internacionalizaÇÃo da amazÔnia? - core.ac.uk · internacionalização da amazônia brasileira e...

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PATRÍCIA BERSAN PINHEIRO DE PAIVA GONÇALVES INTERNACIONALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA? Florianópolis (SC), agosto de 2001

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PATRCIA BERSAN PINHEIRO DE PAIVA GONALVES

INTERNACIONALIZAO DA AMAZNIA?

Florianpolis (SC), agosto de 2001

PATRCIA BERSAN PINHEIRO DE PAIVA GONALVES

INTERNACIONALIZAO DA AMAZNIA?

Dissertao apresentada banca

examinadora do Curso de Ps-Graduao

em Direito da Universidade Federal de

Santa Catarina, como exigncia parcial para

obteno do ttulo de Mestre em Direito,

sob a orientao do professor Christian Guy

Caubet.

Florianpolis (SC), agosto de 2001

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

DEPARTAMENTO DE DIREITO

A dissertao INTERNACIONALIZAO DA AMAZNIA?, elaborada por

Patrcia Bersan Pinheiro de Paiva Gonalves, foi julgada adequada por todos os

membros da Banca Examinadora, para a obteno do ttulo de Mestre em Direito e

aprovada, em sua forma final, pelo Departamento de Direito da Universidade Federal de

Santa Catarina.

Apresentada Banca integrada pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Christian Guy Caubet

Orientador

Coordenador do CPGD/CCJ/UFSC

Prof. Dr. Rogrio Silva Portanova

Membro

Florianpolis, agosto de 2001.

DEDICATRIA

A Deus, por estar ao meu lado

em toda a minha vida.

Ao meu esposo Ronald,

pelo amor e companheirismo.

Aos meus pais,

pelo incentivo, pelo apoio e ensinamentos.

Ao professor, orientador e amigo,

Dr. Christian Guy Caubet,

pelos muitos ensinamentos, sem os quais

no seria possvel a realizao deste trabalho.

AGRADECIMENTOS

Esta dissertao no poderia ter sido escrita sem a orientao e compreenso

daqueles que me acompanharam durante os dois anos do curso de Mestrado em Direito

pela Universidade Federal de Santa Catarina. A estes dedico o meu agradecimento.

A Deus, a quem este trabalho dedicado.

Ao meu esposo, Ronald de Paiva Gonalves, pela compreenso e

companheirismo no decorrer deste curso.

Aos meus pais, Jos Maria Rodrigues Pinheiro e Gilne Bersan Pinheiro,

pelo incentivo para a realizao deste trabalho. Aos meus irmos, Fernando Antonio

Bersan Pinheiro e Emannuel Bersan Pinheiro, pela ateno dispensada.

Ao professor e amigo, Christian Guy Caubet (Universidade Federal de Santa

Catarina - UFSC), pelo incentivo, apoio, orientao e estmulo determinantes concluso

deste trabalho.

Aos professores Rogrio Silva Portanova (UFSC) e Fernando Kinoshita

(UFSC), que to grandiosamente contriburam para o aperfeioamento desta dissertao.

A todos os professores do Centro de Ps Graduao em Direito - UFSC,

cujas influncias foram determinantes para a realizao deste trabalho, especialmente, aos

professores Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira (UFSC), Luiz Otvio Pimentel (UFSC)

e Welber de Oliveira Barrai (UFSC), pelas discusses e orientaes em tomo do tema

dessa dissertao.

Aos colegas de curso, companheiros de trabalho, especialmente Gilsilene

Passon Picoretti, amiga e incentivadora.

Aos uncionrios do CPGD, em especial a Dbora Brasil, pela constante

ateno e solicitude.

A todos os meus alunos, colegas e diretores do CESV - Centro de Ensino

Superior de Vitria, pela pacincia e apoio oferecidos.

Por fim, a todos os que viabilizaram a realizao deste trabalho.

RESUMO

A presente dissertao tem como objetivo investigar a ocorrncia de uma

internacionalizao da Amaznia brasileira e sua influncia na soberania nacional,

ressaltando as experincias das polticas pblicas e relacionando-as com as iniciativas

estrangeiras e omisses das autoridades brasileiras, que permitiram a presena do elemento

internacional na regio amaznica. A estrutura do trabalho est dividida em quatro

captulos, tendo, ao final, a concluso. A exposio do tema comea pela formulao

terica do conceito de soberania, descrevendo suas caractersticas, o conceito proposto de

soberania relativa e relacionando este conceito com o processo de internacionalizao.

Como descrio seqencial, temos, a partir da descrio do que a Amaznia brasileira,

quais as polticas pblicas foram implantadas visando a proteo do poder real constitudo

naquela regio. Em seguida, verifica-se a ocorrncia das iniciativas estrangeiras na

Amaznia brasileira e a omisso das autoridades brasileiras diante das presses e

intervenes internacionais. Por fim, constata-se a atuao destes fenmenos nas

caractersticas do conceito de soberania e nos elementos formadores do Estado, para

verificao do processo de internacionalizao da Amaznia e limitaes na capacidade

plena de atuao da soberania estatal.

V

RESUMEN

La disertacin que se presenta tiene el objetivo de investigar la ocurrencia de una

internacionalizacin de la Amaznia brasilena y de lo que afecta a la soberania nacional,

dando enfasis a las experiencias de las polticas pblicas y sus relaciones con las iniciativas

extranjeras y omisiones de las autoridades brasilenas que han permitido la presencia dei

elemento internacional en la regin amaznica. La estructura dei trabajo est dividida en

cuatro captulos y la conclusin. La exposicin dei tema empieza por la formulacin

terica dei concepto de soberania, describe sus caractersticas y el concepto propuesto de

soberania relativa y lo relaciona con el proceso de internacionalizacin. La

descripcin secuencial empieza con lo que es la Amaznia brasilena, cuales las polticas

pblicas que se implantaron y que buscaron la proteccin dei poder real constitudo en

aquella regin. A continuacin, se observa la ocurrencia de las iniciativas extranjeras en la

Amaznia brasilena y la omisin de las autoridades brasilenas frente a las presiones y las

intervenciones intemacionales. Por ltimo, se verifica la actuacin de estos fenmenos en

las caractersticas dei concepto de soberania y en los elementos formadores dei Estado,

para la comprobacin dei proceso de internacionalizacin de la Amaznia y las

limitaciones en la capacidad de actuacin de la soberania estatal.

VI

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADAS

ADA Agncia de Desenvolvimento da Amaznia

BASA Banco da Amaznia

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento

CCG Centro de Coordenao Geral

CPI Comisso Parlamentar de Inqurito

CRV Centro Regional de Vigilncia

CVRD Companhia Vale do Rio Doce

DIP Direito Internacional Pblico

DPF Departamento da Polcia Federal

EUA Estados Unidos da Amrica

FIDAM Fundo de Investimento do Desenvolvimento da Amaznia

FINAN Fundo de Investimentos da Amaznia

FUNAI Fundao Nacional do ndio

IAB Instituto dos Advogados Brasileiros

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrria

ICMS Imposto de Circulao de Mercadorias

INCRA Instituto Nacional de Colonizao Agrria

INPE Instituto Nacional d Pesquisas Espaciais

IPI Imposto sobre produtos Industrializados

IPRI Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais

ONU Organizaes das Naes Unidas

PCN Projeto Calha Norte

PDA Plano de Desenvolvimento da Amaznia

PEF Pelotes Especiais de Fronteira

PIC Programa Integrado de Colonizao

PIN Plano de Integrao Nacional

PROTERRA Programa de Redistribuio de Terras e Estmulo Agroindstria

PT Partido dos Trabalhadores

SAE/PR Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica

SIVAM

SUDAM

SUDENE

SPVEA

SUFRAMA

SUS

ZFM

Sistema de Vigilncia da Amaznia

Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia

Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste

Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

Superintendncia da Zona Franca de Manaus

Sistema nico de Sade

Zona Franca de Manaus

SUMRIO

RESUMO............................................................................................................. .iv

RESUMEN........................................................................................................... .v

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADAS vi

INTRODUO................................................................................................... .10

CAPTULO I - A Soberania e suas limitaes...................................................14

1 - A formao do conceito de soberania............................................................ ..15

2 - A soberania no plano internacional....................................................................23

3 - Caractersticas da soberania........................................................................... ..28

3 .1 -0 carter poltico....................................................................................28

3 .2 -0 carter jurdico.......................................................... ..........................31

3 .3 -0 carter econmico............................................................................. ..32

4 - A crise do conceito de soberania: soberania relativa................................. ..33

5 - 0 processo de internacionalizao................................................................ ..37

CAPTULO II - Polticas pblicas soberanas na proteo da Amaznia

brasileira.................................................................................................................41

1 - 0 que a Amaznia brasileira...........................................................................42

1.1 - A fauna....................................................................................................46

1.2-A flor a ..47

1.3-.Recursos Minerais...................................................................................50

1.4- Recursos Hdricos................................................................................. ..52

2 - Polticas Pblicas...............................................................................................55

2 .1 - Polticas pblicas soberanas.................................................................. .56

3 - Principais Polticas Pblicas soberanas na proteo da Amaznia brasileira 57

3.1 - A proteo da floresta........................................................................... ..58

3.2 - A poltica mineral.................................................................................. ..65

3.3 - A poltica de colonizao...................................................................... .67

3.4- A poltica dos incentivos fiscais........................................................... .72

3.5 -O Projeto Calha Norte............................................................................75

CAPTULO III - Iniciativas estrangeiras e polticas pblicas na Amaznia

brasileira................................................................................................................ 79

1 - Principais iniciativas estrangeiras e polticas pblicas na Amaznia

brasileira....... .*..............................................................................................80

1.1-Projeto SIVAM.................................................................................. ..80

1.2 - As empresas estrangeiras na Amaznia brasileira...... ...................... ...85

2 - Outros tipos de iniciativas estrangeiras na Amaznia brasileira....................... 89

2 .1 - Compra de terras da Amaznia brasileira por estrangeiros....................89

2.2 - Aquisio de empresas nacionais por estrangeiros.............................. ...92

3 - As omisses das autoridades brasileiras......................................................... ..93

3.1 - As presses internacionais...................................................... .................94

3.2-.Inoperncia e extino da SUDAM....................................................... ..96

3 .3 -0 caso da biodiversidade....................................................................... ..98

CAPTULO IV - Internacionalizao da Amaznia?............................ .........102

1 - As polticas pblicas amaznicas e as caractersticas da soberania............. ....103

1.1- Polticas pblicas e o carter poltico.................................. .................. ..103

1.2- Polticas pblicas e o carter jurdico..................................................... ..105

1.3- Polticas pblicas e o carter econmico..................................................107

2 - As polticas pblicas amaznicas e os elementos integrantes do Estado...... ... 109

2 .1 -0 povo.....................................................................................................109

2 .2 -O territrio........................................ ......................................................112

2.3-.O Governo............................................................................................. ..114

3 - Verificao das polticas pblicas soberanas....................................................116

4 - Internacionalizao da Amaznia?.................................................................. ..119

CONCLUSO.................................................................................. .................. .125

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 132

O Brasil comea a tomar conscincia do que a Amaznia representa como rea potencial para seu futuro, mas tambm como rea sobre que incide o interesse universal de povos progressistas, dinmicos em seus propsitos de prosseguir na caminhada veloz do progresso tecnolgico, cientfico, na conquista de novos xitos no campo de sua industrializao e, conseqentemente, de seu poderio econmico e poltico. Essa conscincia no se limita a classes mais avisadas e mais esclarecidas da opinio pblica. Ela incorpora uma humanidade maior e inclui o prprio poder pblico, despertado para a gravidade do problema, com ele identificado e, em conseqncia, na disposio de uma poltica objetiva [espera-se], que faa realmente da Amaznia aquilo que os brasileiros j esto exigindo que ela seja.

(REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Amaznia e a cobia internacional. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1982. p. 205.)

INTRODUO

A ocorrncia de um processo de internacionalizao da Amaznia e sua

influncia na soberania nacional o tema escolhido para a realizao desta dissertao.

Num perodo em que a Amaznia brasileira toma-se, cada vez mais, rea de interesse da

humanidade, no apenas pela questo potencial ambiental, mas tambm como rea de

riquezas econmicas incalculveis, a presena das iniciativas estrangeiras nesta regio do

pas tem efetivado o processo de internacionalizao, considerado um dos fatores de

limitao da soberania estatal.

A situao da Amaznia motivo constante de preocupaes das

autoridades do Estado brasileiro. Com uma superfcie geogrfica correspondente a mais da

metade do territrio nacional, contendo a linha limtrofe mais extensa do pas, e, tambm,

portadora de diversas riquezas naturais economicamente viveis, a regio tomou-se alvo de

cobias internacionais desde o primeiro sculo do descobrimento do Brasil.

Dos propsitos de povos internacionais resultaram, na Amaznia brasileira,

iniciativas estrangeiras tanto sob a forma privada, atravs da compra de terras, presena de

empresas internacionais, multinacionais e transnacionais, quanto sob a forma pblica,

atravs da presses oriundas de outros Estados.

O Estado brasileiro, por sua vez, objetivando preservar a soberania nacional

sobre a Amaznia, produziu polticas pblicas no sentido de manuteno e defesa do poder

constitudo no local. Ao lado deste fato, por omisso das autoridades brasileiras, tm-se a

inoperncia de determinadas polticas pblicas constitudas ou ausncia das mesmas em

reas fundamentais na proteo da regio amaznica.

Desta forma, o problema formulado em tomo do tema foi a anlise da

existncia de um processo de internacionalizao da Amaznia brasileira, no que se refere

s polticas pblicas, afetando a soberania nacional.

Como objetivo geral desta dissertao, pretende-se verificar a ocorrncia de

um processo de internacionalizao da Amaznia brasileira, afetando a soberania nacional,

por omisso das autoridades brasileiras quanto s polticas pblicas aplicadas na regio.

Para a delimitao do tema, especifica-se o conceito de soberania no interior

do Estado e, posteriormente, voltado para o exterior do Estado, onde se verificam as

12

relaes de poder entre Estado e Estados. O conceito de soberania relativa ser descrito

relacionado com o fenmeno chamado de internacionalizao.

Alm destes conceitos fundamentais, relata-se os fatores que caracterizam o

processo de internacionalizao na Amaznia brasileira e a ocorrncia de interferncias

quanto plena atuao da soberania nacional, ou seja, as experincias das polticas

pblicas, iniciativas estrangeiras e omisses das autoridades brasileiras.

A anlise ser realizada no espao da Amaznia brasileira atual,

considerando as experincias ocorridas principalmente a partir da segunda metade do

sculo XX - 1950 a 2001. Porm, em determinados momentos, resgata-se experincias

anteriores a este perodo, para relacion-las com as demais.

O mtodo de abordagem o indutivo, partindo das experincias analisadas e

verificando a aplicao destas nos conceitos j estabelecidos. O mtodo de procedimento

monogrfico. As citaes so feitas em nota de rodap, sendo que a primeira citao de

cada obra contm as referncias bibliogrficas completas e as demais so abreviadas. As

citaes em outras lnguas so traduzidas no texto, sendo que o seu original apresentado

em nota de rodap. O tipo de pesquisa documental e bibliogrfico, citando os

documentos obtidos atravs da internet, rede mundial de computadores, incluindo o autor,

ttulo do texto, stio onde foi encontrado e data do acesso.

A dissertao desenvolve-se em quatro captulos. O primeiro captulo tem

incio com a formulao do conceito de soberania no interior do Estado, citando os autores

e as obras que contriburam para a teoria da soberania. Em seguida, discute-se a soberania

no plano internacional, e a relao de poder existente entre Estado e outros Estados.

Descreve-se, tambm, as caractersticas da soberania, a saber: o carter poltico, o carter

jurdico e o carter econmico. Ao final, conceitua-se soberania relativa e se identifica o

processo de internacionalizao. Pretende-se, portanto, formar a base de conhecimentos

tericos fundamentais para o desenvolvimento da dissertao e compreenso do tema.

O segundo captulo estuda as polticas pblicas soberanas que foram

aplicadas na proteo da Amaznia brasileira. Para tanto, inicia a exposio identificando o

que a Amaznia brasileira e especificando seus recursos naturais: fauna, flora, recursos

minerais e recursos hdricos. Em seguida, conceitua polticas pblicas e polticas

soberanas, para, logo aps, apresentar as principais polticas pblicas soberanas

13

desenvolvidas na proteo da Amaznia brasileira: a proteo da floresta, a poltica

mineral, a poltica de colonizao, a poltica dos incentivos fiscais e o Projeto Calha Norte.

O terceiro captulo trata das iniciativas estrangeiras na regio amaznica,

priorizando as relacionadas com a presena ou ausncia das polticas pblicas. Procura-se,

assim, identificar as principais ocorrncias de iniciativas estrangeiras relacionadas s

polticas pblicas: Projeto SIVAM (Sistema de Vigilncia da Amaznia) e empresas

estrangeiras na Amaznia brasileira. Apresenta-se outros tipos de iniciativas estrangeiras,

como a compra de terras e de empresas nacionais por estrangeiros e cita, por fim, a

omisso das autoridades brasileiras: frente s presses internacionais, relativa a

inoperncia e extino de rgos pblicos, analisando o caso SUDAM (Superintendncia

de Desenvolvimento da Amaznia) e quanto ausncia de polticas pblicas aplicadas

proteo da Amaznia brasileira, descrevendo a questo da biodiversidade.

Por fim, no quarto captulo, buscar-se- identificar a influncia das polticas

pblicas, nas caractersticas da soberania: poltica, jurdica e econmica, e nos elementos

constitutivos do Estado: povo, territrio e governo, como forma limitadora da expresso

plena do poder estatal. Em seguida, constata-se a ocorrncia do processo de

internacionalizao da Amaznia.

A relevncia do estudo aqui proposto encontra-se na importncia da

Amaznia para o Estado brasileiro, desde j afetado pelo processo de internacionalizao

da mesma.

CAPTULO I

Mas o Estado tem duas faces, vima voltada para o seu prprio interior, onde as relaes de domnio se desenvolvem entre aqueles que detm o poder de estabelecer e fazer respeitar normas vinculantes e os destinatrios dessas normas, e a outra voltada para o exterior, onde as relaes de domnio se desenvolvem entre o Estado e os outros Estados. No h manual de direito pblico que, tendo de enfrentar o problema da soberania, no comece afirmando que a soberania tem dois aspectos, um interno e outro externo. A distino entre soberania interna e soberania externa , por assim dizer, o -b-c da teoria do Estado.

(BOBBIO, Noberto. Teoria geral da poltica: a filosofia poltica e as lies dos clssicos. Org. Michelangelo Bovero; trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 543.)

CAPTULO 1

A SOBERANIA E SUAS LIMITAES

1 - A formao do conceito de soberania

O homem, incapaz de viver s e caracterizado pela necessidade de

convivncia em grupos, organizou-se socialmente e criou normas de conduta, guardando,

porm, aquilo que constituiu e continua constituindo seu pressuposto bsico: sua

independncia e da sociedade em que vive.

Desta forma, as sociedades politicamente organizadas trazem

intrinsecamente a conscincia da necessidade das condies polticas para que se

preservem independentes e, extrinsecamente, a soberania proclamada e regrada nas leis, ou

traos dela presentes nos costumes.

Atravs da histria, a noo de soberania j encontrada na Grcia antiga,

onde as cidades-Estados possuam auto-suficincia. MELLO1 descreve que a prova da

existncia da soberania na civilizao grega so os institutos que regiam as relaes

internacionais, como o envio de representantes diplomticos, concluses de tratados em p

de igualdade, a realizao de confederaes, bem como a arbitragem para solues de

litgios.

1 MELLO, Celso de Albuquerque. A soberania atravs da histria. In: MELLO, Celso de Albuquerque. (Coord.) Anurio de direito e globalizao 1: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 9.

16

O Imprio Romano tomado cristo tambm apresenta a soberania, com a

materializao formal do jus gentium estabelecendo a distino entre o direito do cidado

romano (jus civile) e o direito do estrangeiro. Como narra NASCIMENTO2, os direitos

reconhecidos ao estrangeiro eram os que se conferiam mediante tratados ou concesses

unilaterais entre comunidades polticas que se tratavam como iguais, sendo um conceito

que influenciaria o desenvolvimento do Direito Internacional Pblico.

A palavra soberania, juntamente com o conceito de soberania absoluta,

como concepo suprema do poder poltico, vai se desenvolver e se afirmar a partir do fim

da Idade Mdia, com a decadncia das relaes feudais, a reforma religiosa e o

aparecimento do capitalismo e do Estado moderno.

DAVID3, citado por MELLO, destaca que as palavras soberano e soberania

aparecem nos ltimos trinta anos do sculo XIII, com as lutas entre senhores feudais,

realeza e Papado, e tomam-se de uso corrente no sculo XIV. MELLO4 descreve que sua

interpretao variava de um povo para outro, mas a idia parece ter sido a de

independncia do Imprio. Mesmo nos perodos histricos anteriores, as noes contidas

na palavra soberania j existiam, mesmo com a inexistncia da grafia desta palavra.

A maior expresso da teoria da soberania vai ser elaborada por Jean Bodin5,

com a publicao, em 1576, da obra Os Seis Livros da Repblica.

MELLO, destaca a figura de FRANKLIN6, para quem Bodin, at 1570,

tinha se sentido dentro do quadro constitucionalista medieval e na sua obra

Mtodo (1566) defende uma soberania limitada. no seu livro de 1576 que ele abandona

2 NASCIMENTO, Walter Vieira do Nascimento. Lies de histria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 113.3 DAVID, Marcel. La souverainet et les limites juridiques du pouvoir monarchique du IX au XV sicle. Apud MELLO, Celso de Albuquerque. A soberania atravs da histria. In: MELLO, C. A. (Coord.) Anurio de direito e globalizao 1: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 10.4 MELLO, C. A. ob. cit., p. 11.5 JEAN BODIN, jurista e poltico francs, viveu na Frana no perodo de luta entre catlicos e huguenotes (protestantes franceses), presenciando o enfraquecimento da Frana no plano internacional. Formulou elementos bsicos da teoria da soberania em seu livro Os Seis Livros da Repblica.6 FRANKLIN, V. Julian H. Jean Bodin et la Naissance de la Thorie Absolutiste. Apud MELLO, C. A. A soberania atravs da histria. In: MELLO, C. A. (Coord.) ob. cit., p. 12.

17

esta posio e vai se tomar no grande terico do absolutismo.

Bodin entende necessrio definir a palavra soberania ao tratar da repblica

(Estado) 1, conceituando-a como (,..)poder absoluto e perptuo de uma repblica

[Estado] 8.

O Estado teria como base as famlias, colocadas sob a autoridade paterna e,

esta ltima, colocada sob a autoridade da potncia soberana no que se refere a questes

pblicas. O poder do Estado seria exercido sobre os sditos, que no so escravos nem

servos9.

Segundo CHTELET, DUHAMEL e PISIER-KOUCHNER10 o

pensamento de Jean Bodin utiliza seu significado mais rigoroso: a potncia soberana

absoluta: ela comanda e no recebe nenhum comando; no depende de nada e de ningum

(...); indivisvel, no sentido de que por essncia una e, se for delegada, est

integralmente em cada delegao; (...) perptua: no poderia sofrer as vicissitudes do

tempo e, por essa razo, transcendente."

O poder absoluto da potncia requeria que o soberano no reconhecesse

nenhuma autoridade acima de si mesmo. Este, detentor do poder de fazer legtimas as leis,

no estava sujeito a elas: poderia conced-las ou revog-las. Porm, estaria sujeito

s leis naturais e divinas11. Outras questes que limitavam o poder soberano eram aquelas

7 BODIN utiliza a palavra repblica em um sentido mais amplo, sem distino entre os termos Repblica e Estado, sem a distino dos termos existentes hoje. Para LUPI, a palavra repblica pode ser substituda por Estado e descreve, em nota de rodap: o uso do termo Estado, deste ponto em diante, ao invs do constante no original, Repblica, deve-se necessidade de evitar o uso de termos diferentes para um mesmo significado, ainda que o termo aqui elegido s estivesse consolidado com a conotao definitiva que se lhe d hoje apenas algum tempo depois de Jean Bodin. Ademais, a diferena entre os termos no essencial, porquanto os autores atuais identificam-nos claramente (...) . LUPI, Andr Lipp Pinto Basto. Multilateralismo e regionalismo: ameaas soberania? 2000, 299 f. Dissertao. (Mestrado em Direito) Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina. 2000, p. 14.8 (...) es el poder absoluto y perpetuo de una repblica. BODIN, Jean. Los Seis Libros de la Repblica. Madrid: Aguilar, 1973, p. 46.9 CHTELET, Franois; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, velyne. Histria das idias polticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 46.10 Idem, p. 47.11 BOBBIO, Noberto. A teoria das formas de governo: pensamento poltico. Trad. Srgio Bath. Braslia: Universidade de Braslia, 1998, p. 86.

18

impostas pelas leis fundamentais do Estado e as leis que regulavam as relaes privadas

entre os sditos. Jean Bodin considerava a sociedade dividida em uma esfera pblica e uma

esfera privada12.

A nao soberana que possusse algum tipo de vnculo jurdico com outros

Estados, resultantes de tratados internacionais, no poderia ser considerada, na expresso

de Jean Bodin, Estado soberano. Assim, o conceito de soberania elaborado por Jean Bodin,

pressupunha a inexistncia de um direito internacional pblico que ligasse diversos

Estados entre si13.

Assim, a concepo de soberania elaborada por Jean Bodin foi fundamental

para trazer um embasamento novo ao poder do Estado, de carter absoluto e perptuo,

admitindo limites como as leis divinas e naturais e os direitos privados. absolutismo vai

solidificar o Estado e converter a sociedade internacional em uma sociedade interestatal,

transformando o Estado em umEstado-soberano14.

A preocupao com a legitimao da soberania na pessoa de seu titular e a

explicao da origem do poder soberano vo culminar com a elaborao de vrias

doutrinas, desde as que sustentam o direito divino dos reis, justificado e imposto pela f,

at as que colocam o povo como titular da soberania15.

Para efeito deste trabalho, importa ver as principais doutrinas democrticas,

fundamentadas no povo como titular da soberania, que influenciariam o Estado moderno.

Thomas Hobbes, nascido em 1588, vincula-se diretamente s idias de Jean

Bodin, defendendo-as com mais rigor. considerado o maior filsofo poltico da Idade

Moderna16.

I2BOBBIO, N. ob. cit., p. 86-87.13 SOARES, Mrio Lcio Quinto. Mercosul: direitos humanos, globalizao e soberania. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 21.14 MELLO, C. A. ob. cit., p. 12.15 BONAVIDES, Paulo. Cincia Poltica. So Paulo: Malheiros, 1999, p. 127.16BOBBIO,N. ob. cit, p. 107.

19

Hobbes17 declara que a origem do Estado est em um contrato firmado entre

os homens, pacto que os organizava quanto s normas sociais e polticas:

Diz-se que um Estado foi institudo quando uma multido de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assemblia de homens a quem seja atribudo pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceo, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, devero autorizar todos os atos e decises desse homem ou assemblia de homens, tal como se fossem seus prprios atos e decises, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes dos homens.

Seguindo o conceito de soberania desenvolvido por Jean Bodin, para

Hobbes a soberania um poder absoluto, porm de um carter mais absoluto do que o

formulado por seu antecessor, no sendo limitado por leis naturais ou divinas porque estas

no so leis positivadas e s existem no nvel da conscincia18. A distino entre o pblico

e o privado, para Hobbes, tambm no existe e o direito de propriedade s existiria, no

Estado, mediante a tutela estatal.19

Assim, Hobbes afirma que s atravs do pacto social se produziria um poder

absoluto ilimitado e necessrio para que este atingisse perfeitamente o seu fim.

Para o autor do Leviat, o contrato estabelecido unicamente entre os membros do grupo que, entre si, concordam em renunciar a seu direito a tudo para entreg-lo a um soberano encarregado de promover a paz. Um tal soberano no precisaria dar satisfaes de sua gesto, sendo responsvel apenas perante Deus sob pena de morte eterna. No submetido a nenhuma lei, o soberano absoluto a prpria fonte legisladora. A obedincia a ele deve ser total, a no ser que ele se tome impotente para assegurar paz durvel e prosperidade. A fim de cumprir sua tarefa, o soberano deve concentrar todos os poderes em suas mos. Os pactos sem espadas no passam de palavras. Segurana interna e externa esto em suas

17 HOBBES, Thomas. Leviat ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. Introd. por Joo Paulo Monteiro. Trad. Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. In: Coleo os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 145.18BOBBIO,N. ob. cit, p. 107.19 Idem, p. 108.

20

mos, as mesmas que detm a legislao suprema e o direito de guerra e paz20.

As idias de Hobbes, inseridas em um processo de lutas sociais e

econmicas entre o poder real e o poder do Parlamento na Inglaterra do sculo XVII21,

desenvolveu a doutrina da vontade popular na teoria do contrato social para a justificao'J0)do poder monrquico .

A doutrina do poder absoluto tambm foi defendida por Rousseau, com

menos rigor que Hobbes, que a transps para a vontade geral ilimitada.

Rousseau elabora sua teoria no livro Contrato Social, escrito m 1757,

defendendo a idia de pacto social, mas propondo uma viso mais democrtica do poder.

BONAVIDES23 expressa a idia de Rousseau, afirmando que a soberania

popular, segundo o autor do Contrato Social e seus discpulos, , to-somente, a soma das

distintas fraes de soberania, que pertencem como atributo a cada indivduo, o qual,

membro da comunidade estatal e detentor dessa parcela do poder soberano fragmentado,

participa ativamente na escolha dos governantes.

A soberania, para Rousseau24, inalienvel, indivisvel e possui limites.

Inalienvel porque representa o exerccio da vontade geral, jamais permitindo a alienao.

O poder pode transmitir-se; no, porm, a vontade 25. A indivisibilidade da soberania

reside na mesma razo da inalienabilidade: ou a vontade geral ou no , residindo, no

segundo caso, numa vontade particular. 26 Os limites da soberania so os limites das27convenes gerais, descrito pelo prprio Rousseau :

20 Nota sobre a biografia de Hobbes apresentada por MONTEIRO, Joo Paulo. Vida e obra. In: HOBBES, Thomas. Leviat ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. Coleo os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 15.21 MONTEIRO, J. P. ob. cit., p. 17.22 BONAVIDES, P. ob. cit., p. 130.23 Idem, p. 130.24 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos Machado. Introd. e notas por Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado.In: Coleo os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1978, Livro Segundo.25 ROUSSEAU, J-J. ob. cit., p. 44.26 Idem.27 Idem, p. 50-51.

21

V-se por a que o poder soberano, por mais absoluto, sagrado e inviolvel que seja, no passa nem pode passar dos limites das convenes gerais e que todo o homem pode dispor plenamente do que lhe foi deixado, por essas convenes, de seus bens e de sua liberdade, de sorte que o soberano jamais tem o direito de onerar mais a um cidado do que a outro, porque, ento, tomando-se particular a questo, seu poder no mais competente.

concepo de soberania, descrita por Rousseau, influenciou fortemente o

desenvolvimento das idias democrticas.

A primeira fase da Revoluo Francesa, na Frana de 1789 a 1791, vai ser o

palco de disputa doutrinria sobre quem seria o titular da soberania, tendo em vista que a

monarquia no existia mais. Segundo MELLO28, a discusso em volta das expresses

soberania nacional e soberania popular, isto , se o seu titular a nao como um todo, ou

se cada indivduo que integra a populao do Estado tem uma parcela na sua titularidade.

Prevalece a teoria da soberania nacional, onde a nao surge como depositria da

autoridade soberana .

A insero dos elementos nao, territrio e governo no conceito de Estado,

titular da soberania, realizada com HegeL, na Alemanha.30 Este introduz em seu livro

Lies de Filosofia da Histria, em 1817, um fundamento geogrfico evoluo histrica

tmitidial. O territrio seria elemento determinante da diferenciao social e restringiria a

liberdade do homem por uma enorme quantidade de vnculos.31 Para Hegel, o Estado

tambm seria dotado de seu elemento popular, que o caracterizaria. BOBBIO32 sublinha

este aspecto: enquanto domnio que abrange uma variedade de povos, o imprio no

possui a determinao caracterstica de todo o Estado, que seu elemento popular (ou

nacional); , na terminologia de Hegel, uma universalidade abstrata (enquanto um

Estado, para ser genuno, deve refletir esprito de um povo, ser uma universalidade

concreta).

28 MELLO, C. A. ob. cit., p. 13.29MONTEIRO, J. P. ob. cit., p. 17.30 SOARES, M. L. Q. ob. cit., p. 23.31 HEGEL, Georg Wilhelm Frieddrich. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid: Alianza, 1999, p. 162.32 BOBBIO, N. ob. cit., p. 150.

22

O Estado, segundo Hegel, deve ser compreendido levando-se em conta a

supremacia do direito pblico, pois as principais caractersticas do direito privado, a

propriedade e o contrato, no serviriam para justificar a realidade do direito publico que

governaria na totalidade, enquanto o direito privado se ocuparia da resoluo de conflitos

entre particulares independentes.33

Os trs elementos descritos por Hegel, compem o Estado soberano,

delimitam como este aparece e reconhecido mundialmente. Na Stima Conferncia

Internacional Americana em Montevidu, em 1933, representantes de governos celebraram

uma Conveno sobre Direitos e Deveres dos Estados, reunindo em seu artigo Io estes trs

elementos como requisitos essenciais para que o Estado seja reconhecido como pessoa de

Direito Internacional34.

A crise de qualquer um destes elementos descritos por Hegel e

delimitadores do Estado at os dias atuais, influenciar na prpria idia de soberania.

REZEK35 descreve: se o Estado, em face de circunstncias peculiares, no

se encontra habilitado a exercer sua jurisdio territorial com generalidade e exclusividade,

entregando a outros Estados encargos de certa monta - como a emisso da moeda, a

representao diplomtica, eventualmente a defesa nacional - , a prpria idia de sua

soberania sofrer desgaste, e isso produzir certas conseqncias.

Quanto ao elemento nao, o Estado soberano no pode privar-se de uma

dimenso pessoal: ele est obrigado, assim, a estabelecer distino entre seus nacionais e

os estrangeiros. (...) Mal se pode compreender, mesmo em pura teoria, a existncia de um

Estado cuja dimenso humana fosse toda ela integrada por estrangeiros, e cujo governo3soberano se encontrasse nas mos de sditos de outros pases.

33 BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. So Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 132.34 ARAJO, Luis Ivani de Amorim. Curso de direito internacional pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 109.35 REZEK, Jos Francisco. Direito internacional pblico: curso elementar. So Paulo: Saraiva, 2000, p. 154.36 Idem, p. 172.

23

Sobre o governo, a soberania no elemento distinto: ela atributo da

ordem jurdica, do sistema de autoridade, ou mais simplesmente do terceiro elemento, o

governo, visto este como sntese do segundo - a dimenso pessoal do Estado - , e37projetando-se sobre seu suporte fsico, o territrio.

A evoluo histrica da soberania, portanto, parte de uma perspectiva

externa, com traos de sua existncia na Grcia antiga, para desenvolver-se principalmente

como teoria interna do Estado (embora possusse traos externos), nas formulaes de Jean

Bodin, Hobbes, Rousseau e Hegel. Com os dois primeiros, a soberania assume seu carter

absoluto no soberano, neste concentrando todo o poder. Hobbes, porm, eleva maior

concentrao de poder, pois o soberano no limitado pelo direito divino, nem as leis

naturais e nem os direitos privados, como o soberano de Jean Bodin.

Rousseau expressa a idia de soberania popular, transpondo para a soberania

absoluta a vontade geral ilimitada. Com a propagao de suas idias e a Revoluo

Francesa, surge a teoria da soberania nacional, onde o titular da democracia passa a ser a

nao como um todo, onde estaria colocado todo o poder soberano.

Hegel introduz no conceito de Estado elementos que influem ou

caracterizam o prprio conceito de soberania, que so: territrio, governo e nao. Assim,

a evoluo do conceito de soberania o bero para o desenvolvimento do Estado no plano

internacional.

2 - A soberania no plano internacional

A soberania se exterioriza no plano internacional e este tambm influi para

caracteriz-la. O aspecto extemo da soberania vai ser evidenciado na sociedade

internacional e ser objeto deste estudo. MELLO38 expe com preciso os aspectos da

soberania:

37KEZEK, J. F. ob. cit., p. 217.38 MELLO, C. A. ob. cit., p. 17.

24

A soberania tem um aspecto interno e um aspecto externo.O primeiro se manifesta nos diferentes poderes do Estado: no Legislativo, Executivo e Judicirio. Ele a consagrao do direito de autodeterminao, isto , o direito do Estado de ter o Governo e as leis que bem entender sem sofrer interferncia estrangeira. O aspecto externo o direito independncia que se manifesta no: a) direito de conveno; b) direito igualdade jurdica; c) direito de legao; d) direito ao respeito mtuo.

Como descrito, desde Grcia antiga a noo de soberania manifesta o seu

aspecto externo, com a realizao de tratados, confederaes, dentre outros institutos de

relaes internacionais.39

Embora a elaborao do conceito formal de soberania com Jean Bodin tenha

privilegiado o aspecto interno desta, a partir do sculo XVI tm-se uma modesta expresso

do direito internacional, formando uma ligao entre os diversos Estados soberanos,

gerando direitos e obrigaes entre os mesmos.

Em 1625, Grcio40 publica sua obra Direito da Guerra e da Paz, onde,

apresentando uma teoria da guerra, demonstra o aspecto externo da soberania, presente na

relao entre Estados. Nesse sentido, importante transcrever as palavras de BOBBIO41:

A teoria do Estado moderno avana lado a lado com a teoria de guerra, ou seja, o De iure belli ac pacis de Grotius (1625) est no meio dos dois grandes tratados sobre o Estado, nos quais apresentado em novos termos o problema central da soberania como carter fundamental do grande Estado territorial, a soberania entendida exatamente como o poder exclusivo de dispor da fora em um determinado territrio: A Repblica de Bodin (1576) e O Leviat de Hobbes (1651).

39 Conforme REZEK: o primeiro registro seguro da celebrao de um tratado, naturalmente bilateral, o que se refere paz entre Hatusil III, rei dos hititas e Ramss II, fara egpcio da XICa dinastia. Esse tratado, pondo fim guerra nas terras srias, num momento situado entre 1280 e 1272 a.C., disps sobre a paz perptua entre os dois reinos, aliana contra os inimigos comuns, comrcio, migraes e extradio. REZEK, J. F. ob. cit., p. 11.40 Hugo Grcio, nascido em 1583 na Repblica Holandesa e posteriormente exilado na Frana, escreveu o Direito da Guerra e da Paz abrindo uma porta para o direito internacional, ao falar da relao entre Estados.41 BOBBIO, Noberto. Teoria geral da poltica: a filosofia poltica e as lies dos clssicos. Org. Michelangelo Bovero; trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 545.

25

No sculo XVIII, Emerich de Vattel, discpulo de Grcio, estrutura a noo

de soberania na doutrina do direito internacional, enfatizando que qualquer nao que

governe a si prpria, sob qualquer forma que seja, sem dependncia de estrangeiros, um

Estado soberano.42

Lorde Bolingbroke, tambm no sculo XVIII, inicia a poltica de equilbrio

do poder com a realizao de tratados continentais, na Europa, visando defender as grandes

monarquias e evitando que um Estado sozinho passasse a impor sua vontade aos demais,

desaparecendo a soberania destes.43

O sculo XIX, com incio aps a Revoluo Francesa e prolongado at

Primeira Guerra Mundial, ser marcado pela manifestao da soberania no plano

internacional. Segundo as palavras de MELLO44:

A poltica externa e interna individualista, vai ser a Era das Revolues, mas tambm a Era do Capital. O liberalismo econmico conduz a um individualismo na poltica, mas tambm na poltica externa que dominada pela figura do Estado nacional. H um verdadeiro darwinismo nas relaes internacionais, s deve se transformar em Estado a nao que dispuser de meios econmicos para sobreviver como tal.A prpria filosofia poltica influenciada pelo hegelianismo conduz a um verdadeiro endeusamento do Estado, vez que ele a encarnao do esprito universal, e a mais importante das realizaes do homem.O Direito, influenciado por este pensamento, vai afirmar que o Estado no pode se obrigar a nenhuma norma jurdica que no tenha emanado da sua prpria vontade.

Aps a Primeira Guerra Mundial, passam a ter expresso duas teorias acerca

do direito no plano internacional e no plano interno.

A primeira teoria, chamada dualista, tendo como representantes Cari

Heinrich Triepel, na Alemanha, e Dionisio Anzilotti, na Itlia, defendia que o direito

42 No original: toute nation qui se gouverne elle mme sous quelque forme que ce soit, sans dpendance d aucun tranger, est un Etat souverain... VATTEL, citado por VERDROSS. In: VERDROSS, apud SOARES, M. L. Q. ob. cit., p. 21.43MELLO, C. A. ob. cit., p. 12.44 Idem, p. 13-14.

26

internacional e o direito interno de cada Estado so sistemas rigorosamente independentes

e distintos, de tal modo que a validade jurdica de uma norma interna no se condiciona

sua sintonia com a ordem internacional.44 Enfatiza, esta teoria, que a diversidade de

produo das normas jurdicas, lembrando sempre os limites de validade de todo direito

nacional, e observando que a norma do direito das gentes no opera no interior de qualquer

Estado seno quando este, havendo-a aceito, promove-lhe a introduo no plano

domstico.45

Outra teoria de expresso foi a teoria dos autores monistas, colocando em

um mesmo plano uniforme o direito internacional e o direito interno. Os autores dividiram

esta teoria em duas correntes: uma sustenta a unicidade da ordem jurdica sob o primado

do direito internacional, a que se ajustariam todas as ordens internas. Outra apregoa o

primado do direito nacional de cada estado soberano, sob cuja tica a adoo dos preceitos

do direito internacional reponta como uma faculdade discricionria. 46

Hans Kelsen o principal representante da doutrina monista sob o primado

do direito internacional, expressando-a na obra Teoria Geral do Estado e do Direito.

Demonstra no haver nenhuma fronteira absoluta entre normas de direito internacional e

direito nacional, afirmando ser incompatvel a noo tradicional de soberania com a

expresso do direito internacional e o estabelecimento de ordem jurdica internacional.47

Segundo REZEK48, os monistas kelsianos voltam-se para a perspectiva ideal de que se

instaure um dia a ordem nica, e denunciam, desde logo, luz da realidade, o erro da idia

de que o Estado soberano tenha podido outrora, ou possa hoje, sobreviver numa situao

de hostilidade ou indiferena frente ao conjunto de princpios e normas que compem o

direito das gentes.

44 REZEK, J. F. ob. cit.,p. 4.45 Idem, p. 5.46Idem, p. 4.47 SOARES, M. L.Q. ob. cit., p. 24-25.48 REZEK, J. F. ob. cit., p. 4.

27

Quanto ao monismo nacionalista, tem como principais representantes

autores soviticos e alguns adeptos avulsos na Frana e na Alemanha, dando enfoque

especial soberania de cada Estado e descentralizao da sociedade internacional,

tendendo ao culto da constituio, estimando que no seu texto, ao qual nenhum outro

pode sobrepor-se na hora presente, h de encontrar-se notcia do exato grau de prestgio a

ser atribudo s normas internacionais escritas e costumeiras. 49

Assim, a noo de soberania, importante para a formao do Estado

moderno, mostra a sua face externa na ordem internacional. MELLO50 descreve sobre a

tendncia atual a da soberania existir como um conceito meramente formal, isto , estado

soberano aquele que se encontra direta e imediatamente subordinado ao DIP, no

levando em considerao as duas faces da soberania: interna e externa.

BOBBIO51 distingue perfeitamente as expresses internas e externas da

soberania estatal:

Creio seja dispensvel enfatizar a diferena fundamental existente entre o tipo de relaes que se estabelecem entre o Estado e os seus membros, e o tipo de relaes que se estabelecem entre um Estado e outros Estados. Limitando-me a chamar a ateno para a diferena fundamental, mesmo que seja uma banalidade: no que se refere aos seus cidados, o Estado detm o monoplio da fora legtima, enquanto no o detm no que se refere aos outros Estados. Nas relaes internacionais, a fora como fonte do poder usada em regime de livre concorrncia, livre, entenda-se, como toda a forma de concorrncia que nunca se estabelece entre entidades perfeitamente iguais. O nmero desses entes pode mudar (...) Importante que sejam mais de um. L onde os entes soberanos, e como tal independentes, so mais de um a sua relao uma relao qualitativamente distinta da relao entre Estado e cidados, porque uma relao de tipo contratual, cuja fora vinculante depende exclusivamente do princpio de reciprocidade, enquanto a relao Estado-cidado uma relao, no importa o que digam, tambm no Estado democrtico, entre superior e inferior, do tipo comando-obedincia.

49REZEK, J. F. ob. cit., p. 4.50 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito constitucional internacional: uma introduo: constituio de 1988 revista em 1994. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 131.51 BOBBIO, Noberto. Teoria geral da poltica: a filosofia poltica e as lies dos clssicos, ob. cit., p. 544- 545.

28

Mesmo com as teorias explicativas para o problema da soberania no plano

internacional e nacional, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com os Estados

entendendo-se no auto-suficientes e reforando a mentalidade de que a cooperao,

inclusive a obtida alm dos limites das fronteiras, condio importante para o seu

desenvolvimento52, vrios autores tm-se manifestado em uma reviso do tema soberania,

descrita nos itens que se seguem.

3 - Caractersticas da soberania

A soberania, alm das suas faces interna e externa, possui caractersticas que

a nortearam atravs da histria. Ver-se-, neste item, alguns aspectos conceituais refletidos

pela soberania.

3 . 1 - 0 carter poltico

Segundo SOARES53, a soberania afigura-se, em sua origem histrica,

como concepo de ndole poltica, que no decorrer do processo histrico se condensou em

ndole jurdica.A elaborao do conceito de soberania por Jean Bodin concebia a soberania

estatal como poder supremo sobre os cidados e sditos, independente das leis positivas.54

52 BASSO, Maristela. O direito de empresa na nova ordem econmica internacional: princpios de direito internacional pblico, direito internacional privado e direito internacional tributrio. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; FONSECA, Jos Roberto Franco da. O direito internacional no terceiro milnio: estudos em homenagem ao professor Vicente Marotta Rangel. So Paulo: LTR, 1998, p. 120.53 SOARES, M. L. Q. ob. cit., p. 20.54Idem, p. 21.

29

MELLO55 vem citar o contedo poltico da soberania como fundamento

criao do Estado moderno:

A noo de soberania, ao servir de fundamento ao Estado moderno e tendo como titular apenas o Rei, ocasionava uma unificao do Poder que vai eliminar as guerras civis, ou religiosas, o que permitiu o desenvolvimento de uma vida econmica. Por outro lado, as normas de cunho religioso que limitavam as atividades econmicas so abandonadas. Fala-se no direito divino dos reis para legitimar o poder poltico, mas o Rei administra o seu domnio como uma empresa. Acresce, ainda, que o espao econmico mais amplo, com o esfacelamento do feudalismo. A circulao de mercadorias passa a ser realizada com mais segurana. O Estado precisava assegurar a tranqilidade poltica e se proteger contra inimigos externos. As armas modernas no esto mais ao alcance financeiro dos senhores feudais. Tudo conduz unificao do Poder e da criao do Estado.

O carter jurdico da soberania descrito coerentemente na teoria de

BOBBIO56, mostrando a diferena entre a figurao e a realidade da vida poltica.

O poder que faz de um soberano um soberano, que faz o estado - visto como unidade de domnio, e portanto como totalidade - surgir da sociedade composta de partes em mutveis e efmeras relaes entre si, o poder legislativo. A idia da comunidade poltica, da plis grega ao estado moderno, est estreitamente ligada, em oposio ao estado de natureza, idia de uma totalidade que mantm unidas partes que de outra forma estariam em perptuo conflito entre si. (...) Trata-se porm de uma figurao. A realidade da vida poltica bem diferente. A vida poltica se desenvolve atravs de conflitos jamais resolvidos em definitivos, e cuja resoluo acontece mediante acordos momentneos, trguas e esses tratados de paz mais duradouros que so as constituies. Este contraste entre a figurao e a realidade pode ser bem exemplificado pela no coincidncia entre a ininterrupta continuidade do conflito secular, tpico da idade moderna, que ope camadas e monarca, parlamentos e coroa, e a doutrina do estado, baseada sobre o conceito de soberania, de unidade de poder, de primado do poder legislativo, e que vai sendo elaborada naquele mesmo perodo de tempo por obra dos escritores polticos e de direito pblico, de Bodin a Rousseau, de Hobbes a Hegel.

55 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito internacional de integrao. Rio de Janeiro: Renovar, p.121.56 BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. ob. cit., p. 131-132.

30

O carter poltico da soberania liga-se diretamente noo de poder que vai

exercer o Estado soberano na sociedade poltica. O Estado soberano, como detentor da

fonte do poder poltico, impe aos seus cidados a supremacia do poder poltico: a fora

legtima.57 Observa-se que esta qualidade da soberania expressa-se mais livremente na

face interna do Estado, ainda que dentro deste ocorra um pluralismo de fontes de

produo jurdica (...) [contendo] os poderes dispersos pelos sistemas sociais.58

No mbito externo, o carter poltico da soberania ser exercido mediante o

princpio de reciprocidade59 j que a relao entre Estados do tipo contratual e o uso da

fora, neste caso, pode levar guerra60. So palavras de BOBBIO61:

Uma vez que a fonte ltima do poder a fora - entendo por poder poltico, de fato, o poder que se vale, como instrumento para obter os efeitos desejados, da fora fsica, ainda que em ltima instncia - , a diferena entre uso da fora em regime de monoplio e o uso da fora em regime de livre concorrncia que apenas neste segundo caso o us da fora pode se transformar naquele fenmeno to caracterstico das relaes entre grupos independentes (...) que a guerra.

Para que a soberania possa ser exercida em uma comunidade poltica,

aliado ao poder do Estado soberano faz-se mister a presena da lei, mantendo unidas as

partes que de outra forma estariam em perptuo conflito entre si. O que assegura a unidade

do todo a lei, e quem tem o poder de fazer as leis, de condere leges, o soberano.

57 BOBBIO, N. Teoria geral da poltica: a filosofia poltica e as lies dos clssicos, ob. cit., p. 544.58 DOBROWOLSKI, Slvio. O poder judicirio e a constituio. In: DOBROWOLSKI, Slvio. (Org.) A Constituio no mundo globalizado. Florianpolis: Diploma Legal, 2000, p. 305.59 MELLO identifica o princpio da reciprocidade como um comportamento entre Estados, operando uma transao, vinculado a outro princpio que rege as relaes internacionais: o princpio da igualdade. In: MELLO, C. D. de A. Direito constitucional internacional: uma introduo: constituio de 1988 revista em1994. ob. cit., p. 141.60 BOBBIO, N. Teoria geral da poltica: a filosofia poltica e as lies dos clssicos, ob. cit., p. 544- 545.61 Idem.62 BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. ob. cit., p. 131.

31

3.2 - O carter jurdico

Como j dito, o Estado moderno soberano, para expressar-se como poder

poltico, utiliza a presena da lei para regular as relaes sociais e unir as partes em tomo

do ente estatal.

Nas palavras de BOBBIO63: a teoria do estado moderno est toda centrada

na figura da lei como principal fonte de padronizao das relaes de convivncia,

contraposta figura do contrato, cuja fora normativa est subordinada da lei, se

explcita apenas nos limites de validade estabelecidos pela lei (...).

A soberania, desta forma, surge da ordenao jurdica positiva que regula o

ente estatal. Essa ordenao positivada que vai dizer o que soberania.64 Assim,

conforme LEAL65:

a soberania no mais regulada como qualidade intrnseca e exclusiva do Estado, mas este que se legitima atravs dela. A Carta Magna brasileira, embora nesse ponto confusa e retrica, registrou o significado moderno que a soberania assumiu no seu ciclo histrico de buscar no povo de uma nao, muito antes que no Estado, a fonte de sua prpria existncia, eficcia e legitimidade jurdicas. A pluralidade de princpios jurdicos, que informam hoje o conceito de soberania, confere-lhe a categoria de instituio nacional, porque ela atualmente pressupe a reunio de princpios, regras e institutos jurdicos que constituem direitos fundamentais da pessoa humana (...)

Considerada como instituio jurdica no Estado moderno, a soberania

positivada possibilita a existncia da ordem social e afasta da comunidade poltica a

violncia natural dos indivduos, uma vez que a coero externa, atravs do monoplio da

fora legtima, estaria presente no ordenamento jurdico.66

63 BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. ob. cit., p. 131.64 LEAL, Rosemiro Pereira. Soberania e mercado mundial: a crise jurdica das economias nacionais. So Paulo: LED, 1999, p. 34.65 Idem, p. 35.66 SOARES, M. L. Q. ob. cit., p. 23.

32

3.3 - O carter econmico

Desde a era dos descobrimentos iniciada pelos europeus, a economia de um

Estado estava sempre entrelaada com a do outro, o que criava uma dificuldade para se

falar em independncia econmica. Todavia, no se pode negar que havia sempre um

grupo de Estados mais soberanos economicamente do que outros, eram os que tinham

economias dominantes (...).67

V-se outra caracterstica da soberania que a influencia profundamente: o

carter econmico. No aspecto interno, a soberania de um Estado tambm depende de sua

independncia econmica.

Conforme CASELLA68, o nacionalismo econmico, indo alm de mera

poltica comercial do nacionalismo poltico, manifesta-se de modos muito mais variados e

freqentes de que este. Pode-se (...) detectar sua ocorrncia na medida em que favorece a

independncia econmica do Estado, mesmo ao preo do desenvolvimento, apresentando-

se a este como fundamento e expresso da liberdade e da soberania nacionais.

Esta independncia econmica, porm, vai alm do conjunto de suas

atividades pblicas, empresariais e particulares 69, muito maior e, assim, caracteriza-se

tambm no plano externo, onde ocorrem prticas poltico-econmicas.

Segundo LEAL70: na rbita da atividade econmica de um Estado do

Terceiro Mundo, se a cincia econmica e a disciplinao jurdico-econmica no

atentarem para uma quarta componente que a realidade econmica mundial, onde se

contm todas as economias nacionais, as polticas econmicas nacionais adotadas e os

direitos fundamentais de soberania popular sero fatalmente incuos.

67 MELLO, C. A. A soberania atravs da histria, ob. cit., p. 7.68 CASELLA, Paulo B. Mercosul, exigncias eperspectivas: integrao e consolidao do espao econmico. So Paulo: LTr, 1996, p. 82.69LEAL, R. P. ob. cit., p. 43.70Idem, p. 43.

33

As relaes internacionais, no aspecto econmico, alcanam uma imensa

abrangncia, chegando alguns autores, como SILVA71, a descreverem: a formao de

blocos econmicos regionais corresponde viso de que, no futuro, as questes

econmicas tendero a prevalecer, ocupando o lugar central antes conferido aos assuntos

de segurana militar.

Assim, o aspecto econmico tambm faz parte de um contexto

internacional, onde, e como j citado, sua relao qualitativamente distinta da relao

entre Estado e cidados, porque uma relao de tipo contratual, cuja fora vinculante

depende exclusivamente do princpio de reciprocidade. 72

4 - A crise do conceito de soberania: soberania relativa

A noo de soberania relativa desenvolveu-se, principalmente, a partir do

trmino da Segunda Guerra Mundial com o incio da formao dos blocos econmicos. Vai

centrar-se em dois fatores principais: o Direito Internacional Pblico e a situao

econmica mundial.

O Estado, detentor da soberania, est inserido em uma ordem internacional e

diretamente subordinado ao DIP. Assim, conforme a posio defendida por MELLO73:

a palavra Estado s tem sentido em uma sociedade internacional. Se houvesse um nico

Estado mundial, a palavra Estado no teria qualquer significado e talvez no fosse nem

denominado de Estado mundial, mas apenas de governo mundial. Nunca houve de fato

uma soberania absoluta, a no ser na cabea dos juristas, porque ela inviabilizaria uma

sociedade internacional e o prprio DIP que surge concomitantemente com ela.

71 SILVA, Roberto Luiz. Direito econmico internacional e direito comunitrio. Belo Horizonte: Del Rey,1995, p. 47.72 BOBBIO, N. Teoria geral da poltica: a filosofia poltica e as lies dos clssicos, ob. cit., p. 544.73 MELLO, C. A. A soberania atravs da histria, ob. cit., p. 14.

34

No aspecto econmico, MELLO74 defende a posio de que a integrao

econmica tem afetado a noo de soberania: no h dvida de que nas polticas de

integrao econmica75 os Estados tm renunciado a setores importantes da sua soberania.

Elas so criadas e movidas pelos Estados, so instrumentos para a defesa econmica dos

Estados, tendo assim este efeito paradoxal, isto , defendem a economia estatal, mas para

que isto ocorra, eles renunciam em favor de um organismo internacional a uma srie de

suas competncias soberanas.

No mesmo entendimento, visualizando a eroso da soberania,

BONAVIDES76 cita:

Estaramos assistindo, assim, ao fim do Estado onipotente no campo econmico, poltico e social. A superfcie poltica da instituio j no coincidiria com a superfcie scio-econmica. Transcendendo as fronteiras do Estado, teria a economia produzido instncias decisrias de poder vital sobre o destino das coletividades nacionais, que escapariam jurisdio do Estado soberano clssico. Territrio poltico e territrio econmico se dissociaram.

Assim, para efeito deste trabalho, pode-se conceituar soberania relativa

como uma caracterstica do Estado moderno, cujo contedo se encontra direta e

imediatamente subordinado ao DIP11, observadas as relaes internacionais ocorrentes na

vida econmica, social e cultural.78

Analisando a soberania atravs da histria, MELLO79 ainda vai alm e prev

que esta tende a desaparecer:

74 MELLO, C. A. A soberania atravs da histria, op. cit., p. 19.75 Integrao econmica, segundo Lima, aquela que engloba os trs fatores produtivos: matria-prima, trabalho e capital, em tomo dos quais se desenvolvem as relaes de produo, objeto de estudo do Direito Econmico. In: LIMA, Srgio Mouro Corra. Tratados internacionais no Brasil e integrao. So Paulo: LTr, 1998, p. 98.76 BONAVIDES, P. Reflexes: poltica e direito. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 162.77 MELLO, C. A. Direito constitucional internacional: uma introduo: constituio de 1988 revista em 1994. ob. cit., p. 131.78 Idem.79 MELLO, C. A. A soberania atravs da histria, ob. cit., p. 22.

35

A noo de soberania se transforma cada vez mais em uma palavra oca, sem contedo. E um mero critrio formal na caracterizao do Estado.Ela entretanto um fenmeno que provoca a sua anttese, que o localismo, ou ainda, se quisermos o etnocentrismo que tem renascido com grande intensidade. Tem sido observado que tal fato ocorre devido perda de pontos de referncia ou de apoio que os indivduos necessitam para conduzir a sua vida. A conseqncia o esfacelamento de alguns grandes Estados e o aparecimento de pequenos Estados extremamente vulnerveis s empresas transnacionais80 que promovem a globalizao.Vivemos assim o incio da era de desaparecimento do Estado e, em conseqncia, da soberania.

Esse argumento, entretanto, est longe de ensejar unanimidade na doutrina.

certo que existem expresses de nveis organizacionais de Estado, necessrias para a

satisfao de interesses setoriais, que dominam o poder econmico, social e cultural e que

tm ensejado repercusses com restries das relaes internacionais ocorrentes nessas

reas. Este fato, porm, no pode servir para relativizar o conceito de soberania, pois, ainda

que sejam organismos detentores de poder de deciso, estes grupos no possuem uma

populao e um territrio onde [possam] exercer de maneira exclusiva os tradicionais

poderes soberanos. 81

Ressalte-se, ainda, que mesmo entre os Estado soberanos, aparecem no

contexto internacional uns mais soberanos que os outros, expressando maior liberdade e

independncia. Assim, existem Estados realmente capazes de defender de modo

autnomo, ou com a prpria fora, os seus interesses (...) [onde] uma tal situao implica

automaticamente que as decises fundamentais de que depende a evoluo das relaes

internacionais sejam tomadas pelas grandes potncias (...).82

80 Transnacionalizao, conforme PUREZA, a transferncia de fatores produtivos ou de segmentos do circuito de produo de uma economia nacional para outra ou outras unidades. Supe uma perda da ligao entre produo nacional e mercado nacional. In: PUREZA, Jos Manuel. O patrimnio comum da humanidade: rumo a um direito internacional da humanidade? Porto: Afrontamento, 1998, p. 39.81 BOBBIO, Noberto; NICOLA, Matteucci; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de poltica. Braslia: Universidade de Braslia, 2000. 2 v., p. 1187.82 Idem, p. 1191.

36

Portanto, o papel dominante das grandes potncias configura uma espcie de

Governo que no poder ser comparado ao Governo soberano existente dentro de um

Estado.83 Enquanto as decises soberanas implica na imposio pelo poder irresistvel do

Estado, mediante a ao conjunta dos seus rgos 84, ao contrrio,

as decises de valor internacional das grandes potncias, tomadas com base nas relaes de fora entre grupos armados, ou mesmo na guerra, e traduzidas em norma de direito internacional, tratados de vrios gneros, alianas, distribuio de zonas de influncia, regras formais e informais, etc., possuem sempre uma eficcia estruturalmente inferior em comparao com as decises internas dos Estados e criam situaes estruturalmente mais precria e aleatria. 85

Outro conceito atualmente discutido, descrito a ttulo de conhecimento pois

no objeto de estudo desta dissertao, a idia de soberania compartilhada, ou seja, os

Estados Nacionais, ao transferirem certos poderes ao rgo supranacional86,

compartilham o poder soberano. E isso se d, tanto na produo de normas jurdicas quanto

na interpretao e aplicao das mesmas, por exemplo. 87

Exemplo de soberania compartilhada a Unio Europia, caracterizada por

um sistema institucional onde, atravs de Tratados, os Estados-membros passaram a

autorizar diversos actos de delegao de soberania em beneficio de rgos independentes

que representam simultaneamente os interesses nacionais e o interesse comunitrio,

estando interligados por relaes de complementariedade de que decorre o processo de

deciso. 88

83 BOBBIO, N.; N1COLA, M.; PASQUINO, G. ob. cit., p. 1092.84 Idetn.85 Idem.86 Supranacionalidade um conceito explicado por um ramo recente do direito, o direito comunitrio, consistindo na reunio de trs elementos: a presena de valores ou interesses comuns, a estrutura institucional colocada a servio dos objetivos comuns e a autonomia dessa estrutura. In: LORENTZ, Adriane Cludia Melo. Supranacionalidade no mercosul: a doutrina, os governos, a constituio federal e os tratados de integrao. Curitiba: Juru, 2001, p. 20.87 Idem, p. 28.88 DOCUMENTAO europia - 10 lies sobre a Europa. Disponvel em:. Acesso em: 25 ago. 2001

http://europa.eu.int/comm/dgl0/publications/brochures/docu/101econs/txt_pt.html

37

5 - 0 processo de internacionalizao

Com o crescimento das relaes internacionais, aparecem conceitos que

indicam os fenmenos ocorrentes no mbito externo, fundamentais para se pensar em

termos globais. Um dos fenmenos que vem ocorrendo com freqncia a

internacionalizao, tratada como uma ameaa soberania dos Estados e amplo palco de

discusses.

Para dar seqncia exposio, necessrio ser esboar um conceito de

internacionalizao e diferenci-lo de conceitos como transnacionalizao e globalizao.

O vocbulo internacionalizao comeou a fazer parte do cotidiano poltico

a partir da segunda metade do sculo XIX, inicialmente usado para indicar idias e

fenmenos polticos diversos, caracterizados (...) pela preponderncia atribuda

comunidade de interesse das naes, solidariedade poltica e econmica de todos os

povos e ao seu desejo de cooperao mtua, sobre os interesses e mbeis nacional-

estaduais. 89

As tendncias que formam esse conceito so a aspirao humanitria a uma

comunidade de idias e de ideais capaz de unir todos os povos numa s sociedade civil, o

esforo por fazer avanar a causa da paz por meio de um sistema de instituies e normas

supranacionais, como a arbitragem obrigatria e as cortes internacionais de justia, ou a

utopia da completa liberalizao das trocas comerciais, visando a ajustar as relaes

mundiais a uma suposta harmonia de interesses de todos os povos.90

PUREZA91 define internacionalizao delimitando o seu contedo e

distinguindo-a do termo globalizao. Nas suas palavras, o fato central desse processo o

deslocamento de efeitos econmicos e sociais de um pas para o outro, sem a perda das

razes do pas de origem

89 BOBBIO, Noberto; NICOLA, Matteucci; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de poltica. Braslia: Universidade de Braslia, 2000. 1 v., p. 642-643.90 Idem, p. 643.91 PUREZA, J. M. ob. cit., p. 39.

38

Todos os fluxos de trocas entre Estados, seja de matrias-primas, de componentes ou de produtos acabados, sejam fluxos financeiros ou de pessoas, se reconduzem ao conceito de internacionalizao. O que relevante nos seus protagonistas, sejam eles o Estado ou agentes privados, a sua condio de actores nacionais, representantes de uma comunidade territorialmente situada que , enquanto tal e dessa forma, a unidade que conta no processo de internacionalizao. So, pois, a economia nacional e a sociedade nacional que relevam para efeitos do processo de internacionalizao. A deslocao de um pas para o outro, sem perda de razes ou de referncia principal ao pas de origem, constitui o facto central deste processo. Alm de protagonista, o Estado directamente o regulador das formas de internacionalizao, atravs do controle pblico sobre a intensidade dos fluxos de trocas (via poltica cambial, poltica tributria, exigncia de requisitos tcnicos ou regulamentao da concorrncia) ou da circulao de pessoas (via regulamentao do direito de asilo, da atribuio de nacionalidade ou do reconhecimento de direitos a trabalhadores estrangeiros). 92

Esse processo de deslocamento de um pas para o outro por representantes

de uma comunidade estabelecida territorialmente, segundo BENCHIMOL93, levaria

transferncia, parcial ou total, da soberania medida que outras comunidades, diferentes

da nacional, assumiriam no territrio de um Estado direitos e deveres perante a

comunidade internacional, que antes eram exercidos apenas pelo titular da soberania.

Uma etapa intermediria entre a internacionalizao e a globalizao a

chamada transnacionalizao, que tem lgica desterritorializadora de parcelas ou

momentos do circuito produtivo e, como exposto, traduz-se na transferncia de fatores

produtivos ou de partes do circuito de produo de uma economia nacional para outra ou

outras, fazendo esta parte da produo perder o territrio do seu pas de origem94

A transnacionalizao um fenmeno que se formou completamente com

o amadurecimento do sistema de Estados-naes, um acontecimento do sculo XX que

alcanou sua plenitude aps a Segunda Guerra Mundial, com o processo de

92 PUREZA, J. M. ob. cit., p. 39.93 BENCHIMOL, Samuel. Amaznia: planetarizao e moratria ecolgica. Manaus: ISEA, 1989, p. 32.94 Idem.

39

descolonizao 95 e com o exacerbamento de processos de globalizao, algo que s

poderia atingir o presente nvel aps os avanos tecnolgicos nas indstrias de

comunicao e transportes ocorridos nas ltimas duas ou trs dcadas. 96

O divisor entre internacionalizao e globalizao (termos amplamente

utilizados e, s vezes, sem distino) reside na extenso e profundidade da globalizao,

muito mais intenso:

(...) por um lado ela [globalizao] retm vim conjunto de processos equacionados escala do mundo e que actuam mundialmente; a globalizao tem, pois, uma conotao espacial. Por outro lado, essa mundializao pressupe uma intensificao dos diferentes canais tradicionais de internacionalizao e de transnacinalizao, algo que se tomou j sensvel desde a segunda metade da dcada de oitenta, e uma cada vez maior articulao entre esses canais, formando redes de grande densidade. 97

A globalizao situa-se alm do plano econmico, no qual o resultado da

desregulamentao dos mercados e da expanso global do princpio do mercado como

instncia regulamentadora da atividade econmica. 98 Vai alm, como descreve

GIDDENS99, intensificando as relaes sociais de escala mundial, relaes que ligam

localidades distantes de tal maneira que as ocorrncias locais so moldadas por

acontecimentos que se do a muitos quilmetros de distncia, e vive-versa. Assim,

globalizam-se as instituies, os princpios jurdico-polticos, os padres scio-culturais e

os ideais que constituem as condies e os produtos civilizatrios do capitalismo (...) da

mesma forma que se d a desestatizao, a desregulao, a privatizao, a abertura de

mercados e a monitorizao das polticas econmicas pelas tecnocracias (...).10

95 RIBEIRO, Gustavo Lins. Cultura epoltica no mundo contemporneo. Braslia: UnB, 2000, p. 98.96 Idem.97 PUREZA, J. M. ob. cit., p. 40.98 Idem.99 GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade. So Paulo: UNESP, 1991, p. 50.100 IANNI, Octvio. Teorias da globalizao. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 58.

40

A formulao do conceito de internacionalizao ter grande influncia no

desenvolvimento e concluso desta dissertao, j que no se falar em criao de um

territrio mundial independente, invocando o motivo de proteo ambiental. Assim,

escreve CARVALHO101: a internacionalizao aqui no compreendida como um

fenmeno poltico, que daria ensejo criao de um territrio independente apartado do

territrio ptrio onde tremularia a bandeira das Naes Unidas ou de algum dos seus

membros em representao aos interesses da raa humana. Esta proposta no passa de

fico.

O certo que diversos elementos contemporneos tm demonstrado

interesse no processo de internacionalizao d regio Amaznica, sem a necessidade de

uma apropriao fsica 102 da mesma.

101 CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. O processo de internacionalizao da amaznia legal: aspectos poltico-histricos e neocolonialismo expropriatrio. 2000. Paper. (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina. 2000, p. 17.102 Idem, p. 4.

CAPTULO II

Na histria j longa de quase cinco sculos [e, tambm, de muito antes] de formao da Amaznia, a aproximao do homem ao lugar foi lenta, cautelosa, como se os mitos e as riquezas presumveis s pudessem ser alcanados no ritmo e ao sabor de guardies indomveis, nicos conhecedores dos caminhos, ltimos detentores da sabedoria recolhida nas florestas.

(COELHO, Pedro Motta Pinto. Fronteiras na Amaznia: um espao integrado. Braslia: IPRI, 1992, p. 13.)

CAPTULO II

POLTICAS PBLICAS SOBERANAS NA PROTEO DA AMAZNIA

BRASILEIRA

1 - 0 que a Amaznia brasileira

A Amaznia, rea de grandes riquezas e imensas belezas que se erguem

vaidosas, apresenta-se com a arrogncia de quem domina o globo terrestre. Existe graas

ao ecossistema amaznico, caracterizado principalmente pela bacia hidrogrfica do rio

Amazonas, tendo este rio 6.740 Km de extenso e uma descarga na ordem de 175 mil

metros cbicos de gua por segundo.103 Possui 17 principais afluentes que vo se originar

em trs reas diferentes: Andes, planalto Guianense e planalto Brasileiro.104 Comporta a

quinta parte das disponibilidades mundiais de gua doce; vim tero das selvas tropicais, e

engloba 61% do territrio brasileiro, a metade do Equador e da Bolvia, um tero da

Colmbia e dois teros do Peru. 105 Politicamente, pertence a sete pases da Amrica do

Sul: Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela, somando, tambm, o

Suriname e a Guiana Francesa no apenas pela fronteira fsica, mas tambm por

pertencerem bacia hidrogrfica do Amazonas.106

103 PIRES-OBRIEN, Maria Joaquina; OBRIEN, Carl Michael. Ecologia e modelamento de florestas tropicais. Belm: FCAP, 1995, p. 260.104 Idem.105 SANTAMARTA, Jos. Amaznia, la ltima frontera de la biodiversidad. Woldwatch Institute. Madrid, 14 nov. 2000. Disponvel em: . Acesso em: 16 nov. 2000.106 MARTINS, Marseno Alvim. A Amaznia e ns. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1971, p. 15.

mailto:[email protected]

43

Imersa neste contexto, surge a Amaznia brasileira vista sob dois aspectos

distintos: aspecto fsico e poltico. Politicamente, a Amaznia est situada na Regio Norte

do pas (parte setentrional), comportando os Estados do Amazonas, Par e Acre, Amap,

Roraima, Rondnia e Tocantins, tendo a mesma diviso da Amaznia Legal, menos os

Estados de Mato Grosso e Maranho107 de acordo com o mapa abaixo.

Mapa n 1. Amaznia Poltica, situada na Regio Norte do Brasil.

Modificado de: Mapa Amaznia Legal.Fonte: Sudam. Disponvel em:. Acesso em: 27 fev. 2001.

Fisicamente a Amaznia brasileira definida como Amaznia Legal108, nos

termos da legislao brasileira, Lei n 1.806 de 06.01.1953 (criao da Superintendncia do

Plano de Valorizao Econmica da Amaznia - SPVEA), que incorporou Amaznia

brasileira, o Estado do Maranho (oeste do meridiano 44), o Estado de Gois (norte do

paralelo 13 de latitude sul, atualmente Estado de Tocantins) e Mato Grosso (norte do

paralelo 16, latitude sul) e, posteriormente, pela Lei 5.173, de 27.10.1966 (extino da

SPVEA e criao da Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia - SUDAM) e

Lei Complementar n 31, de 11.10.1977, estendendo os limites da Amaznia Legal

107 BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF: Senado, 1988.108 MARTINS, M. A. ob. cit., p. 15.

http://www.sudam.gov.br/amazonia_legal/situacao_geografia/Situacao_Geografia.htm

44

a toda a rea do Estado do Mato Grosso109 e Medida Provisria (MP) 1.956-56, de

16.11.2000.

A Amaznia Legal apresenta o aspecto fsico da Amaznia brasileira, mas

fruto de um conceito poltico e no de um ordenamento geogrfico: a necessidade do

governo de planejar e promover o desenvolvimento daquela regio.110

O mapa abaixo mostra a rea de abrangncia da Amaznia Legal, que

em termos geogrficos, perfaz uma superfcie de aproximadamente 5.217.423 Km2,

correspondendo a cerca de 61% do territrio brasileiro.111

Amazonas aranho

ndoni TocantinsMatoGrosso

Mapa n 2. Amaznia Legal.

Fonte: Sudam. Disponvel em:. Acesso em: 27 fev. 2001.

109 AMAZNIA legal. Legislao sobre a criao da Amaznia Legal. Sudam. Disponvel em: . Acesso em: 19 out. 2000.110 Idem.111 SITUAO geogrfica. Localizao geogrfica. Sudam. Disponvel em . Acesso em: 19 out. 2000.

http://www.sudam.gov.br/amazonia_legal/situacao_geografia/Situacao_Geografia.htmhttp://www.sudam.gov.brhttp://www.sudam.gov.br

45

Igualmente, tem a responsabilidade de ser a linha limtrofe112 terrestre

nacional mais extensa, com [mais] de onze mil duzentos e vinte quilmetros, contados do

Cabo Orange fronteira da Bolvia com o Mato Grosso [perto do] paralelo 18 S. A linha

litornea estende-se da cidade de So Luiz ao Cabo Orange, perfazendo um total de mil e 113quinhentos quilmetros.

Mapa n 3. Linha limtrofe da Amaznia brasileira.

Fonte: Sudam. Disponvel em:. Acesso em: 27 fev. 2001.

Inserido na Amaznia brasileira, o meio ambiente representa uma riqueza de

incrvel valor. A regio est marcada por chuvas mdias superiores a 2.000

mm, altas temperaturas (25C mdios), com escassas oscilaes, onde tais condies de

112 Sobre a linha limtrofe, COELHO cita: estabelecidas as linhas de limites das jurisdies nacionais, as fronteiras passaram a desempenhar as funes de rea de separao, de presena militar, de territorialidade e de controle territorial, revelando a identidade fronteira=limite sagrado (...). In: COELHO, Pedro Motta Pinto. Fronteiras na Amaznia: um espao integrado. Braslia: IPRI, 1992, p. 15.113 MARTINS, M. A. ob. cit., p. 15.

46

calor, luz e umidade, sem estaes nem secas, e ao longo de milhes de anos, explicam a

alta biodiversidade da regio, fruto da evoluo em condies extremamente

favorveis.114 A seguir, analisar-se- os aspectos da biodiversidade115 (fauna e flora), dos

recursos minerais e dos recursos hdricos.

1.1 - A fauna

A Floresta Amaznica possui uma variedade insupervel de espcies. Possui

a maior variedade de espcies de aves, primatas, roedores, jacars, sapos, insetos, lagartos

e peixes de gua doce do mundo. 116 Por ela circulam 324 espcies de mamferos117, entre

2.500 e 3.000 espcies diferentes de peixes118 e 2,5 milhes de espcies de artrpodos.119

A fauna amaznica caracterstica da selva tropical fechada sul-

americana120, onde imperam os animais de pequeno e mdio porte, sendo o maior deles a

anta, que pode pesar at 200 quilos.121 Os nmeros existentes quanto biodiversidade da

fauna amaznica so estimados pelos pesquisadores, inclusive porque na floresta tropical

1,4 No original: Tales condiciones de calor, luz y humedad,sin estaciones ni sequas, y a lo largo de millones de anos, explican la alta biodiversidad de la regin, fruto de la evolucin en unas condiciones extremamente favorables." SANTAMARTA, Jos. Amaznia, la ltima frontera de la biodiversidad. Madrid, 14 nov. 2000. Disponvel em Acesso em: 16 nov. 2000.115 Biodiversidade, nas palavras de VARELLA, FONTES e ROCHA, significa a variao biolgica de um determinado lugar ou, em termos mais genricos, como o conjunto de diferentes espcies de seres vivos de todo o planeta. VARELLA, Marcelo Dias; FONTES, Eliana; ROCHA, Fernando A. Nogueira Galvo da. Biossegurana e biodiversidade: contexto cientfico e regulamentar. Del Rey: Belo Horizonte, 1999, p. 20.116 VARELLA, Flvia. Caldeiro de vida: a riqueza de animais e plantas cresce com novas descobertas e ameaado pela caa e devastao. Veja. So Paulo, Ano 30, n. 51, dez. 1997. Caderno Especial, p. 32.117 Idem.1,8 Idem, p. 33.119 CARVALHO, L. A. de. ob. cit., p. 5.120 Floresta Amaznica. Eco Brasil, a ecologia na Internet. Disponvel em: . Acesso em: 19 out. 2000.121 Fauna. Amazonsite. Disponvel em . Acesso em: 24 out. 2000.

http://[email protected]://orbita.starmedia.com/~ecobrasil/amazonia.htmhttp://www.amazonsite.com.br/fauna.htm

47

brasileira est sempre aparecendo alguma coisa de que nenhum pesquisador havia tratado

antes. 122

Uma das principais explicaes para a existncia de tanta diversidade na

Amaznia a incrvel variedade de ecossistemas dentro da Amaznia. Existem as

florestas de terra firme, as vrzeas, os igaps, os campos e as campinas. Em cada um, h

determinados frutos e folhas que s existem l e que, por sua vez, servem de alimento

apenas para certos bichos. A relao entre os animais e a floresta intricada. 123

1.2 - A flora

Como exposto, a Floresta Amaznica apresenta uma grande biodiversidade,

o que se poder verificar na sua flora. O clima, os fatores relacionados ao solo e a pouca

atividade humana contribuem para a formao e distribuio da flora amaznica.

A regio apresenta mais de 2.500 espcies de rvores conhecidas124 que

formam uma densa cobertura florestal. A mata amaznica denominada hilia

(Hyloea)125, sendo a mais vasta floresta equatorial do mundo.126

A vegetao amaznica classificada na literatura de diferentes formas.

PIRES-OBRIEN e OBRIEN127 classificam a vegetao da floresta amaznica em trs

tipos de vegetao: florestas de terra-firme, florestas de reas inundadas e vegetao no

florestal.

122 VARELLA, F. ob. cit., p. 30.123 Idem, p. 35.124 MARQUES, Jos Roque Nunes. Direito ambiental: anlise da explorao madeireira da Amaznia. So Paulo: LTr, 1999, p. 22.125 A palavra original provm do grego, significando bosque, floresta. A mata amaznica denominada desta forma desde a tentativa da UNESCO (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura), em 1947, de criar um rgo para iniciar uma era nova no conhecimento da regio e empreender seus estudos nos moldes exigidos pelas suas caractersticas prprias, o Instituto Internacional da Hilia Amaznica. REIS, Arthur Czar Ferreira. A Amaznia e a cobia internacional. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1982, p. 156.126 VALVERDE, Orlando. O quadro fsico. In: LIMA, Gen. Afonso Augusto de Albuquerque et alii. Problemtica da Amaznia. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1971, p. 70.127 PIRES-OBRIEN, M. J.; OBRIEN, C. M. ob. cit., p. 265.

48

As florestas de terra-firme so divididas, segundo seu relevo, em florestas

da plancie amaznica, ocorrendo em terra-firme ou em reas inundadas e planaltos

rebaixados de at 200m de altitude da bacia amaznica, e florestas do planalto guianense, 128 ocorrendo no planalto guianense.

O tipo de vegetao predominante das florestas terra-firme so rvores altas,

com mais de 25 metros de altura. Alguns exemplos so o mogno, babau, aa e

palmeiras.129

As florestas de reas inundadas, em vrzea130 ou igap131, ocupando cerca

de dois por cento da Amaznia brasileira, so aquelas ocupadas pelos rios ou inundadas em

carter permanente ou sazonal.132 So representantes caractersticos desta regio: algumas

espcies de palmeiras, diversas espcies de ervas, manguezais (florestas costeiras

adaptadas gua).133

As vegetaes de formao no florestais tm representao nos campos de

terra-firme e nas campinas e caatingas amaznicas, campos de vrzeas, vegetao serrana

baixa e outros tipos de vegetao.134

Ao todo, na Floresta Amaznica esto presentes 60 mil espcies de

plantas.135

ALVARENGA136, se que possvel falar de algo to grandioso em poucas

palavras, resume a grandeza da Floresta Amaznica:

128 PIRES-OBRIEN, M. J.; OBRIEN, C. M. ob. cit., p. 265.129 Idem, p. 265-269.130 Florestas de vrzea so as florestas inundadas periodicamente. In: ABSABER, Aziz Nacib, et. alii. Glossrio de ecologia. So Paulo: ACIEP, 1997, p. 247.131 Matas de igap so as da Amaznia, quase permanentemente inundadajs] (...) na beira de cursos dgua, em geral ao longo dos rios de gua preta. In: ABSABER, A. N., et alii. ob. cit., p. 163.132 PIRES-OBRIEN, M. J.; OBRIEN, C. M. ob. cit., p. 265.133 Idem, p. 269-270.134 RIBEIRO, Berta G.