lugar, aquêles que encerram um conteúdo, por assim dizer, de política processual. :Rsses dis­positivos visam, antes, a uma aproximação da analogia juris do que a uma aproximação da analogia legis. Procurou-se não tanto facilitar a correlação entre um e outro texto, como a necessária coordenação profunda de tôda a estrutura do Có­digo, de seus princípios entre si e do conjunto dos princípios com a vasta composição arquitetônica que inspira a obra em sua totalidade.

Assim, por exemplo: Princípio de iniciativa do processo: A iniciativa do processo cabe às partes; o juiz somente o iniciará ex-officio quando a lei o dispuser. Princípio do im­pulso processual: Promovido o processo (aqui a solução é inversa), o juiz tomará as medidas destinadas a evitar sua pa­ralisação, a não ser que um texto expresso da lei deixe entre­gue à atividade das partes a continuação do mesmo. Prin­cípio de igualdade: O juiz deverá manter, dentro do pos­sível, a igualdade das partes no processo. Principio de liber­dade na forma dos atos: Sempre que a lei não apontar uma formalidade especial para realização de um ato, deverão con­siderar-se como admissíveis tódas as formas tendentes a obter os fins do mesmo. Princípio de probidade: "O juiz deverá tomar, ex-officio ou mediante requerimento da parte, tódas as medidas necessárias estabelecidas em lei e destinadas a pre­vinir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Jus­tiça, ao respeito que se devem os litigantes, bem como as faltas de lealdade e probidade no debate". Princípio de economia: Tanto o juiz como os órgãos auxiliares da jurisdição toma­rão os cuidados necessários para conseguir a maior econo­mia na realização do processo. Principio de concentração:

24. Isso foi obse1vado por ROMPANI, Algunos Aspectos Prdcticos del Proyecto Couture, na Revista de Derecho Procesal~ Buenos Aires, t. 4~ I, pág. 375.

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Os atos processuais atribuídos aos órgãos da jurisdição de­verão ser realizados sem demora, procurando-se abreviar os prazos e concentrar em um mesmo ato ou audiência tôdas as diligências que fôr preciso efetuar.

Julguei acertado concentrar nossas deliberações em tôrno dêsses textos.

Sob o ponto de vista acadêmico, seria, certamente, muito interessante uma discussão tendente a saber se a função inter­pretativa é ou não criadora do direito, problema formulado na conferência anterior; o certo, porém, é que uma polêmica dessa natureza terminaria, provàvelmente, muito depois de minha chegada a Montevidéu. Trabalhando, ao contrário, sôbre a base de um texto articulado, realizaríamos, na mesa­-redonda, uma tarefa de caráter pré-legislativo que consti­tuiria, em minha opinião, uma precisa experiência.

De certo modo, uma discussão e uma série de sugestões que eu venha a receber sôbre êsse ponto significarão a verda­deira realidade de uma mesa-redonda, porque, finalmente, o que todos desejamos é enfrentar os problemas e expor os pontos de vista com uma finalidade construtiva. E que pode ser mais construtivo que o debate sôbrc um projeto de texto codificado?

Estou disposto, tendo nisso verdadeiro prazer, a trocar idéias sôbre todos êsses assuntos; formulo, porém, nesse sen­tido, um convite afetuoso a meus colegas e companheiros de trabalho: peço-lhes que, com sua experiência e seu saber, pensem e expressem, com absoluta sinceridade, seu modo de pensar.

Em primeiro lugar, desejo conhecer suas opiniões sôbre a questão que consiste eth saber se ao legislador é ou não per­mitido denunciar, desde o capítulo preliminar, os princípios diretivos de sua obra, para que o intérprete os possa perceber, sem necessidade dêsse vasto trabalho de sistematização que importa no conhecimento profundo de todos os detalhes de um corpo codificado .

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Além disso, contudo, desejaria conhecer outros pontos de vista sôbre as diferentes soluções particulares.

Uma obra de codificação é, além de um conteúdo de so­luções de política jurídica, uma forma de arquitetura. Nela influem não só a magnitude da proporção e dos grandes vo­lumes, como também o primoroso detalhe de artesanato. Quanto ao mais, neste caso, as observações a êsse capítulo inicial representam o cuidado nas minúcias da fachada, já que aí começa, justamente, o lado externo do edifício.

Que poderei eu, simples operário do Direito, sem a coope­ração daqueles que me possam ajudar a melhorar a obra nos grandes planos da composição e nos delicados pormenores dos arremates? A tarefa da codificação não pode ser individual, mas coletiva. O crítico deve operar ao lado do artista e do artesão. Algumas vêzes, para insuflar-lhe o necessário alento; outras, para desviá-lo do caminho errado.

Tudo que eu pedir a êste cultíssimo conjunto de profes­sôres que me deu a honra de dispensar sua atenção e de seguir a linha de meu pensamento, não será serviço prestado a mim, mas ao meu país, que tanto precisa da cooperação coletiva para realizar seus empreendimentos culturais.

O trabalho de legislar foi sempre, para os uruguaios, um trabalho de significação especial. &se pequeno povo, que não pode sonhar com expansões territoriais, sàmente pode estender-se em um sentido, por assim dizer, vertical: em altura e profundidade, pelo pensamento e pela educação, pelos esfor­ços da inteligência, do direito, da justiça social, pela constante disciplina da liberdade circunscrita pela lei.

Aperfeiçoar o Direito é elevar a estatura moral dêsse povo a que eu tanto amo. Essa contribuição nos ~ necessária, para que aquêle território e a gente que nêle habita, em seu inces­sante esfôrço de superação, possam fazer parte, juntamente com a Grécia, a Suíça, a Bélgica, a Holanda, da confederação dos pequenos grandes povos da terra.

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DEBATE

Seguem-se as notas taquigráficas da sessão de mesa-redonda realizada, em 1947, na Escola Na­cional de Jurisprudência, do México.

Participaram dessa troca de idéias sôbre as dis­posições preliminares do Projeto de Código de Pro­cesso Civil elaborado pelo prof. EDUARDO J. Cou­TURE, além do próprio autor, os seguintes profes­sôres daquela Faculdade: NicETO ALcALÁ-ZAMORA Y CAsTILLO, JosÉ CAsTILLo LARRANAGA, RoBERTo A. EsTEVA Ruiz, EDuARDO GARCIA MAYNEZ, GABRIEL GARCIA RoJAs, IGNACIO MEDINA, EMÍLIO PARDo AsPE, RAFAEL DE PINA, Luís RECASÉNS SrcHEs, ALBERTO TRUEBA URBINA e VIRGÍLIO DoMINGUEz, que presidiu a sessão .

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PROJETO DE CODIGO DE PROCESSO CIVIL 1

PARTE PRELIMINAR

Regras Gerais do Processo

TÍTULO I

A Jurisdição

CAPÍTULO I

Princípios Gerais

Art. 1. • - APLICAçÃo DÊSTE cÓDIGO - A jurisdição civil, de menores, da fazenda e do contencioso administrativo se rege, salvo disposições especiais, pelo presente código.

Art. 2.9 - PRINCÍPIO DE INICIATIVA DO PROCESSO - A iniciativa do processo compete às partes. O juiz o iniciará de ofício somente quando a lei o estabelecer.

Art. 3.• - PRINCÍPIO DE DIREÇÃO - A direção do pro­cesso está confiada ao juiz, que a exercerá de acôrdo com as disposições dêste código.

Em caso de obscuridade ou insuficiência das mesmas, ao juiz caberá esclarecer as dúvidas que surgirem, aplicando os princípios contidos no presente capítulo.

Art. 4.• - PRINCÍPIO DE IMPULSO PROCESSUAL - Pro­movido o processo, o juiz tomará as medidas tendentes a evitar sua paralisação, a não ser que um texto de lei deixe confiada à atividade das partes a continuação do mesmo.

1. Elaborado para o Uruguai e impresso em Montevid~. no ano de 1945 .

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Art. 5.9 - PRINCÍPIO DE IGUALDADE - 0 juiz deverá manter, dentro do possível, a igualdade das partes no processo.

Art. 6.9 - PRINCÍPIO DE LIBERDADE DA FORMA - Quando a lei não apontar um procedimento especial para a realização de um ato, deverão considerar-se como admitidas tôdas as formas que tendam a alcançar os fins do mesmo.

Art. 7.9 - PRINCÍPIO DE PROBIDADE - 0 juiz deverá tomar, de ofício ou mediante requerimento da parte, tôdas as medidas necessárias, estabelecidas em lei, no sentido de pre­venir ou punir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, ao respeito que se devem os litigantes, bem como as faltas contra a lealdade e a probidade no debate.

Art. 8.' - PRINCÍPIO DE ECONOMIA- Tanto O juiz como os órgãos auxiliares da jurisdição tomarão as medidas neces­sárias para obter a maior economia na realização do processo.

Art. 9.• - PRINCÍPIO DE coNCENTRAÇÃo - Os atos pro­cessuais atribuídos aos órgãos da jurisdição deverão ser reali­zados sem demora, procurando-se abreviar os prazos e concen­trar, num mesmo ato ou audiência, tôdas as diligências que fôr preciso realizar.

DEBATE 2

0 PROFESSOR ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO - 0 · prof. CouTURE exprimiu, em suas conferências anteriores, o desejo

2. Nota do tradutor - Os participantes da sessáo de mesa-redonda, no debate reproduzido, realizaram, expondo seus pontos de vista, pequenas e expres· sivas conferências, acompanhadas, com o máximo interêsse, pelo numeroso público presente. As respostas que, a cada um, deu o prof. EDUARDO J. ComuRE consti­tuem. também, material interessantíssimo, não só para o estudo do Direito como, igualmente, para avaJiação doa dotes intelectuais do eminente jurista uruguaio.

Para mais fácil leitura do debate e, 10bretudo, pata mais fácil consulta. as palavras de cada um dos professóres mexicanos irao oonstituindo, por assim dizer, capítulos dêste livro, separados uns dos outros tipogràficamente. mas inti­mamente entrosadoa, já que constituem etapas de uma memorável discussao sõbre os princípios gerais que regem o Direito Processual.

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IN'tERPRE'XAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 67

de que a discussão em mesa-redonda girasse em tôrno dos arts. 1.• a 9.• do Projeto de Código de Processo Civil redigido por êle para seu país. De acôrdo com a sugestão formulada, dedi­carei a primeira parte de minha intervenção à proposta de algumas reformas ou retoques aos princípios gerais consa­grados pelos mencionados dispositivos. Antes, porém, de pros­seguir, não quero deixar de expressar ao grande mestre uru­guaio, a quem me une uma amizade realmente fraternal, a imensa alegria que me causaram sua chegada e sua perma­nência entre nós, bem como o pesar que experimento ante a proximidade de seu regresso à pátria.

PRIMEIRA PARTE - O art. 1.' do Projeto reza assim: "Aplicação dêste código - A jurisdição civil, de menores, da fazenda e do contencioso administrativo se rege, salvo dispo­sições especiais, pelo presente código". Pois bem: como não é, na realidade, a jurisdição (palavra que, aliás, deveria ser empregada no plural), mas sim o processo que se rege pelo código processual, já que a primeira é instituída pela Consti­tuição e regulada pelas leis de organização judiciária (comum ou especiais) - sem prejuízo de que seja o ajuizamento o terreno em que se manifesta- proponho que o artigo diga: "Aplicação dêste código- O processo ante as jurisdições civil, et. se regerá, salvo disposições especiais, pelo presente código" (As modificações estão indicadas em grifo) .

"Art. 2.• - PRINCÍPIO DE INICIATIVA DO PROCESSO - A iniciativa do processo compete às partes. O juiz o iniciará de ofício somente quando a lei o estabelecer". Em meu entender, o juiz deve atuar, apenas, como órgão jurisdicional e nunca como órgão requerente, tarefa esta atribuível e apro­priada ao Ministério Público, para evitar, entre outros riscos, o de que aquêle incorra em pré-julgamento. Talvez tenha influído no espírito de CouTURE a opinião do processualista JoFRÉ, para quem a atuação do Ministério Público no processo civil vem a ser como que a quinta roda do carro da justiça .

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Essa afirmação, porém, exata com relação aos processos civis de tipo dispositivo, deixa de sê-lo em face dos que CALAMAN­

DREI denomina de indole inquisitória e que são, precisamente, aquêles em que seria êle, em certas ocasiões, chamado para promover o início do processo. Por tudo isso e para acentuar o contraste entre o Ministério Público, simples sujeito do processo, e as partes stricto sensu, como sujeitos, além disso, do litígio, o art. 2.• deveria dizer: "Princípio de iniciativa do processo - A iniciativa do processo compete às partes litigantes ou ao Ministério Público, quando estiver autori­zado a fazê-lo".

"Art. 3.9 - PRINCÍPIO DE DIREÇÃO- A direção do pro­cesso está confiada ao juiz, que a exercerá de acôrdo com as disposições ~ código. Em caso de obscuridade ou insufi­ciência das mesmas, caberá ao juiz esclarecer as dúvidas que surgirem, aplicando os princípios contidos no presente capí­tulo". Duas modificações, uma de estrutura e outra de re­dação e conteúdo, devem ser efetuadas neste artigo. A pri­meira consiste em dividi-lo em dois, pela simples razão de que são duas e distintas as normas que associa. Sua primeira parte ficaria como está, sob a atual rubrica princípio de di­reção, enquanto que a segunda, sob a epíg~afe interpretação e integração da lei processual, formaria um novo artigo, a ser intercalado entre os atuais arts. 1.' e 2.9. Além disso, por motivos que a seguir serão expostos, quando nos referirmos ao problema do silêncio legislativo - entre êles o de que os princípios dos arts. 1.' a 9.0 poderiam ser insuficientes para preencher uma lacuna - nesse art. 1.' bis variar-se-ia a re­dação, nos seguintes têrmos: "Interpretação e integração da lei processual - Em caso de obscuridade, insuficiência ou omissão da lei processual, caberá ao juiz esclarecer as dúvidas, sanar as deficiências ou suprir os esquecimentos, aplicando os princípios contidos no presente capítulo ou as regras da inter­pretação sistemática".

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Nenhuma objeção tenho a fazer aos arts. 4.9 (Princípio de impulso processual) e 5.• (Princípio de igualdade).

"Art. 6.9 - PRINCÍPIO DE LIBERDADE DA FORMA -Quando a lei não apontar um procedimento especial para a realização de um ato, deverão considerar-se admitidas tôdas as formas que tendam a alcançar os fins do mesmo". Como a expressão procedimento especial possui um significado pe­culiar; como, além disso, dentro da teoria da atividade pro­cessual, procedimento se contrapõe a ato, em uma relação semelhante à que existe entre a corrente e o elo, seria conve­niente substituir aquelas palavras por outras que dissipassem o equívoco. Na parte final do preceito, deveria trocar-se o verbo tender pelo verbo servir, já que é a adequação formal, e não o simples propósito de alcançá-la, aquilo que o legis­lador tem interêsse em autorizar. O artigo, por conseguinte, ficaria assim redigido: "Princípio de liberdade da forma -Quando a lei não indique, taxativamente, a maneira de rea­lizar-se um ato, deverão considerar-se admitidas tôdas as for­mas que sirvam para alcançar os fins do mesmo".

"Art. 7.• - PRINCÍPIO DE PROBIDADE - O juiz deverá tomar, de ofício ou mediante requerimento da parte, tôdas as medidas necessárias estabelecidas em lei, no sentido de pre­venir ou punir qualquer ato contrário à dígnidade da justiça, ao respeito que se devem os litigantes, bem como as faltas de lealdade e probidade no debate". Pôsto que o princípio de probidade não fica circunscrito ao juiz, propomos que ao artigo enunciado se adícione uma segunda parte, a fim de combater, em todos os terrenos, a chicana processual. O novo parágrafo poderia, pouco mais ou menos, rezar da seguinte maneira: "Sem prejuíw da obrigação consignada no texto precedente, a tôdas as pessoas que intervenham a título profissional na formação de um processo caberá o dever estrito de se aterem às regras éticas de sua respectiva profissão".

"Art. 8.• - PRINCÍPIO DE ECONOMIA - Tanto o juiz como os órgãos auxiliares da jurisdição tomarão as medidas

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necessárias para obter a maior economia na realização do pro­cesso". Pensamos que a maior economia deve acrescentar-se e rapidez, a fim de acabar com o que já denominei etapas mortas ou etapas de inatividade processual, durante as quais os autos ou expedientes se cobrem de pó nas estantes dos cartórios. São elas - e não os prazos previstos em lei para comparecer, contestar, fazer prova, recorrer, etc., cuja soma representa bem pouco (semanas ou meses, quando muito) na vida total de um processo - que tomam intermináveis os

.litígios e, portanto, que devem ser combatidos com a maior energia.

"Art. 9.• - PRINCÍPio DE coNCENTRAçÃo- Os atos pro­cessuais atribuídos aos órgãos da jurisdição deverão realizar­-se sem demora, procurando-se abreviar os prazos e concentrar, num mesmo ato ou audiência, tôdas as diligências que fôr preciso realizar". Se não se incorporasse ao art. 8.' a palavra rapidez, poderia acrescentar-se ao presente dispositivo um trecho relativo à eliminação das etapas de inatividade. Nesse caso, a reforma se poderia concretizar da seguinte forma: "Os atos processuais ... deverão realizar-se sem demora, procuran­do-se encurtar os prazos, eliminar as etapas de inatividade, concentrar, etc.". (Aplausos).

SEGUNDA PARTE - Devido ao limite de tempo de dez mi­nutos, fixado para cada participante, as considerações alheias aos arts. 1.• a 9.• tiveram de ser omitidas, com o aviso, contudo, de que seriam anexadas quando se publicasse o curso.

Assim como as ponderações ao articulado constituíram objeções, as que passamos a consignar agora representam antes sugestões nascidas em nossa mente, ao ouvirmos as confe­rências de CouTURE.

A interpretação e a integração da lei processual formu­lam, em nosso modo de entender, duas classes diferentes de problemas: os referentes aos métodos e resultados, consti­tuindo o que se poderia chamar a parte geral - que não é

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matéria de processo, mas sim de Teoria Geral do Direito e da Doutrina das Fontes, embora o processualista, como o civilista, o penalista, o comercialista, etc., faça uso de seus ensina­mentos - e os relativos aos princípios ou critérios em que tais ensinamentos devem inspirar-se e que representam, por assim dizer, a parte especial, caindo, por conseguinte, dentro e não fora da área cultivada pelo investigador de cada disciplina jurídica. Acentuada essa distinção, entendemos que os prin­cípios que devem reger a interpretação da norma processual são os de justiça, eficácia, rapidez e economia, devendo, em caso de choque entre os quatro, prevalecer os dois primeiros. Além disso, o intérprete processual, que não trabalha sôbre abstrações, mas sôbre litígios que lhe são submetidos, estará acertado se não se isolar do fundo do processo e deverá levar muito em conta a conduta que dentro dêle mantenham as partes, para que possa dispor de uma espécie de termômetro moral da boa ou má-fé com que se venham elas conduzindo. Entrelaça-se, assim, o tema da interpretação e integração da lei processual, objeto do presente curso de CourURE, com a teoria da boa-fé no processo civil, que foi o assunto de seu primeiro ciclo de conferências em nossa Escola.

Um ponto em que eu talvez discorde de CouruRE é o da criação jurisdicional do direito. CouruRE, influenciado, pro­vàvelmente, por um ilustre jurista-filósofo argentino, o prof. CARLOS Cossro, paladino entusiasta da tese, em obras como a Teoria Egológica deZ Derecho y el Concepto Jurídico de Libertad (Buenos Aires, 1944) e El Derecho en Derecho Judicial (Buenos Aires, 1945), opta pela afirmativa; eu, po­rém, me inclino para a negativa. Discutir o assunto recla­maria um espaço de que não disponho agora. Limito-me, por isso, a indicar que talvez a discrepância entre os que sus­tentamos pareceres opostos cessaria e, de qualquer forma, en­curtar-se-iam as distâncias e brotaria a luz, se começássemos por nos pormos de acôrdo, inclusive para manter acesa a dis­cussão, sôbre o que se deve entender por criação do direito.

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Porque é aí, provàvelmente, onde se encontra la madre deZ cordero. No direito argentino, que CouruRE conhece como o de seu próprio país, existem certas resoluções judiciais, as acordadas dos tribunais superiores (que, em minha opinião, se entrosam com os famosos Autos Acordados do Conselho de Castela - também das Audiências do México - referentes a questões processuais) que mantêm estreitas relações com o ponto que agora consideramos: as resoluções meramente inter­pretativas vêm a ser uma espécie de cassação no interêsse da lei, mas ex-officio; as integrativas são, na realidade, quase legislativas, e, devido a elas, se corre o risco de que o Poder Judiciário usurpe atribuições do Legislativo ou desnature suas normas.

Passando, agora, à segunda conferência, deter-nos-emos, em primeiro lugar, na questão das chamadas lacunas do di­reito, 3 ou melhor, da lei, isto é, o silêncio do legislador em face de uma determinada situação, ou, como prefere CouruRE, o caso não previsto.

Cumpre, neste ponto, em meu entender, distinguir duas hipóteses diferentes, ante as quais o intérprete, ou mais exata­mente, o integrador da norma deve conduzir-se de modo di­verso: a de exclusão desejada (que não pode ser suprida por êle) e a de omissão involuntária (que deve sê-lo). Exempli­fiquemos uma e outra, não sem reconhecer, contudo, que, na prática, a distinção entre ambas pode originar quebra-cabeças. Como exemplo de exclusão conscientemente querida pelo le­gislador, relembremos, precisamente, a que mencionou Cou­TURE em sua última conferência: o silêncio do ainda vigente Código Processual Civil uruguaio sôbré a confissão como tí­tulo executivo, talvez no propósito de limitar os títulos exe­cutivos àqueles que possuam um caráter rigorosamente do­cumental, embora adquira a confissão, na verdade, tal traço,

S. Nota do tradutor - Há, aqui, na ediçlo mexicana, um jOgo de palavras intraduztvel.

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em virtude da preparação de que é objeto ( cfr., por exemplo, arts. 1.432/1.433, da Lei espanhola, ou art. 201, do Código mexicano do Distrito). De qualquer forma, desde o momento em que o Código uruguaio se afastou, nesse ponto, do modêlo espanhol e do critério imperante na maioria dos textos bis­pano-americanos sôbre o ajuizamento civil, é evidente - in­dependentemente de que se considere errônea ou certa sua atitude - que não quis atribuir à confissão eficácia executiva e como o juízo executivo, a que conduzem os correspondentes títulos, pressupõe um processo oneroso para o devedor (pospo­sição da contestação; limitações defensivas), não seria então correto interpretar o caso não previsto em sentido extensivo ou :permissivo. Um exemplo, por sua vez, de omissão involuntá­ria, tê-lo-íamos no silêncio da Lei espanhola de Ajuizamento (cfr. art. 499), relativamente à admissibilidade da oposição à medida preventiva conhecida por depósito de coisa móvel exi­bida: sua indubitável analogia com o seqüestro levou a juris­prudência a autorizá-la e a tramitá-la de acôrdo com o pro­cesso de oposição ao último. Apontaremos, agora, um caso duvidoso e discutível, que para SENTÍS MELENDO parece ser de exclusão ( cfr. seu artigo La pericia in futurum, Revista de Derecho Procesal, 1943, II, pág. 277) e que, para nós, cons­titui um caso de omissão ( cfr. minha Adición al num. 36-B, do Sistema de CARNELUTTI), a saber: -o da antecipação da prova pericial naqueles códigos que, como o espanhol ( cfr. art. 502), ou o mexicano do Distrito (cfr. art. 193, VII e VIII), consentem, expressamente, a antecipação da prova do teste­munho, sem, contudo, fazer a menor referência à primeira. Os motivos que, em seu ponto de vista, permitem aqui usar a analogia para suprir o esquecimento (não a exclusão) do legislador são os seguintes: perícia e testemunho são meios de prova, de natureza pessoal, a cargo de terceiros, pertencentes à categoria das provas indiretas. A impraticabilidade da prova no momento processual oportuno se pode apresentar relativamente ao depojmento -testemunha doente ou ausente

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- como relativamente à per1c1a análise irreproduzível, impossibilidade de conservar as coisas destinadas à perícia sem sofrer alterações. Se a perícia, finalmente, é admitida no direito espanhol, tanto na ocasião processual oportuna, como a título de prova retardada - diligências para melhor julgar - nada justifica que lhe seja fechado o caminho como prova antecipada.

Na primeira parte, ao propor a reforma do art. 3.• do Projeto CouTURE, mostramos que a interpretação sistemática teria de ser somada aos princípios gerais do mencionado Pro­jeto, para suprir a insuficiência dos mesmos, como instru-mentos destinados a preencher as lacunas da lei. Aduzire- , J mos, em apoio de nossa tese, um exemplo. Imagine-se um código onde só sejam admitidos três recursos normais: um de reforma ou reposição (contra providências e autos), um de apelação e outro de cassação (ambos frente a sentenças), e suponha-se que se haja silenciado sôbre o prazo para a inter-posição do primeiro. Em tal caso, nenhum dos princípios consignados nos arts. L" a 9.' do Projeto bastaria para reparar a omissão; a interpretação sistemática, porém, trazendo à colação o grau inferior da reposição em contraste com o dos recursos, seu caráter não devolutivo, a índole e o conteúdo das resoluções que impugna, os prazos previstos para atuações semelhantes, etc., chegaria a concretizar o prazo aplicável.

Em outro sentido, devemos destacar que o processo ofe­rece um campo vastíssimo à interpretação e à integração, já que os códigos processuais, por detalhados e minuciosos que sejam, contêm, unicamente, o minimo de orientação jurídica considerada pelo legislador como indispensável à marcha dos juízos, embora a pesquisa legislativa se torne, com freqüência, excessiva e entorpecedora. Entre êsse mínimo e a totalidade de atos e movimentos que compõem um processo em concreto, existe margem muito grande, coberta graças a expedientes diversos, os quais, afinal de contas, desempenham funções de interpretação e, sobretudo, de integração (usos forenses, arbí-

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trio judiciário, faculdades dispositivas das partes - que fize­ram, por exemplo, na Espanha, com que a opção entre decli­natória e inibitória, entre arbitramento e composição ami­gável, se resolva quase constantemente em favor do segundo têrmo de cada parelha, até o ponto de se chegar ao desuso do primeiro, etc_).

Em sua conferência anterior, CouruaE se fêz eco do afo­risma: "ninguém pode ser condenado sem ser ouvido". Penso que o princípio a que corresponde êsse aforisma deve ser mantido, como a mais alta expressão, talvez, do due process of law da doutrina americana. Ao mesmo tempo, porém, para evitar que sua interpretação literal constitua um obstá­culo à adoção de tipos de juízo sem contraditório ou com a posposição dêste, conviria enunciar aquêle brocardo desta for­ma ou de forma análoga: - "Ninguém será executoriamente condenado sem que lhe tenha sido concedida a oportunidade prévia de ser ouvido".

O PROFESSOR EDUARDO J. CouruRE - Agradeço, de todo o coração, ao Professor ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO tudo o que de mim disse, tão bondosamente, e entro na questão.

Sua sugestão relativa ao art. 1.9, visando a completá-lo - "o processo ante a jurisdição civil, de menores, da fazenda" - está aceita.

Ao art. 2.' propõe o mencionado professor que se incor­pore o conceito de que a iniciativa do processo incumbe às partes e ao Ministério Público. As maneiras de intromissão do Ministério Público não fazem parte do Código de Processo Civil, mas sim da Lei de Organização Judiciária, onde se encontra o estatuto do Ministério Público. Aí se enumeram os casos em que sua intervenção é necessária ou facultativa. Orgânica de nosso país, entendo que a sugestão se endereça à citada Lei Orgânica e não ao Projeto de Código.

A sugestão destinada a dividir em duas partes o art. 3.9 ,

uma tendente ao princípio de direção e outra ao princípio de

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integração, está aceita. No que tange à incorporação das regras de interpretação sistemática ao inciso segundo, permi­to-me observar que o Código Civil estabelece os princípios de interpretação da lei e, entre êles, o princípio da interpretação sistemática, dispondo que a lei terá de ser interpretada pro­curando-se obter, entre tôdas as suas partes, a devida corres­pondência e harmonia. A repetição de uma norma dessa espécie no Código de Processo seria, tecnicamente, desneces­sária.

Aceito, prazerosamente, considerando-a acertada e feliz, a sugestão referente à modificação de duas palavras do art. 6.•.

Para o art. 7 .O, foi proposto o acréscimo de uma alusão , ) às penalidades que o juiz pode efetivar relativamente aos profissionais que a tu em no processo. O estatuto dêsses pro-fissionais é matéria da Lei Orgânica ou Código de Organização Judiciária; aí se estabelecem os casos de responsabilidade profissional e os poderes disciplínares que contra êles pode exercer o JUIZ. A norma proposta, semelhante à que se encon-tra no Código italiano, compete também à Lei Orgânica e não ao Código de Processo.

Quanto à sugestão de incorporar aos arts. 8.' e 9.• as pa­lavras tendentes a acentuar a rapidez do processo, aceito-a, embora deseje esclarecer que o príncípio de concentração ou o princípio de economia nada valem se o legislador os for­mular em uma norma geral, porque tudo depende da feli­cidade ou infelicidade das soluções particulares.

Dizíamos, na palestra de ontem, que êste Projeto é uma estrutura, cujo destino depende das soluções completas que sejam arbitradas ao longo do Código. Nêle, dentro das pre­visões técnicas particulares, haverá, Unicamente, dois momen­tos do processo em que êle se poderá deter: na contestação da petição ou na apresentação das razões finais. Todos os restantes momentos do processo se regem pelo princípio do impulso ex-officio, no sentido de que, esgotado um prazo, o serventuário deve certificar o fato, entrando-se, de cheio, na

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etapa seguinte. Só naqueles dois instantes mantive o arbí-." trio da revelia. Em face dessas situações, julguei acertado

inclinar-me ante a vontade da parte contrária; apenas, pela significação extraordinária que encerram a contestação da petição e a apresentação das razões finais, pensei não dever criar têrmos cominatórios.

Não quero terminar sem exprimir, uma vez mais, ao Professor ALcALÁ-'ZAMORA y CAsTILLO meu agradecimento por sua valiosa cooperação ao aperfeiçoamento do Projeto. (Aplausos).

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O PRoFESSOR JosÉ CAsTILLO LARRANAGA - Minha inter­venção será ainda mais rápida que a do ilustre prof. NicETO ALCALÁ-'ZAMORA Y CASTILLO.

Desejo expressar que, em minha opinião, o Projeto Cou­TURE é um dos textos legislativos de mais elevado quilate entre os que têm sido elaborados nos últimos tempos, bem como uma fonte segura de inspiração para os futuros códigos processuais civis, especialmente os da América. Penso que foi muito acertado, por parte do autor, o haver exprimido, sob a forma de disposições de lei, no primeiro capítulo do seu Projeto, os princípios diretivos do direito processual.

Pude observar, entretanto, que no que toca à boa-fé no processo, o mencionado Projeto foi por demais conciso, pois dedica a tão importante assunto, apenas, meia linha do art. 7.9 , quando fala da probidade no debate. Quero sugerir, por êsse motivo, que, ao lado dos princípios tão acertadamente consignados no Projeto, constem outros princípios, de igual modo transcendentais, correspondentes à interpretação da lei processual, como, por exemplo, o que afirma que o juiz deve zelar por que a verdade real prime sôbre a verdade formal, visando, pois, mais à substância do que à forma; e o que estabelece que o processo não deve ser considerado como um fim em si mesmo, tratado, também sucintamente, no art. 8.•.

1!. evidente que êsses princípios deveriam adotar uma estrutura normativa, em harmonia com os nove primeiros pre­ceitos do Projeto.

Para esclarecer minha sugestão, no curto espaço de tem­po que me é concedido, devo relembrar que existem, na prá­tica, muitos assuntos idênticos que admitem duas soluções, como se pode verificar nas sentenças dos tribunais, o que re­sulta absurdo, já que a solução verdadeira deve ser somente

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uma, que ao juiz cabe procurar, pois que seu trabalho, além de ser um trabalho intelectivo, é, também, um trabalho de vontade esclarecida pela moral, pela razão e pelo sentimento do mais acendrado amor à justiça.

Ao finalizar, aproveito a oportunidade para tributar mi­nha homenagem mais cordial ao prof. CouruRE, que é, em meu conceito, como aliás já foi tão justamente reconhecido, um dos primeiros processualistas da língua espanhola.

O PRoFEssoR EDuARDo J. CouruRE - Apenas duas pa­lavras. Peço que me dispensem de agradecer, em particular, tantas manifestações amáveis que me têm sido feitas.

Quero dizer, simplesmente, que compartilho, sem dúvida, das ponderações do prof. CASTILLO LARRANAGA. Ocorreu-me, entretanto, na redação dessas disposições preliminares, uma questão que tem caráter geral e que é de inconteste impor­tãncia: saber até que ponto poderá essa enunciação de prin­cípios ser interpretada como uma espécie, algo sediça, de de­claração de direitos do homem e do cidadão do processo. Re­cusei-me à elaboração de qualquer coisa que pudesse parecer um conjunto de doutrinas ou princípios de cátedra. Tive o especial cuidado de fazer com que cada uma dessas dispo­sições fôsse uma norma, no sentido rigorosamente técnico da palavra. Dei-lhes o título de Princípios, porque algum nome teriam de ter e porque minha preocupação máxima foi a de que todo o Projeto tivesse, como a unanimidade dos códigos modernos, um rótulo sugestivo para o leitor.

Com a ressalva de que as modificações que me foram sugeridas não farão com que êste capítulo preliminar se trans­forme em declaração de direitos ou postulados de doutrina, mas mantenha sua estrutura técnica de norma (isto é, a liga­ção ou imputação de uma conseqüência a um certo fato e a determinação dessa conseqüência); com a ressalva de que o mencionado capítulo preliminar consiste nisso e não perde o caráter que, originàriamente, teve, aceito a sugestão.

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O PROFESSOR RoBERTO A. EsTEVA Rmz - E tão interes­sante o Projeto do prof. CouTURE e, na palestra de ontem, em sua exposição, formulou êle tantos problemas que seria difícil, não já lhe emitir uma opinião, mas apenas apresentar-lhe algumas das dúvidas que, talvez devido à minha incompe­tência, já que a matéria é alheia à minha especialidade, me foram, então, suscitadas. Conseqüentemente, vou, para res­tringir-me ao tempo regulamentar, dizer, em primeiro lugar, da profunda satisfação que experimentei naqueles momentos. Por via de referências, conhecia muito ao prof. CouTURE; mas, agora que o conheço pessoalmente, vejo que as referências estavam muito aquém da realidade.

Ao iniciar, referir-me-ei, ràpidamente, ao seu Projeto, na parte relativa aos princípios que estabelece e darei, depois, de modo sumário, minha opinião sôbre se é ou não possível qualificar de norma jurídica uma simples declaração dos prin­cípios básicos de um código.

Sôbre o art. 2.•, estou de acôrdo com o que propôs outro distintíssimo professor, o sr. ALCALÁ-ZAMORA, pela seguinte razão: é certo, como afirma o prof. CouTURE, que é a Lei Orgânica a que estabelece os poderes do Ministério Público para intervir no processo. Há ocasiões, contudo, em que o próprio Código de Processo Civil reza: "será ouvido o Minis­tério Público". E quando o Código Processual diz: "sôbre êste ponto deve ser ouvido o Ministério Público", quer isso dizer que o Ministério Público é parte. Nesse caso, penso que se esclareceria muito o pensamento do prof. ALcALÁ-ZA­MORA, se o art. 2.' dissesse, imicamente, as partes. Pode­riam surgir dúvidas se se falasse, conforme sua proposta, em parte litigante e Ministério Público.

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Nada se disse sôbre o art. 5.•. Nêle se exprime o prin­cípio de igualdade: "O juiz deverá manter, dentro do pos­sível, a igualdade das partes no processo". Enfrentamos, aqui, o famoso problema da igualdade em face da lei. Evidente­mente, dois casos iguais devem ter a mesma solução juridica, assim como duas partes na mesma situação juridica devem gozar de igualdade dentro do processo. Em todo processo, porém, há, necessàriamente, desigualdade entre as partes. O autor deve provar suas alegações. A situação do réu não é idêntica: o réu pode limitar-se a negar, colocando-se, com isso, em uma situação privilegiada, relativamente ao autor, que arca com todo o ônus da prova. Penso, assim, que em todo processo existe desigualdade entre as partes. É claro que, como já disse, dois réus em igualdade de condições devem ser tratados igualmente; não é possível, contudo, tratar igual-mente ao autor e ao réu.

Em sua análise do art. 9.•, o prof. ALcALÁ-ZAMoRA fêz referências ao fato de que as demoras do processo podem de­pender da inatividade das partes. É certo isso, mas acontece, também, que às vêzes dependem da deficiência de organi­zação dos tribunais e da deficiência da atuação dos juízes. Mencionarei um caso que se passa no México: teoricamente, tecnicamente, o juizo sumário deve ser mais rápido que o ordinário e dêsse modo foi regulado em nosso código. Devido, porém, à organização dos tribunais, resulta que o juizo su­mário, na realidade dos fatos, é o juízo mais longo que temos em nosso país. Aquilo que o Código deseja que seja trami­tado e decidido, ràpidamente, depende do seguinte: o juiz recebe a petição; promove a citação para que o réu se de­fenda; designa audiência para fixação do objeto do litígio e a produção de provas. Como, porém, o juizado está sujeito a uma organização especial, deve marcar-se a audiência para o primeiro dia livre, que pode ocorrer dentro de três, quatro ou cinco meses. Na prática, pois, devido à defeituosa orga-

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nização dos tribunais, não é sempre possível ao juiz ativar o tramitamento do processo.

Quanto à revelia, referida pelo prof. CouTURE, já foi ela solucionada no sistema mexicano: no atual Código de Pro­cesso Civil, não é necessária a revelia; esgotados os prazos judiciais, passa-se à fase seguinte. Tal modo de proceder está de acôrdo com a idéia brilhantemente exposta pelo prof. CouTURE.

Quanto à questão fundamental de saber se em um código ou em uma lei se podem estabelecer declarações de princípios teóricos básicos, alimento certas dúvidas, embora não ouse, propriamente, formular uma objeção a um processualista de tal envergadura.

Parto do pensamento de que todo ato jurídico é um ato de apreensão de uma norma jurídica e uma norma jurídica é expressa através de uma proposição jurídica. Na proposição jurídica encontramos, necessàriamente, um juízo hipotético, um antecedente e uma conseqüência jurídica imprescindível; e quando se estabelecem declarações de princípios, como aber­tura de um código, em minha opinião, não se traduzem os princípios ou não são êles expressos sob a forma de uma pro­posição jurídica. Não pretendo afirmar que todo direito seja positivo ou, muito menos, que todo direito se reduza à lei.

Existe um sistema do direito, mas é um sistema doutrinário. E a tarefa do legislador consiste em tirar, dêsse sistema dou­trinário do direito, determinadas proposições jurídicas. É sempre indispensável, porém, um ato de postulação, sob a forma de proposição jurídica, de norma de direito, porque, de outra maneira, nada mais existe do que um enunciado de prinCipiOs. Não discutirei, agora, o problema do Direito Na­tural. Mas, como exemplo, o Direito Natural pode ser um sistema, um ordenamento em que todos os princípios dêsse Direito Natural se reduzam a uma norma suprema, que pode ser a Mente Divina, a Razão Humana ou outra coisa qual-

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quer. F.sse ordenamento, contudo, requer um ato de postu­lação, para que se converta em legislação.

Em outras palavras, os princípios, somente, não podem presidir às realidades da vida. Isto é, para sintetizar, penso que o direito precisa de dados, que se encontram em todo o universo: tanto um fato da natureza, como um fato social ou um fato individual necessitam de dados. Mas o direito neces­sita, também, de uma construção técnica e essa construção técnica é o que falta, em meu modo de pensar, no simples enunciado de princípios do prof. CouTURE. 11: muito difícil, impossível quase, reduzir princípios a normas quando não se convertem êsses princípios na inspiração da norma, que, ten­do-os como base, deverá tomar a forma, que mencionei, de uma proposição jurídica.

Felicito ao prof. CouTURE por haver conseguido sinte­tizar, em algumas fórmulas concretas, os princípios básicos do processo. Minha dú.vida, porém, repousa na necessidade de saber se a forma que êle lhes atribui, como simples decla­ração de princípios, converte êsses princípios em normas jurí­dicas. Essa é a ponderação que me permito formular e sub­meter à ilustrada consideração de tão sábio processualista. (Aplausos).

O PROFESSOR EDuARDO J. CoUTURE - A sugestão relativa ao art. Z.', sôbre a ingerência do Ministério Público, leva-me, evidentemente sem muita insistência, a manter meus pontos de vista anteriores. Nosso Código de Organização Judiciária afirma: o Ministério Público atua como terceiro, como parte ou como auxiliar do juiz. Radicalmente, apenas atua de dois modos: como parte principal e como parte adjunta, isto é, a parti jointe do direito francês. Dentro da estrutura do nosso Ministério Público, funcionando ou como parte principal ou como parte adjunta, o promotor do cível ou da fazenda sem­pre é parte no processo. Repito que não insisto demasiada­mente em minha opinião, e como êste trabalho não constitui um empreendimento legislativo, no qual se pretenda dar a

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um código sua forma definitiva, mas sim uma deliberação de caráter científico, em uma orientação, por assim dizer, pré-legislativa, posso assegurar que não esquecerei a sugestão mencionada.

Em relação ao princípio de igualdade, as manífestações do prof. EsTEVA Ruxz são, realmente, sugestivas. Minha pri­mitiva redação dêsse texto foi a de que o juiz deve manter a igualdade das partes. Imediatamente, observei que uma igualdade matemática de direitos e obrigações entre as partes é, de modo absoluto, impossível. Os vocábulos "dentro do possível" são algo assim como uma regra lésbica, que dá à norma juridica seu conteúdo exato. Em todo ordenamento jurídico, o legislador planeja igualdades e a vida constrói desigualdades; o legislador diz: "os homens são iguais pe­rante a lei"; sabemos, porém, que, na realidade, o menor não é igual ao adulto; a mulher não é igual ao homem; o ope-• rário não é igual à emprêsa; o cidadão não é igual ao Estado. Vai-se produzindo, assim, uma espécie de réplica da vida à ilusão de igualdade do legislador.

Que sucede, então? O Direito procede por compensações; dá ao menor um conjunto de privilégios que, numericamente avaliados, resultam em superioridade com relação ao adulto; dá ao pobre possibilidades que, numericamente avaliadas, seriam superiores às de uma organização capitalista; ou, na expressão de JossEIIAND, dá aos fracos poderes que, conside­rados isoladamente, parecem excessivos, mas que, de fato, nada mais são do que soluções jurídicas por compensação. O Di­reito procede, assim, visando a colocar desigualdades onde encontra desigualdades e procurando alcançar um ponto de equilíbrio, mediante prerrogativas.

No processo, ocorre, exatamente, o mesmo. No sistema da lei, presume-se que o réu esteja de boa-fé. 11: um cidadão que está, pacificamente, em sua casa e a quem não há por que supor onerado ou devedor, até que não se prove o con­trário. Sua situação, dentro do processo, deve ser privilegiada,

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porque, justamente, nessa desigualdade e nesse privilégio está a igualdade. :É preciso tratar ao réu tendo por base uma pre­sunção de inocência, porque no processo, por uma espécie de milagre, que seria surpreendente, se não o presenciássemos todos os dias, não se pode jamais saber quem tem razão até raiar o dia da sentença. Essa incerteza deve ser debitada na conta do autor.

Pareceu-me, assim, acertado não consignar um princípio de igualdade rigido ou matemático de direitos c deveres, mas sim uma norma flexível, colocando nas mãos do juiz a possi­bilidade de nivelar, dentro das soluções da lei, as naturais desigualdades do ordenamento jurídico.

Quanto à solução prática relativa ao art. 9.9 , sôbre as demoras por culpa do tribunal, aceito, completamente, a su­gestão do prof. EsTEVA Rmz. O que na realidade existe é que, de um modo estritamente técnico, as faltas do tribunal não podem permanecer sem reparação jurídica. Nossa Cons­tituição, em seu art. 24, estabelece que todo funcionário pú­blico é responsável, patrimonialmentc, pela menor agressão causada ao direito dos cidadãos - acrescentando, ainda no mesmo artigo, que o Estado responderá, de maneira subsi­diária, nos casos de insolvência de um funcionário. Os juízes acham-se subordinados a êssc princípio, em virtude do art. 23. São já bem numerosas as sentenças dos tribunais, e até da Suprema Côrte, condenando o Estado por perdas e danos derivados da destituição injusta de um servidor. Em mais de uma circunstância, por motivos de ordem política, têm sido exonerados funcionários vitalícios. O princípio da responsa­bilidade dos órgãos do poder público se torna efetivo mediante normas constitucionais, mediante leis e mediante sentenças. Em nossa jurisprudência, contam-se em grande número as decisões que condenam o Estado a reparar o dano causado pelos funcionários.

Assim sendo, considero, integralmente, justas as obser­vações feitas sôbre êsse ponto, afirmando mesmo que elas não

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).

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escaparam à minha imaginação. Ocorre, somente, que con­siderei que, na estrutura técnica de um Estado de Direito, o princípio de responsabilidade, e de responsabilidade efetiva, deve ser a conseqüência lógica de tôdas as omissões e ações por culpa dos funcionários públicos.

Quanto ao núcleo central da discussão, compartilho, tam­bém, do pensamento do prof. EsTEVA Rurz. Quero, imica­

. mente, observar que, como dizia ao responder às sugestões do prof. CASTILLO LARRA:NAGA, o problema que a mim mesmo propus foi o de saber até que ponto os princípios elaborados são Direito, até que ponto são normatividade. E minha res­posta foi a de que meu dever consistia em envidar todos os esforços necessários para que cada uma dessas previsões, cada um dêsses artigos encerrasse os elementos indispensáveis a uma norma jurídica. Não creio que st!ja uma ilusão dema­siada pensar que em tôdas as soluções estão contidos os ele­mentos de uma norma; mas, certamente, não posso ser eu o julgador dêsse trabalho.

O que pensei acertado foi despender o esfôrço necessário para ir ao encontro do intérprete, ou melhor, para fazer descer o Código até o intérprete, para que êste encontrasse aplainado

o seu caminho. Mantendo o caráter de norma, êsse elemento que o prof. EsrEVA Rurz determinou com tôda exatidão, esfor­cei-me por que não houvesse, no Projeto, nenhuma definição. Nossos códigos estão crivados de definições. Preocupei-me, entretanto, com não inserir nenhuma, porque definir não cons­titui uma tarefa legislativa; se eu quiser definir, poderei fazê­-lo na Faculdade; como legislador, porém, não me assiste tal direito. Uma definição determina o que uma coisa é, ao passo que uma norma jurídica determina o que uma situação deve ser em sua conseqüência jurídica.

Com êsses esclarecimentos, agradeço ao prof. Rurz, pro­fundamente, as palavras bondosas que sôbre a minha pessoa pronunciou. (Aplausos) .

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O PROFESSOR EDUARDO GARCIA MAYNEZ - Doutor Cou­TURE. Do vasto campo de sua dissertação - tão cheia de brilhantes alvitres, de novas idéias, de pontos de vista pessoais - desejo selecionar alguns aspectos sôbre os quais me agra­daria formular-lhe algumas perguntas, não com o propósito de polêmica, mas sim levado pela vontade de conhecer seu pensamento mais a fundo, relativamente a questões em que, se não me equivoco, nossas opiniões, fundamentalmente, coin­cidem. Em sua belíssima explanação de ontem, dizia o se­nhor que, em seu conceito, o direito de ação é uma espécie ou classe do direito constitucional de \'etição. Agradar-me-ia conhecer seu autorizado modo de pensar sôbre a conveniência e, inclusive, sõbrc a possibilidade de aplicar ao direito de petição uma série de teorias elaboradas a respeito do direito de ação e, muito especialmente, as teorias sôbre a autonomia e o caráter abstrato dêsse direito.

Penso entrever um paralelismo perfeito entre os dois tipos de faculdades: o direito constitucional de petição e o direito de ação. Em primeiro lugar, é evidente que, em ambos os casos, se tratam de direitos subjetivos públicos. 1':, igual­mente, claro, e penso que ninguém poderá discuti-lo, que as duas faculdades são direitos relativos, já que o dever corres­pondente é um dever especial de uma pessoa individualmente determinada. O ponto sôbre o qual desejo conhecer a sua opinião é sôbre se é possível ou não se declarar que, à seme­lhança do direito de ação, o direito de petição é, também, um direito autônomo e abstrato. Opto pela afirmativa, pois con­sidero que se pode, perfeitamente, distinguir entre o direito de pedir e o direito à obtenção do pedido. O que o direito constitucional de petição concede é a faculdade de formular pedidos ante as autoridades; o dever correlato é o de dar uma

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solução em curto prazo. Assim, pois, o direito de petição não implica a existência do direito de obter aquilo que se pede. O primeiro dos dois é, em conseqüência, completamente autô­nomo em relação ao segundo. E essa autonomia ou inde­pendência é do mesmo tipo que a existente entre o direito de ação e o direito substantivo. A faculdade jurídica de ação não importa no direito a uma sentença favorável.

A teoria do caráter abstrato do direito de ação é também aplicável ao outro direito, pois, para que o segundo possa ser exercido, não é necessário que exista, concretamente, o direito de obter o que se pede. Se êste último é reconhecido, in abstracto, pelo ordenamento jurídico, o de petição poderá sem­pre ser exercido, ainda que, no caso particular, não tenha o peticionário a faculdade de obter o que tem o direito de pedir.

O segundo dos tópicos a que me quero referir é a questão de índole muito mais geral, que, ontem à noite, o senhor teve a bondade de formular-nos e que meu mestre, o Professor RoBERTO EsTEVA Rutz, acabou de abordar, faz apenas um minuto: a questão de saber se é possível e conveniente que o legislador ofereça ao juiz, como norma de interpretação e integração, os princípios diretivos de sua atividade legislativa. Penso que êsse problema deverá ser examinado sob dois pontos de vista: um, formal; o outro, material.

Sob o ponto de vista formal, não encontro nenhum incon­veniente em que os princípios diretivos da atividade legis­lativa sejam convertidos pelo legislador em normas de inter­pretação e integração, porque tôda regra de conduta que pre­encha os requisitos extrínsecos de validade do processo legis­lativo se transforma em lei e obriga seus destinatários, quer se tratem de particulares a quem a norma se dirige, quer se tratem das autoridades encarregadas de aplicá-la.

Considerando a questão sob o ponto de vista material, não somente deixo de descobrir qualquer inconveniente, como, pelo contrário, parece-me encontrar vantagens no método se-

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guido pelo senhor ao redigir o Projeto de Código de Processo Civil para a República do Uruguai.

Tais vantagens poderiam ser resumidas da seguinte ma­neira:

1: - O método adotado pelo senhor facilita a realização de uma tarefa interpretativa e integradora de tipo lógico-sis­temático, capaz de satisfazer, plenamente, os postulados da unidade, harmonia e coerência do ordenamento jurídico;

2: - As antigas regras de interpretação e integração, exclusivamente formais, por seu alto grau de generalidade, são substituídas por um conjunto de critérios e diretrizes de ordem material (entendidos os têrmos formal e material no sentido relativo que lhes outorga MAx SHELER) ;

3.' - O método citado restrin~e a aplicação dos pro­cessos filosófico-históricos de interpretação e integração, colo­cando, no lugar da vontade mais ou menos subjetiva, arbi­trária e arcaica do legislador, um conjunto de diretivas de ordem filosófica e científica;

4: - Ao explicar os princípios diretivos de seu trabalho, o legislador facilita ao intérprete a intuição dos valores jurí­dicos cuja realização procurou, restringindo, ao mesmo tempo, o perigo das interpretações puramente verbais ou excessiva­mente limitadas ao texto de um único preceito, com esqueci­mento das conexões sistemáticas que existem em todo ordena­mento jurídico, bem como dos grandes valores que o direito positivo é chamado a realizar;

5.' - Como os princípios diretivos da tarefa do legis­lador se obtêm, indutivamente, partindo do estudo de um grande número de regras e soluções particulares, ao longo de uma experiência quase sempre multissecular, a utilização de tais princípios nos trabalhos hermenêuticas permite uma me­lhor adaptabilidade dos textos legais aos casos concretos que a experiência apresenta, tornando, assim, possível um maior contacto com a vida .

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A única objeção que, em meu conceito, se poderia for­mular contra a utilização dos princípios como critério de inter­pretação e integração, é a de que tais princípios, por sua pró­pria natureza, são sempre de uma grande generalidade, o que faz surgir o perigo de soluções excessivamente abstratas e o conseqüente risco de uma defeituosa consideração das parti­cularidades de cada caso concreto. Este inconveniente pode ser evitado, em minha opinião, graças ao emprêgo dêsse ma­ravilhoso instrumento da técnica jurídica, conhecido pelo nome de standard e uma das coisas mais acertadas do Pro­jeto CouTURE consiste no uso freqüente de tal instrumento. O principal exemplo, relativamente a isso, nos é oferecido pelo art. 7.•, no qual é expresso o princípio de probidade, formu­lado, porém, com a inclusão de diversos standards que dão ao enunciado uma ductilidade extraordinária. Os arts. 86, 97, 120, 134, 190, 298, 312 e 385 oferecem outros exemplos interes­santes. f:sse constante recurso aos standards permite ao juiz uma grande margem de discrição e torna possível o exame das particularidades de cada caso. Os arts. 4.• a 9.• do Pro­jeto, por seu lado, obrigam o intérprete a não perder de vista os grandes princípios inspiradores das diferentes regras e im­primem aos trabalhos hermenêuticas e integradores uma orientação objetiva, sistemática e dara.

Para finalizar, desejo referir-me à objeção formulada pelo Professor EsTEVA Rutz e com a qual, respeitosamente, declaro não estar de acôrdo, porque os princípios diretivos da ativi­dade legislativa podem, perfeitamente, transformar-se em pre­ceitos legais e conter a estrutura lógica de qualquer norma de Direito. Formularei, apenas, um exemplo. O art. 4.• do Projeto reza o seguinte: "Princípio de impulso processual -Promovido o processo, o juiz tomará as medidas tendentes a evitar sua paralisação, a não ser que um texto de lei deixe confiada à atividade das partes a continuação do mesmo". A enunciação, em uma forma hipotética, do mesmo preceito seria esta: - "Se, promovido o processo, se produz a sua para-

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lisação, o juiz deverá tomar as medidas tendentes a evitá-la, a não ser que um texto especial de lei deixe entregue à ativi­dade das partes a continuação do mesmo". O enunciado ante­rior corresponde, de maneira perfeita, à estrutura da propo­sição jurídica e reproduz, fielmente, a conhecida fórmula kel­seniana: "Se A é, B deve ser". Entre os dois enunciados, contudo, não existe, sob o ponto de vista material, nenhuma diferença. (Aplausos).

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O PROFESSOR EDuARDo J. CouTURE - Não se poderia pedir, para um debate sôbre interpretação, melhor recom­pensa do que aquela que consiste no fato de o intérprete su­perar o autor com tão grande vantagem. O Professor GARCIA MAYNEZ acaba de colocar, neste momento, a serviço de meu modesto trabalho pessoal, sua cultura de jurista e sua argúcia intelectual. Posso dizer, sem sentir pesada a consciência, que, no presente caso, a interpretação supera o texto prilnitivo. E eu me encontro, até certo ponto, na mesma situação da­quele que, havendo sido mo<iêlo do retrato de um grande pintor, exclamasse para si próprio: "Nunca imaginei ser tão bonito!"

Comentarei, agora, a parte relativa à ação e ao direito de petição. Já que o Professor GARCIA MAYNEz me propõe desenvolver, dentro de um plano mais vasto ou talvez mais profundo, a sugestão por êle formulada, quero fazê-lo quase como se fôsse uma história pessoal.

O tema da ação foi o tema da minha primeira aula como aspirante a professor assistente. Conservo-me fiel à realidade ao dizer que dessa primeira lição até o dia de hoje dezenove anos transcorreram. Não revelo, tampouco, nada que signi­fique um mistério ao acrescentar que, com base em um recente estudo de CARNELUTTI, em um ensaio primoroso do Professor ALcALÁ-ZAMORA Y CASTILLO e de um trabalho, de grande profundidade filosófica, de LoRENzo CARNELLI, me proponho a utilizar o tema da ação como assunto de um próximo tra­balho cientifico. Quero afirmar que, na realidade, a tese da ação é algo assim como a grande aventura de minha vida de estudioso.

O que se passa é o seguinte: fomos educados na afirma­tiva de que a ação era o direito em movimento, isto é, na

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clássica concepção civilista da filosofia jurídica, princi pai­mente a francesa e do século XIX. Como estavam em moda, naquele tempo, as metáforas bélicas com relação ao Direito, se dizia que a ação era le droit casqué et armé en guerre e quando alguém queria referir-se à exceção como defesa, dizia que era ela um agredido qui a perdu l'epée, mais le bouclier lui reste.

Dentro dessa suposição, a ação é o direito em movimento, algo assim como um direito na segunda potência, o estado dinâmico do direito. Frente a êssc conceito, que era uma tradição de todos os nossos mestres e de tôda a literatura que manuseávamos, encontrei a afirmativa de CHIOVENDA sôbre a autonomia do direito de ação, em seu ensaio verdadeira­mente brilhante, há pouco denominado "o manifesto da escola processual italiana", acêrca da ação no sistema dos direitos. Ble aí afirma, de um modo, a meu ver concludente, a auto­nomia do direito de ação. E a verdade é que, à medida que fui progredindo no tempo e me fui formando na experiência e na meditação jurídica, a concep~ão da autonomia da ação me arrebatou, completamente.

A um advogado que exerce sua profissão, que vê como um processo judicial, que é o resultado de uma ação civil, que pode durar anos inteiros, que se formou, como reza uma frase famosa, "com sangue, suor e lágrimas" e que pesa quilos de papel, é, às vêzes, julgado desfavoràvelmente, não se pode dizer, no dia em que estiver perdida a causa, que o autor não tinha motivos para movimentar a imensa dinâmica do pro­cesso, nem o direito de fazê-lo. Dizer que tudo isso é nada e que no processo que absolveu o réu não havia ação é algo que vai de encontro à realidade.

Adquirida a idéia de que a ação era um direito autô­nomo, independente do direito material ou substancial - a famosa discussão suscitada por W ACH sôbre o caráter concreto ou abstrato dêsse direito (creio, aliás, que a palavra abstrato é urna das mais infelizes na linguagem do direito processual

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moderno) - êste último caráter, o chamado abstrato, nada mais era do que o prolongamento das idéias admitidas. Sus­tentar que a ação é somente o direito dos que têm razão sig­nifica, em minha opinião, manter uma enorme quantidade de resíduos da concepção anterior. Quem fôr fiel à idéia da autonomia no direito de ação só pode sustentar que a ação é um direito do tipo chamado abstrato, pertencente até mesmo àqueles que não possuem um direito válido a defender em Jmzo. A ação é, em meu modo de pensar, um simples poder jurídico de provocar a atividade da jurisdição.

Para isso, foram necessários n1uitos anos. Mas o certo é que, uma vez adquirida essa convicção, se me deparou o pro­blema de saber se essa forma abstrata, isso que consistia em recorrer ao tribunal para excitar sua atividade e obter uma resolução cujo resultado não se conhece até o dia da coisa julgada, não seria um direito da classe dos chamados direitos cívicos, isto é, os que competem a todos os cidadãos, a todos os sujeitos de direito, como decorrência da sua própria condição jurídica.

Mais por experiência c por intuição do que por lógica jurídica, cheguei a êssc convencimento. Uma mera inves­tigação histórica mostrou-me de que maneira, durante longos séculos, existiu, imicamente, um direito: o direito do indi­víduo de recorrer à autoridade. Essa autoridade era, fre­qüentemente, o rei e o rei era, ao mesmo tempo, poder legis­lativo, executivo e judiciário, porque a autoridade do sobe­rano, durante grandes fases históricas, deteve em si mesma a totalidade do poder público. A distinção tripartida de po­deres, na realidade, não é senão uma classificação posterior ao século XVIII. Durante prolongadas instâncias anteriores não houve outro direito a não ser o que tinha o indivíduo de recorrer ao seu senhor para que êste o defendesse.

Quando se medita sôbre o conteúdo jurídico (não político, mas jurídico) da Magna Carta, vê-se que a insurreição dos barões nada mais pedia a João Sem Terra do que duas ou

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três garantias de caráter processual. Que pediam êsses ba­rões? - Serem julgados por seus próprios pares, isto é, por um juiz competente e, além disso, serem julgados pelo direito da terra, isto é, que a sentença do juiz se baseasse em um direito preestabelecido. Quando a atual exceção dilatória de incompetência ou o atual recurso de nulidade por inaplica­bilidade da lei são considerados em sua perspectiva histórica, não lhes resta outro remédio que não seja inclinarem-se ante essas conquistas dos barões frente a João Sem Terra.

De que modo essa atitude jurídica do indivíduo que recorre à autoridade chega até nós é algo que, claramente, se percebe. O texto da Magna Carta passa para as Consti­tuições dos Estados americanos anteriores à Federação. Depois, a Constituição americana e suas emendas V e XIV, poste­rim·es, consolidam a segurança de que ninguém poderá ser condenado sem o devido processo e de que qualquer indivíduo terá livre acesso aos tribunais. Seguindo êsse roteiro, nossas Constituições estabelecem o direito de petição num sentido tal que o texto uruguaio o proclama cabível "ante tôda e qual­quer autoridade", sem limitação de espécie alguma. Essa autoridade é o Poder Legislàtivo, porque todo súdito tem o direito de comparecer ante o Congresso, para pedir alguma coisa; pode ser o Poder Executivo e pode ser o Juiz. O go­vêmo parlamentar representativo, diz DuGUIT, tornou inútil o direito constitucional de petição. Efetivamente, assim é, porque o povo fala pela boca de seus deputados; nada im­pede, contudo, que um cidadão recorra ao Congresso para pedir a sanção de uma lei. A única coisa que ocorre é que êsse cidadão tem direito apenas a um pronunciamento neste ou naquele sentido, o que constitui, em direito processual, um direito abstrato. :É idêntica a situação ante o Poder Exe­cutivo. Quando, porém, se desloca êsse direito para dirigi-lo ao Poder Judiciário, êle se terá de transformar, porque já não se trata de uma relação entre o indivíduo e o poder, mas do fato de que êsse direito se projeta em direção ao réu. Resulta

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daí, então, que, enquanto no Direito Legislativo o direito de petição não possui uma norma legal, no Direito Administra­tivo encerra todo o regime do contencioso administrativo e,

; nos Códigos de Processo Civil e Penal, quando exercido ante o Poder Judiciário, adquire uma abundante legislação regula­mentadora. Em benefício de quem? Primeiramente, como garantia do réu, que se presume inocente, e, depois, como garantia do autor, para que não seja um mito o direito de petição.

Essa é a trajetória de minhas reflexões. Formaram-se elas, até certo ponto, de um modo paralelo; enquanto se­guiam, por um lado, as meditações sôbre o caráter abstrato e autônomo do direito de •ação, por outro lado, ia crescendo em meu espírito a significação de seu conteúdo político. Raiou o dia em que essas duas vertentes se encontraram, reunindo suas águas. A tese já foi desenvolvida em um estudo, relati­vamente recente, e as premissas da dissertação de ontem nada mais foram do que o testemunho de uma longa meditação, da qual estas palavras são uma fraca e muito pálida refe­rência. (Aplausos).

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O PRoFEssoR GABRIEL GARCIA RoJAS - Professor Cou­TURE. Creio ter uma possibilidade de apreciar os elevados méritos de seu trabalho, porque, há já muitos anos, sendo eu

. muito jovem, fui designado pela Universidade para integrar uma comissão que elaborou o atual Código de Processo Civil

j do Distrito Federal. Coube-me a sorte, então, de travar inú­~ meros combates para fazer triunfar algumas idéias modernas. 6 Como teria eu desejado, naquela ocasião, contar com os ele­"' mentos de competência e ilustração com que conta o legislador

.-_: uruguaio que vemos, hoje, entre nós, com tanta honra! Pude,

entretanto, já então, perceber, perfeitamente, as dificuldades ~ f.! que cercam a tarefa de reduzir a normas precisas o conjunto

de fenômenos jurídicos que existem em tôrno do processo. Sei apreciar tôdas e cada uma das qualidades de seu belíssimo Projeto, bem como a forma vitoriosa e muitas vêzes elegante com que venceu os obstáculos. Cabe-me, unicamente, no que se refere aos assuntos em discussão, fazer algumas propo-sições.

Permito-me sugerir-lhe que se modifique a forma do capí­tulo dos princípios gerais. Da declaração contida no segundo parágrafo ao art. 3.' deduz-se que, em caso de obscuridade ou insuficiência dos textos da lei processual, se recorrerá aos nove princípios encerrados nesse capítulo. Parece, assim, que a forma empregada é taxativa, pois se afirma: em caso de obscuridade ou insuficiência das disposições dêste código, ao juiz caberá esclarecer as dúvidas que surgirem, aplicando os princípios contidos no presente capítulo.

Ouso sugerir-lhe que, assim como propôs o Professor ALCALÁ-ZAMORA, se separem as duas partes do citado art. 3.9, colocando-se a declaração contida na segunda dessas partes entre os arts. 1.' e 2.', para que se diga, então, de maneira

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precisa, como se deverá recorrer aos princtptos gerais, em caso de obscuridade ou insuficiência, mas com êste acréscimo: o juiz não deverá recorrer, unicamente, como fonte supletiva, aos princípios contidos no presente capítulo, mas sim a êsses princípios e aos princípios gerais do direito processual.

A razão disso é que o principio mencionado, na forma em que está formulado, parece taxativo. Em segundo lugar, há um número incontável de instituições de direito processual que têm seus princípios gerais próprios, embora não estejam encerrados no texto do Código de Processo; tôda vez, portanto, que se apresente um problema de omissão nos textos legisla­tivos, em uma matéria especial, relativa a uma instituição, como arrematações, seqüestros, notificações, meios de recebi­mento de provas, se deverá recorrer aos princípios gerais rela­tivos a êsses institutos, e não se cerceará nem a faculdade de se valer dêsses princípios, nem a liberdade do julgador.

Sugiro, também, que se introduza uma modificação no segundo parágrafo do art. 3.', já formando um artigo especial. Proponho que se fale não sàmente em obscuridade ou insu­ficiência, como também em omissão, porque, neste ponto, di­virjo, com todo o respeito e tôda a consideração, do ponto de vista que o Professor CouTURE desenvolveu, com tanta ele­gância, em sua palestra de anteontem e na qual me pareceu que não se separava a integração, a operação da integração, da interpretação. Penso haver descoberto que, em seu con­ceito, a integração e a interpretação, na realidade e na vida prática, são inseparáveis; pareceu-me, também, que essa sua concepção se deve a que o senhor adere à teoria interpretativa denominada evolutiva-histórica, que afirma que o texto legis­lativo, uma vez saído da mente do legislador, tem um destino próprio, acomodando-se às circunstâncias variáveis de lugar e de tempo, c possuindo já uma existência completamente autônoma da inteligência c da vontade que o fizeram nascer. Dêsse modo, com êsse conceito, real e positivamente, quando se tratar de uma omissão da lei, se é que se admitem as lacunas

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da lei, se poderá remediar a carência de um texto, em virtude do critério evolutivo-histórico, com outros textos, aplicados de acôrdo com as diversas circunstâncias.

A mim me parece que êsse sistema evolutivo-histórico mantém, em primeiro lugar, no fundo, uma lamentável con­fusão entre duas operações gêmeas: a aplicação e a interpre­tação. Penso ser bastante claro o fato de que o sistema inter­pretativo evolutivo-histórico tende a resolver antes o problema da aplicação do que o problema da interpretação, pois que em todo problema de interpretação está implícito um problema de aplicação, mas nem sempre nos problemas de aplicação existem problemas de interpretação. E isso porque, muitas vêzes, em um problema de aplicação não há lugar para o problema de interpretação. Assim, surgem casos de aplicação sôbre a forma, sôbre quem deve aplicar, sôbre o lugar que se deve aplicar, que não são já problemas de interpretação, mas sim, exclusivamente, problemas de aplicação. E o sistema que, segundo deduzi de suas palavras, o senhor adota é o sistema evolutivo-histórico, no qual se admite perfeitamente que os princípios gerais do direito sejam meios de interpre­tação, como se costuma escrever em todos os tratados que também o preconizam.

Parece-me, contudo, que, além de haver uma confusão entre as duas tarefas - de aplicação e de interpretação - há também um perigo social imenso em considerar que os textos possam ser pelo intérprete acomodados às circunstâncias, em nome da interpretação. Em meu modo de pensar, tudo isso se deve a certo mcnosprêzo que se vota à investigação mental do legislador, considerada como vontade subjetiva arbitrária. Mas isso, por sua vez, se deve, em minha opinião, a uma falsa concepção da lei, que se pretende tomar como uma simples manifestação da vontade, quando é, no fundo, uma criação da inteligência. Se pudéssemos, por um momento, conside­rar o a to jurídico, a operação jurídica em que consiste a inter­pretação, poderíamos, perfeitamente, concluir que ela é uma

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operação reversível, isto é, supondo que o legislador concebeu uma instituição e a traduziu em uma norma, iremos descobrir, através dessa norma, por uma reversão de caminho, de onde nasceu e qual o ponto de que se originou. E veremos, então, que a interpretação é uma operação reversível em que se investiga a origem de um ato de vontade. Mas como não existe um ato de vontade sem motivo, não existe um ato de mandato de vontade que ordene sem princípio justificativo; de onde se conclui, pois, que a interpretação é uma operação em virtude da qual encontramos o princípio justificativo do ato voluntário. Podemos, assim, perceber, perfeitamente, a diversidade absoluta que existe entre a interpretação e a inte­gração. Quando o legislador não previu o caso, não o con­cebeu, não o teve na imaginação, não pôde ter com relação a êle um princípio justificativo de um ato voluntário ine­xistente. Existe, pois, um fato na lei e para regulá-lo é preciso recorrer a fontes subjetivas.

:E:, por isso, indispensável, em minha opinião, que a se­gunda parte do art. 3.' seja formulada da seguinte maneira: - Em caso de omissão da norma ou das disposições da lei, ao juiz caberá resolver os casos de acôrdo com os princípios con­tidos no presente capítulo e com os princípios gerais da lei processual.

Obtemos, dêsse modo, maior flexibilidade, maior ampli­tude, visando-se não somente a preencher um vazio por meios interpretativos, como também a separar, tuidadosamente, o que merece interpretação do que merece integração.

Com relação ao art. 7.', há a seguinte observação, que me permito formular: É necessário procurar a probidade e a boa-fé nas partes, nos litigantes e nos auxiliares da justiça; mas, como ponderou o Professor ALcALÁ-ZAMORA, é necessário procurá-las, também, no juiz. Creio que, no projeto de JoFRÉ, já há muitos anos, se dizia que o julgador deve aplicar a lei processual com boa-fé, relembrando, talvez, aquelas regras do processo espanhol, consagradas nas leis antigas, sobretudo no

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Ordenamiento de Alcalá, segundo as quars se devia julgar conhecendo a verdade e guardando a boa-fé. Penso que deve constar no art. 7." que o juiz deve observar a boa-fé.

Isso é, pràticamente, de grande importância. Apresen­tam-se aos tribunais casos em que brilha, manifestamente, a má-fé dos litigantes, defesa maliciosa ou fraude contra ter­ceiros. Não se argúi perante êles o problema da má-fé. Pa-

- receria até que, por se negar ao juiz a iniciativa, não pudesse êle se imiscuir no assunto. Se êle é obrigado, entretanto, por

·uma declaração de princípios, a atuar de boa-fé, terá de decidir de acôrdo com a boa-fé.

' Apresentou-se, ultimamente, ante os tribunais, o seguinte

caso que esclarece o conceito: na divisão de um pedaço de campo, ao se dividirem as águas, um dos herdeiros legais alega a existência de águas federais, obtendo a seu favor a concessão de tôdas as águas de todos os prédios divididos. For­mula-se a reclamação perante um tribunal e o juiz, advertido da má-fé com que procedeu o herdeiro, não tem outro remédio a não ser, segundo diz, condenar os adjudicatários à reparação e à indenização por uso indevido das águas que não lhes per­tenciam. Com o princípio da boa-fé, o juiz se teria abstido de dar uma solução, analisando dessa maneira.

Não pretendo esclarecer outros conceitos, porque me pa­rece que não atingem o ponto medular que nos interessa, esta noite. Creio, de início, que as definições legislativas, rejei­tadas pelo Projeto, dentro de têrmos gerais, não são conde­náveis, por uma razão muito simples: - se a norma jurídica tem, materialmente, dois elementos, a facti specie e a conse­qüência jurídica, nada proíbe o legislador, em dado momento, de circunscrever a facti specie para que se derivem as conse­quencias. E, de fato, todos os códigos do mundo definem as espécies de contratos, as figuras contratuais, etc. Penso, pois, ser perfeitamente válido e não prejudicial que, em determi­nadas ocasiões, dentro da própria lei processual, se formulem algumas definições.

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Quanto ao caráter abstrato da ação, parece-me que no direito positivo derivado da legislação espanhola - e me re­firo, assim, ao direito positivo processual de quase todos os povos da América espanhola, da Ibero-américa - não se pode sustentar o caráter abstrato da ação. Requer-se, desde as leis Recopilación, sendo repetido por todos os Códigos, que se possa comprovar o interêsse por meio de documentos, que se possa demonstrar que se possuem os documentos basilares da ação, para não impor aos tribunais uma perda desnecessária de tempo.

No tocante a incluir a ação dentro do direito de petição, permito-me, imicamente, fazer uma sugestão. F.m virtude do direito de petição, não se forma nunca uma instituição de serviço público por colaboração dos particulares, como se esta­belece, em matéria processual, pelo exercício da ação, o ser­viço público jurisdicional pela colaboração dos particulares e em que as partes são colaboradoras forçosas do juiz. No di­reito de petição, originàriamente nascido nas Constituições, entretanto, há referências a outra classe de serviços em que não se estabelece o caráter institucional do processo, assim como não se estabelece, nem podemos dizer que se exercita, o direito de petição quando apresentamos uma ação ante um árbitro ou um juízo amigável. Não se pode afirmar, então, que estamos exercendo ante êlc o direito de petição; contudo, exercemos a ação e se estabelece o serviço público da jurisdição.

Para finalizar, gostaria de fazer algumas observações sôbre o princípio da igualdade, mas como já se extinguiu o tempo que me foi concedido e que era muito limitado, só me resta acrescentar o seguinte: o tramitamento das sucessões, que o senhor, Professor CouTURE, elaborou em seu Projeto, é perfeitamente correto e constitui um dos mais difíceis pro­blemas processuais. Com o sistema pelo senhor estabelecido, se podem tornar fáceis e encontrar um fim êsses processos que versam sôbre liquidações de sociedade, geralmente, intermi­náveis. Quando os conflitos são múltiplos, quando há plura-

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lidade de interêsses em um litígio, surgem problemas proces­suais que, na maior parte dos códigos conhecidos, servem para tornar intermináveis os trâmites legais. Não me sobra tempo para analisar, detalhadamente, o seu trabalho, mas o senhor foi inteiramente feliz na solução que encontrou. Muitas são as coisas acertadas de seu Código; mas, para nós, que vivemos litigando e conhecemos essas necessidades práticas da vida, essa simples solução seria suficiente para que o senhor mere­cesse um pedestal, como um dos mais destacados processua­listas. (Aplausos).

O PROFESSOR EDUARDO J. CouTURE -- Tenho, agora, a oportunidade de proclamar, publicamente, uma coisa que já disse, em ocasião anterior, sem porém a necessária publici­dade. Na enumeração das fontes do Projeto de Código de Processo Civil, que são muitas c de diversos países, ao me re­ferir aos Códigos do México, afirmei que alguns dêles eram, indubitàvelmente, sob o ponto de vista técnico, dos mais inte­ressantes da América. Tenho, neste momento, o prazer de ratificar essas manifestações, justamente em presença de quem merece tal encômio, devido à primordial ingerência que lhe coube em um dêsses textos.

Contestarei, muito ràpidamente, as interessantes e pene­trantes sugestões do Professor GARCIA RoJ AS, a quem pretendi aludir em minhas palavras anteriores.

A questão de saber se a enumeração de princípios do Projeto é ou não taxativa, hoje mesmo, me havia sido pro­posta, em uma agradável palestra íntima, pelo Professor PARDO AsPE. Também êle tinha dúvidas sôbre se essa enu­meração seria ou não taxativa e eu me apressei em dissipá-las.

Esta coincidência de dúvidas, porém, revela-me a neces­sidade de manifestar aqui que compartilho, em princípio, a idéia de deixar bem esclarecido êsse ponto em um texto defi­nitivo do Projeto. Quero, entretanto, observar que nunca uma enumeração dêsse tipo poderia ser taxativa.

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O Projeto encerra muitos outros princrp10s processuais, além dos que estão mencionados no capítulo preliminar. En­cerra, por exemplo, o princípio que poderíamos chamar "do juízo ordinário": sempre que, na lei, não se aponte um proce­dimento especial para a realização de um juízo, ter-se-& de agir por via ordinária. Encerra, também, o princípio Hda via incidental": sempre que surgir um conflito acessório, deverá ser decidido por vi& incidental. E como êsses poderia, talvez, enumerar dúzias de princípios inerentes ao Projeto. A enu­meração feita, como dizia, nunca poderia ser taxativa, porque se o legislador, na estrutura do texto, seguiu linhas diretivas, essas linhas diretivas, que constituem princípios, surgem mes­mo que êle não as mencione. Mesmo admitindo, teorica­mente, que o Projeto tivesse um caráter taxativo, isto é, que o legislador, por êrro de técnica, tivesse dito em seu articulado que só se aplicariam aquêles princípios, estaria o juiz impe­dido de aplicar outros? Não, porque o legislador cria prin­cípios, ainda que não o queira. Repete-se, até certo ponto, a história de Monsieur Jourdain. O legislador dita seus arti­gos, mas a coordenação sistemática dêsses artigos é o que cria os prinC1piOs. f:stcs se encontram em um Código, com ou sem a intenção de quem redigiu o texto ou mesmo contra ela.

A circunstância, irnicamente, de que tenham surgido dú­vidas leva-me a acolher a observação e a aceitar a sugestão de que em um texto definitivo se esclareça, de modo efetivo, . . esse ponto.

Sôbre a distinção entre interpretação e integração e a transcendência do método progressivo-histórico, creio não con­cordar inteiramente com alguns pontos de vista do Professor GARCIA RoJAs. Mas é, justamente, o fato de haver pontos de vista discordantes o que constitui o sinal da fecundidade do Direito. O mundo passou por coisas trágicas, por crises de entendimento. Em não poucos casos se podem evitar conflitos se as partes concordam em que não concordam. Quando cada qual firma sua posição e salva sua responsabilidade, contribui

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para tornar mais fértil o exercício de uma ciência. As dife­renças de critério que poderiam separar meu pensamento do que acaba de expor o Professor GARCIA RoJAS forçam-me a me preocupar com a fixação nítida de meu ponto de vista, quando corrigir a versão taquigráfica de minhas dissertações. E, sem dúvida, ficaremos em paz.

No que se refere à boa-fé do juiz, quero fazer uma sim­ples. observação. Esforcei-me muito, do ponto de vista técnico, por distinguir entre o procedimento civil e a organização fudi­czarza. A boa-fé do juiz é um fato inerente à atividade do magistrado como tal e a atividade do magistrado como tal é matéria que interessa à lei orgânica do Poder Judiciário. Se a má-fé do juiz cai dentro das descrições típicas das causas da responsabilidade judicial, essa responsabilidade se deve tornar efetiva por fôrça de textos expressos da lei orgânica do Poder Judiciário; se não cabe dentro das causas da responsabilidade judicial, a única coisa que nos resta para fazer é reformar a lei. E mesmo assim cumpre esclarecer que nem sempre as boas leis fazem os bons juízes. O único realizador do Direito, concordávamos ontem com o Professor GARCIA RoJAS, é a vir­tude e a verdade é que a virtude dos homens não se fabrica com as leis, mas sim com a consciência de sua própria respon­sabilidade.

Com referência às definições, devo dizer que as definições do legislador, abundantes em nossa legislação processual civil, sempre foram, não obstante o talento do autor do Código vi­gente, singularmente defeituosas. Não me recusei a formu­lar definições porque em Direito tôda definição seja perigosa. Recusei-me a fazê-lo porque uma definição diz o que uma coisa é, ao passo que uma norma diz o que a situação de fato deve ser, em seu sentido jurídico. Muitas vêzes, torna-se ne­cessário determinar os elementos de uma instituição, como procede o Código Civil para determinar os elementos atinentes aos contratos, em particular. Na lei processual, por exemplo,

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é preciso dizer que se entende por instrumento público. Pa­receu-me, assim, não ser admissível estabelecer: "um instru­mento público é tal coisa"; antes, dever-se·ia consignar o se­guinte: "verificados em um instrumento, os elementos A, B, C ou D, deve ser êsse instrumento considerado como público, com as conseqüências que a lei atribuí a tais documentos".

Sôbre as últimas advertências relativas ao processo suces­sório extrajudicial, passo a relatar ao Professor GARCIA RoJAs, cordial e amistosamente, a história da solução a êle dada e seu destino.

Existe, em nosso país, um grave conflito entre advo­gados e notários; é uma luta surda e elegante; ambas as partes mantêm-na com grande dignidade, mas os advogados se queixam de que os escrivães obtêm as sucessões e os escri­vães se queixam de que, sem as retribuições que lhes pro­porcionam os trâmites sucessórios, não poderiam viver. Tra­ta-se de uma espécie de equilíbrio instável que, de algum modo, se romperá um dia. Antecipei uma solução, profun­damente ligada às idéias expostas em minha palestra de alguns dias atrás, sôbre O conceito da fé pública. Direi, também, a propósito, que não constitui uma irreverência, sob o ponto de vista histórico, nem uma antinomia, sob o ponto de vista jurídico, trasladar o tramitamento sucessório do juiz para o escnvao. Qual foi, contudo, o destino dessa solução? Os escrivães descobriram atrás dela um modo secretó de favorecer os advogados e êstes, por sua vez, nela viram uma predispo­sição incompreensível e uma bondosa preferência, relativa­mente aos escrivães.

O que poderia suceder é que, por descontentar as duas partes, ficasse eu como um navegante solitário de minha so­lução. Mas ainda que isso viesse a acontecer, algum dia, em meu país, considerar-me-ia feliz, se viajasse em meu barco, como acaba de declará-lo publicamente, o Professor GARCIA RoJAs, a quem agradeço suas palavras. (Aplausos).

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O PRoFESSOR IGNACIO MEDINA - Em breves minutos, realmente preocupado com o esfôrço continuo e extraordi­nário desenvolvido por nosso ilustre visitante, nesta reunião de mesa-redonda, quero apenas apresentar à sua consideração um 'problema que considero relevante no processo contempo­râneo e que se pode ligar ao capítulo preliminar da magistral obra legislativa por êle projetada. Depois de ouvi-lo formular a solução da responsabilidade judicial, de acôrdo com a orien­tação adotada pela legislação uruguaia, passei a meditar no problema da responsabilidade das partes. Entre os princípios fundamentais do processo contemporâneo, creio que a respon­sabilidade das partes é fato imprescindível. O sistema indi­vidualista e privatístico fica reduzido, se bem o entendo, no que toca às partes, a uma posição de recíproca responsabi­lidade com relação ao seu procedimento dentro do processo. Se se troca, entretanto, êsse sistema pelo sistema publicístico e democrático, se as partes e o julgador colaboram na atividade jurisdicional, quando as primeiras desprezarem os princípios de probidade, de economia, de concentração, etc., incorrendo em abuso de atividade jurisdicional, que solução se poderá encontrar? A solução simplista de indenizar o colitigante pelo procedimento antijurídico da outra parte?

Temos uma responsabilidade evidente e iniludívcl em face do Estado. Se abusamos, portanto, da atividade jurisdi­cional, independentemente da indenização que devemos à parte contrária, assumimos uma responsabilidade que deve ser definida e punida.

Se, a partir do impulso provocado por um interêsse pri­vado, o Estado é atraído para a realização de seus fins pró­prios através do processo civil, teremos de reconhecer que todo entorpecimento, todo desvio intencional, todo obstáculo

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que a má-fé, a audácia ou a temeridade de um ou de todos os litigantes venham a originar deverão trazer consigo a impo­sição de sanções de ordem monetária aos responsáveis, em favor do Estado, cuja atividade, injustificadamente, foi posta em movimento.

Trata-se de postular a responsabilidade civil das partes, não somente entre si, mediante a indenização da condenação nas custas, mas também traduzida em indenização pecuniária, a título de ressarcimento de prejuízos, em favor do Estado, imposta em sentença definitiva.

Os litigantes maliciosos obrigam os órgãos públicos a des­pender, desnecessàriamente, tempo e dinheiro no conheci­mento e decisão de um determinado caso c, por isso, devem ser, imediatamente, responsabilizados.

O serviço jurisdicional é gratuito para os particulares; logo, torna-se oneroso, inuito oneroso para o Estado, que paga funcionários e empregados, que cobre os gastos gerais de escri­tório, que destina seus prédios, etc. A entrada em atividade dêsse complexo, delicado, custoso mecanismo do ajuizamento civil encontra sua justificativa, unicamente, nos pressupostos de lealdade e probidade das partes, que o Projeto CouTURE, tão acertadamente, inclui em seu art. 7.'.

Permita-se-me apoiar um exemplo na disposição contida na segunda parte do art. 140 do Código mexicano de Processo Civil para o Distrito e Territórios, que impõe ao ju1z o dever de condenar nas custas "aquêle que apresentar instrumentos ou documentos falsificados, bem como testemunhas falsas ou subornadas''.

Quem assim procede, quem apresenta testemunhas falsas ou documentos falsificados para provar sua causa civil (se, por hipótese, a sentença lhe fôr favorável) não conseguirá prejudicar a outra parte na mesma proporção em que preju­dica o Estado, a quem, por êsses métodos, intentou surpreender e enganar.

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Evidencia-se, aqui, a necessidade de que a sentença abranja mais um ponto resolutivo: a imposição de uma multa - se assim a podemos chamar - em favor do govêrno, que se viu obrigado a despender sua atividade no caso mencionado. Nenhum remédio simplista jamais resolverá o problema angus­tioso do acúmulo de trabalho dos tribunais, do assombroso resíduo de casos à espera de um pronunciamento definitivo, da fadiga do juiz que resolve cega e precipitadamente as ques­tões rotineiras e adia uma, duas, cem vêzes a solução dos ne­gócios difíceis, por falta de tempo para estudá-los consciencio­samente; tenho, contudo, a certeza de que, na conquista da tão desejada solução para êsse problema, seria fator impor­tante o reconhecimento da responsabilidade das partes perante o Estado por seu proceder desleal ou malicioso no processo civiL Creio, firmemente, que algum dia, caso fôsse aceita minha sugestão, as estatísticas sôbre o assunto confirmariam o meu pensamento.

E êsse o único tema sôbre o qual desejaria conhecer a opinião do professor que nos visita, não antes, porém, de lhe apresentar minha respeitosa homenagem pela grandeza de sua tarefa pessoal e de lhe dar o testemunho de minha admi­ração pela sua grande capacidade, pela correção de seu estilo, pela vastidão de seus conhecimentos, para poder dar por ter­minada minha curta e humilde participação nesta palestra.

0 PROFESSOR EDUARDO J. CoUTURE - 0 art. 460 do Pro­jeto diz o seguinte: "As medidas a que se referem os artigos precedentes ... " 1<:sse artigo prevê a conseqüência penal do inadimplemento das ordens judiciais.

Pois bem. O problema apresentado pelo Professor ME­DINA encerra uma extraordinária significação. E sabido que, durante os últimos anos do govêmo nacional-socialista, isto é, quando sua doutrina havia alcançado o máximo do seu apogeu, os adeptos dessa tendência política sustentaram a cha­mada teoria da penalização do processo civil. Por uma coin-

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cidência, cujas raízes profundas nós todos conhecemos, o Pro­jeto SoLMI, que foi a carta orgânica do díreito judiciário fas­cista, impunha penas monetárias e de prisão até - creio -pelo simples fato de respirar em excesso.

Deparou-se-me o problema da responsabilidade das partes em juízo e eu, naturalmente, rejeitei, desde a sua origem, a tese da penalização do processo civil. Essa tese nada mais é do que a conseqüência de um Estado autoritário, em virtude do qual, como dizíamos em uma das anteriores dissertações, o homem é um instrumento do sistema.

Não podemos, entretanto, perder aqui de vista aquilo que CALAMANDREI chamou, recentemente, "a responsabilidade da doutrina". Promover o processo ou defender-se nêle consti­tuem atos de liberdade juridica. Nossa tese acêrca da ação civil ou do direito de defesa em juízo pode ser reduzida aos seguintes têrmos: cada indivíduo tem o díreito de pleitear em juízo ou de defender-se nêle, sob sua responsabilidade. Essa responsabilidade deve tomar-se efetiva, em minha opi­nião, dentro de três aspectos fundamentais: primeiro, respon­sabilidade disciplinar, para que o juiz possa dirigir o debate como um real intercâmbio de pontos de vista e não como uma luta de emboscadas; segundo, responsabilidade civil, porque todo ato ilícito do homem acarreta a obrigação de seu ressarcimento. Neste caso, o processo como atividade nada mais é do que um fato planejado na esfera da atividade lícita e aquêle que a transformar em atividade ilícita fica obrigado a reparar o dano causado. Mas limitar a responsabilidade ao círculo disciplinar ou civil pode ser algo puramente teó­rico, se os meios de tomar efetiva essa responsabilidade não funcionarem perfeitamente. Pensei, então, até que ponto se poderia admitir uma terceíra classe de responsabilidade: a responsabilidade criminal, que é, sem dúvida, a mais severa das responsabilidades do ordenamento juridico.

Cheguei a essa conclusão ao pensar que até ao pronuncia­mento da sentença definitiva não se pode saber quem tem

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razão. Sufocar a parte sob a pressão de responsabilidades penais no exerdcio de sua defesa significaria coibir e limitar a liberdade do debate, que é uma das aspirações da justiça. Uma vez, porém, alcançada a coisa julgada, isto é, no mo­mento em que se esgotou o processo de conhecimento, já sabe­mos que uma das partes não tem razão. A partir dêsse ins­tante, todos os atos de desobediência ao juiz, êsses atos que no direito anglo-americano são considerados como atos de menos­prêzo à justiça ( contempt of Court), importam em responsabi­lidade, não só disciplinar perante o magistrado, como também penal. Isso caracteriza, no campo do processo de execução, a figura típica da desobediência às determinações da auto­ridade.

Por êsses motivos, pareceu-me mais acertado expressar o princípio da responsabilidade das partes, em seus três graus - disciplinar, civil e penal -, ao longo do Projeto, nas dis­posições particulares sôbre condenação em custas, medidas de segurança, institutos da prova, etc., em lugar de consigná­la sob a forma de um princípio geral, cuja formulação não julguei absolutamente precisa.

Esta é minha resposta à ponderação impecável que acabo de ouvir do Professor MEDINA.

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O PRoFEssoR EMÍLio PARDO AsPE- Desejo referir-me a duas questões concretas, suscitadas, respectivamente, pelo Pro­fessor GARCIA RoJAS e pelo Professor CAST!LLO LARRANAGÁ. Pretendo ser tão breve que omitirei qualquer alusão aos mé­ritos, tanto de nosso ilustre visitante, como dos professôres que intervieram nesta sessão. Além disso, recearia eu ficar com meus elogios muito aquém da realidade.

Quero, em primeiro lugar, ressaltar uma observação do Professor CASTILLO LARRANAGA, que não recebeu tôda a con­sideração que merece. A exigência de boa-fé, de probidade do julgador, tal qual foi desenvolvida nas conferências a que tivemos a satisfação de assistir, não se pode referir às omissões ou condutas que impliquem em violação do dever jurídico resultante da posição em que se acha o juiz, em virtude de sua nomeação, frente ao Estado. A probidade de que fala­mos aqui (já que o Professor GARCIA RoJAs sugeriu que se acrescentasse ao artigo a obrigação do juiz "de proceder com probidade", como se exige das partes), essa exigência de pro­bidade - dizíamos - não é aquela que se esgota quando somente se exige do juiz um pronunciamento justo. Vai mais além. O Professor CAsTILLo LARRANAGA, porém, apresentou uma sugestão que me parece extraordinàriamente acertada: ao lado de tôdas as obrigações, de todos os deveres juridicos que pesam sôbre o juiz, nos têrmos do art. 7.•, acrescenta: " ... ao respeito que se devem os litigantes e às faltas de leal­dade e probidade no debate, velando por que a verdade his­tórica prime sôbre a verdade formal". Essa colaboração do juiz com o dever de probidade exigido das partes preenche a exigência que se pode formular sob a forma de princípio, não sob a forma de preceito do Código Penal ou da Lei de Respon-

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sabílidade dos Funcionários Públicos. De modo que se, den­tro dêsses têrmos ou dentro de outros (como seria o caso se se dissesse "a verdade real"), se ampliasse o art. 7.•, fica­riam satisfeitas as pretensões tanto do Professor CAsTILLO LARRANAGA como do Professor GARCIA Ro.rAs. Não sei se o Professor CouTURE consideraria oportuno assinalar a obriga­ção do juiz de prescindir, na medida do possível, do pura­mente formal, para conduzir sua investigação, cooperando com as partes e dentro dos limites do princípio dispositivo, ao predomínio da verdade real sôbre a verdade meramente formal.

A outro ponto não respondeu, em têrmos que eu pudesse apreender, o Professor CouTURE. Opina o Professor GARCIA RoJAS que deve sofrer uma alteração o preceito relativo a êste ponto. Diz o Projeto, na segunda parte do art. 3.' (estipulou­-se que esta segunda parte levasse numeração diferente) : "Em caso de obscuridade ou insuficiência das mesmas, ao juiz ca­berá esclarecer as dúvidas que surgirem, aplicando os prin­cípios contidos no presente capítulo". Relativamente à ex­tensão dos princípios aplicáveis, existe conformidade quanto ao texto do Professor CouTURE. O Professor GARCIA RoJ As, contudo, é de opinião que se deveria dizer: "Em caso de omissão, de obscuridade ou insuficiência das mesmas ... "

Preciso expressar minha desconformidade com o acrés­cimo proposto pelo Professor GARCIA RoJAs. Que significa' omissão na lei? Significa ponto não legislado. Dar ao juiz a faculdade de se pronunciar sôbre ponto não legislado, crian­do êle próprio a norma, e investi-lo de faculdades legislativas. "t bem verdade que nossa Constituição - e aproveito essa oportunidade para exaltar um dos méritos do art. 14 - equi­para, com maravilhoso acêrto, a interpretação jurídica ao texto da lei. Conforme a letra da lei - diz - "ou a sua interpretação jurídica", isto é, a interpretação jurídica da lei. O juiz, conseqüentemente, só se pode pronunciar de conformi­dade com a lei. Resolver o julgador sôbre questão não legis-

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lada representa, exatamente, o mesmo que legislar e está em contradição com o princípio da divisão tripartida.

Por êsse motivo, permito-me duas palavras, talvez do mo­destíssimo ângulo do juiz que não desejaria enfrentar a angús­tia de ter de se pronunciar sôbre ponto não legislado, criando êle mesmo a lei; êste é o ângulo do qual me permito objetar o acréscimo proposto pelo Professor GARCIA RoJAS. Por outro lado, êsse mesmo professor condicionou sua observação ao fato de se admitir a possibilidade da lacuna, do vazio absoluto; não à obscuridade, não à insuficiência, mas à absoluta ausência de legislação sôbre um caso concreto. Uma vez condicionada desta forma, a objeção do Professor GARCIA RoJAS talvez tivesse sua importância centuplicada. Como quer que seja, parece­-me que o poder conferido ao julgador para interpretar a lei em caso de obscuridade ou insuficiência, segundo os princípios gerais do direito, os princípios enunciados "neste capítulo" e os demais princípios que se deduzam de todo o texto do orde­namento, atinge a suprema aspiração comum; não se deve, contudo, acrescentar, de nenhum modo, o caso em que haja, realmente, omissão.

Acreditando que o Professor CouTURE apoiará meu hu­milde ponto de vista, submeto-o à sua respeitável consideração. (Aplausos).

O PROFESSOR EDuARDO J. CouTURE - Minha única dis­crepância reside em que êsse ponto de vista não é tão humilde quanto expressa quem o defende, mas sim muito penetrante e, para mim, muito significativo.

Conheci o Professor PARDO AsPE, há dois anos, fora de meu país e fora do seu, e não sei porque me entendi admirà­velmente com êle. Neste momento, estamos em frente de uma espécie de polarização dêsse entendimento.

Como não discutimos, aqui, palavras nem sinais de pon­tuação, desejo declarar que aceito, de boa vontade, as su-

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gestões relativas ao art. 7.' e as questões relativas à segunda parte do art. 3 _..

Quero esclarecer, simplesmente, já que se tem insistido sôbre o significado da omissão da palavra omissão, nessa se­gunda parte do art. 3.•, que o texto está assim redigido: "A direção do processo está confiada ao juiz, que a exercerá de acôrdo com as disposições dêste Código. Em caso de obscuri­dade ou de insuficiência das mesmas, o juiz ... " Ao dizer obscuridade, dizemos: palavras não expressas claramente; o obscuro é o contrário do claro. Mas quando dizemos insufi­ciente, queremos dizer tudo aquilo cuja medida não basta ao alcance de sua finalidade. Que representa uma omissão a não ser a insuficiência do conjunto das disposições do Código para dar uma solução ao caso concreto?

Já disse que não discutimos palavras e creio que o acrés­cimo do vocábulo omissão não prejudica êsse texto. Quis dar, porém, em legitima defesa de meu Projeto, o significado da omissão da omissão. Esta não é indeliberada, mas intencio­nal; tenho, contudo, verdadeiro prazer em voltar sôbre meus passos e admitir uma incorporação dessa natureza. (Aplausos).

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O PROFESSOR RAFAEL DE PINA - Nosso ilustre visitante, o Dr. Cou-rURE, ao formular-nos, ontem, o convite que tanto nos honra, ou, ao menos, que para mim é, altamente, hon­roso, mo recordava uma expressão da sabedoria popular, nas­cida nas grutas de Albaicin, um aforisma cigano, segundo o qual "entre todos sabemos tudo", que constitui não só uma grande verdade como também um apêlo à humildade (para quem a necessite, pois creio não estar nesse caso, já que, real­mente, me encontro na posse da que corresponde, sem dúvida, a um irmão da Ordem de São Francisco de Assis) .

AgTadeço, portanto, no que, pessoalmente, me atinge o convite do Professor CouTURE e procurarei formular rápidas observações, em estilo quase telegráfico, sôbre alguns dos prin­cípios gerais que figuram na Parte Preliminar de seu Pro­jeto de Código de Processo Civil para o Uruguai, contribuição extraordinàriamente feliz para o progresso legislativo da men­cionada República.

Em primeiro lugar, parece-me uma inovação admirável a estabelecida pelo Professor Cou-runE em seu projeto, con­sistente em colocar à frente uma afirmação de princípios que permite prescindir, como de algo desnecessário, daquela ex­tensa e, freqüentemente, confusa exposição de motivos, na qual se costuma, de modo tradicional, oferecer a explicação da lei. Essa explicação está aqui formulada, magistralmente, ao apresentar, ao intérprete, não dados ou notas para a inter­pretação, mas sim os princípios que hão de servir para efetuá­-la; não todos os princípios, mas aquêles que o Professor Cou-ruRE, do seu ponto de vista pessoal e com seu critério próprio, considera fundamentais. Torno a dizer que isso sig­nifica, em minha opinião, um indubitável acêrto.

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O art. 2.9 do Projeto a que nos referimos diz, com relação ao princípio de iniciativa do processo: "A iniciativa do pro­cesso compete às partes. O juiz o iniciará de ofício somente quando a lei o estabelecer".

Sôbre o primeiro parágrafo, nada tenho a dizer. Com respeito ao segundo, não me atrevo a sugerir nada. Mas se tivesse autoridade necessária para tanto, recomendaria a sua supressão. A conveniência de evitar, em qualquer caso, o exercício da jurisdição sem ação é, para mim, evidente. O órgão jurisdicional nunca deve proceder de ofício. Quando o estímulo privado não é suficientemente eficaz para promover o exercício da função jurisdicional, o Ministério Público assu­me essa função, não como parte, embora como autor. A exis­tência do Ministério Público torna, precisamente, desneces­sária a iniciativa do órgão jurisdicional para proceder ex­-officio.

O Professor CouruaE compreenderá a insistência sôbre essa questão quando eu lhe relembrar que a única exceção ao princípio de que não há jurisdição sem ação existente no direito mexicano é o art. 5.•, da lei de falência e suspensão de pagamentos, que autoriza o juiz a formular, de oficio, a declaração de falência, preceito que, sob um ponto de vista pessoal, consideramos bem pouco feliz e que foi importado da legislação italiana, sendo, contudo, estranho à tradição ju-rídica do México. •

Quanto à direção do processo, o art. 3.'·' estabelece que "está confiada ao juiz, que a exercerá de acôrdo com as dispo­sições dêste código". A seguir, alude o texto dêsse artigo à obscuridade ou insuficiência de suas disposições e a mim me parece - ainda que possa estar em érro - que aqui se eno­velam dois problemas diferentes: o problema da interpre­tação da lei e o problema das fontes do direito. Há interpre­tação quando se trata de obscuridade e quando não se trata de obscuridade. Mas vejo aqui, finalmente, uma coisa não muito precisa que, em meu pensamento, reclama esclareci-

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mentos exatos, apontando-se ao JUIZ, no caso de não existir sôbre isso previsão clara em outro lugar, as fontes do direito de que pode dispor para o exercício de sua função.

A Constituição mexicana deu tal importância a êste pro­blema das fontes do direito que ela própria o resolveu. São fontes do direito, no que se refere ao direito processual, a lei e os princípios do direito; os princípios do direito mexicano, isto é, os princípios do direito são os da legislação nacional que se pretenda interpretar. Sei que êsse critério não é aceito por alguns juristas. Quero, porém, ressaltar a importância dessa afirmação, tomando-lhes patente o que sucederia se o juiz mexicano interpretasse a legislação mexicana segundo os princípios do direito japonês ou do direito soviético, que, indu­bitàvelmente, existem. l<:sse juiz tem de interpretar a lei de seu país de acôrdo com os princípios gerais do direito mexi­cano, porque um povo tem sua tradição jurídica que não pode ser quebrada sem se converter em um receptador de criações alheias.

Dêsse modo, eu aqui prescindiria de tudo aquilo que, em meu entender, se refira à interpretação. Nada de regras de interpretação, mas sim de elementos, como os princípios, que são suscetíveis de aplicação eficaz e acertada. E eu, neste ponto, se houvesse escrito o preceito - não faço nenhuma recomendação ao Professor CouTURE, porque sou um proces­sualista modesto e nunca me permitiria a leviandade de reco­mendar alguma coisa a um processualista da envergadura do que temos diante de nós - diria, simplesmente: A direção do processo está confiada ao juiz, que a exercerá de acôrdo com. as disposições dêste código. Na falta de preceito ex­presso, o juiz aplicará os princípios gerais do direito proces­sual. Tiro o "mexicano", porque não faz falta. Evitaria­mos, assim, que o juiz pudesse sentir-se desvalido ante a des­necessidade de aplicar a norma jurídica. Evitaríamos, assim, êste perigo a que se referiu um juiz mexicano: o perigo do juiz legislador, que pode chegar a ser um indivíduo tão peri-

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goso como um salteador de estradas. O juiz legislador é um homem que penetra na seara alheia, na seara do legislador. :f: uma figura impossível dentro de um regime de divisão de poderes; a figura do juiz legislador é uma figura estranha ao direito mexicano, porque a Constituição Federal reconhece e acolhe o princípio da divisão dos poderes do Estado. No Mé­xico, portanto, qualquer ato do juiz que pudesse ser qualifi­cado de legislativo seria um ato ilegal. Não desejo ocultar, neste momento em que se apresenta a oportunidade de re­chaçar a teoria do juiz legislador, que sou um partidário acérrimo de não admitir, em nenhum grau ou extensão, que o juiz possa criar direito em qualquer caso, porque a expe­riência histórica mais imediata nos diz a que extremos de ini­qüidade chega o juiz legislador. Ressalta, por isso, como uma coisa plausível, a conduta do juiz mexicano, que repele essa figura do juiz legislador.

No que diz respeito ao princípio de probidade, o texto me parece, sem dúvida alguma, aceitável; êsse preceito, que pode ter assim um caráter de norma moral, mais do que de norma jurídica, será uma regra jurídica desde que encontre, no curso dos preceitos sucessivos, as sanções correspondentes, não as sanções de tipo penal que se aplicam a todo homem que chega ao ilícito penal, mas sim aquelas, de caráter civil, consideradas pela legislação antiga quando apreciou a impo­sição de custas como sanção de conduta, segundo a legisla<f<io clássica espanhola. No processo que se adota no Código do Professor CouTURE, se estabelece o princípio da condenação do vencido nas custas, pelo simples fato de ter sido derrotado no processo; e o vencido, quer seja litigante temerário ou de má-fé, quer não o seja, é condenado nas custas.

No caso de ser aceita essa conclusão, eu estabeleceria algo mais: uma penalidade especial para o litigante teme­rário, para o litigante que procedeu de má-fé, para o litigante que não realizou os atos do processo com a devida probidade. Li, um pouco ràpidamente, esta tarde, o Projeto de Código e

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não sei se essas sanções estão nêle previstas. Em alguns arti­gos do texto, há referências a uma sanção penal - caso de falsidade, de documentos falsos, etc. - mas seria conveniente, em minha opinião, estabelecer algumas penalidades de caráter diferente para o litigante temerário.

Nada mais tenho a dizer. Agradeço ao Professor Cou­TURE a atenção que teve a amabilidade de me prestar e desejo que, desta reunião, tão interessante (exceto na parte que nela me corresponde), guarde a grata recordação que todos nós con­servaremos para sempre. (Aplausos).

O PROFESSOR EDUARDO J. CouTURE- Se os companheiros desta mesa-redonda não estão fatigados e se o público que suporta, estàicamente, êste debate, também não o está, posso ainda prosseguir por muito tempo; possuo certa resistência intelectual atlética, que me permite agüentar coisas que, muitas vêzes, não me são agradáveis. Neste caso, como tudo me é singularmente grato, considero-me com um bom estoque de reserva para prosseguir.

Analisemos, parceladamente, as valiosas sugestões do Professor DE PINA.

Sua primeira observação se refere ao art. 2.', que está assim redigido: "A iniciativa do processo compete às partes. O juiz o iniciará de ofício sàmente quando a lei o estabelecer".

Julga o Professor DE PINA que, em virtude de um afo­rismo inerente ao processo civil, nemo iudex sine actore, a segunda parte do citado artigo é desnecessária. Assim é, efe­tivamente; acontece, porém, que, no âmbito de todo direito positivo, existe, sempre, uma grande quantidade de situações nas quais se impõe ao juiz civil o dever de proceder de ofício. Referir-me-ei, muito ràpidamente, a textos de nosso direito positivo, como sejam os seguintes casos: a falência, em que se estabelece para o juiz o dever de acionar de ofício; o con­curso de credores, em determinadas situações; o juízo de incapacidade, regido, em nosso país, por uma lei de assistência

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aos psicopatas; os processos relativos aos menores, nos quais o juiz atua ex-officio, com poderes, de certa forma, paternais; etc. Produz-se, então, devido à interferência de tôdas essas normas, um verdadeiro estado de incerteza sôbre qual seja o princípio dominante. Sabemos todos que, em direito, um princípio é um princípio até o dia em que o conjunto das exce­ções se transforma em maioria. Quando as exceções consti­tuem a maioria, o princípio deixa de ser princípio, passando a sê-lo o que se considerava exceção.

Neste caso, não estamos frente a um equilíbrio de fôrças tal que nos faça duvidar de qual seja o princípio. Realmente, de todos os conflitos que chegam até o Poder Judiciário civil, a grande maioria é constituída por aquêles que são suscitados pela parte interessada. Pareceu-me, contudo, que, dentro do propósito de coordenação a que corresponde êsse capítulo preliminar, se deveriam colocar, no lugar adequado, o prin­Cipio e as exceções. Como, em verdade, ao longo de um código, verificamos que as normas ou são aplicação do prin­cípio ou são derrogação parcial do mesmo, existe conveniência, quase diária, sem abandonar o sentido normativo e mantendo o espírito pedagógico dêsse capítulo preliminar, em colocar, primeiramente, o princípio e relegar a segundo plano as dis­posições que configuram a sua separação.

Respondo, agora, à parte relativa à interpretação, :6o to­cante a saber se se deve ou não mencionar a necessidade de recorrer às fontes, especialmente aquelas que constituem os princípios do direito processual.

Desejo expressar, de modo confidencial, que tive, sem­pre, certo horror à palavra fontes. Cada vez que ouvi falar em fontes do direito, os fatos, em vez de se esclarecerem, se tornaram mais obscuros. Na clássica distinção sôbre se a jurisprudência é ou não fonte do direito, o primeiro que se afogou na fonte fui eu (Determinadas palavras jurídicas, dizia um professor nosso, deveriam ser objeto do tratamento que

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os cirurgiões praticam com seus instrumentos). A palavra fonte se presta a tantos equívocos que, na realidade, é muito difícil saber se a jurisprudência é ou não fonte do direito. Creio, por exemplo, que a jurisdição é criadora e consti­tutiva, mas não creio que seja fonte do direito, no sentido em que o são a lei ou a Constituição. Como abordar êste ponto é uma questão que exige um espaço de tempo de que não dis­pomos neste instante, devo resumir minha opinião dizendo que não julguei oportuno utilizar a palavra fonte, porque, ori­ginàriamente, ela tem um sentido equívoco.

O Professor DE PrNA concorda com meus pontos de vista quando entende que, para interpretar as insuficiências ou as obscuridades da lei, quer em forma de interpretação, quer em forma de integração, temos de recorrer aos princípios gerais do direito. Sôbre isso estamos, absolutamente, de acôrdo, porque não concebo uma interpretação que não seja feita segundo os princípios do direito em geral e do direito interpre­tativo em particular. E não concebo, tampouco, um método le investigação que não seja a revelação acidental, por um preceito concreto, de um conteúdo de caráter geral estabele­cido no sistema normativo.

Mas êle acrescenta as palavras "princípios gerais do di­reito processual" - e sôbrc êsse ponto eu tenho as minhas vacilações.

O legislador interpreta a lei processual não somente de acôrdo com os princípios do direito processual. No dia em que apareça, no processo, uma transação, havendo necessi­dade de discutir seu significado, sua projeção no processo se fará de acôrdo com os princípios gerais do direito civil, sem­pre que a transação fôr um contrato; no dia em que se ven­tile, em juízo, a validade ou nulidade de um depósito, se fará a interpretação de acôrdo com as regras do depósito; no dia em que se discutam determinados atos do juízo da falência se terá de resolver a dúvida de acôi:do com os princípios gerais

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que dominam o direito comercial, como sejam o interêsse do comércio, a segurança das transações, a proteção à boa-fé dos comerciantes, etc. Estabelecer que o juiz deverá interpretar a lei processual em suas obscuridades de acôrdo com os prin­cípios gerais do direito processual ou constitui uma repetição ou uma limitação. Se o juiz interpreta o direito - e no fundo o direito processual nada mais é do que o direito -segundo os seus princípios gerais, parece-me que seria uma limitação desnecessária, desde que o juiz aplica todos os prin­cípios gerais do ordenamento jurídico. Estabelecer que a lei processual deve ser interpretada de acôrdo com os princípios do direito processual se me afigura uma tautologia, já que a lei processual consiste em uma noção que devemos examinar na plenitude do seu conteúdo c não de outro ramo do direito.

Sôbre a parte relativa à boa-fé c suas condignas sanções, desejo dizer que compartilho, plenamente, das opiniões do Professor DE PrN A. O princípio de probidade, instituído no art. 7.', seria uma declamação, se não tivesse as penalidades correspondentes inscritas nos arts. 201 e 202. A sentença impõe ao vencido as custas do processo, determinando o mon­tante das mesmas. E no que se refere a custas, desejo escla­recer, para melhor revelar o alcance dêsse texto, que o art. 202 abrange a condenação parcial: em caso de acolhimento ou rejeição parcial da petição. Quando o juiz considera que • a parte vencida litigou com algum direito e de completa boa--fé, poderá isentá-la de uma porcentagem das custas, dando, na sentença, os fundamentos de sua decisão. Nos incidentes, tôdas as custas serão atribuídas ao vencido. O Projeto institui, até certo ponto, uma responsabilidade objetiva, aplicando o preceito de que "o que perde, paga", aforisma gêmeo daquele que diz "o que quebra, paga". Apenas, êste aspecto pres­supõe uma inversão do sistema vigente, na atualidade, em nosso país. Lamento não poder explicar o significado dessa inversão; direi, contudo, que nosso código vigente estabelece, em meu modo de ver, a mais estranha gradação na esfera da

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responsabilidade processual. O Projeto inverteu essa grada­ção; "o que perde, paga", embora o vencido, eventualmente, possa ser isento de uma parte dêsse pagamento. A responsa­bilidade se torna efetiva, dentro dos limites do que é justo, mediante uma reparação completa, isto é, ressarcimento total do prejuízo, entendendo-se por prejuízo o conjunto de gastos justificados e necessários que o processo originou. (Aplausos).

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, O PROFESSOR Luís REcAsÉNs SICHES - Omito a avaliação in extenso do louvor que merece o trabalho do Professor Cou­TURE, pois sabemos todos, no íntimo de nós mesmos, que sua presença constitui uma festa espiritual, trazendo-nos uma grande quantidade de benefícios intelectuais. Por outro lado, bastaria que, para tanto, reproduzisse - o que faço, apenas, sob a forma de uma alusão - a homenagem que tive o prazer de prestar-lhe em meu estudo sôbre o pensamento hispano­-americano, no qual me ocupo da produção de CouruRE sob o ponto de vista da teoria jurídica. Dentro do prudente e acertado prazo dos dez minutos concedidos e procurando mes­mo não os esgotar, me permitirei formular alguns comentários sôbre o tema da interpretação e da integração, como também algumas observações sôbre outros aspectos particulares, suge­ridos pelas brilhantes exposições do Professor CouruRE nas duas últimas noites.

Sôbre o assunto da interpretação e da integração, não pretendo, de modo algum, apontar omissões. Seria impro­cedente e injusto, considerando-se o limitado espaço de tempo de que dispôs o nosso orador. Desejo, unicamente, harmo­nizar algumas considerações que brotaram em meu espírito, ao calor de suas palavras.

Não seria, talvez, inoportuno recordar que alguém já di~e que a tarefa do jurista, a do advogado e a do juiz, em um sentido eminente e antonomástico, consta de quatro ope­rações entrelaçadas: primeira - descoberta da norma apli­cável; segunda - compreensão dessa norma; terceira -construção da regra concreta dentro do perfil da instituição, quarta - articulação dêsse perfil institucional na sistemática ou conjunto do ordenamento jurídico.

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Pois bem. Creio que essas quatro operações devem ser entendidas insistindo-se muito na sua recíproca interpene­tração. Especialmente, a interpretação e a integração vêm a constituir uma espécie de fio que cruza todos os demais instantes do trabalho do jurista. Concordo, plenamente, com a tese do Professor CouTURE sôbre a união íntima, ou melhor amcta, sôbre a inseparabilidade da interpretação e da inte­gração. É verdade que, em muitos textos ilustres dos últimos decênios, se insiste, de modo especial, sôbre o fato de que o trabalho de integração não pode ser subentendido, pura e sim­plesmente, no tradicional conceito da interpretação. Mas talvez pudéssemos considerar essas manifestações como uma espécie de alerta, no sentido de dizer: Senhores juristas, inter­pretar não é, somente, compreender um texto; é preciso com­preendê-lo através de uma série de múltiplas operações de integração. Assim, pois, na interpretação existe, sempre, um momento de integração. E, do mesmo modo, é certo, inver­tendo a ordem das coisas, que em qualquer operação de inte­gração o momento essencial é, também, interpretativo.

Vejamos um e outro. Não basta examinar, apenas, um texto legislativo; é ne­

cessário, ainda, integrá-lo com outra série de elementos tão positivos quanto a própria lei.

Primeiramente, é preciso integrar o sentido das :.armas com o substrato de referência a que, intencionalmente, elas se dirigem. O jurista, é evidente, não trabalha com realidades, trabalha com conceitos normativos; êsses conceitos norma­tivos, todavia, estão, de maneira intima, referidos a uma de­terminada situação de vida interumana. Por conseguinte, o sentido de uma regra não pode nunca ficar concluído e per­feito sem haver sido conjugado com a realidade social con­creta, determinada, que o advogado tem em seu escritório ou o juiz sôbre a sua mesa de despacho.

Em segundo lugar, muitas vêzes é preciso integrar a norma com convicções sociais, com crenças coletivas vigentes,

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àludidas ou referidas pela norma, mas por ela não definidas. Assim, por exemplo, quando o legislador fala do pudor, dos bons costumes, da ordem pública, das exigências da economia social, de um nível decente de vida para o trabalhador, etc., se está referindo a convicções sociais que existem independen­temente , do direito. Por si sós, elas não constituem direito; mas podem adquirir natureza jurídica, por fôrça da norma concreta de direito, sempre que esta reclamar sua própria integração com aquelas convicções.

Em terceiro lugar, é preciso proceder à integração de todos êsses elementos e dos elementos implícitos no sentido da norma com as outras peças que formam o conjunto da insti­tuição e com a restante engrenagem da totalidade do ordena­mento jurídico positivo. Pois bem. Observemos que, em tôdas essas operações de integração, existem momentos essen­ciais interpretativos. Com efeito, assim como é preciso inter­pretar o sentido das palavras da lei, é preciso interpretar, tam­bém, a significação e o alcance da realidade social que o jul­gador tem diante de si; é preciso interpretar, também, as convicções coletivas vigentes; etc.

Em tôda operação integradora não é suficiente junt<lr ou engrenar o conteúdo explícito ou implícito do texto da lei com as referidas convicções sociais ou com o sentido peculiar da realidade que se tem diante de si. Deve interpretar-se, também, o laço que une uma e outra coisa; o vínculo de união constitui, também, um assunto para interpretação.

Eis, aí, pois, como a interpretação e a integração se inter­penetram, de modo quase inseparável. Nada mais direi, re­ferentemente ao assunto. Insisto, apenas, em que minhas pa­lavras.não constituem nenhuma objeção: unicamente preten­deram ser um comentário sugerido pelos acertados e brilhan­tes pontos de vista apresentados pelo Professor CouTURE, em sua palestra de anteontem.

Agora, umas brevíssimas observações sôbre algo que transpareceu, ao menos duas vêzes, nas conferências do Pro-

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fessor CouTURE. Referindo-se a diversos momentos ou aspec­tos da interpretação, dizia-nos êle tratar-se seguidamente de um problema de pura lógica. Desejaria perguntar-lhe que se deve entender por pura lógica, neste caso. Nem tôda ló­gica jurídica é, então, inevítàvelmente, em sua aplicação dog­mática, isto é, à técnica do direito positivo, uma lógica axio­lógica, uma lógica avaliativa? Não faz já alguns lustros, ou melhor, alguns decênios que estamos reivindicando o lema teleológico de JHERING? Uma resposta é considerada como de lógica axiológica ou avaliativa não no sentido de estima­tiva filosófica, mas sim da axiologia positiva, da axiologia representada pelos valores que constituem os pressupostos de­duzidos do mesmo ordenamento positivo.

Desejaria fazer outro comentário, muito estreito, mas pro­fundo, sôbre a referência do Professor CouTURE à plenitude hermética. lf. certo que êsse assunto não constituiu matéria central de suas dissertações. Sei que êle poderia ilustrar com novos pontos de vista tal problema. Justificou êle a pleni­tude hermética do ordenamento jurídico dizendo que, por meio de lógica ou de experiências jurídicas, é possível sempre encontrar solução para um caso apresentado, por insólito que, prima facie, possa êle parecer. Certamente assim é, mas antes de nos referirmos aos meios para preencher os casos não pre­vistos e satisfazer a exigência da plenitude hermétic;, talvez tivéssemos de insistir na proclamação dessa plenitude hermé­tica, independentemente de que adotássemos, depois, uma po­sição otimista, como a do Professor CouTURE, da qual compar­tilho. Isto é, antes dé tudo, parece-nos indispensável assentar e justificar o princípio da plenitude hermética. Depois de firmado êsse princípio, depara-se-nos o problema de como preencher as lacunas das normas formuladas, ou seja, de atender aos casos não previstos. :Rste é outro problema, mas, em todo o caso, devemos começar por afirmar a plenitude hermética. No que diz respeito à primeira questão, lamento discordar de meu ilustre e estimado colega argentino CARLOS

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Cossro, quanto às ponderações que êle aduz, com caráter estri­tamente lógico, para justificar a plenitude hermética. Penso que a plenitude hermética está justificada, mas não pelas razões apresentadas por Cossro. Algumas delas são impres­sionantes e encerram, em minha opinião, material aprovei­tável. Sigo, porém, acreditando que o princípio fundamental que justifica a plenitude hermética, não já como preceito, não já como postulado, mas como axioma de todo ordenamento juridico, é o seguinte: o sentido de certeza e segurança que o direito procura realizar. Se se preferem as palavras paz e ordem, não existe inconveniente. Todo direito - bom ou mau, melhor ou pior, o de ontem e o de amanhã, o dêste país e o daquele - pretende criar, no sentido da Justiça, uma ordem certa, pacífica e segura. Se abríssemos a brecha, se deixássemos um poro, por pequenino que fôsse, ficaria, ime­diatamente, destruido o sentido radical do jurídico, a essência funcional de todo o direito, que é certeza e segurança.

Finalmente, em estilo telegráfico, uma ponta de dúvida ou uma tentativa de investigação de algo que ficou implícito em algumas palavras do Professor CouruRE, relativamente à lei processual, quando nô-la apresentava como descritiva. Creio que se trata de uma metáfora, inegàvelmente feliz; mas somente metáfora, porque, em definitivo, a estrutura lógica do preceito jurídico processual é a mesma estrutura lógica do preceito jurídico civil, do preceito juridico penal. A dife­rença entre o sistema juridico civil e o sistema juridico penal foi exposta, em meu entender, de forma indiscutível, pelo Professor CouruRE. Em continuação, traçou êle as linhas características do direito processual, mas, no que se refere à estrutura lógica do preceito jurídico processual, é ela comum à estrutura lógica de todos os demais preceitos jurídicos. O que a lei processual diz, terminantemente, é: Se, em deter­minadas circunstâncias, um juiz não realiza tais ou quais pre­venções ou provisões será objeto de uma medida ou sanção disciplinar ou será objeto de um processo de responsabilidade

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civil ou será objeto de um processo de responsabilidade penal. E, em outros preceitos jurídicos processuais, o que faz é este­reotipar, configurar os pressupostos para que se produzam de­terminados efeitos jurídicos. Se uma parte se conduz desta ou daquela maneira, êsse comportamento não constitui um pressuposto jurídico para que se produza determinada conse­qüência; se, pelo contrário, se comporta de outro modo, então a êsse comportamento processual se atribuirá urna série de conseqüências jurídicas especificadas pela própria lei. Ou seja, em outras palavras: ocorre com as leis processuais o mesmo que ocorre com as leis civis e, também, com as leis penais, isto é, muitos de seus artigos não constituem preceitos jurídicos completos, mas somente definições de pressupostos de outros preceitos.

E termino porque, embora o acervo de estímulos que nasceu da tarefa magistral do Professor CouTURE entre nós seja enorme, forçoso se torna chegar ao ponto final. Pois bem. Com êsse complexo de estímulos, que permanecem im­plícitos, que não podem aqui ser desenvolvidos, algo fica de­monstrado: -Amigo CouTURE, sois um grande professor, não apenas porque ensinais muito, mas, sobretudo, porque sugeris ainda muito mais. (Aplausos).

• O PaoFESSOR EDuARDO J. CouTURE - Se se fizesse uma

enquite entre todos os homens que, em meu país, amam o estudo do direito, sôbre qual seja seu livro predileto no quadro do pensamento jurídico de nosso tempo, tenho a certeza abso­luta de que essa enquête apontaria a preferência por um livro que se intitula Vida Humana, Sociedad y Derecho. (Aplausos).

A circunstância de que o autor dêsse livro tenha profe­rido, agora, esta esplêndida lição sôbre meu trabalho pessoal constitui algo que posso chamar um dos momentos áureos da elaboração do meu Projeto de Código. Só posso dizer que

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agradeço ao Professor Luís REcAsÉNS que trouxe ao meu trabalho.

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SICHES a contribuição

Sôbre suas sugestões, no que importam em interrogações, comentarei dois pontos que encerram interêsse positivo.

Pergunta-me êle que entendo por lógica pura quando me refiro ao aspecto da atividade criadora, através do qual o intérprete extrai de determinadas premissas, determinadas conclusões exatas.

Terei de responder-lhe, mediante uma comparação da lógica pura, com aquilo que denominamos lógica viva. Den­tro da formação filosófica que adquiri, desde a adolescência, pelos ensinamentos de um professor, para mim inolvidável, CARLOS VAz FERREIRA, a lógica viva é um setor da lógica dentro do qual outro se abriu que contém um complexo incrí­vel de criações, que o distinguem da lógica formal. Se per­guntássemos a um filósofo qual poderia ser um princípio de lógica que êle considerasse puro, isto é, que nada mais fôsse do que lógica, êle nos mencionaria o princípio de identidade, ou o da razão suficiente, ou o do terceiro excluído. Dir­-nos-ia, apresentando-nos o exemplo de um silogismo, que a premissa maior, confrontada com a premissa menor, só pode produzir a conclusão que o silogismo impõe. Isso é, em meu pensamento, na atividade interpretativa, o que poderíamos denominar lógica pura. Quando o intérprete se encontra face ao texto da lei que lhe diz que o devedor deve pagar ao credor, não tem outro remédio a não ser concluir, se A é devedor e B é credor, A deve pagar a B. E isso sem nenhum conselho da experiência, sem nenhum esfôrço criador, por pura lógica. Por outro lado, pareceu-me que a função interpretativa, con-• cebida como lógica pura, é, de certo modo, uma concepção do passado. O direito nunca é lógica pura. O direito é um fenômeno humano; é algo profundo, ardente, emocional. Quando um juiz interpreta o direito para aplicá-lo a um caso, faz lógica viva, lógica impregnada de sua experiência própria da vida. Servi-me, talvez, de uma base falsa para sustentar

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a oposição entre lógica pura e lógica viva; mas, na linguagem da ciência, nós nos defendemos com certos rudimentos idio­máticos, progredindo à medida que aperfeiçoamos nosso ins­trumental de conceitos e purificamos nossa bagagem de pa­lavras. Servi-me do conceito de lógica pura em oposição ao sentido de lógica viva, para mostrar de que maneira lógica e experiência são dois fatôres indispensáveis na sentença ju­dicial.

São lógica viva - e não lógica formal - a crítica das falácias de falsa oposição, de falsa precisão, de falsa observa­ção; as ídeo-verbais e as verbo-ideológicas. A lógica viva procura, também, o correto pensar humano; mas, a correção aponta para a relação do pensamento com a vida.

O outro aspecto que observa REcASÉNs SICHES é relativo à estrutura da lei processual. Provàvelmente, a escassez de tempo me impediu de ser tão claro quanto o havia desejado. Limitar-me-ei, simplesmente, a estabelecer, com maior pre­cisão, o estilo dos diferentes corpos de leis.

A lei, reduzida aos seus têrmos mais simples, nada mais é do que a estrutura que acabamos de analisar na aula de , hoje. Isso se aplica tanto à lei penal, como à civil, à comer­cial ou rural. Ocorre, apenas, que o legislador civil escreve em um estilo; o legislador penal, em outro. Julguei dever, no caso presente, mostrar como redige o legislador processual. A nota distintiva, prima fade, da lei processual é a descrição, não de um ato - o delito -, mas sim do conjunto de atos que constituem essa relação continuativa, que é o processo em marcha. Sempre que nos encontramos frente a um fenômeno jurídico assim concebido, podemos reconhecer, por intuição, a existência de um processo. O processo civil não difere em nada do processo intelectual, físico ou químico. Em todos êles, opera-se um deslocamento dos fenômenos e dos atos, em momentos sucessivos e ordenadamente. Quando o calor di­lata os corpos, verifica-se um processo em virtude do qual se produz a expansão das moléculas; se êsse processo consome

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tempo é porque os corpos não se dilatam instantâneamente. O processo das reações químicas, aparentemente instantâneo, na realidade, não o é. Quando forjamos um pensamento ou imaginamos um poema, não se trata de uma criação ime­diata do cérebro; trata-se de instâncias sucessivas. Ao con­trário da lei civil, que é, por assim dizer, estática, a lei pro­cessual descreve uma coisa que aciona e se move, relatando como se produz o fenômeno do processo ao longo do tempo. A lei civil é uma formação. A lei processual é a descrição de um fenômeno constituído por um conjunto de atos que se desenvolvem em relação de passado, presente e futuro.

Talvez em nenhum caso como no da justiça se pudesse falar de tempo existencial. Quando o processo dura dez anos, o que se conta aí é o tempo físico, porque, para o direito, como para o tempo existencial, a sentença se considera dada no dia da petição inicial.

Quero dizer, então, que meu desejo, ao descrever dessa maneira o estilo habitual da lei processual, outro não era que o de preparar o espírito para a dissertação da aula seguinte, destinada a extraír dêsse estilo próprio aquêles principies à procura dos quais andamos e cuja revelação, mais ou menos previsora e mais ou menos feliz, constitui o sentido dos textos que estamos analisando.

Não posso terminar sem agradecer, novamente, ao Pro­fessor REcAsÉNs SicHES suas palavras tão generosas e sua va­liosa colaboração.

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O PROFESSOR ALBERTo TnuEBA URBINA - Prometo-lhes que meu estilo será homeopático, porque é mais breve que o telegráfico.

A mesma emoção que sentiu o Professor CouTURE, ao deparar, pela primeira vez, em sua adolescência, com as pá­ginas comovedoras do Fuero Juzgo, eu também experimentei, ao me defrontar com as páginas brilhantes de seu Projeto de Código de Processo Civil.

Nesse Projeto pude entrever a tendência a manter um equilíbrio entre a natureza humana e o poder do Estado, equi­líbrio êsse rompido ao cessar a vigência do Fuero Juzgo e que, agora, num titânico esfôrço científico, se procura restabelecer. Por êsse motivo, apenas, seu Código já mereceria o mais alto respeito e eu lhe tributo minha mais cordial admiração.

Desejo, neste momento, referir-me, ràpidamente, aos prin­cípios diretivos do Projeto de Código: direção, igualdade, liberdade, economia, rapidez, probidade e concentração. Os caçulas dos processualistas, os estudiosos do processo traba­lhista, como aquêle que fala neste instante, sentimo-nos pro­fundamente satisfeitos por encontrar, no Projeto de Código, as diretrizes fundamentais que, brilhantemente, foram exami­nadas esta noite. Sentimo-nos, também, estimulados, porque, precisamente, as modalidades do processo trabalhista influí­ram no desenvolvimento do processo civil, com seus princípios fundamentais específicos: tecnicismo, rapidez, economia, por­que nêle se trata nada menos que de disputas entre entidades hum~as, essencialmente desiguais, como o são empregados e empregadores.

Como o direito - já se disse, aqui, de modo muito ele­gante - é feito para a vida, o legislador do trabalho apro­ximou-se mais dela, levando em conta essas desigualdades.

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Sabemos todos, perfeitamente bem, que, na exposição de mo­tivos do Código de Processo Civil italiano, se afirma, de modo categórico, que as regras do processo trabalhista se estenderam ao processo civil. Quer isso dizer que os cultores do Direito Processual do Trabalho cooperaram no desenvolvimento pro­gressivo do processo civil.

Relativamente ao princípio de igualdade processual, que se consagra no Projeto de Código de Processo Civil do Uruguai, quero fazer uma observação - confesso-o - com a maior cautela.

Existe o princípio de que todos os homens são iguais perante a lei, mas todos reconhecemos, também, que é falso tal princípio. Em conseqüência, penso que o art. 5.• do admi­rável Projeto de Código mencionado deve ser reforçado, revi­gorado, para que não resulte fictício, como o princípio da igualdade jurídica; porque o fato de impor ao juiz a obri­gação de visar à igualdade das partes no processo, sem lhe dar uma orientação precisa, equivale a reproduzir, na esfera do processo, o preceito jurídico da igualdade dos homens diante da lei.

Professor CouTURE: desejo sugerir-lhe que, em poste- , riores estudos, examine o alcance de minha ponderação. Tal­vez fôsse possível acrescentar uma palavra que salve o art. 5. • do hibridismo da igualdade jurídica, de acôrdo com sua acer­tada exposição relativamente a êsse tópico, aflorado pelo Pro­fessor EsTEVA Ru1z. Infelizmente, o Professor GARCIA RoJAS não dispôs do tempo necessário para expor seu pensamento a êsse respeito, embora· tenha tocado no princípio. Creio, entretanto, que êle participará de minha inquietude, em face de problema tão delicado. Em síntese, para tornar efetivo meu pensamento, considero fundamental que se adicione, ade­quadamente, a palavra real ao texto do Projeto, para que lá se exija a igualdade real das partes em juízo, como símbolo de humanismo processual e de autêntica justiça. Caso não seja apropriada a palavra real, que encerra um conceito claro

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frente à ficção, será possível procurar outra. O senhor é um homem de grandes recursos intelectuais e pode encontrar o conceito que imprima mais solidez à idéia que inspirou seu Projeto de Código.

F.sse importante Projeto de Código regula o processo a seguir para as controvérsias individuais do trabalho. Devo observar, evidentemente, que não conheço tôdas as leis traba­lhistas do Uruguai; sinto-me, portanto, coibido para expor meu pensamento, de modo integral. Penso, contudo, que é possível seguir a sistemática de nosso Código de Processo Civil, que não regulamenta, processualmente, as controvérsias oriun­das do trabalho, porque no México existe um estatuto especial que regula o processo trabalhista, tanto individual quanto coletivo. Há muitos anos, venho sustentando a tese, nesta casa de estudos, de que o Direito Processual do Trabalho é uma disciplina jurídica autônoma, não por motivos de ensino, mas sim por exigências de caráter científico. O tempo, muitas vêzes, me tem justificado. Nossa Lei do Trabalho consagra disposições processuais, é quase um código processual, mas nutrimos o grande desejo de aperfeiçoamento e estamos lu­tando para que, em nosso país, se elabore um Código Pro­cessual do Trabalho. Parece-me que o senhor sentiu de perto a influência do Código de Processo Civil italiano, que regula­menta as controvérsias do trabalho. Pensamos que essas con­trovérsias adquiriram sua maioridade jurídica e devem, por conseguinte, reger-se por um código especial, pois pertencem a uma jurisdição também especial, com tribunais especiais.

Devo cumprir minha promessa de um estilo homeopático, mas, antes de finalizar, desejo expressar ao Professor CouruRE que a simpatia intelectual que já experimentava por êle, há muitos anos, consolidou-se, definitivamente, com o seu trato pessoaf e com suas dissertações, que constituíram verdadeiras noites de gala nesta Universidade. (Aplausos).

O PROFESSOR EDUARDO J. CourURE - A resposta será, também, muito breve, porque, na realidade, existem entre o

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Professor TRUEBA URBINA e a minha pessoa profundas conso­nâncias sôbre o conteúdo e o destino do Direito Processual do Trabalho.

No tocante à sua sugestão acêrca do princípio de igual­dade, não me considero, neste momento, em condições de dar nenhuma solução. Direi, apenas, que suas premissas ficam, em certo sentido, gravadas em mim. Poderia dizer que ficam em estado de fermentação e de sugestão. Tratarei de crista­lizar sua observação, o mais depressa possível e da melhor maneira, em um texto adicional.

Quero, entretanto, dizer duas palavras sôbre a signifi­cação do Direito Processual do Trabalho frente a êste corpo de leis.

Na exposição de motivos do Projeto, se esclarece porque o Direito Processual do Trabalho se encontra, no meu país, em um instante crucial. Encontramo-nos em face de uma legislação social que conta já meio século de existência em nossa Pátria, em virtude de um esfôrço de aproximação das classes sociais e de melhoria das condições de vida do povo, mantido em um ritmo acelerado. Mas essa intensidade de nossos propósitos legislativos de justiça social não nos concedeu • tempo para pensar no direito adjetivo do trabalho. Achamo--nos, hoje, face à necessidade de criar todo um Direito Pro­cessual do Trabalho e de instituir uma jurisdição do trabalho que ainda não conseguimos estabilizar. Como o Projeto não é uma obra de doutrina, mas sim uma obra política, não constitui uma tentativa acadêmica, mas sim um imperativo da realidade, tive de trabalhar com os materiais da reali­dade. Pareceu-me uma fantasia da imaginação falar de di­reito adjetivo do trabalho, quando ainda não havia jurisdição do trabalho, quando não se sabia se a colheita deveria ser feita no campo administrativo ou no campo jurisdicional. Limitei-me, então, a consignar, em um texto especial, que os processos individuais do trabalho se ventilariam no juizo oral, que é a via mais rápida e mais intensa que encerra o Projeto

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de Código de Processo Civil. A vida não espera e se a inde­nização por despedida ou a indenização por acidente de tra­balho forem alcançadas depois que a familia ou o operário mergulharam no desamparo, não existe justiça, mas sim uma farsa de justiça. Não quis fazer voar a imaginação. Con­tentei-me com manejar as realidades que encaramos no pre­sente. · Por isso afirmei que o Projeto de Código de Processo, no que se refere ao trabalho, se acha em um momento crucial.

Cheguei à convicção, através de um estudo que o Pro­fessor TRUEBA UaarNA, em seu notável livro Derecho Procesal deZ Trabajo, julgou de maneira extremamente generosa, de que o direito adjetivo do trabalho não deixou de pé nem um só dos princípios clássicos do Direito Processual Civil. Ele excedeu, literalmente, todos os postulados que estamos manejando para a justiça civil ordinária: a idéia de prova, em virtude dos fenômenos típicos da inversão do ônus da prova, em matéria de acidentes ou em matéria de indeni­zação por despedida; a idéia da coisa julgada, mediante o problema da sentença coletiva; a idéia de jurisdição; a idéia relativa ao princípio de igualdade entre as partes; etc. Tudo foi ultrapassado pelas exigências do processo trabalhista.

Torno a repetir que existem, entre nós, coincidências muito profundas quanto à essência e ao destino do Direito Processual do Trabalho. Quero, apenas, esclarecer, para fugir a uma apreciação errônea por parte de quem não conheça a realidade de nosso país, que a orientação que comento po­deria ser justificada, porque neste Projeto não se trata, por enquanto, de iniciativas do tipo das que preocupam ao Pro­fessor TauEBA UaarNA e a mim .

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O Sr. Presidente da Mesa-Redonda, PRoFEssoR VrRGÍLio

DoMINGUEz - Peço desculpas ao Professor CouruRE, aos par­ticipantes desta sessão de mesa-redonda e ao público em geral por formular, depois de dez interrogatórios, uma pergunta mais. Infelizmente, toca-me falar em último lugar. Somos onze, ao todo. Por motivo de seu cargo, coube ao Sr. Secre­tário falar em primeiro lugar; por motivo do meu cargo, também, toca-me falar por último.

O Professor CouTURE foi metralhado através de dez inter­rogatórios, saindo vitorioso de todos os embates. O que vou fazer, agora, não constitui um fuzilamento; é, simplesmente, uma pergunta, de caráter geral, que considero de grande im­portância, sob o ponto de vista do direito positivo e do orde­namento jurídico.

Os nove primeiros artigos do Projeto de Código de Pro­cesso Civil para o Uruguai serviram de base para as discussões nestas conferências de mesa-redonda. Seus participantes res­tringiram-se a êsse articulado. Mas eu pretendo fazer uma pergunta de natureza genérica, que, a meu ver, é importante.

O Professor CouruRE, em sua palestra de ontem, ao exa­minar a origem do direito processual sob o ponto de vista jurí­dico-normativo, disse-nos que ela se encontrava no direito de ação, o qual está consignado constitucionalmente.

Se, do ângulo doutrinário, a origem do direito processual se situa na doutrina da autonomia do direito de ação, firmado pela primeira vez na polêmica entre WrNDSCHEID e MurHER e reiterado, depois, na Itália, quando CHIOVENDA escreveu seu

• ensaio sôbre La Acción en el Sistema de !011 Derechos; do ângulo legislativo, é questão relevante saber-se qual a norma de direito constitucional de que se origina o direito processual. Não é suficiente investigar a fonte da ciência processual mo­derna no campo da doutrina; seria muito útil, também,

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148 EDUARDO J. COUTURE

estudá-la no campo do ordenamento jurídico, no campo das disposições legais expressas.

A respeito, o Professor CouTURE formulou uma propo­sição singularmente valiosa, estudando a origem do direito de petição a favor dos particulares.

Tenho dúvidas a respeito e desejaria que o nosso confe­rencista nos esclarecesse sôbre o assunto. Podemos, certa­mente, situar a origem do direito de ação no preceito consti­tucional que estabelece o direito de petição como um direito subjetivo público e relativo em favor dos cidadãos. Creio, porém, que essa afirmação genérica talvez se completasse pro­curando-a em um preceito mais especifico. Em meu enten­der, o preceito mais especifico, também da Constituição, em que se encontra a origem do direito processual, é a disposição que proíbe o regime de auto-defesa, que veda aos,particulares fazer justiça por suas próprias mãos e que declara que aos tribunais compete distribuí-la.

O Professor CouruRE nos disse que, em virtude de razões fàcilmente explicáveis, êle vinculava a sua exposição doutri­nária aos preceitos do ordenamento jurídico uruguaio. Há de me perdoar, contudo, que, por motivos também fàcilmente explicáveis, eu vincule minha intervenção a preceitos do orde­namento jurídico mexicano.

Em nossa Constituição, temos dois artigos: um que se refere ao direito de petição, onde o Professor CouTURE situa a origem do direito processual; outro que proíbe o regime de auto-defesa e que, em minha opinião, é onde, mais exatamente, se deve estabelecer a origem da função jurisdicional, do direito de ação e do direito processual.

O dispositivo da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos que estabelece o direito de petição é o art. 8.' que reza, textualmente: "Os funcionários e empregados públicos respeitarão o exercício do direito de petição, sempre que êste seja exercido por escrito, de modo pacifico e respeitoso; em matéria política, porém, só poderão fazer uso dêsse direito os

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cidadãos da República. A tôda petição deve corresponder o despacho escrito da autoridade competente, que tem a obri­gação de levá-lo, em curto prazo, ao conhecimento do interes­sado". Mas o art. 17, em meu pensamento, ao proibir o regime de auto-defesa e ao estabelecer a função jurisdicional, é o que origina o direito processual. Diz o art. 17: "Ninguém poderá ser prêso por dívidas de caráter puramente civil. Ne­nhuma pessoa poderá fazer justiça por suas próprias mãos, nem exercer violência para reclamar seu direito. Aos tribu­nais competirá distribuir justiça, nos prazos e têrmos fixados pela lei; seu serviço será gratuito, ficando, por conseguinte, proibidas as custas judiciárias". Artigos semelhantes aos oita­vo c décimo sétimo de nossa Constituição encontram-se, prà­ticamente, nos ordenamentos jurídicos de todos os países do mundo, embora seja também certo que, em alguns casos, não estão consignados na lei magna.

De qualquer forma, porém, fica de pé o seguinte fato: se é muito importante, na esfera da doutrina, situar a origem da ciência processual moderna, que todos encontramos no princípio da autonomia do direito de ação, estabelecido na doutrina alemã e, posteriormente, por CHIOVENDA, em sua obra citada, também o é, não no campo da doutrina, mas sim no do direito positivo, do direito vigente, situar a origem do direito processual. Nesse sentido, desejaria eu que o Pro­fessor CourURE nos esclarecesse, com sua autorizada opinião, se não julga que a origem do direito processual e da função jurisdicional se encontram antes no preceito que proíbe o re­gime da auto-defesa e que declara que a todos os tribunais caberá a missão de distribuir justiça, não podendo ninguém fazer justiça por si próprio, nem exercer violência para re­clamar seu direito - do que no preceito constitucional que estabelece o direito de petição.

O PRoFEssoR EDUARDO J. CouruaE- Responderei, muito ràpidamente, ao Sr. Presidente.

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150 EDU ARDO J. COUTURE

Quando, no estudo a que me referi, desenvolvi, pela pri­meira vez, a tese de que o direito de ação tem seu ponto de partida no texto constitucional relativo ao direito de petição, essa tese foi analisada, em meu país, pelo Professor J usTrNo JrMENEz DE ARÉCHAGA, catedrático de Direito Constitucional da nossa Faculdade. O Professor JusTINo JrMENEZ DE ARÉ­CHAGA concorda, de modo quase literal, com a argumentação que acaba de sustentar o Professor VIRGÍLIO DoMINGUEZ. Nossa Constituição não encerra uma proibição específica da auto-defesa, mas, segundo J IMENEZ DE AnÉcHAGA, é preciso procurar a fundamentação dêsse princípio no capítulo rela­tivo ao Poder Judiciário. Ao implantar-se a jurisdição, diga-o ou não o diga a Constituição, ficam, pràticamente, suprimidas a violência e a justiça pelas próprias mãos.

Aceito essa tese. Quero, contudo, fazer duas ou três con­siderações. Sustentar que o direito de ação e a garantia da justiça partem da Constituição é formular o problema de ma­neira restrita. Na realidade. todos os povos tiveram justiça antes de terem Constituição. Não deixa de ser um artificia­lismo crer que o direito possa emanar da Constituição. Histo­ricamente, o direito de ação nasceu no dia em que a ordem jurídica proibiu que o homem se servisse do machado de sílex para liquidar as contas com os seus devedores. A partir dêsse momento, existe uma jurisdição e o direito de recorrer a ela, com ou sem texto especial que o consagre.

Acontece, somente, que o ordenamento normativo mo­derno pumite que observemos, hoje, de modo claro, êsse fe­nômeno, através de textos constitucionais, legais, regulamen­tares, etc. O direito de ação não nasce da Constituição, como Palas Atenéia da cabeça de Zeus, dotado de tôdas as suas vir­tudes. O texto constitucional contém uma formulação dêsse direito que, a partir daí, nas outras gradações da estrutura normativa, é desenvolvido em seus detalhes.

Entretanto, a idéia de que o direito de ação constitui di­reito de petição é muito diferente da idéia de que a justiça

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seja direito de petição. O direito de petição é o que o autor possui; a justiça, porém, não só pertence ao autor, mas tam­bém ao réu e ao terceiro que se acha ligado, por interêsse, ao primeiro ou ao segundo. O que eu acreditei é que o direito de petição é o estatuto do autor, ao passo que a garantia do processo é o estatuto do réu. Esta última é, também, de certo modo, uma modalidade de petição, mas dotada de um caráter mais amplo: petição e formas de defesa em juízo. Se me perguntassem de onde extraio tóda a sua estrutura normativa processual, eu responderia que seu primeiro grau se encontra no texto da Constituição; na verdade, porém, tanto a Cons­tituição, como a lei, como a sentença contém, antes do seu texto dispositivo, uma série de pressupostos dogmáticos, que são, lógica e historicamente, anteriores a ela. Quando, na Declaração de Filadélfia e nas Constituições que seguiram seu estilo de fazer com que as páginas sempre emocionantes de um preâmbulo precedessem o texto, se promete justiça para todos os homens que queiram habitar êsse solo, não se con­sagra nma norma propriamente dita: firma-se uma premissa que é como que um pressuposto dogmático da Constituição. O constituinte se limita a assumir um compromisso para con­sigo mesmo, ao prometer justiça no preâmbulo, já que com essa promessa fica obrigado a consagrar, no texto dispositivo da Constituição, um regime de justiça e de Estado de direito. Daí em diante, corresponde ao legislador a continuidade de sua ação e aos juizes as decisões particulares. Mas a premissa que eu assentei é que o direito de ação, não a justiça, emana do preceito constitucional. A justiça é um alvo para o qual aponta todo o ordenamento jurídico. Um Estado de direito não pode ser concebido sem uma administração de justiça soli-

• damente estruturada, apta para cumprir seus fins. Mas o que eu afirmei é algo diferente.

]: claro que, para mais de uma pessoa, minhas propo­sições partem do direito natural e, para outras, da experiência histórica. Se, porém, a esta altura, ao dar minha resposta a

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sagazes manifestações do Presidente e Diretor desta casa de estudos eu descambasse em uma polêmica entre o historieis­mo e o direito natural ocorreria algo terrível: ao finalizar, estaríamos recém no início. Peço desculpas por flanquear, devido à imposição das circunstâncias, a responsabilidade dêste tema, talvez o mais grave e mais profundo do direito. Per­mito-me, contudo, realçar, porque é na verdade comovedor, que, nesta classe de reflexões, quando pensamos estar con­cluído um pensamento, acontece que êle recém se está ini­ciando.

Desejaria dizer, apenas, duas palavras, já que esta é minha última aparição em Fúblico, no México, nestes cursos de mverno.

Nos primeiros dias de minha permanência n.este país, experimentei tal sentimento de admiração e de entusiasmo por seus homens e por suas coisas que, parafraseando uma sentença que me era familiar, pedi aos mexicanos que me ajudassem a olhar. Devo reconhecer que, de fato, êles me ajudaram. Agora, porém, teria que lhes pedir que me aJU­dassem a não esquecer.

Foram muito profundas as emoções que senti. Como­veu-me a extraordinária envergadura intelectual dos homens desta casa de estudo; emocionou-me a fidelidade com que um público, excepcionalmente afetuoso, me acompanhou e que foi crescendo na mesma medida em que eu acreditava que devia ir diminuindo; tocou-me, sinceramente, o acúmulo de atenções, de bondades, de generosidade. A própria sessão desta tarde - que, de nenhuma forma, interpretei como uma descarga de metralhadora, mas, ao contrário, como a mão mais afetuosa que se estende, càlidamente, a um homem, para que êle possa seguir o seu caminho de estudo e de trabalho -comoveu-me de modo tão profundo que seria injusto para com meus próprios sentimentos se não dissesse, em sinal de despedida, minha mais sincera palavra de gratidão.

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O Sr. Presidente e Diretor desta Escola disse que me convidou cumprindo um mandato. Mandato quer dizer, eti­molõgicamente, a mão dada. Ofereço-lhe a certeza, Sr. Pre­sidente, de que a vibração e o calor de sua mão dada perma­necerão, por muito tempo, na palma da minha.

Desejo dizer, além disso, respondendo a tanto afeto e a tanta generosidade, dirigindo-me desta vez ao público que me escuta, que levo desta terra, de seus homens, de sua história, de seu presente e de seu futuro uma expressão de grandeza realmente admirável. Tenho, também, a ilusão de que, na modestíssima medida de minhas fôrças, servi aos interêsses desta casa. Poderia quase dizer que tenho a ilusão de que isso não seja ilusão.

E como última palavra, como definitiva expressão de afeto e de sinceridade, poderia dizer, como na despedida do madrigal: Não te digo adeus, porque tu vais comigo. (Aplausos muito prolongados).

O Sr. Presidente da Mesa-Redonda, PROFESSOR VIRGÍLIO DoMINGUEZ - Sr. Doutor EDuARDO J. CouTURE. Em nome da Universidade Nacional Autônoma do México e em nome, especialmente, da Escola N acionai de Jurisprudência, quero agradecer-lhe por sua brilhante participação nos cursos de inverno, em suas duas fases constitutivas, tanto no ciclo rela­tivo à teoria da boa-fé no processo civil, como nas três sessões em que examinamos o tema da interpretação e da integração das leis processuais.

Concedeu-nos o senhor suas luzes de brilhante jurista. Conhecíamo-lo bem, no México, por suas obras; pràticamente, tôdas elas foram lidas por nós. Muitas vêzes, porém, o orador,

• o professor, o catedrático não correspondem ao escritor. No seu caso, porém, se o escritor era brilhante e o jurista pro­fundo, o professor e o orador os superaram. Sua simpatia pessoal e sua compreensão constituem algo que nos deixa, pro­fundamente, reconhecidos. Creio que o senhor, Professor

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CouTURE, foi a nota mais alta dos cursos de inverno de 1946 e 1947. Quando nos falava, em seus Fundamentos de De­recho Procesal Civil, sôbre o direito processual hispano-ame­ricano, acolhíamos essa tese com algumas reservas. Mas, quando existem processualistas da envergadura de EouAnno J. CouTunE, temos direito a esperar que algum dia exista, de fato, um direito processual hispano-americano e que algum dia a ciência processual moderna, com o passar dos anos, se transplante do velho continente para a América.

Doutor CouTURE: Segundo deliberação tomada, no dia de ontem, com a concordância do Sr. Reitor, decidimos no­meá-lo professor extraordinário da Escola Nacional de Juris­prudência. Devido a atraso que não nos pode ser atribuído, o calígrafo não pôde terminar o documento respectivo. Re­ceba-o, contudo, simbolicamente e saiba que encerra- o cari­nho da Congregação, dos professôres, dos alunos da Escola Nacional de Jurisprudência e de todos aquêles que, no Mé­xico, se interessam pela ciência do direito. (Aplausos).

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS

1 - PRocEsso E coNDUTA - KANT insinuou, de modo sagaz, a diferença que existe entre direito e conduta.1 Con­duta é honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tri­buere. Direito é honeste vive, alterum non laede, suum c ui que tribue.

Os três primeiros preceitos constituem ação. Os três se­gundos são normas. Ser virtuoso, não causar danos e retri­buir são formas de vivência. Sê virtuoso, não causes dano, retribui são proposições normativas. Não matarás é uma norma; matar é uma conduta. Castigarás ao que mata é uma norma; castigar ao que mata é uma conduta.

O direito é as normas em sua relação com a conduta. A ciência do direito é o ramo da cultura que aspira a conhecer as normas jurídicas. A conduta é direito enquanto pode ser avaliada de acôrdo com as normas. E quando a norma não julga, expressamente, a conduta é porque essa conduta é lí­cita e, em conseqüência, jurídica (rectius - não anti-jurídi­ca), conforme o princípio de liberdade, segundo o qual é juridicamente permitido tudo aquilo que não está juridica­mente proibido.

Não existem atos jurídicos neutros, como foram chama­dos. Os atos são juridicamente permitidos ou juridicamente proibidos. Os atos juridicamente impostos são atos juridica­mente permitidos, de conformidade com a proposição que mais tarde será formulada, sem a faculdade de omiti-los. 1<: claro que na conduta humana tôda omissão é possível, in­clusive a omissão no cumprimento do dever. Mas, essa

1. KANT, Introducción o. la teoria dei dnecho, trad. do alemlo e introduçi() por FELIPE GoNZALEZ VlCEN, Madrid, 1954, pág. 95.

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omissão possível é anti-jurídica, isto é, contrária à norma que determina a conduta e, como tal, impôs ou faculta a outrem punir aquêle que incorreu em omissão.

O processo é a conduta determinada na norma para o caso de que alguém deixe de cumprir a conduta imposta por outra norma. Por outras palavras: é obrigar quem omitiu a conduta devida a que sofra as conseqüências da omissão de sua conduta. Segundo o exposto, em linhas gerais, o pro­cesso civil é conduta de realização facultativa; o processo penal é conduta de realização obrigatória.

O direito pode realizar-se sem o processo e costuma rea­lizar-se sem o processo. Chama-se realização espontânea do direito à conduta adotada dentro daquilo que é juridicamente permitido, seja ela imposta ou não; e realização coativa do direito à conduta mantida através do processo. "Ü processo não é o único meio de realização coativa do direito. Os atos legítimos de auto-tutela, direito de retenção, greve, legítima defesa, o demonstram.~ 1!:, porém, sem dúvida, o mais im­portante dos meios de execução coativa do direito.

Realizar espontâneamente o direito é não só fazer, sem coação, aquilo que é juridicamente impôsto, como também aquilo que não é juridicamente impôsto. 3 Nesse caso, reali­za-se, de modo espontâneo, o direito de liberdade.

Realizar coativamente o direito é respeitar a conduta atribuída ou ordenada para que, dentro da relatividade das coisas humanas, as previsões normativas se cumpram de modo efetivo, seja in natura, seja mediante substitutivos mais ou menos idôneos.

A fórmula de norma jurídica

dado A (hipótese) deve ser B (conduta)

2. ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Proceso, autocomposición, autodefensa, Mé· xico, 1947, pág. 18.

8. Assim, claramente, LLAMBIAS DE AzEvEDO, Eidética y Gporética del d~· recho, B. Aires, 1940, pág. 96.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 157

coincide com a nonna moral e, também, com os usos sociais. Em troca, a estrutura de norma jurídica

dado A deve ser B; e se não o fôr deve ser C (coerção)

inclui o novo elemento C (coerção), que já não é próprio da norma moral, nem dos usos sociais, que têm sanções, mas que não têm formas materiais de realização coativa.

O esquema de norma jurídica

dado A deve ser B; e se não o fôr deve ser C; prévio P (processo)

inclui um novo elemento que estabelece que não se pode che­gar à coerção sem P (processo) .

Não sendo o processo civil de realização obrigatória, não se pode afirmar que P (processo) integre, necessària­mente, a norma jurídica; pode, contudo, afirmar-se que a integra potencial-necessàriamente.

Potencialmente, porque o titular de um direito sempre pode recorrer ao processo, se o deseja; necessàriamente por­que não pode recorrer à coerção sem recorrer ao processo.

2 - CIÊNCIA E TÉCNICA no PRocEsso - A ciência do processo não é só a ciência das petições, das provas, das ape­lações, das execuções, das formas e dos prazos. 4 Seria difícil construir uma ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindo-se, apenas, dêsses elementos. Antes, po­rém, de chegar a êles, a ciência do processo necessita assen­tar uma série de proposições de conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência - o processo - não pode ser con­cebido, nem chegar a ser realizado .

4. Cfr. IBA&Ez DEL ALDECOA, Meditaciones sobre la cientificidad dogmática del derecho procesal~ no volume do Instituto Espanhol de Direito Processual Actas del I Congreso Nacional de DeTecho Procesal1 Madrid, 1950. logo após reedi­tado em Buenos Aire:~, no ano de 1954.

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158 EDUARDO J. COUTURE

Os prazos, as fonnas constituem regras técnicas e não regras de ciência. fute outro tipo de proposições, ao contrã­rio, constitui as premissas da ciência do processo. Ao passo que a regra de ciência procura o conhecimento acêrca da­quilo que um objeto é, as regras técnicas constituem, apenas, meios para a realização de um fim.

A ciência do processo não é, unicamente, uma disciplina do ser ontológico do processo, como, também, uma disciplina do dever ser axiológico do mesmo.

Apenas neste campo, muito restrito, das regras técnicas e da garantia de seus fins sociológicos, caberia a afirmativa, mais metafórica do que científica, de que o jurista é um engenheiro social.5

Apenas neste campo, muito restrito, das regras técnicas impostas ao legislador para assegurar a justiça; e ao juiz, para assegurar o cumprimento da lei. Mas, nem o juiz, nem o legislador, nem o constituinte se podem afastar de certos postulados que são verdades de razão, verdades de ciência ou verdades de experiência, sem os quais não só se frustra o pro­cesso, como também o direito, a justiça e os outros valores juridicos. Em última análise, há sempre um momento em que o direito pode sucumbir ante o processo. 6

Sem o propósito de esgotar a nominata de regras ló­gicas, ontológicas e axiológicas inerentes à ciência do pro­cesso e à interpretação das leis processuais, eis aqui algnns exemplos ilustrativos.

3 - PRoPOsiçõEs LÓGICAs oo DIREITO PROCESSUAL - Os princípios da lógica juridica7 são aplicáveis à ciência do pro-

5. PouND, The lawyer as a social engineer~ in ''Joumal of Poblic Law .. da Emory Law School, Georgia, 1954, pág. 292.

6. SAITA, La tutela del diritto nel proceso, in Atti del Congresso di Diritto Processuale Civile, Pádua, 1953, pâg. 22.

7. Veja-se, especialmente, GARCIA MAYNEZ, Introducción a la lógica jurl­díca, México, 1951.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 159

cesso. As proposições de lógica geral se tornam proposições lógico-processuais quando se aplicam ao objeto-processo. Assim:

a) Exercício do direito. A parte que tem direito a de­mandar tem, também, a faculdade de não o fazer.

Isso acontece porque todo direito é de exercício faculta­tivo. Se não o fôsse, seria dever. Em matéria civil, e em particular no direito privado, a ação é concebida como uma faculdade. O titular do direito é livre para exercer ou não essa faculdade. A situação é distinta em matéria penal, em alguns casos de direito de família e em alguns de direito do trabalho.

b) Cumprimento do dever. A parte que tem o dever de demandar tem, também, o direito de fazê-lo, mas não de o omitir.

Se o cumprimento de um dever não fôsse acompanhado do direito de exercê-lo, o dever deixaria de ser dever, por estar privado do meio necessário para cumpri-lo.

c) Exercício da defesa. A parte que tem o direito de defender-se tem, também, a faculdade de não o fazer.

A defesa, como a ação, é um direito. Rege-se, pois, pelo princípio lógico que inspira à proposição a). Aquêle que não exerce seu direito de defender-se atém-se às conseqüências, como se estabelece na proposição e).

d) Omissão de cumprir o dever. conduta que a ·lei lhe impõe sofre as omissão.

A parte que omite a conseqüências de sua

Essas conseqüências podem ser penais, como no delito • de omissão de obediência ao juiz; civis, como na reparação

de danos; administrativas, como nas sanções disciplinares. Se a conduta legalmente imposta pudesse ser omitida sem conseqüências, não seria conduta imposta, mas sim regra optativa ou norma meramente moral.

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160 EDUARDO J. COUTURE

e) Omissão de exercer o direito. A parte que omite a conduta que a lei lhe faculta aceita as conseqüências de sua omissão.

Ao contrário da omissão do dever, que acarreta prejuízo, a omissão de exercer o direito, nonnalmente, supõe, apenas, privação de benefício. A conduta de quem omite um dever é anti-juridica. A conduta de quem omite o exercício do direito não é anti-jurídica. É um ato de estimativa de parte do titular do direito, que o exercitará somente na medida de seu interêsse material ou moral.

f) Eficácia das provas. Duas provas eficazes que de­monstram o contrário não podem ser válidas em um mesmo tempo e lugar.

~

De acôrdo com o princípio lógico de contradição, uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Se os do­cumentos, por exemplo, forem sucessivos, o segundo preva­lece sôbre o primeiro. Se são de lugares diferentes, cada um valerá aquilo que determinar a lei de sua origem. Mas, no mesmo lugar e ao mesmo tempo, sua contradição não permite conferir-lhes, simultâneamente, validade. 8

As duas provas devem ser igualmente eficazes. Se não o forem, a mais eficaz prevalece sôbre a outra.

g) Eficácia da coisa julgada. Duas sentenças contrárias passadas em julgado não podem ser válidas em um mesmo tempo e lugar.

Também por aplicação do princípio lógico da contradi­ção, uma conduta não pode ser, ao mesmo tempo, permitida e proibida. O que uma sentença declare não pode ser vàli-

8. O art. 356, do Código de Processo Civil do Uruguai, estabelece: "De dois documentos contrários apresentados por uma mesma parte, sôbre um mesmo ne­gócio, nenhum dêles fará fé", O requisito de que sejam apresentados pela mesma parte é desnecessário. Invalidar-se-iam mesmo se íóssem apresentados por duas partes contrárias.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 161

damente negado por outra. Requer-se que passem em jul­gado, porque sem êsse requisito a conduta determinada nas sentenças não é exigível e não vale, ainda, como norma de conduta.

4 - PROPOSIÇÕES ONTÓLÓGICAS DE DIREITO PRÓCESSUAL -

A ciência do processo tem, por sua vez, proposições ontoló­gicas, afirmativas a priori, inerentes à sua essência. São ra­zões de ser da conduta jurídica ínsitas à própria substância do processo.

Ao contrário, porém, das proposições lógicas, que são, imicamente, verdades de razão, essas são, ao mesmo tempo, verdades de razão e de experiência. Foram objeto de expe­riência secular e passaram a integrar o patrimônio de nossa cultura.

Eis aqui, a título de exemplo, algumas delas:

a) Obrigação de demandar. Ninguém pode ser obriga­do a demandar em assunto de interêsse privado.

Essa proposição constitui não só um preceito de aplica­ção do direito vigente como uma advertência ao legislador. O preceito constitucional que ampara a liberdade9 assim o determina.

b) Direito a demandar. A ninguém pode ser negado o acesso ao tribWUll.

O direito de demandar é inerente à pessoa hurnana10

:É, inclusive, inerente à pessoa humana dos que não têm razão

9. Const. do Uruguai, art. 10: "As ações privadas das pessoas que de nenhum modo atingem a ordem pública estão fora do alcance dos magistrados". Cfr. RUl BARBOSA, Nadie puede ser obligado a demandar en juicio, publicado na "Revista de Derecho, Jurisprudenda y Administración", Montevidéu, 1953, t, 41, pág. 257. 2sse trabalho é um estudo que permaneceu inédito até a sua publi­cação na aludida revista. Foi escrito por RUI BARBOSA, como trabalho de estu­tlante da Faculdade de São Paulo, onde se conserva entre 01 manuscritos dos alunos daquele estabelecimento.

10. Reportamo-nos ao que ficou acentuado em El debido proceso y los derechos humanos, in "La Ley", t. 72, pág. 802, e in "Revista de Derecho, Jurisprudencia y Administradón, t. 52.

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162 EDUARDO J. COUTURE

para pretender algo da jurisdição contra alguém. Seria me­lhor que assim não acontecesse, se possível fôsse. Mas, como se demonstrou, no processo ninguém tem oficialmente razão, até a sentença definitiva. De outro lado, a própria estrutura da ordem jurídica impõe que assim seja, pois, como bem se disse, os órgãos legislativos não podem proibir o que permi­tem, nem permitir o que proíbem.

c) Direito de defesa. Ninguém pode ser condenado sem ter oportunidade de ser ouvido.

Se a C (coerção) não se pode chegar sem P (processo), a P não se pode chegar sem D (defesa). Todo juízo é relação de dois ou mais têrmos. Sem defesa fica omitido o conhe­cimento de um dos dois têrmos do juízo. O juiz que não ouve a defesa e aceita a ação não julg~r: somente confirma. Apenas julgará, plenamente, depois de haver conhecido a defesa. No processo dialético, a ação é somente tese e a defesa antítese. À síntese somente se chega depois de conhe­cer a ambas.

A defesa é uma necessidade lógica (necessitas defensio­nis), mas, sob o ponto de vista técnico, é configurada como uma possibilidade, uma oportunidade. De acôrdo com o pre­ceito anterior, aquêle que tem o direito de se defender possui, também, a faculdade de não o fazer, aceitando as conseqüên­cias de sua omissão.

d) Auto-produção de prova. Ninguém pode fazer, por si mesmo, prova em seu favor.

A prova é a confirmação de uma proposição através de uma coisa ou fato tomados à realidade. Se aquêle que tem de demonstrar a verdade de sua proposição pudesse, por si mesmo, criar a realidade apta a justificá-la, o juízo careceria de razão suficiente. Nesse caso, a proposição e a razão da proposição teriam a mesma origem: a vontade do proponente ou postulante. Julgar-se-ia a proposição pela vontade e não pela realidade exterior ao proponente.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 163

Diversa é a situação da prova em contrário, porque, neste caso, a proposição não tem a mesma origem da demonstra­ção. Ou a vontade que inspirou a proposição se modificou, ou a demonstração corresponde a uma circunstância mais forte que a proposição e, em conseqüência, serve para des­truí-la fazendo prevalecer a verdade.

e) Juizo do juiz. Ninguém pode ser juiz em causa própria.

Todo juízo supõe uma razão idônea. A razão se torce, face àquelas circunstâncias normalmente mais fortes que o próprio sentimento do dever. Julgar sob a pressão dessas circunstâncias é julgar sem razão, isto é, sob o império de fôrças mais poderosas que a razão.

O juízo em causa própria pode ser um juízo certo. O direito, porém, por tradição imemorial, não quer que se emita êsse juízo, ainda que seja certo.

5 - PROPOSIÇÕES AXIOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL -

As proposições lógicas e ontológicas se unem as proposições axiológicas. Estas dizem respeito à função do processo, ao seu dever ser como processo. São, também, como as propo­sições ontológicas, verdades de experiência e de razão.

Eis, aqui, como exemplo, algumas delas:

a) Conteúdo da sentença. A sentença que niio decide a causa niio é sentença.

O dever ser da sentença é decidir a causa. Se não a • decide, frustra o seu dever ser. Não vale como ato proces­

sual, mas sim como fato processual. O processo se decide por ato de juízo. Sem juízo, em sentido lógico, isto é, sem a asserção de que a tal objeto convém tal ou qual determi­nação, não há juízo em sentido jurldico, ou seja, atribuição

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164 EDUAJU>O J. COUTURE

de um direito ou imposição de um dever a um ou a mais de um sujeito.

Também ontologicamente, a falta de atribuição de um direito ou de imposição de um dever priva a sentença de sua condição de tal.

b) Coercibilidade da coisa julgada. A coisa julgada que impõe uma conduta é, necessàriamente, coercível.

A imperatividade própria do direito se torna efetiva atra­vés da imperatividade da coisa julgada. Privada a coisa jul­gada que impõe uma conduta de sua condição de exeqüibi­lidade, careceria ela de um de seus atributos essenciais. Ao mesmo tempo, privaria o direito da condição que o distingue da moral e dos usos sociais. •

Mas, o titular do direito de exigir uma conduta é livre para exercê-lo ou não, conforme já se expôs. A coerção cons­titui, apenas, uma eventualidade. O que pertence à axiolo­gia da coisa julgada é a sua coercibilidade, a sua idoneidade para tornar-se coercível. Tornar efetiva a coerção é uma mera faculdade do vencedor.

c) Coerção em espécie. A coisa julgada deve executar­-se em espécie, sempre que possível.

A execução visa à realização prática do direito. Essa realização só se produz quando a coisa julgada se torna efe­tiva através da conduta prevista. Essa forma de efetividade tem prioridade lógica sôbre qualquer outra forma de conduta substitutiva. A conduta substitutiva não constitui a reali­zação do direito decidido na coisa julgada, mas sim a reali­zação da norma subsidiária que tolera outra forma de exe­cução. Esta segunda norma não tem prioridade lógica, nem jurídica, sôbre a execução em espécie.

d) Dolo da coisa julgada. A coisa julgada obtida com dolo não é coisa julgada.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSV AIS 165

O dolo obsta o juízo, pois priva do conhecimento de um dos têrmos de comparação. Sem conhecimento dos têrmos o juízo não é juízo, nem a sentença é sentença.U

e) Eficácia da coisa julgada. A conduta determinada na coisa julgada prevalece sôbre a conduta determinada na lei.

Se a coisa julgada não prevalecesse sôbre a lei, as partes ficariam em liberdade para seguír discutindo o alcance da lei e com isso ficariam invalidadas tanto a coisa julgada como a lei.

E quando a coisa julgada é errônea e vai contra a lei? Prevalece a coisa julgada. Aqui começa o discurso final e imortal de Sócrates.l2

11. Reportamo-nos ao que dissemos em Rtt~ocación dtr los actos procesale.s fraudulentos, em Estudios de Derecho Procesal Civil, B. Aires, 1951, t. ! -El juez, las parte.s y el proceso, pág. 887.

12. "Cr~ que pode persistir, sem arruinar-se, aquela Cidade em que as decisões judiciais nada possam e em que os particulares as anulem e deponham a sua autoridade?" Critón, PLATÃO, Opera omnia, 50.

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I

A INTERPRETAÇÃO LITERAL DAS LEIS

(Notas para um Vocabulário de Direito Processual Civil)

Page 157: Interpretação Das Leis Processuais (1956)

r

l '

CAPÍTULO I

QUE :É UM VOCABULÁRIO JURíDICO?

1 - ADVERTÊNCIA - A interpretação das leis proces­suais, naturalmente, se vincula a todos os problemas lingüís­ticos e semânticos do direito. A chamada interpretação lite­ral nada mais é que a tarefa de extrair o sentido primário, externo, material das palavras que serviram para escrever a lei. Após a leitura dos vocábulos, vem o restante; mas todo êsse restante não surge - ou surge em um torvelinho ema­ranhado de idéias - se não houver uma avaliação clara e precisa de todos e de cada um dos têrmos do direito.

Aqui vão algumas notas - ainda preliminares - da obra, que estamos realizando, de escrever um Vocabulário de Direito Processual Civil.' Esperamos que a necessidade de finalizar outras tarefas não dilate por demais o trabalho pa­ciente de concluir êste livro, já avançado em seu caminho.'

2 - CoNCEITOS PRELIMINARES - A primeira observação que cumpre registrar assinala que aquilo de que, presente­mente, a ciência do direito processual necessita é de um vocabulário - e não de uma enciclopédia, nem de um dicio­nário, nem de um repertório, nem de um índice.

:É claro que seria melhor se existissem tôdas essas obras. Mas, de momento, ela pode existir sem as mesmas .

1. Cooperam conosco neste empreendimento RoBERTO Pmc, EDUARDO RoccA CoUTURE, ALEJANDRO ANDRÉ, BLAS ROSSI MASSELLA, PUBLIO VADORA, VICENTE CA'ITANEO, MOZART ViCTOR RUSSOMANO, ALCIDES MENDONÇA LIMA e GUILHERME SCHNABL.

2. A obra será publicada na coleçlo CUncia del Proceso~ do Editorial EJEA, de B. Aires.

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170 EDUARDO J. COUTt1RE

O direito processual civil tem, segundo os materiais de estudo de que dispomos até o presente, apenas os dicionários de RoussEAU e LArsNEY," de BrocHé - ambos, hoje em dia, de interêsse relativo - e o de PALLARES, 5 publicado recente­mente, ao qual aludiremos mais adiante.

Passaremos, inicialmente, a assinalar quais são os limi­tes de um vocabulário jurídico e qual a sua diferença com os outros gêneros análogos.

De certo modo, o vocabulário, o dicionário, a enciclo­pédia, o repertório e o indice procuram pôr-nos de acórdo sôbre a linguagem.

Esta é, como dizia PLATÃO no Crátilo, um órgão para comunicar algo sôbre as coisas. Um escritor assim a re-presenta: •

As coisa11

um outro

Com essa representação gráfica, exprime-se a idéia de que, em última análise, os acordos sôbre a linguagem consti­tuem fundamentos de relação dos homens acêrca das coisas.•

Mas, cada um dêsses gêneros procura o acôrdo de dife­rente maneira. Trataremos de precisá-lo, a seguir.

3 - VocABULÁRIO E ENCICLOPÉDIA - Ao contrário da enciclopédia, que é um repertório de vastas dimensões e que pretende entesourar todo o capital de idéias de uma ciência,

3. Dictionnaire théorique et pratique de procédure civile, comtnerciale~ criminelle et administrative, 8 vols., Paris, sfdata, mas, presumivelmente, editado nos fins do século XIX.

4. Dictionnaire de procédure civile et commerciale, 6 vols., Paris, 1866. 5. Diccionario de derecho procesal civil, México, 1952. 6. Bil'HLER, Teoria del lenguaje, trad. espan., Madrid, 1950, pág. !6.

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IN'l'ERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 171

o vocabulário, mais modestamente, só pretende recolher o significado essencial dos seus vocábulos básicos.

Enciclopédias jurídicas publicadas nos últimos tempos são a Encyclopedia of the Social Sciences,' o Nuovo Digesto Italiano,s o de ARANZADI 9 Prestam, ainda, valiosos serviços as anteriores de Frr.oMusr-GUELFr10 c a enciclopédia elementar de DEL GmnrcE.11

As enciclopédias atuais, seguindo a trajetória de sua fa­mosa antecessora do século XVIII,12 não se crêm obrigadas a definir os vocábulos escolhidos. Os norte-americanos não apreciam as definições. As obras de concepção latina são mais rigorosas no plano lógico e sistemático e encerram, fre­qüentemente, delimitações de conceitos. Mesmo que não con­tenham definições importantes, trazem descrições às vêzes sis­temáticas e unitárias de seus vocábulos ou conceitos. Mas, em todo caso, não é a precisão lingüística o seu motivo essencial.

O vocábulo é para a enciclopédia o que o livro escolhido é para a biblioteca; o que a sociedade é para a multidão; o que a espécie vegetal representativa é para o bosque. Uma enciclopédia é informativa; um vocabulário é formativo.

Com a enciclopédia, sabe-se; com um bom vocabulário, a prende-se a saber.

7. Dirigida por SELGMAN e JOHNSON, ed. The. Macmillan Co., 15 vols., Ultima reimpressâo, Nova Iorque, fevereiro, 1950.

8. Publicado sob os cuidados de D'AMELIO e AZARA, ed. Unione Tipografico - Editrice, 13 vols., Torino, 1937.

9. Diccion.ario de L~gislaciones1 13 tomos, Pamplona, 1951. 10. Enciclopedia giuridica, Nápoles, 1910.

11. Enciclopedia giuridica per uso delle scuole~ MiHio, 1896. 12. Como é sabido, a Encyclopedie nasceu com o propósito de DmEROT de

limitar-se a traduzir para o francês o Dicion4rio Britdnico de CHAMBF.R. Sua • importância cresceu no caminho. Apesar do seu tom - hoje moderado para

nossa mentalidade - foi considerada o antecedente ideológico da revolução: "Pela simples fôrça das idéias que marcham através dela, a Encyclopedie, desde o primeiro momento, é algo muito diferente de um dicionário: é a facçâo, a escola demolidora por antonomásia, o cavalo de Tróia inttoduzido na velha sociedade" (REINACH, DIDE:ROT, cit. BrANCO, VOLTAfR.E, DIDEROI', Pdginas escogidas, D. Aires, 1949, pág. XXXI).

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172 EDUARDO J. COUTURE

4 - VocABULÁRIO E DICIONÁRIO Não há, ainda, um acôrdo entre os lexicógrafos a respeito das diferenças existen­tes entre um vocabulário e um dicionário.

Em francês, dictionnaire é a obra ilustrativa; o vocabu­laire é, somente, o conjunto das palavras. Em inglês, existe uma distinção análoga entre dictionary e vocabulary. Para os italianos, porém, parecem ser sinônimos dizioiUlrio e voca­bolario, considerando-se artificial a diferença entre os dois têrmos.13

No idioma espanhol, nota-se a distinção francesa e in­glêsa. O dicionário, como a enciclopédia, é a obra de ilus­tração; o vocabulário é a obra em que se registram vocábulos, locuções verbais e modismos. Ninguém falaria, por exem­plo, de um vocabulário biográfico, n;m de um vocabulário enciclopédico, reservando-se para essas funções a denomina­ção de dicionário.

Esclareçamos, agora, êste ponto relativamente ao traba­lho que empreendemos.

Os dicionários podem ser de duas espécies: normativos e ilustrativos, também chamados integrais. O DiccioiUlrio de la Lengua Espaiiola, editado pela Academia Real Espa­nhola, 14 é um dicionário normativo. Fixa, obrigatoriamente, com autoridade, a acepção de um vocábulo. Se, em um lití­gio, surgissem dúvidas sôbre a significação de uma palavra, deveria ser preferida aquela que é aceita pelas autoridades do idioma, a não ser que, no tempo e no lugar da decisão, aquela palavra houvesse adquirido, de modo óbvio, outro significado diferente; ou que fôsse distinto o sentido que lhe conferem os que professam uma ciência ou arte conexasY

-13:-MIGLIOIUNI, Che cos'e un vocabolario1, Florença, 1951, pág. I. 14. Como é notório, êsse dicionário vem sendo publicado desde 1739;

sua última edição é de Madrid, 1947. 15. Isso por aplicação, sempre atua), do principio do Digesto: "Non exo­

pinionibus singulorum sed ex comuni usu nomina exandiri debent", L. XXXIII, tít. X, I. 7.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 173

Dicionários ilustrativos são os que carecem dessa auto­ridade.

Na língua espanhola, goza de particular acatamento, no campo jurídico, o até agora não superado dicionário de Escai­CHE.16 Existem, também, um dicionário de direito romano; 17

outro chileno;18 outro mexicano;19 outro espanhol, de afo­rismos e máximas;20 um vocabulário costarriqucnse.

O Rio da Prata proporcionou à ciência jurídica de fala espanhola vários dicionários relativamente modernos: o de Ramirez Gronda;21 o de Arturo Orgaz;22 o de Cabanellas23

e o de Caií.adas. 24

Nos últimos anos, acabam de ser publicados um Diccio­nario de Derecho Privado, lançado pelo Editorial Labor;25

na França, um Pétít Dictíonaíre de Droít, do Editorial DALLOz,26 e outro - de escassa significação - de PEaaAuo CHARMANTIER.'7 1!: famoso o Black's Law Dictíonary, com

16. Dit:cionario razonado de legidacidn y jurisprudencia, Paris, 1851; Madrid, 1872; Garnier, Paris, sfdat:a, em várias edições; illtimamente, com um Suple­mento de P1 e AasUAGA, 2 vo1s.

17. GUTIERREZ Al.VJZ, Diccionario de derecho romano, Madrid, 1948. 18. RISOPATRON, Diccions.rio rawnado de legislación y jurisprudencia cllile·

nas, 2 vols., Sant. do Chile, 1883. 19. HERRERA Al.ARCON, Diccionario mexicano de legis/acidn y jurisprudencia,

México, 1942. 20. LoPF~ DE HARO, Diccionario de reglas, aforismos 'j principias dei derecho,

2 vols., Madrid, 1924, e 1 vol., Madrid, 1943. 21. Diccionario ]uridico. Tabla alfabetica de palabms, locuciones, con­

ceptos~ principio.s, adagios y aforismos u.suales en la filusofía y ciencia dei derecho y en la legislación, 2.a ed., B. Aires, 1942.

22. Diccionario elemental de derecho y ciencias sociales~ 2.a erl., revista c aumentada, Córdoba, 1941.

23. Diccionario de derecho usual, B. Aires, 1946. Esta obra acaba de ser reeditada em três volumosos tomos, em .B. Alres, 1955.

24. Diccionario jurldico "Forum'", B. Aires, 1948. 25. 2 vols .• Barcelona, 1950. A obra aparece sob a direção de IGSACIO DE

CAJSo ROMU.O, FRANCISCO CERV.EZA e JIMÍNEZ ALFARO, Leva, como subtltulo, Derecho Civil, común y foral. Derecho mercantil, derecho notarial y registra/. Derecho canônico.

26. Publicado com a colaboração de REAu e RONDEPIERAE e c.:om o concurso c.le BoulutEL, ESMEIN (Maurice), l.nOLLE e SouMtEN, Paris, 1951.

27. Pétit dictionnaire de droits Paris (Librarie Générale de droit et de jurisprudence), sjdata.

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174 EDUARDO J. COUTURE

múltiplas edições, a última das quais contém cinqüenta mil definições legais.

Com relação ao direito processual civil, apareceu, recen­temente, no México, o Diccionario de Derecho Procesal Civil, do professor EDUARDO PALLARES, já mencionado. Utilizare­mos êsse texto para apontar as diferenças existentes entre êle e a tarefa que, de nossa parte, nos propusemos.

De imediato, cabe acentuar que o dicionário aludido -excelente como esfôrço informativo - carece de definições. O autor não se achou na obrigação de concretizar, em uma breve sentença, o conceito que tem de cada um dos institu­tos enunciados em seu trabalho, preferindo encaminhar o leitor para as passagens mais expres~ivas das o bras gerais ou especiais que a bordam cada tema.

O vocabulário, contràriamente, contém, apenas, defini­ções. Deixa para outras obras a tarefa de examinar todos os elementos acidentais de um instituto ou sua inclusão den­tro do sistema jurídico de que faz parte. Não pode, contudo, prescindir de determinar, de modo breve e ngoroso, a sua natureza jurídica e o seu conteúdo essencial. &se resultado não pode ser alcançado sem uma definição.

A finalidade do vocabulário é, por conseguinte, definir. Sob êsse prisma, apesar do plano nem sempre elevado sôbre o qual se apoia, a obra representativa dos últimos tempos é o Vocabulaire Juridique, dirigido por HENRI CAPITANT.28 O sábio mestre colocou o seu trabalho sob o amparo do dístico de BENTHAM: "As palavras da lei devem ser pesadas como se fôssem diamantes", apontando assim, poeticamente, o alcance da tarefa que atribuiu aos seus numerosos colabora­dores?•

28. Vocabulaire juridique redigt! par des Professeurs de Droit~ Magistrats et des Jurisconsultes sous la direction de HENR.I CAPITANT, Paris, 1936.

29. Colaboram nessa obra cento e três professóres que constituem, virtual­mente, a equipe superior das universidades francesa!!.

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INTERPRETAÇÃO DAS LEIS PROCESSUAIS 175

Existem dicionários com definições, como acontece com a grande maioria de dicionários dêsse ramo da ciência. O de PALLARES, porém, delas carece, e nem por isso deixa de merecer o nome que lhe foi dado por seu autor. O trabalho que êle empreendeu deve ser complementado e continuado.

Em nossas bibliotecas, abundam os dicionários estran­geiros de ramos especiais do direito; aqui, entretanto, não se trata de enumerar, mas sim de assinalar os caracteres dife­renciais do trabalho que empreendemos.

5 - VocABULÁRIO E REPERTÓRIO - Ao passo que o voca­bulário tem um conteúdo rigoroso e delimitado, um repertó­rio é, apenas, um conjunto de trabalhos, tais como os ofere­ceu a vida, sem responder a um plano sistemático. O voca­bulário deve fixar, previamente, para si mesmo, um contôrno e nêle incluir tudo aquilo que êsse contôrno abarca. Nada importante deve faltar e nada supérfluo deve ser incluído. O repertório, ao contrário, é mais um depósito de experiên· cia do que um esfôrço de ciência.

Julgamos que se pode apontar, como representativo da ciência jurídica em idioma espanhol, o Repertório de la Re­vista Jurídica "La Ley" .30 Sem excluir outros, muito meri­tórios e talvez com maior valor de antigüidade, como a pró­pria Jurisprudencia Argentina, ou a Revista de Derecho e Jurisprudencia chilena, a Revista Forense, a Revista dos Tri­bunais ou a Revista Jurídica brasileiras, assim como as que se publicam em nosso país, que são várias, de importância (entre elas La Revista de Derecho, Jurisprudencia y Adminis­tración, a mais antiga de nosso idioma na América, pois apa-

• 30. Essa publicação, conhecida de todos os juristas de idioma espanhol, aparece em Buenos Aires, desde 1936; edita, diàriamente, um jornal e, anual· mente, quatro grossos volumes, nos quais sa.o reimpressos os materiais publi· cados no jornal, atingindo - nos fins de 1952 - a sessenta e oito volumes; o Repertório prOpriamente dito é um índice que alcança, na atualidade, treze tomos em quatorze volumes. Nêle se acha, cuidadosamente, registrado todo trabalho, seja qual fór a sua índole, contido nos volumes.

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176 EDUARDO J. COUTURE

rece desde 1893) - devemos conferir a La Ley um valor excepcional no campo da jurisprudência, da doutrina, da in­formação bibliográfica e revista de revistas nos últimos decênios.

Um repertório, contudo, tal como dissemos, surge pela obra indiferençada dos magistrados em suas sentenças, dos colaboradores em suas contribuições doutrinárias e do pessoal permanente de redação nos demais setores.

O vocabulário, contràriamente, requer unidade de re­dação ou, ao menos, unidade de revisão. 31 Em nosso caso, consideramos indispensável assumir a responsabilidade de definir e de revisar, pessoalmente, tôdas as outras partes da obra. As inclusões e exclusões não si\o frutos do acaso, mas de decisão refletida. :É claro que, como todo autor, o reda­tor de um vocabulário tem direito a equivocar-se. Ao que não tem direito é não formular o problema de saber se um vocábulo ou conceito deve ou não aparecer no seu livro; se uma definição comumente admitida é ou não correta; se as restantes referências que aparecem ao lado de cada expres­são são exatas.

Um vocabulário não é, pois, uma justaposição. :É uma unidade sistemática, cujas partes se unem por meio de liga­mentos internos, invisíveis ao leitor, mas inflexíveis para o autor.

6 - VocABULÁRIO E ÍNDICE - Publicou-se, recentemen­te, uma ótima obra chilena que nos pode servir de exemplo para determinar as diferenças entre o vocabulário e o índice.32

Apesar de sua denominação, êsse livro é um índice com­pleto, uma nominata alfabética de matérias. O autor da obra mencionada havia começado por sublinhar as paiavras

~1. Veja-se MrcuORINI, Che cos'e un vocabulário~ cit., pág. 83. 32. FuEYO LANERI, Repertorio de voces y giros del Cddigo Civil Chileno~ 3

vols., Sant. do Chile, 1952.

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principais contidas no precioso léxico que ANDRÉS BELLO

soube empregar no Código Civil do Chile.33 A medida, po­rém, que avançava em seu trabalho, foi compreendendo que não podia fazer exclusões injustificadas. Sua tarefa final consistiu em nada menos que três tomos, com um conjunto aproximado de quatro mil vocábulos.

Excluem-se, apenas, de sua obra, os artigos, as conjun­ções e algumas partes da oração absolutamente desnecessá­rios para a interpretação do texto. Nem adjetivos, nem ver­bos, nem advérbios escaparam à sua catalogação escrupulosa.

Em oposição ao índice, o vocabulário não procura esgotar o conjunto de vocábulos de um ramo do direito. Como mais adiante se verá, a tarefa de seleção é uma das mais difíceis dessa emprêsa. Mas, um vocabulário não pre­cisa abranger a plenitude do léxico.

Por outro lado, como nos casos anteriores, tampouco o índice encerra definições; contràriamente ao dicionário ou à enciclopédia, que têm noções embora não tenham defini­ções, o índice encerra, apenas, uma seleção de vocábulos or­denados alfabeticamente, com remissão aos lugares do texto em que se acham situados.

O vocabulário que nos propomos realizar coincide com o índice, nesse aspecto, pois conterá uma remissão aos arti­gos nos quais cada vocábulo foi utilizado;34 não é êsse, po­rém, seu conteúdo essencial, assim como nem todo vocábulo do código se encontra, necessàriamente, nêle inserido.

7 - QUE É UM VOCABULÁRIO JURÍDICO? - Responda­mos, pois, à pergunta inicial.

Um vocabulário jurídico é, em seu programa m1mmo, um conjunto dos vocábulos próprios e essenciais de um ramo d~ ciência jurídica ou do direito em sua totalidade.

33. Diz LIRA URQUIETA, Andrés Bello, México, 1948: - "Durante vinte e cinco anos BELLO trabalhou, incansàvelmente, em preparar c redigir o Código Civil chileno. Seus sólidos conhecimentos gramaticais e literários, BELLO os colocou a serviço de sua tarefa jurldka, com êxito indiscutido" (págt. 184 e 190).

34. Infra, 15.

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&se conjunto tem por objeto fixar o significado dos têr­mos que se encontram insertos no direito positivo vigente em certo país, em determinado momento, ou na linguagem científica dos que se servem dêsse direito positivo para sua aplicação prática e suas meditações especulativas. 35

A significação se estabelece através de definições. Uma definição é, em si mesma, uma delimitação exata, clara, pre­cisa e, tanto quanto possível, completa do sentido de uma palavra ou da natureza de uma coisa, representada por um grupo de palavras.

A velha sabedoria já advertiu que, em direito, tôda de­finição é perigosa. Mas, há, também, na vida muitas outras coisas que são perigosas e que é necessário usar ou enfrentar. Quem forjou o aforismo romano não J.IÔde deixar de pensar, sem dúvida, que, por mais perigosa que seja a definição, muito mais perigoso é não ter definição nenhuma.

Dos dois males, deve adotar-se o menor. Para o espí­rito culto, uma definição é a última etapa de uma longa jornada de meditação. Chega-se a ela como à meta final. Só é possível atingi-la depois de haver coberto tôdas as fases do saber analitico. A síntese que, em essência, constitui tôda definição somente se chega depois da análise. Não é pos­sível concretizar senão depois de analisar e depurar.

O grave, entretanto, é que, para o leitor, e também para o próprio autor, a definição já escrita se converte, de ime­diato, em um simples ponto de partida. A critica deve, logo após, pousar sôbre ela para aperfeiçá-la. A essa crítica se sucederão novas criticas. E só mediante êsse constante pro­cesso de aperfeiçoamento paulatino se constitui uma ciência. Esta não é senão um arsenal de conceitos. &ses conceitos se re­velam em definições. Um vocabulário reune a essas definições.

Convém, pois, começar algum dia. Quanto antes che­gue êste dia, melhor será.

35. FIDRELLI, Yocabolari giuridici fatti e da fare, em "Rivista italiana per le acienze giuridiche", 1947, pág. 293, assinala as habituais deficiências dessa tarefa nas ob1·as de mais uso.

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CAPÍTULO II

LEVANTAMENTO LEXICOGRÁFICO DE UMA Cr:t?.NCIA

8 - 0 PROBLEMA DO LEVANTAMENTO - Todos OS lin­güistas se formulam o problema do levantamento lexicowá­fico de seu idioma.

O dicionário de Oxford, considerado a obra mais wan­diosa de todos os tempos e de tôdas as línguas, contém qua­trocentos mil vocábulos, motivo por que encabeça, junta­mente com o dicionário alemão de Grimm, a categoria dos dicionários exaustivos. O da Academia Francesa tem, ao contrário, apenas trinta e sete mil verbetes, adquirindo, assim, o caráter de dicionário seletivo. Entre uns e outros, o da Academia Espanhola tem, atualmente, setenta e três mil vo­cábulos (e não sessenta e sete mil, como afirma MENENDEZ PmAL36) escapando, assim, à classificação de seletivo e exaustivo.

A primeira tarefa a ser abordada no início de um voca­bulário é, pois, a de saber quantos e quais as classes de vocá­bulos a obra deve abranger.

De nossa parte, resolvemos o problema nos têrmos que serão mencionados a seguir.

9 - CIÊNCIAs NATURAIS E ciÊNciAS CULTURAis - A tra­dicional distinção entre ciências da natureza e ciências da cultura oferece um esclarecimento inicial no problema do levantamento lexicográfico.

86. CASARES, Introducción a la lexicografia moderna, Madrid, 1950, plig. 17.

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Os vocábulos da ciência da natureza representam ou de­signam coisas que estão dentro da vida. Os vocábulos da ciência da cultura representam coisas que estão no espírito dos homens. Por muito difícil que seja a delimitação dos primeiros, sempre será menos difícil que a delimitação dos segundos.

O flogisto imaginado por STHAL no século XVIII pare­ceu ser, em si mesmo, um fato da natureza. A demonstra­ção do seu êrro fêz com que o vocábulo passasse para as ciên­cias da cultura. Estas contêm, assim, não somente as inven­ções, mas também os erros humanos. Religião, poesia, ficção, princípios, teoremas, sêres imaginários formam parte do grande patrimônio da cultura da humanidade. :E:sses fe-• nômenos crescem, constantemente, não só na apreensão dos fenômenos da natureza como, também, por sua própria capa­cidade de invenção.

Convenhamos, pois, em que o léxico do direito, perten­cente às ciências da cultura, é ilimitado. O problema a re­solver é o de sua apreensão e, necessàriamente, o de sua de­limitação.

Não se deve esquecer, além disso, que a linguagem do direito processual é a linguagem da prova e, como disse um escritor,37 é possível provar qualquer coisa se as palavras que utilizamos não estiverem claramente definidas. HuMPTY­-DUMPTY, o personagem famoso de Alice in Wonderland, re­solvia êsse problema . difícil sustentando que as palavras tinham o valor que êle lhes conferia.

Devemos, pois, ter consciência dessa primeira dificulda­de e tratar de superá-la, distinguindo a linguagem da ciên­cia, de si mesma mais ampla, e a linguagem do direito posi­tivo, necessàriamente limitada.

Assim o faremos, a seguir.

5'1. MAtsROIS, Un tJrt de vivre, pág. 23.

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10 - CIÊNCIA Do DIREITO E DIREITo PoSITIVó - Uma possibilidade mais concreta ainda de limitação de vocabulá­rio surge quando, dentro do campo de uma ciência, como a ciência do direito, se abarca um setor determinado, assim como acontece com o direito processual civil.

Essa delimitação reduz, sensivelmente, o número de vo­cábulos. Já não se trata de abranger tôda ciência, mas sim, apenas, um ramo dela. No direito processual, é claro, há têrmos peculiares e têrmos comuns a outras disciplinas. Assim, jurisdição é vocábulo comum ao direito constitucional e ao direito administrativo; pena ou prisão são comuns ao direito penal; penhor é comum ao direito civil; tributo é comum ao direito fiscal; morte é comum à medicina legal; falência é comum ao direito comercial, etc. Apesar, contu­do, dêsses freqüentes contactos, sempre é mais fácil o manejo de um ramo do direito que o da totalidade do mesmo.

Mas, ainda se torna mais precisa essa possibilidade quando o ramo da ciência jurídica se sustenta em um deter­minado corpo de leis.

Essa circunstância oferece maiores possibilidades de pre­cisão do que qualquer outra. Observemos, antes de tudo, que o direito positivo, por mais amplo que seja, tem uma delimitação certa. Essa delimitação é a base de todo levan­tamento para um vocabulário.

11 - Ü LÉXICO DO DIREITO POSITIVO - Além da cir­cunstância de sua determinação taxativa, simplifica o tra­balho o fato de que o ramo escolhido para o vocabulário possua um direito não só escrito mas, também, codificado.

(j) código é uma unidade sistemática. Suas partes se cor­respondem com uma precisão relativa e sejam quais sejam os erros do codificador seus vocábulos pertencem a um sis­tema de idéias dotado de um certo sentido de personalidade e de temporalidade. O codificador foi um homem e escreveu em um tempo histórico conhecido. Para êle, as palavras

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tinham um sentido e êsse sentido, quase sempre, coincidia com o da época. Não há porque supor que o codificador tenha forjado uma linguagem para o seu próprio uso.

As vêzes, êsse sentido desapareceu posteriormente. Assim, o art. 142, ao definir o advogado como "o professor de juris­prudência", dá aos dois substantivos acepções hoje desapa­recidas. A primeira correspondc à expressão profissional ou, como se diz em outros países americanos, profesionista; o segundo, eqüivalente a jurisprudenz ou jurisprudence em alemão e inglês, corresponde à nossa atual ciência do direito. Nada, porém, nos impede de reconstruir, hoje, o pensamento da época em que o codificador escolheu essas palavras e o significado que lhes emprestou. Deriva, daí, uma facilidade

• maior do que se se tratasse de um léxico coletivo, como o de um parlamento ou o de uma obra objeto de revisões suces­sivas, como aconteceu com o Código Civil.

O direito positivo forma, pois, a plataforma de um voca­bulário da índole daquele que tentamos realizar.

Ao redor do direito positivo, entretanto, se vão forjando conceitos, muitas vêzes tomados à doutrina e ao pensamento estrangeiros. Nenhuma de nossas leis usa o vocábulo preclusão; mas, as sentenças judiciais e os escritores o em­pregam, atualmente, com um significado preciso. Pareceu, de início, uma artificialidade e ocasionou resistências."8 Mas, êsse vocábulo correspondia a uma necessidade e adquiriu carta de cidadania. Se os críticos o tivessem estudado cuida­dosamente, teriam percebido que êle pertencia ao mais puro léxico da ciência. Os alemães falam de praeclusive prinzip e, provàvelmente, dêles o tomaram os italianos, dos quais nós, de modo direto~ o recebernos;39 mas~ os franceses já usavam,

38. Assim, por ex., LACAR:O.IILLA, no prefácio ao livro de CARNELLI, Cuestione-5 de procedimiento civil, Montevidéu, 1933, pág. 8, quando diz que "a teoria da preclusão não fêz mais do que mudar a lexicologia dos conhecimentos e idéia! antigas".

39. Provàvelmente, a iniciativa cabe a CHIOVENDA, Princípios, trad. espan., pãgs. 357 e segs., Saggi, t. I, pág. 236.

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anteriormente, a expressão forclusion,'0 derivado de exclussio a foro, de raiz latina.

Em outras ocasiões, com os vocábulos da lei formam-se novos conceitos não incluídos nela. Coisa julgada formal é um conceito jurídico que caracteriza situações expressamente previstas na lei, tais como a eficácia relativa do juizo de ali­mentos, do juízo possessório ou do juizo executivo. Os três têrmos que compõem êsse conceito se encontram, separada­mente, no código. Apesar, porém, de estar concebido o fenô­meno e de estarem insertas as palavras no texto legal, não o está o conceito. Por mais que aí procuremos essa combi­nação de palavras, não a encontraremos.

Um mínimo de ambição científica autoriza, por conse­guinte, a ampliar o campo do vocabulário com essas expres­sões impostas pela ciência do nosso tempo e que, além de não serem alheias ao direito positivo, surgem, muitas vêzes, da união de têrmos nêle inseridos e designam fenômenos por êle estabelecidos.

12 - TEMPORALIDADE E ESPACIALIDADE DA LINGUAGEM

JURÍDICA - Tôda linguagem é espacial e temporal. As pa­lavras pertencem à terra e, além disso, nascem, desenvolvem­-se, debilitam-se e morrem. O Dicionário de Escriche come­ça com o vocábulo abacerias, que, no Rio da Prata, é um ca­dáver de palavra. O código uruguaio contém o têrmo im­plicância, de origem chilena, ainda não aceito pelas autori­dades do idioma. Como dizem os filólogos, a lei das pala­vras é a lei da biologia: a luta pela vida.41 f:sse fato impõe certas precauções.

De imediato, cumpre estabelecer que o vocabulário, • a pesar dessa expansão, só pode pertencer ao direito positivo sôbre o qual se implantou. Não existe um vocabulário de direito processual civil interespacial e intertempol'al. Pode

40. Nesse sentido, GARJONNET, CEIAR Bau, Trt~IU, t. 11, Pa. UI. 41. DAUZAT, La vida del lenguaj~t, trad. eapan., B. Aha, 1Me.

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haver, imicamente, um vocabulário de direito processual civil espanhol, chileno, argentino, mexicano ou uruguaio. Nenhuma obra dessa natureza pode ter validade extraterri­torial, fora do âmbito de vigência dêsses direitos positivos.42

Quem utilizar o vocabulário fora do país em que foi escrito deve começar pela precaução de verificar se o têrmo definido tem, no direito positivo de seu próprio país, a mesma significação normativa que tem no país de origem. Uma palavra, um sinal de pontuação, uma imperceptível omissão no outro texto invalidam a aplicação. A definição de pro­videncias para mejor proveer, implantada nos vocábulos do art. 605, do Código Uruguaio, carece de validade em Cuba, onde a Lei de 8 de março de 1938, que utiliza essas mesmas palavras, conferiu a êsse meio de compJementação probatória um significado diferente.43 O vocábulo discórdia, que se emprega em direito uruguaio, não é utilizado na Argentina para significar as dissidências dos juízes que integram os tri­bunais colegiados. Fracción, no México, corresponde a inciso no Rio da Prata. Barra, evidentemente tributário de bar, inglês, eqüivalente a forum ou conjunto de advogados, é usado no norte, e não no sul do continente. Caballeria é,. em Cuba, uma medida de superfície de terra, significado êsse desconhecido no Rio da Prata. Os exemplos poderiam multiplicar-se.••

A linguagem da ciência jurídica, apoiada esta na lin­guagem do direito positivo, não tem validade universal. O pensamento doutrinário, normalmente, necessita de um direito positivo ou de um sistema de direitos positivos deter­minados para sustentar-se.

42. Em sentido análogo, com caráter geral, MIGLIORINI, Che cos'e un tJota­bolario, cit., pág. 42.

43. Cfr., nos dois sentidos, nosso livro Teoria de las diligencias para mejor proveer, Montevidéu, 1932, e o de NUNEZ, Providencias para mejor proveer, Ha· vana, 1942.

44. Fazemos, aqui, remissão a tudo quanto dissemos na nota Quienes son los "curiales" del art. 230, COT. publicado em "Revista de Derecho, jurispru­dencia y Administtación", t. 43, pág. 49.

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1: '

I. I. I.

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Temporalidade, territorialidade, significação sistemática são as principais características de uma definição. As deli­mitações de um vocabulário valem, apenas, para um país, para um tempo e para um sistema. Extraídos do país, po­dem desnaturalizar-se se o direito positivo de outro Estado houver alterado o seu conteúdo; no futuro, a acepção pode transformar-se; fora do sistema a que pertence, o têrmo pode desfigurar-se.

Em cada significação convergem, assim, milhares de significações acessórias e complementárias que estão implí­citas em cada expressão, mas que são, formalmente, alheias a ela.

Concluamos, pois, êste parágrafo assinalando que qual­quer definição contida em um vocabulário vale, apenas, hoje e aqui; neste momento e neste lugar do mundo.

13- SoLuçÃo DO PROBLEMA DO LEVANTAMENTÓ- Tôdas essas premissas levaram-nos a resolver o problema do levan­tamento sôbre os seguintes fundamentos:

a) a base do vocabulário é o direito positivo; só por exceção se acode a têrmos de doutrina, a referências de direito histórico ou a aforismos latinos de uso freqüente na experiência juridica;

b) a definição se apoia sôbre a diversidade de acepções de um mesmo têrmo; é essa a mais rica fonte de observações para quem usou, durante longos anos, êsses vocábulos em uma só acepção;

c) quando uma expressão forma parte de duas ou mais construções, conceitos ou locuções verbais compostos de várias palavfas, as vozes devem ser expostas separadamente; v. gr., instrumento - instrumento público - instrumento privado;

d) as definições, como veremos adiante, correspondem a um critério uniforme; mas, em todo caso, eqüivalem ao sentido do vocábulo no direito positivo uruguaio ao tempo de sua redação. Para efeitos do levantamento, cumpre subli-

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nhar que a multiplicidade de acepções não multiplica o nú­mero de têrmos e que a multiplicidade de conceitos obtidos com os mesmos vocábulos se projeta sôbre o número de lo­cuções insertas;

e) o vocabulário conterá mais de mil expressões; por êsse motivo, não se encontra, relativamente aos dicionários de PALLAREs, de RoussEAu e LAISNEY e de MoeRE, na despropor­ção evidente do dicionário de Oxford com respeito ao da Aca­demia Francesa.

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CAPÍTULO III

PLANO PARA UM VOCABULÁRIO

13- MATERIAIS A INSERTAR- Mais de um milhar de definições de vocábulos processuais parecerá uma contribui­ção importante para êste ramo do direito, se se conseguir realizar, cientificamente, a emprêsa. Pensamos, porém, que, com um pouco mais de esfôrço e com a ajuda de diligentes colaboradores, seria possível acrescentar ao dicionário uma utilidade prática.

Decidimos, então, ampliar o seu campo de aproveita­mento com os seguintes acréscimos: ao lado de cada vocábulo e de sua definição se estabelecem - a) a enumeração das disposições legais em que o vocábulo aparece inscrito; b) a correta utilização do vocábulo no texto de uma lei e, quando não ocorrer tal coisa, no texto de uma sentença ou na obra de algum tratadista da matéria na doutrina nacional; c) os diversos empregos exemplificados, sempre que o vocábulo tiver acepções múltiplas; d) a etimologia, tomada das obras especializadas de maior autoridade; e) a tradução do têrmo ou conceito para os idiomas francês, italiano, português, in­glês e alemão, sempre que tal fato seja possível.

E"lloremos, em continuação, o alcance de cada uma des­sas tarefas e o propósito que as inspira.

14 - 0 PROBLEMA DAS DEFINIÇÕES- 0 tradicional perigo das definições no direito consiste em que a definição diga mais que a palavra; não diga tudo que a palavra contém;

~-- -----·--·-· ...

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ou diga algo diferente do que indica a palavra. Excesso, omissão ou variação são os percalços do definir.

:E:sse risco apresenta, antes de tudo, o valor das defini­ções realizadas pelo próprio legislador e inseridas no seu texto. O código de processo uruguaio contém várias definições dessa natureza.

Digamos, para começar, que as definições do legislador não obrigam o intérprete. A incumbência do legislador é estabelecer normas, isto é, como dizia LEIBNITZ, proposições hipotéticas de uma conduta futura ou, como se diz na doutrina atual: "dado A deve ser B";45 dado o delito deve ser a pena; dado o empréstimo deve ser o reembôlso; dada a paternidade deve ser a obrigação alimentar e a herança. Em todos os casos a norma determina, em primeiro lugar, uJ; dever ser.

As definições, porém, mesmo as consiguadas na lei, não correspondem a um dever ser. Não determinam, hipoteti­camente, uma conduta futura em razão de certa situação de fato. Uma definição aspira a estabelecer o que uma coisa é.

Quando o legislador define a sentença no art. 459, di­zendo que ela é a decisão do juiz sôbre a causa ou ponto que ante êle se controverte, não diz o que acontecerá com a sentença, refletindo-se sôbre a conduta humana, nem como deve ela ser ditada; isto é, não determina o dever ser para a emissão da sentença, nem o dever ser da sentença já emitida. Visa a estabelecer, em um plano puramente doutrinário, aquilo que a sentença é. 46

45. Essa estrutura da norma jurídica peca por simplismo e chega a coinci­dir, de certo modo, com a norma moral, com a norma religiosa e, até mesmo, com os usos sociais. Falta-lhe a nota de coação eventual, para o caso de de­sobediência à conduta devida. Mas, para os fins aqui visados, basta a simpli­ficação. Mais amplamente, GARCIA MA YNEZ, &encia y estructura del juicio en general y de la nQrma de deredw en particular? in "Revista da la Facultad de Derecho de Mexico", 1951, ns. 3 e 4.

46. Por essas razões, o Proyecto de Código de Procedimiento Civil~ de 1945, n1o contém definições. Reportãroo-nos a quanto dissemos na Exposição de Motivos daquele projeto.

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Mas, apesar de haver o legislador dito o que a sentença é - a decisão do juiz - poucos artigos mais adiante, 47 esta­belece que essa sentença será assinada por todos os juízes que tenham concorrido para ditá-la. :É de todo evidente que o legislador já não fala, aqui, da mesma coisa que antes havia definido. Naquela ocasião, a sentença era a decisão; agora, é o documento que encerra essa decisão. A distinção elementar entre ato e documento não existe, virtualmente, em nosso código, que, indistintamente, dá o mesmo nome ao ato e ao documento, à ação ou acontecer da vida jurídica e à peça escrita que representa ou registra êsse acontecer. O caso da sentença se repete com petição, notificação, declara­ção, etc.. Um mesmo nome designa duas ou mais coisas.

Se a isso acrescentamos o fato de haver vocábulos como jurisdição que tem, em nossas leis, nada menos de quatro acepções claramente distintas, ou como nulidade, que tem oito - percebemos que o primeiro dos riscos de qualquer definição, isto é, a determinação de seus elementos inte­grantes, está precedido de outro: a determinação dos diver­sos significados em que se emprega o têrmo.

Convenhamos, pois, em que a tarefa prévia a tôda defi­nição consiste em agrupar os diferentes textos legais para saber em quantas distintas acepções uma expressão está uti­lizada. Só depois de havê-lo feito poderemos empreender nossa tarefa.<•

Um11 definição pode abranger elementos essenciais e elementos acessórios. Inspeção ocular pode ser definida, sim-

47. CPC, art. 469. 48. Dizia MENENDEZ PIDAL, no elogio de um catedrático espanhol: ''Tem

um olfato especial para farejar acepçôes". No prólogo do Dicionário de Oxford. dizem os editóres: "o verdadeiro lexicógrafo na&ee, e nlo ae faz"; e um dêsses últimos mencionou que uma equipe havia gasto quarenta horas em catalogar as acepções do verbo to set e, quando chegou o momento de dar forma definitiva ao artigo. foram dispendidas mais quarenta horas para deixá-lo arrematado (CASARES, Introduccidn a la lexicografia moderna, cit., pág. 24) .

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plesmente, como "meio de prova". Com isso, porém, não se determina em que difere a inspeção dos outros meios de prova, tais como as testemunhas, os documentos, etc.. Poder-se-ia, então, para mostrar a distinção, dizer que êsse é um meio de prova por percepção, com o que o diferenciaríamos da­queles que são meios de prova por representação. Mas, assim, não ficaria distinguido da prova pericial, que também consiste em uma percepção a cargo dos peritos. Ainda assim, entretanto, a definição se limitaria a uma simples in­serção sistemática dêsse meio de prova dentro do conjunto de outros análogos. Careceria da determinação de seus elemen­tos próprios, isto é, da descrição de seus elementos compo­nentes. Seria preciso, conseqüentementE\, acrescentar que se trata de um meio de prova cujas características são: essa percepção é realizada pelo magistrado, em oposição à prova pericial - através de um exame direto das pessoas ou das coisas, com o que se diferencia dos documentos, das declara­ções, das presunções, etc. - eventualmente acompanhado de peritos, motivo por que se evidencia a possibilidade de uma prova composta em contraposição às provas simples.

Parece que o bom senso aconselha sustar aqui a defini­ção, mas ela poderia prosseguir distinguindo, por exemplo, os casos em que os fatos objeto da inspeção ocular devem desa­parecer ou em que sua subsistência cause grave dano, dos casos nos quais tal não ocorre. Dessa forma se diferencia a inspeção ocular, como medida preparatória da demanda, da inspeção ocular solicitada na fase probatória. Poderia subli­nhar-se, também, que nem sempre a inspeção tem de ser ocular, pois há inspeções feitas através de outros sentidos, como os ruídos, as emanações deletérias de uma indústria ou a vibração de uma parede pela proximidade de motores em funcionamento, etc. Poderia, ainda, demonstrar-se que a inspeção pode recair sôbre pessoas (como no juízo de incapa­cidade), sôbre coisas (como quando se discute a falsidade),

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sôbre fatos (como a proximidade das árvores em relação ao muro divisório), etc.

Digamos, pois, que tôda definição, qualquer que seja ela, traz consigo inúmeras possibilidades. Pode pôr em relêvo a forma, o conteúdo, a ordenação de seus diversos elementos, a função. Não existe, portanto, uma ciência de definir. Existe uma arte.

Essa arte não tem regras; fica entregue à imaginação, ao poder inventivo, à perspicácia e até ao bom gôsto de quem a pratica.49 A prudente escolha dos elementos de conteúdo deve seguir-se uma não menos judiciosa escolha dos têrmos de expressão, porque não deixa de ser uma circunstância surpre­endente o fato de que, para determinar o valor de uma pala­vra, seja preciso servir-se de outras palavras que, por sua vez, têm um significado que também necessita de definição e de determinação.

Aquêle que define é, pois, um criador. Dêle pode dizer-se o que VALÉRY no Eupalinus dizia dos poetas: "É necessário harmonizar as palavras complexas como blocos irregulares, especulando sôbre os acasos e surprêsas que êsses ajustes nos deparam e chamar poetas àqueles a quem, nesse trabalho, a fortuna favorece".

}5-0 ÍNDICE DE VOCÁBULOS- A tarefa de elaborar OS

índices encontra-se diretamente ligada ao levantamento dos vocábulos .•

Não julgamos necessário, em nossa obra, proceder à ela­boração de índices de todos os substantivos, adjetivos, verbos e advérbios do código. Os vocábulos de uso comum, como homem, mulher, filho, pai, não têm porque figurar em uma obra dessa natureza, que é um índice só acessoriamente e não

49. Dizia CAPITANT, no prólogo do teU J'ocobuldrio: "11 eat dlllclle preclaer d'avantage. La méthode ne peut l!tre ablolument rlaoureuae. 11 eat nl!ce•aalre corriger l'esprit de g4!ometrie par l'eaprlt de ftneueu. Op. clt., pAI. 8.

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como motivo principal. Devem aparecer, em troca, outros vocábulos de uso comum que adquirem, no corpo do código, um significado especial. Assim, por exemplo, dia, como cômputo de vinte e quatro horas ou como 1/365 do ano comum, tem no direito processual seu duplo significado de dia solar, o que vai desde a saída à entrada do sol, e de dia inteiro, que abrange as vinte e quatro horas. Essa distinção é necessária porque o vocábulo não tem o mesmo significado no art. 603 e no art. 192.

As palavras que pertencem a outros ramos do direito, mas que estão incluídas no código de processo, devem inse­rir-se no vocabulário; não já porque êste ambicione esten­der-se em outras zonas que não lhe pertençam, mas sim por-• que os outros ramos nêle penetraram e assim passam a inte-grá-lo. Para manejar, porém, com cuidado tais acepções será indispensável, como oportunamente se estabelecerá, re­correr à colaboração dos especialistas dêsses outros ramos do saber jurídico.

Existem, também, no código expressões com simples valor histórico. Planilla de costas, por exemplo, constitui hoje uma instituição do passado, derrogada pela Lei 11.462. ll:sse pas­sado, porém, não é tão remoto para que se prescinda da expressão considerando-a sem vigência alguma.

Compensando os arcaísmos, aparecem, no caminho, abun­dantes neologismos e freqüentes barbarismos. Apontemos, entre êsses últimos, perención de la instancia (perempção da instância), galicismo incorreto em idioma castelhano, mas que já conta larga tradição em nosso léxico jurídico.

O índice é, como a definição, assunto de limites. A in­serção indiscriminada de todos os vocábulos do código e das leis processuais poria em perigo a tarefa essencial e neces­sária para inverter energias em um esfôrço que não pertence à órbita da ciência, mas sim à da experiência jurídica, e que

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já tem, entre nós, uruguaios, uma boa prinúcia na obra de PA·BLO V. GoYENA,50 que apareceu em algumas edições do có­digo do século passado e que recolhemos na edição de 1952.

16- A EXEMPLIFICAÇÃO- 0 objeto da exemplificação é complementar as definições com a inserção correta do vocá­bulo ou jôgo de vocábulos definidos dentro de uma passagem da lei, sentença ou estudo de doutrina.

Nem sempre a definição ilustra plenamente. Se tomar­mos em seus têrmos estritos a definição de mejora de embargo (ampliação de penhora), poderíamos, graças a um esfôrço de reconstrução mental de induções e deduções, admitir que ela é "a diligência decretada judicialmente pela qual se amplia uma penhora já existente, tornando-a extensiva a outros bens antes não penhorados, em virtude de ser insuficiente a me­dida já decretada, para assegurar o resultado do processo". A definição, entretanto, não nos pode dizer como o nosso direito é, se liberal ou restritivo, na outorga dêsse benefício ao credor. O campo da definição ficará mais iluminado se a ela se acres­centar o texto do art. 1.252, quando empregados êsses vocá­bulos para dizer: "Em qualquer fase do processo, o autor poderá pedir ampliação de penhora sôbre outros bens que não aquêles expressamente indicados no art. 1.249, caso os bens penhorados em primeiro lugar não sejam suficientes". Os exemplos poderiam repetir-se.

O Dicionário da Língua Espanhola dá freqüentes exem­plos para sublinhar o significado dos vocábulos que possuem acepções múltiplas. Parece, contudo, mais ilustrativo e elo­qüente o Dicionário Enciclopédico Hispano-Americano, quan­do usa, para exemplificação, textos tomados dos autores clás­sicos do idioma. A aplicação correta se acrescenta, aqui, a autoridade e a seleção. Em um trabalho da natureza do que empreendemos, é conveniente substituir a imaginação do de­finidor ou exemplificador pela autoridade do legislador.

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Não se empregam como exemplo, entretanto, as defini­ções do legislador. Se a definição de juicio (processo), con­tida no art. 1.', é incorreta e deve, por motivos de ordem científica apoiados na sistemática do próprio código, ser substituída por outra, nada aconselha a que demos como exem­plo a própria definição incorrcta.51 As definições não se exemplificam com outras definições. São postas em evidên­cia, através do emprêgo correto do vocábulo ou do conceito, em outro trecho do mesmo corpo de lei ou em outra lei posterior.

17 - A ETIMOLOGIA - A incorporação da etimologia dos vocábulos escolhidos é feita, apenas, com o propósito de alar­gar o campo de análise de cada palavra.'

A etimologia freqüentemente ajuda a penetrar no sen­tido de uma expressão jurídica. Por isso, decidimos focar êsse aspecto no vocabulário. Mas, devemos, aqui, esclarecer que tal coisa não corresponde à necessidade de estabelecer uma relação necessária entre um vocábulo e sua origem histórica. Como diz seu autor, 52 embora seja certo que as significações das palavras isoladas derivam do passado e continuam modi­ficando-se no presente, nós não damos conta disso e julgamos que, na linguagem, tudo ocorre como se nada houvesse mudado, como se nada mudasse e como se nada tivesse de mudar.

A etimologia em nosso vocabulário é, somente, o liame de uma voz com seu passado histórico.

ll. claro que um trabalho dessa índole deverá apoiar-se em outras autoridades. Nesse campo tão particular da ciên­cia lingüística, longe dos lugares nos quais se produziram as

50. Veja-se a observação de ToME, in "Rev. D. P. P.", t. 29, pág. 371, 51. Vejam-se as razões expostas no parágrafo 14. 52. BALLY, El lenguaje y la vida, trad. A. Alonso, 2.a ed., B. Aires, 1947,

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línguas que hoje falamos, afastados também dos grandes centros de especialização, seria impossível realizar uma tarefa de investigação para cada vocábulo. Já se sabe, por uma po­·lêmica recente, aonde conduzem as disputas com os especia­listas nessa ordem de coisas.53

Não existe, no Uruguai, nem sequer um dicionário de uruguayisrrws, obra essa em que, já há muito tempo, se empe­nha a Academia Nacional de Letras. 54 Seria assim bem difícil empreender um trabalho da natureza daquele. Devemos, pois, procurar o apoio de outras autoridades, especialmente as obras de MoNLAu,S5 BARciA56 e, é claro, o Dicionário da Academia.

18 - A TRADUÇÃo PARA OUTROS IDIOMAS - É esta, tam­bém, outra tarefa de simples aproximação.

Um escritor contemporâneo, preocupado com as diferen­ças de acepção entre palavras idênticas no common law e no direito codificado continental, pôs-nos de sobreaviso contra o perigo inerente a tôda tradução de vocábulos jurídicos de um idioma para outro. 51

tsse risco ocorre não apenas na versão direta dos vocá­bulos, mas, igualmente, na tradução de conceitos provenien­tes de vocábulos aglutinados.

Quem descompusesse a palavra alemã Rechtskraft em seus dois têrmos (direito - fôrça) seria tentado a dizer que

53. Veja·se CARNELUTII, Di la del dirittoJ in "Rivista Italiana per le Scienze Giuridiche", 1947, pág. 108; DEvoro, Jus, Di la dalla grammatica, na mesma revista, 1948, pág. 414; CARNELUTI'I, Vs, jungit, na "Rivista di Diritto Proces­suale", 1949, I, pág. 57.

54. BERRO GARCIA, Proyecto de formación del "Diccionario de Vruguayismos", no "Boletin de la Academia Nacional de Letras", 1946, pág. 109.

55. Diccionario Etimológico de la Lengua Ctutellana, BucnoJ Airee, 1944. 56. BARcrA, Dicciona.rio General Etimológico de la Lmgua F..fpnflola, rd. corri­

gida, revista e aumentada por EoUARDO DE Eciii-:GARAY, 4 V<llll., 1). Aire11, 11{ data, mu de publicaçiio recente.

57. DAviD, Traité élémentaire de droit civil comparr. ltJtrodttrtinn o l'~ludl des droits étrangers et a la méthode comparalivtJ, Parl1, 19ti0, p4s. 285, dia: "Os conceitos do direito ingles são diferentra do1 concehot do direito frand1 c não existe, e não pode existir nenhum vocabul4rlo •ulldentCI IJII• traduu, em francês, as palavras do idioma jur(dJco ln11e1 ou '-ua andura, lnvtnamente, para o inglês, t~rmos uJados pelo• jurleLu franct'IGI ,

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ela significa a fôrça do direito, seu poder obrigatório. A tradução correta dêsse vocábulo é, entretanto, coisa julgada. Também aqui os exemplos poderiam multiplicar-se.

Há alguns anos as Nações Unidas resolveram publicar um pequeno volume escrito em cinco idiomas, acêrca da nova terminologia surgida com base nas investigações atô­micas. Em um ramo da ciência física inteiramente novo, considerou-se oportuno realizar uma obra de unificação, a partir dos primeiros instantes. O livro teve grande resso­nância e utilidade. Mas, êsse livro era, apenas, uma ínfima parte de tarefa muito mais vasta, inspirada por um professor norte-americano de nome FAIFER c encomendada a uma equi­pe de lingüistas composta por dois franceses, dois russos e o já aludido professor norte-americano. Essa 'comissão tem por objeto classificar, metôdicamente, os vocábulos de uso comum na linguagem das Nações Unidas e procurar a unidade de sua tradução. Adotada uma tradução para as mais impor­tantes línguas modernas, o vocábulo e suas diferentes versões ficam registrados oficialmente e suas equivalências são obri­gatórias para todo o corpo de tradutores e técnicos da Orga-nização.

Pela primeira vez na história da espécie humana, come­ça-se a realizar, em grande escala, uma tarefa de eqüivalên­cias lingüísticas. Não se refletem essas eqüivalências, pois, em um idioma ideal, que ninguém fala, e sim no idioma comum, vivo na linguagem dos povos. Pode imaginar-se que uma tarefa impessoal dessa índole, realizada ao longo dos séculos, venha a contribuir em alguma coisa para o alcance do entendimento humano.

Existe, nessa matéria, uma excelente contribuição de LAunENCE DEEMS EcBERT, em seu Dicionário Jurídico. 58 Dêle nos servimos em tudo quanto a nossa experiência não nos aconselhou optar por outra decisão.

58. Low Dictionary English~ &pa:ifol1 Français3 Dedtsch1 Fallon Publica~ tions. Nova Iorque, 1949 .

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CAPÍTULO IV

Cll!:NCIA E IDIOMA

19 -Do EQUÍVOCO À PRECISÃO- Uma tarefa da natu­reza daquela que ficou esboçada é um esfôrço para superar a nossa habitual imprecisão. Raras vêzes utilizamos, em nos­sa linguagem jurídica, vocábulos unívocos. É freqüente que aquêles que nos lêem ou nos escutam emprestem às nossas pa­lavras um significado distinto daquele que lhes queremos em prestar. 59

Isso, que ocorre com freqüência na vida, adquire, no campo do direito, singular gravidade. As palavras são para o direito o que o corpo humano é para a anatomia ou para a fisiologia. Conceberíamos um cirurgião que tateasse entre os tecidos do organismo que opera ou um fisiólogo que não atuasse com precisão absoluta sôbre o organismo que êle deve examinar para aumentar sua sabedoria? Não obstante, o jurista anda, freqüentemente, às apalpadelas entre as pala­vras, que são a anatomia e a fisiologia da lei.

Uma necessidade de precisão deve dominar-nos, na me­dida em que tal coisa estiver ao alcance de nossos recursos. A isso tende êste esfôrço.

Não pretendemos, naturalmente, fixar, de modo irrevo­gável, a linguagem jurídica da nossa ciência. Isso não é, exclusivamente, algo racional, nem lógico, nem consciente,

59. O risco da ambigüidade é pouco comum quando estamos habituados a manejar com prefer~ncia oa grandes \'Ocábuloa marcados pela tradi~lo. "Algumas das maia impressionantes frases de Churchill, durante a guern, diz um autor, devem o aeu efeito, em grande parte, à aua maestria no uao dos recursos tradicionais" (ULLMAN, Words and their use, Londrea, 1951, pág. 85).

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nem voluntário - não se deixa dominar pelo entendimento, nem pela vontade. Tampouco, entretanto, a linguagem é um ser que viva sua própria vida, como os animais ou as plan­tas. A linguagem é função da vida integra, que não é nunca simples razão, mas também sentimento, emoção, ação.60

Ansiamos, contudo, naquilo que fôr razoável, conduzir as criações da vida por seus caminhos rigorosos, delimitando seu conteúdo com a maior precisão possível, aplicando essas cria­ções à vida futura, com o rigor que a própria ciência exige.

1t esta uma tarefa obscura, mas necessária. Segundo uma velha advertência, todos os autores podem desejar o elo­gio, mas o lexicógrafo só pode desejar livrar-se de reprimen­das.•• Mesmo assim, é mister realizar ,essa emprêsa.

20 - PLANO DE TRABALHO FUTURo - A tarefa de redação do Vocabulário, embora esteja muito avançada nestes mo­mentos, deve considerar-se ainda em seu comêço.

Uma vez escrita integralmente a obra, com a totalidade de suas definições, indicações, utilizações, etimologia e tra­dução, deverá ser submetida aos reativos da critica.

Propusemo-nos, nesse sentido, a submetê-la à considera­ção dos especialistas, para receber sugestões.

Pensamos que as provas tipográficas devem ser enviadas a estudiosos de outros países, para confrontação. Devem ser­vir, outrossim, de materi<~l de discussão em mesa-redonda com os cultores dos ramos afins do direito, para que êles tragam a sua contribuição crítica e construtiva, a fim de superar os erros de uma percepção imprópria de parte do autor.

60. VossLER, Filosofia del lenguaje, trad. Alonso y lida, 2.a ed., B. Aire:<~, 1947, pág. 123.

6J. EWALD, Dictionnaire anglais-français et français-anglai.s, Paris, 1889; cit. MIGLIORINI. &se autor adita esta outra proposição do famoso ToMMASEo: "Se o mais sábio filólogo da Itália invertesse tõda a sua vida na composição de uma só coluna na página de um dicionário e se submetesse essa coluna, como o conhecido eremita, a outro filólogo, embora menos sábio, a êste bastaria o intento de atirar ao solo a coluna, com seu eremita e tudo, para consegui-lo" .

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Será mister, ainda, submeter o trabalho assim depurado a especialistas da linguagem. Nunca foram os juristas, como juristas, os mestres do idioma. Reservemos, pois, o lugar que lhes corresponde aos que têm o privilégio dessa maestria.

Se tudo isso fôr alcançado, se se puder levar a bom têrmo êsse anelo de precisão, de clareza e de rigor no uso de nosso instrumental de trabalho; se, mediante um esfôrço coletivo da índole daquele que mencionamos, lograrmos fazer passar nossas principais palavras pelo crivo de uma critica adequada - teremos dado um passo adiante no caminho da ciência a que acabamos de nos referir.

Não se trata, como dizia um de nossos mestres, de esteri­lizar os vocábulos na pressão e no vapor de uma autoclave. Tal coisa seria perigosa: poderiam perder os germes de vida que necessitam para sua atuação de todos os dias. Não se trata, aqui, de esterilizar as palavras: trata-se, apenas, de as depu­rar, de fazer com que sejam, apenas, menos perigosas do que são hoje em dia.

Nesse constante ensíno da humanidade que é a vida da ciência, devemos admitir como possível um melhor ordena­mento de nossas idéias, purificando suas palavras para que nos aproximemos, no nosso entendimento recíproco.

UNiVEF.o,c •. ,. _. FACUla•L.::_

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