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INTERAÇÕES BIO-FÍSICAS NA DISTRIBUIÇÃO DE CARBONO ORGÂNICO DISSOLVIDO NO VERÃO (2015): O CASO DO ESTREITO DE GERLACHE Leticia Cotrim da Cunha 1,3 , Claudia Hamacher 1 , Cássia de Oliveira Farias 1 e Rodrigo Kerr 2,3 1 - Faculdade de Oceanografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Campus Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, [email protected] 2 - Instituto de Oceanografia, Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Campus Carreiros, Rio Grande - RS 3 - Grupo Brasileiro de Pesquisa sobre a Acidificação dos Oceanos - BrOA www.broa.furg.br Resumo: O estreito de Gerlache é uma região costeira bastante produtiva na Península Antártica Norte. Durante o verão de 2015, foram coletadas amostras de água para determinação de carbono orgânico dissolvido (filtrado através de membranas de fibra de vidro de 0,7 µm) e total (não filtrado) na coluna d’água ao longo de uma seção norte – sul no Estreito de Gerlache. As concentrações médias de carbono orgânico dissolvido foram de cerca de 50 µmol/kg, e atingindo cerca de 75 µmol/kg na superfície. Na região central abaixo da camada de mistura, as concentrações elevadas podem estar associadas à presença da Água da Plataforma do Mar de Weddell, que afunda rapidamente no verão, transportando assim o material orgânico de superfície, oriundo da produção biológica. A interação da produção com a circulação contribui para a exportação de carbono para o fundo (bomba biológica). Palavras-chave: Península Antártica, matéria orgânica dissolvida, massas d’água Summer distribution of organic carbon along the Gerlache Strait, Northern Antarctic Peninsula: Bio-physical interactions Abstract: Here we present a description of the dissolved organic carbon (OC) distribution in a coastal area of the northern Antarctic Peninsula. Water mass interactions contribute to the export of OC to deeper layers, and thus to the local biological pump. Keywords: Introdução O oceano mundial armazena cerca de 700 Pg de carbono na forma de carbono orgânico dissolvido (DOC), o que é equivalente ao reservatório atual de carbono na atmosfera (Hopkinson and Vallino 2005). Além disso, cerca de 20% da produção exportada para fora da camada fótica dos oceanos ocorre na forma de DOC (D. A. Hansell and Carlson 1998). Na Península Antártica, o pico de produção primária dá-se no verão, quando as condições de luz e estabilidade da coluna d’água permitem o desenvolvimento dos produtores primários (Prézelin et al. 2000; Borges Mendes et al. 2017). A produção de carbono orgânico acompanha a produção primária na superfície, e abaixo da camada de mistura prevalece o carbono orgânico refratário (Doval et al. 2002). As concentrações de DOC no Oceano Austral no verão podem variar espacialmente entre 30 – 100 µmol/kg, em função da circulação local e composição planctônica. Este estudo tem como objetivo entender a distribuição espacial e vertical das concentrações de DOC em função da distribuição das massas de água na região.

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INTERAÇÕES BIO-FÍSICAS NA DISTRIBUIÇÃO DE CARBONOORGÂNICO DISSOLVIDO NO VERÃO (2015): O CASO DO ESTREITO DE

GERLACHELeticia Cotrim da Cunha1,3, Claudia Hamacher1, Cássia de Oliveira Farias1 e Rodrigo Kerr2,3

1 - Faculdade de Oceanografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Campus Maracanã, Rio de Janeiro- RJ, [email protected]

2 - Instituto de Oceanografia, Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Campus Carreiros, Rio Grande - RS 3 - Grupo Brasileiro de Pesquisa sobre a Acidificação dos Oceanos - BrOA www.broa.furg.br

Resumo: O estreito de Gerlache é uma região costeira bastante produtiva na Península Antártica Norte. Durante o verãode 2015, foram coletadas amostras de água para determinação de carbono orgânico dissolvido (filtrado através demembranas de fibra de vidro de 0,7 µm) e total (não filtrado) na coluna d’água ao longo de uma seção norte – sul noEstreito de Gerlache. As concentrações médias de carbono orgânico dissolvido foram de cerca de 50 µmol/kg, eatingindo cerca de 75 µmol/kg na superfície. Na região central abaixo da camada de mistura, as concentrações elevadaspodem estar associadas à presença da Água da Plataforma do Mar de Weddell, que afunda rapidamente no verão,transportando assim o material orgânico de superfície, oriundo da produção biológica. A interação da produção com acirculação contribui para a exportação de carbono para o fundo (bomba biológica).

Palavras-chave: Península Antártica, matéria orgânica dissolvida, massas d’água

Summer distribution of organic carbon along the Gerlache Strait, Northern Antarctic Peninsula:Bio-physical interactions

Abstract: Here we present a description of the dissolved organic carbon (OC) distribution in a coastal area of thenorthern Antarctic Peninsula. Water mass interactions contribute to the export of OC to deeper layers, and thus to thelocal biological pump.

Keywords:

IntroduçãoO oceano mundial armazena cerca de 700 Pg de carbono na forma de carbono orgânico dissolvido(DOC), o que é equivalente ao reservatório atual de carbono na atmosfera (Hopkinson and Vallino2005). Além disso, cerca de 20% da produção exportada para fora da camada fótica dos oceanosocorre na forma de DOC (D. A. Hansell and Carlson 1998). Na Península Antártica, o pico deprodução primária dá-se no verão, quando as condições de luz e estabilidade da coluna d’águapermitem o desenvolvimento dos produtores primários (Prézelin et al. 2000; Borges Mendes et al.2017). A produção de carbono orgânico acompanha a produção primária na superfície, e abaixo dacamada de mistura prevalece o carbono orgânico refratário (Doval et al. 2002). As concentrações deDOC no Oceano Austral no verão podem variar espacialmente entre 30 – 100 µmol/kg, em funçãoda circulação local e composição planctônica. Este estudo tem como objetivo entender adistribuição espacial e vertical das concentrações de DOC em função da distribuição das massas deágua na região.

Material e métodos Cruzeiro NAUTILUS IOs resultados aqui apresentados são parte do primeiro cruzeiro do projeto NAUTILUS, coordenadopelo Grupo de Oceanografia de Altas Latitudes (GOAL), entre os 8 a 10 de fevereiro de 2015. Ocruzeiro ocorreu durante a quinta fase da OPERANTAR XXXIII, a bordo no Navio PolarOceanográfico Almte. Maximiano (H41). No período citado, foram ocupadas 15 estaçõesoceanográficas no Estreito de Gerlache (Península Antártica Norte – NAP, Fig. 1), para realizar olevantamento hidrográfico da coluna d’água (condutividade, temperatura, profundidade e oxigêniodissolvido, através de CTD), e coleta de amostras de água. Os detalhes sobre a coleta de águadurante a campanha NAUTILUS I estão descritos em detalhe em (Kerr et al. 2017).

Figura 1 – Área de estudos (A) Mapa geral da Península Antártica. O retângulo azul mostra a região norteda Península Antártica (NAP), e o retângulo branco o estreito de Gerlache; (B) Mapa detalhado do estreitode Gerlache. Os pontos vermelhos indicam as estações oceanográficas (CTD e amostras de água), e a linhapontilhada azul a seção do canal principal do estreito apresentada neste estudo. A escala de cores à direitarepresenta a batimetria local. Os gráficos foram preparados com o software Ocean Data View (ODV)(Schlitzer 2017).

Amostragem e análisesOs perfis hidrográficos completos (C, T, D e oxigênio dissolvido) e as amostras de água em cadaestação foram obtidos com um sistema Sea-Bird CTD/Carrousel 911+®, equipado com 24 garrafasde Niskin de 5 litros. Amostras discretas de água foram tomadas para análise de oxigênio dissolvido(Grasshof, Kremling, and Ehrhardt 1999) para fins de calibração do sensor do CTD (feita a bordo),nutrientes inorgânicos (amônio, nitrito, nitrato, fosfato, silicato), alcalinidade total, carbono totalinorgânico, e carbono orgânico total e dissolvido. Os métodos laboratoriais para análise dosparâmetros estão descritos em (Kerr et al. 2017; Borges Mendes et al. 2017).

Carbono orgânico total e dissolvidoAs amostras discretas da camada de mistura foram filtradas em filtros de fibra de vidro de 47 mmde diâmetro e porosidade 0.7 µm (Millipore) previamente descontaminados em mufla (450°C por 5horas) e pré-pesados. Uma alíquota de cerca de 60 mL da amostra filtrada foi armazenada emcongelador (– 20°C) até o momento da análise (DOC). As amostras de água abaixo da camada demistura, estimada em cerca de 20 m para esta campanha, foram coletadas diretamente da garrafa deNiskin (TOC) Tanto as amostras de DOC quanto de TOC foram armazenadas em fradcos de vidrodescontaminados em mufla (450°C por 5 horas) ou em frascos de vidro de HDPE descontaminadoscom HCl 0.1 N (Dickson, Sabine, and Christian 2007).

As análises de TOC e DOC foram realizadas no Laboratório de Geoquímica Orgânica Marinha daFaculdade de Oceanografia/UERJ, utilizando um analisador de carbono TOC-Shimadzu L-CPH,equipado com uma coluna de alta sensibilidade. No momento da análise, as amostras descongeladasforam acidificadas com H3PO4 e purgadas com N2 para eliminar o carbono inorgâncio presente naamostra. O carbono orgânico foi determinado como carbono total.

Resultados e DiscussãoA coluna d’água apresentou forte estratificação, com valores baixos de salinidade em superfície, e acamada de mistura esteve acida de 20 m para todas as estações no Estreito de Gerlache. A porçãosul do estreito apresentou intrusoes de Água Circumpolar Antártica superior (uCDW), com maioressalinidades e menores concentrações de oxigênio dissolvido (DO, geralmente abaixo de 225µmol/kg), enquanto a porção norte do estreito apresentou intrusões da Água de Plataforma, formadano Mar de Weddel (HSSW), mais fria e oxigenada, e com salinidade mais elevada (Fig. 2)

Figura 2 – Seção norte-sul do estreito de Gerlache (ver fig. 1) com a distribuição da concentração deoxigênio dissolvido na coluna d’água (µmol/kg). A estação G14 encontra-se na porção norte de Gerlache

As concentrações de DOC/TOC foram mais elevadas em geral na camada de mistura, e emprofundidade houve poucas variações nos perfis verticais (Tabela 1). Os valores encontrados deDOC/TOC são similares aos descritos na literatura para a mesma região (Doval et al. 2002), comum intervalo de 20 anos entre as duas campanhas de amostragem. Na porção central e maisprofunda do estreito encontram-se concentrações altas de DOC/TOC se comparadas à média de 49-52 µmol/kg para a coluna d’água. Esta alta concentração de DOC/TOC abaixo da camada demistura pode estar associada à frente térmica na parte central de Gerlache, descrita em (Kerr et al.2017; Borges Mendes et al. 2017): ao norte, encontra-se a região dominada pela HSSW, mais fria emais oxigenada, oriunda do Mar de Weddell, e ao sul a região sob influência da intrusão de uCDW,de menor teor de oxigênio dissolvido e mais rica em nutrientes (Figura 3). Fora da porção central,as concentrações de DOC/POC abaixo da camada de mistura são homogêneas, o que pode indicarque os valores de cerca de 45-47 µmol/kg correspondam ao DOC/TOC chamado “refratário”, ouseja, à matéria orgânica que escapou da degradação através da atividade bacteriana mais intensa nacamada de mistura. Estima-se que o DOC/TOC “refratário” tenha idades que variam entre 10 até6000 anos (D. Hansell and Carlson 2015).

Figura 3 – Distribuição vertical de DOC/TOC (µmol/kg) ao longo da seção N – S no Estreito de Gerlache.

Tabela I – Média ± desvio padrão e [Min.; Max.] das concentrações de DOC/TOC no Estreito de Gerlache,ao longo da seção principal (Fig. 1) ´no verão de 2015. A seção norte compreende as estações G14 a G08, e aseção sul as estações G01, G02, G03 e G07.

GerlacheStrait

TOC[mol kg-1]

North Section(G08-G14)

49.9±6.1[43.5; 84.0]

n = 49

South Section(G01, G02, G03, G07)

52.8±7.4[45.0; 73.4]

n= 21

ConclusõesA partir dos resultados apresentados, estima-se que no final do verão no Estreito de Gerlache apresença da frente térmica provocada pelas intrusões de uCDW e HSSW, e o rápido afundamentodesta última (por densidade, (Dotto et al. 2014)) sejam responsáveis pelo transporte (exportação) dematerial orgânico (DOC/TOC) para baixo da camada de mistura, e contribuindo para a eficiência dabomba biológica de carbono nesta região da Península Antártica. As interações entre as massas deágua na NAP são complexas e relevantes para a formação de água de fundo, que transportamoxigênio dissolvido e nutrientes para os oceanos. No futuro prevê-se ainda a estimativa das fraçõeslábil e refratária na coluna d’água (em conjunto com os dados de carbono orgânico particulado,ainda em análise) e o dos fluxos verticais através de difusão turbulenta (eddy diffusion) para acoleção de dados NAUTILUS 2015.

Agradecimentos Os autores agradecem à Marinha do Brasil pelo apoio na 5a. Fase da OPERANTAR XXIII bemcomo toda a tripulação do NPO Almte. Maximiano. O Projeto NAUTILUS é financiado pelachamada Programa Antártico Brasileiro/CNPq 2013. C. O. Farias e R. Kerr são bolsistas deprodutividade CNPq, e C. O. Farias e C. Hamacher são bolsistas do programa Prociência/UERJ.

Referências Bibliográficas

Borges Mendes, Carlos Rafael, Virginia Maria Tavano, Tiago Segabinazzi Dotto, Rodrigo Kerr, Márcio Silva de Souza, Carlos Alberto Eiras Garcia, and Eduardo Resende Secchi. 2017. “New Insights on the Dominance of Cryptophytes in Antarctic Coastal Waters: A Case Study

in Gerlache Strait.” Deep Sea Research Part II: Topical Studies in Oceanography, February. doi:10.1016/j.dsr2.2017.02.010.

Dickson, A.G, C.L. Sabine, and J.R. (Eds.) Christian. 2007. “Guide to Best Practices for Ocean CO2 Measurements.”

Dotto, T S, R Kerr, M M Mata, M Azaneu, I Wainer, E Fahrbach, and G Rohardt. 2014. “Assessment of the Structure and Variability of Weddell Sea Water Masses in Distinct Ocean Reanalysis Products.” Ocean Science 10 (3): 523–46. doi:10.5194/os-10-523-2014.

Doval, Maria Dolores, Xose Antón Álvarez-Salgado, Carmen G Castro, and Fiz F. Pérez. 2002. “Dissolved Organic Carbon Distributions in the Bransfield and Gerlache Straits, Antarctica.” Deep Sea Research Part II: Topical Studies in Oceanography 49 (4–5): 663–74. doi:10.1016/S0967-0645(01)00117-5.

Grasshof, K, K Kremling, and M Ehrhardt. 1999. Methods of Seawater Analysis. Edited by Klaus Grasshoff, Klaus Kremling, and Manfred Ehrhardt. Weinheim, Germany: Wiley-VCH Verlag GmbH. doi:10.1002/9783527613984.

Hansell, D., and C. Carlson. 2015. “Dissolved Organic Matter in the Ocean Carbon Cycle.” Eos 96 (July). doi:10.1029/2015EO033011.

Hansell, Dennis A, and Craig A Carlson. 1998. “Deep-Ocean Gradients in the Concentration of Dissolved Organic Carbon.” Nature 395 (6699): 263–66.

Hopkinson, Charles S, and Joseph J Vallino. 2005. “Efficient Export of Carbon to the Deep Ocean through Dissolved Organic Matter.” Nature 433 (7022): 142–45. doi:10.1038/nature03191.

Kerr, Rodrigo, Iole B.M. Orselli, Jannine M Lencina-Avila, Renata T Eidt, Carlos Rafael B Mendes, Leticia C da Cunha, Catherine Goyet, Mauricio M Mata, and Virginia Maria Tavano. 2017. “Carbonate System Properties in the Gerlache Strait, Northern Antarctic Peninsula (February 2015): I. Sea–Air CO2 Fluxes.” Deep Sea Research Part II: Topical Studies in Oceanography, February. doi:10.1016/j.dsr2.2017.02.008.

Prézelin, Barbara B., Eileen E Hofmann, Claudia Mengelt, and John M Klinck. 2000. “The Linkagebetween Upper Circumpolar Deep Water (UCDW) and Phytoplankton Assemblages on the West Antarctic Peninsula Continental Shelf.” Journal of Marine Research 58 (2): 165–202. doi:10.1357/002224000321511133.

Schlitzer, R. 2017. “Ocean Data View.”