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Uma caminhada se inicia nesse momento. Será preciso empenho e dedicação para que nossos objetivos sejam alcançados. Mas, ao final da caminhada, a satisfação de ter cumprido nossa missão é uma recompensa que realmente valerá a pena. Mais do que isso, o conhecimento que passamos a ter nos possibilita caminhadas ainda mais desafiadoras. Quem quiser embarcar nessa aventura do conhecimento, chegue mais perto, porque vamos estabelecer nosso roteiro. Afinal, pouca gente se sente à vontade em iniciar uma viagem sem saber o percurso, o destino ou mesmo as paradas no caminho. É isso que faremos a seguir.

Certamente você já deve ter se perguntado sobre o porquê dessa disciplina na grade de seu curso de Agroecologia. Devo adiantar que é justamente a ocorrência de dessa sua indagação que nos motiva a ofertá-la em nosso curso. Afinal, o questionamento sobre a necessidade de uma disciplina de ciências humanas em um curso da área de agrárias é resultado de um modo de entender o conhecimento e suas diferentes áreas como que separadas umas das outras. Na verdade, grande parte do conhecimento que é produzido e repetido nas escolas, universidades e centros de pesquisa é realizada a partir de uma enorme fragmentação dos conhecimentos. Assim, é que são formados os “especialistas”, ou seja, alguém que sabe muito sobre determinado assunto, mas nem sempre sabe articulá-lo a outros conhecimentos.Quer um exemplo da extrema especialização nas ciências? Lembre-se da última vez que foi ao médico. Há uma grande chance de você ter ido a um especialista em tratar aquele seu problema de saúde específico. Para um problema no estômago, você buscou um gastroenterologista; para um distúrbio pulmonar, procurou um pneumologista; e assim por diante. E é muito comum acontecer de um médico encaminhar você a outro especialista porque o seu problema não é da área dele.

Se for verdade que a especialização possibilita um maior conhecimento do médico – no caso que estamos usando como exemplo -, por outro lado, é preciso reconhecer que a questão da saúde – e não só da doença – deixa de ser entendida em sua totalidade. Ou seja, como pacientes de especialistas, acabamos não sendo tratados em nossa integralidade enquanto pessoas. Afinal, aquele meu problema de estômago pode muito bem ser tratado com uma medicação específica para o estômago e eu passar a me sentir muito bem com isso. Porém, um especialista pode não perceber que aquele meu problema estomacal pode ser decorrência de uma enorme ansiedade que estou passando por conta de um período de aflição em minha vida. Meu estômago doendo, na verdade, era apenas um sinal de que algo mais profundo não estava bem resolvido em minha vida. Tratei do estômago e minha vida acabou descuidada. Será que isso é uma boa ideia?

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Bem, é hora de dizer que a especialização não é um problema em si, afinal, muitas das conquistas tecnológicas que nos proporcionam mais conforto e até mesmo saúde são resultado da dedicação de pesquisadores a suas respectivas áreas de conhecimento. A visão especializada se torna um enorme problema, porém, quando nos impede de ver a totalidade, ou seja, de articular aquele nosso conhecimento específico com outros conhecimentos. Assim, ela é um problema quando nos possibilita ver muito bem a nossa área de conhecimento à custa de deixarmos de enxergar outros conhecimentos.

Para entender melhor essa situação, vamos exemplificar com as lentes fotográficas. Existem lentes que aproximam bastante o assunto que queremos fotografar, são as chamadas teleobjetivas. Há também outro tipo de lente que nos possibilita abarcar um grande ângulo de visão fotográfica e são chamadas grande-angulares. Se as teleobjetivas são ótimas para fotografar pássaros na mata, as grande-angulares são excelentes para fotografar a paisagem da mata em toda a sua exuberância. Pretender fotografar a mata com uma teleobjetiva pode significar um desastre, bem como registrar os pássaros com a grande-angular.

Assim, podemos comparar a objetiva grande-angular com um conhecimento geral, aberto à totalidade, enquanto a teleobjetiva representaria um conhecimento específico. A grande-angular seria semelhante a quem tem um conhecimento sobre muitas áreas, mas sem se aprofundar em nenhuma delas. Já a teleobjetiva seria comparada ao especialista que sabe muito bem de sua área de conhecimento, mas desconhece as outras áreas. As duas lentes tem suas utilidades, mas acabam sendo incompletas para quem precisa fotografar tanto a mata quanto seus pássaros separadamente.

Na fotografia, para solucionar esse problema é que foram criadas as chamadas objetivas zoom, que são aquelas que possuem uma possibilidade de variação de seu ângulo de cobertura, variando da grande-angular à teleobjetiva. Atualmente, a grande maioria das câmeras amadoras vem equipada com lentes zoom. E elas são uma boa comparação com a forma que escolhemos nos relacionar como o conhecimento nesse nosso curso. Conhecer bastante sobre nossa área de estudo sem, contudo, perder a possibilidade de enxergar a totalidade.

Depois de ter feito esse caminho pela medicina e pela fotografia, é hora de voltarmos a sua pergunta sobre a necessidade de uma disciplina de humanas em um curso de agrárias. Certamente, conhecer um pouco mais sobre a sociedade em que vivemos é uma boa maneira de garantir que não nos formemos apenas como técnicos extremamente competentes, mas sem a mínima sensibilidade social. Conhecer bem a realidade social em que vivemos e vamos atuar profissionalmente é fundamental para que não só nossa profissão seja exercida com competência, mas para que nosso papel social de buscar sempre fortalecer a justiça social e o cuidado com o meio ambiente seja continuamente respeitado.

E aqui aproveitamos para dizer que aquela especialização a que nos referimos acima tem outra consequência: ela separa não só as diversas áreas do conhecimento, mas separa também o conhecedor de seu objeto de

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conhecimento. No nosso caso, separar o sujeito que conhece do objeto a ser conhecido significa separa o ser humano da natureza. Ou seja, o ser humano é o sujeito que conhece o objeto natureza. Na verdade, o ser humano deixa de se reconhecer como parte da natureza e desenvolve conhecimentos e práticas no sentido de controlá-la, dominá-la, submetê-la. Além disso, a visão que separa a humanidade da natureza é aquela que também separa alguns homens e mulheres de outros homens e mulheres através da desigualdade social. E essa visão de mundo em que homem-mulher estão separados entre si e da natureza, estranhados uns dos outros, é justamente a visão que pretendemos questionar criticamente no decorrer dessa disciplina de Fundamentos sócio antropológicos aplicados ao meio rural.

Para isso, vamos buscar entender a relação entre homem-mulher e natureza no meio rural, mas sem desconsiderar a realidade da relação entre natureza e sociedade no mundo de hoje. Vamos verificar as situações em que a separação entre humanidade e natureza se aprofundou, mas não deixaremos de enfatizar aquelas situações em que homens e mulheres construíram uma relação de diálogo com o meio natural. Mais do que isso, vamos entender que as opções por uma ou outra modalidade de entender a relação humanidade-natureza são articuladas a relações dos humanos entre si, desdobrando-se em relações que podem ser de destruição ou de diálogo, de exploração ou solidariedade.

Ao final de nossa caminhada seremos capazes de entender o “como” chegamos ao atual modelo de relação homem-mulher/natureza e contribuirmos para consolidar um novo modelo de relação em que a separação entre humanidade e meio natural possa dar espaço ao diálogo.

Para isso, nossa caminhada se inicia com o capítulo que pretende justamente debater o relacionamento entre o humano e o natural. Partiremos de um entendimento filosófico dessa relação, onde o trabalho, entendido como mediador dessa relação. A humanidade, reconhecendo-se como ser natural e, por conta disso, tendo que satisfazer necessidades vitais, relaciona-se com a natureza para dela satisfazer aquelas necessidades. Nessa relação, veremos que tanto o ser humano humaniza a natureza quanto é naturalizado por ela, em uma relação que chamaremos de dialética. Mas veremos também que essa relação não se dá em um vazio espaço temporal, mas sim em uma realidade específica em que são estabelecidas relações de produção, de poder e de saber, ou seja, é uma relação sociedade-natureza. Nessa relação, merece destaque a produção do excedente na agricultura, o que possibilitará o entendimento do desenrolar da história humano-natural.

O segundo capítulo procurará entender a dinâmica da sociedade capitalista e sua relação com a natureza. Estaremos verificando as transformações na relação com a natureza, em especial com o campo, pela revolução industrial, buscando entender o processo dos cercamentos e a posterior “industrialização” da agricultura. Chegaremos, então aos tempos atuais em que essas relações capitalistas se mostram, ao mesmo tempo, com toda sua força, mas também com seus limites para a vida na Terra.

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No terceiro capítulo vamos discutir as possibilidades de relação entre humanidade e natureza que não se caracterizam pelo rompimento entre ambas, mas sim por sua articulação integrada. Destacaremos, então, o modo de vida camponês como modelo dessa possibilidade enquanto portador dos princípios da Agroecologia.

Em seguida, no quarto capítulo, vamos aprofundar nossos conhecimentos sobre a cultura camponesa, destacando seu modo de vida e articulação com a natureza.

No quinto capítulo estaremos aprofundando os termos do debate atual referentes às questões de apropriação da terra no Brasil, indicando a necessidade de se pensar a reforma agrária como elemento fundamental para o fortalecimento da Agroecologia. Afinal, o latifúndio e o monocultivo representam um modelo, como veremos no decorrer de nosso estudo, marcado pela insustentabilidade social, econômica e ambiental.

Por fim, é preciso destacar que no desenrolar de nosso curso os agentes históricos muitas vezes esquecidos terão destaque na trama que estudaremos. Negros, índios, escravos, camponeses, mulheres, povos colonizados, enfim, será a partir dos deserdados da terra é que estaremos buscando entender em nos posicionar na dinâmica da relação sociedade natureza.

Vamos iniciar a caminhada.

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1.1- Dicotomias entre humanidade e natureza

Você sabe o que é uma dicotomia? Bem, de uma maneira bem simplificada podemos dizer que uma dicotomia é a divisão de um elemento em duas partes que são ainda entendidas como antagônicas, ou contrárias uma à outra. Um bom exemplo de dicotomia é a separação do ser humano em corpo e mente, como se ambos não fizessem parte de um todo. Esse entendimento do corpo separado da mente pode levar a uma série de compreensões erradas sobre a saúde da pessoa, por exemplo. Além disso, a dicotomia está na base daquele pensamento que fragmenta a realidade em diversas áreas do conhecimento, o que, como vimos na introdução, pode nos fazer perder a visão integrada entre o todo e suas partes.

É preciso deixar claro que para entender muitos dos fenômenos é preciso dividi-lo em partes para uma compreensão mais profunda do mesmo. O problema é quando a fragmentação que fazemos da realidade nos leva a perder a visão do todo ou a acreditar que basta juntar todas as partes para ter um entendimento da totalidade. Certamente, a totalidade é muito mais que a mera soma das partes, incluindo as articulações internas de cada elemento dentro do todo. Quer um exemplo que a simples junção das partes sem considerar suas articulações pode ser um problema? É bem provável que um time de futebol só formado por talentos individuais (as partes) possa não ser, no conjunto (o todo), uma boa equipe simplesmente porque cada uma das partes não se articula com a totalidade. Ou seja, cada craque jogando só para si não faz do time como um todo uma boa equipe.

Voltando às dicotomias, é preciso reconhecer que elas são bastante comuns em nossa vida e compreensão da realidade. A dicotomia entre o bem e o mal está presente desde os contos de fada até as telenovelas. De um lado os vilões e de outro os bonzinhos que sofrem durante toda a trama para só no final saírem vencedores. Nessas ficções não há muito espaço para o meio termo ou para as nuances que tornam cada pessoa única em sua existência concreta.

Acontece que não só por causa da televisão, mas o entendimento dicotômico da realidade acaba sendo uma constante nas nossas vidas e na forma que a entendemos. Assim, vamos enquadrando as pessoas com que convivemos, os políticos nos quais votamos, igrejas, movimentos sociais e tudo o mais em dois grandes caixotes: o do bem e o do mal, ou o do certo e do errado. Se essa separação por si só já é um problema, a coisa fica ainda pior quando nem somos capazes de ter coerência nas nossas separações. Daí que nos sintamos à vontade para criticar a corrupção política na televisão e, ao mesmo tempo, tentamos corromper o guarda de trânsito que está prestes a nos aplicar uma multa por excesso de velocidade. Caixotes separados de acordo com a minha conveniência.

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Se a dicotomia pode ser percebida no dia a dia, é preciso ir adiante em nossa reflexão e verificar que ela tem raízes ainda mais profundas em nossa sociedade e nas maneiras que ela usa para entender a realidade.

Como já adiantamos na Introdução, a primeira dicotomia sobre a qual vamos refletir é aquela que separa natureza e sociedade, ou homem-mulher e natureza. É uma separação que pode ser percebida em algumas expressões que utilizamos e que, mais que demonstrar a separação, acabam por colocar o ser humano em uma condição de superioridade à natureza, ou à parte do meio natural. Vamos a alguns exemplos:

- é muito comum que, no nosso dia a dia, utilizemos as expressões “selvagem” e “civilizado”. Mais do que o simples uso, essas expressões são utilizadas no sentido de afirmar a superioridade do que é moderno, urbano ou civilizado diante do que é da selva, do campo, da natureza tida como inferior. Assim, nós dizemos que determinado comportamento ou prática é pouco civilizado como sinal de uma ausência de progresso, seja ele cultural ou tecnológico, indicando que seu praticante estaria mais negativamente preso à natureza.

- urbanidade é uma palavra que significa que as pessoas devam ser tratadas com educação e respeito. É uma expressão que se contrapõe ao campo, pois, ser portador de urbanidade implica em “ser da cidade” ou urbano. Assim, os moradores da cidade seriam mais “evoluídos culturalmente” que os da zona rural justamente por conta da relação de maior “independência” da natureza que a cidade possibilita.

- a expressão “bárbaros” era utilizada pelos romanos querendo identificar todos aqueles que, apesar de dominados pelo Império Romano durante a chamada Idade Antiga, não eram considerados cidadãos de Roma. Se isso é algo que muita gente já sabe, por outro lado, é preciso salientar que os bárbaros eram todos aqueles que não falavam latim. Por isso, os romanos diziam que eles falavam “como pássaros”, ou seja, como bárbaros. Assim, os bárbaros seriam parecidos com aves e, por serem mais próximos da natureza, menos civilizados.

- ser “racional” é ser capaz de não se levar pelos impulsos ditos naturais. E é comum que o ser humano seja definido como um ser “racional” para distingui-lo dos animais “irracionais”. Uma distinção que também possui uma escala de valor: ser racional é ser superior a ser irracional, daí se acreditar que o portador da razão poder dominar aquele não a possui.

Podemos concluir que as dicotomias fazem mais que simplesmente separar as partes da relação, pois, elas acabam também indicando uma determinada hierarquia em que um polo da relação é mais valorizado que o outro. E essa visão de superioridade de um dos lados da relação acaba tento implicações práticas que visam garantir ou justificar o poder, a dominação e o controle. No entanto, o que vamos discutir adiante é que essa relação entre humanidade e natureza não pode ser entendida dessa maneira dicotômica, mas deve ser entendida em toda sua dinâmica como uma “troca” entre meio natural e seres humanos. Nessa troca o trabalho tem papel fundamental, como veremos a seguir.

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1.2- O trabalho

1.2.1- Trabalho e natureza.

O ser humano precisa satisfazer uma série de necessidades que vão do

alimento, do abrigo, das vestimentas e chegam até as de tipo imaterial, como

educação, companhia e afeto, entre muitas outras que incluem desde as mais

básicas às mais complexas. Como ser natural, o ser humano tem que manter

vivo através de uma relação constante com a natureza, que é de onde provem

os recursos para a satisfação de suas necessidades mais fundamentais, como

a alimentação, por exemplo. Mas a satisfação da necessidade de se alimentar,

bem como das demais necessidades, não se dá de uma maneira meramente

fisiológica, mas sim permeada de significados. Assim, ao produzirem e

consumirem seus alimentos, os humanos criam, ao mesmo tempo, valores e

maneiras de se alimentar que são culturalmente compartilhadas. Ou seja, a

satisfação de uma necessidade material – alimentar-se – não se dá

separadamente de uma simbologia. Ambas acontecem juntas. Daí que em

determinados culturas haja alimentos que não são permitidos, o que é

compartilhado por todos daquele grupo cultural, mesmo quando estão isolados

do restante do grupo por uma razão qualquer. Aqueles indianos que

consideram a vaca como um animal sagrado, por exemplo, podem estar longe

de suas raízes culturais quando em um passeio pelo Brasil, mas nem por isso

irão se alimentar em uma churrascaria. Nem nós brasileiros concordaríamos

em comer carne de cachorro se visitássemos alguma cultura em que isso fosse

um costume.

Para um entendimento mais aprofundado dessa relação que os humanos

estabelecem com a natureza visando a satisfação de suas necessidades, é

preciso que nos dediquemos à compreensão do conceito de trabalho.

Aparentemente trabalho tem uma conceituação muito clara, afinal, é algo que

nos acostumamos a ver cotidianamente. Pedreiros, vendedores, professores,

enfim, uma infinidade de profissões que nos levam a ter uma compreensão do

que seria o trabalho. No entanto, o que vamos propor agora é um entendimento

mais aprofundado desse conceito e, para isso, vamos ter que abrir mão

daquela nossa compreensão inicial que identificava trabalho com profissão. A

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partir desse momento, vamos identificar a relação que se estabelece entre

humanidade e natureza para a satisfação das necessidades humanas.

Essa relação pode ser entendida como uma troca metabólica entre

humanidade e natureza. Mas o que seria essa troca? E o que faz dela algo

metabólico? Justamente pelo fato de homens e mulheres serem parte da

natureza é que os humanos se relacionam com ela para a satisfação de

necessidades básicas através da contínua humanização da natureza. Essa, por

sua vez, como não se comporta apenas de uma maneira passiva na relação

com os seres humanos acaba por naturalizá-los. Assim, pela troca metabólica

que é o trabalho, tanto a humanidade humaniza a natureza, quanto é por ela

naturalizada. Mas vamos entender melhor essa dinâmica, pois, por mais que

não queiramos separar o ser humano da natureza, é preciso reconhecer que o

trabalho, ao mesmo tempo em que vincula a humanidade à natureza,

possibilita que a humanidade se distinga dos demais seres naturais. Pode

parecer complicada essa relação onde natureza e humanidade devam ser

entendidas ao mesmo tempo vinculadas e diferenciadas, mas isso é um

entendimento dialético dessa relação. Para saber mais sobre a dialética, dê

uma olhada no box a seguir.

Dialética: conceito filosófico presente com diferentes abordagens nas obras de Platão, Hegel e Marx, a Dialética pode parecer complicada a princípio por ser um modelo de lógica que supera a chamada Lógica Clássica, que é aquela que estamos mais acostumados a lidar. Segundo a Lógica Clássica, uma determinada coisa não pode ser ela e, ao mesmo tempo, o seu contrário. Assim, afirma-se que A não pode ser A e, ao mesmo tempo, não-A. Se alguém afirma que A é não-A esse alguém está entrando em contradição, conforme a lógica Clássica. A Dialética, por sua vez, é uma lógica que opera a partir da contradição. Para ela, não haveria um “erro” em se afirmar que A é A e não-A desde que se entenda que a contradição se dá em um processo. E a noção de processo, ou de uma história, é outro elemento fundamental para se entender o pensamento dialético.Vamos exemplificar para ficar mais claro:Pela Lógica Clássica, não posso afirmar que uma canoa seja uma árvore e ao mesmo tempo seja uma não árvore porque estaria entrando em contradição e, consequentemente, cometendo um erro. Mas, pela Dialética, que incorpora as ideias de contradição e processo, é legítimo que eu afirme que a canoa é a árvore e a não-árvore. Ou seja, para que a canoa pudesse existir, a árvore teve que ser negada enquanto árvore para ser transformada em canoa. A negação ou contradição dialética supõe, então, uma ideia de superação daquilo que é negado, mas incorporando alguns

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dos elementos da realidade negada. Assim, a canoa, como a árvore, é de madeira, o que implica na manutenção dessa condição da árvore na canoa. Mas a condição de árvore é negada para que a canoa possa funcionar como tal. Assim, enquanto a Lógica Clássica opera com realidades fixas, a Dialética implica em reconhecer a dinâmica ou processualidade da realidade.Além das ideias de contradição e processo, a Dialética requer ainda no entendimento da noção de totalidade. Para a Dialética, por conta das contradições e dos processos, a totalidade nunca é o resultado aritmético da soma das partes. Para o pensamento dialético, a sociedade não é resultado da soma dos diversos indivíduos que a compõe, mas uma totalidade articulada, contraditória e em contínua processualidade.

1.2.2- Necessidade, ideação, objetivação e causalidade.

Continuando nossa conversa sobre a relação humanidade e natureza depois

do entendimento da dialética, podemos afirmar que os seres humanos são

parte da natureza ao mesmo tempo em que dela são capazes de se afastar.

Entender esse afastamento é importantíssimo para a compreensão do trabalho.

Como todos os demais seres vivos os humanos têm necessidades, como já

afirmamos acima. Mas, como os animais, por exemplo, satisfazem sua

necessidade de alimentação ou moradia? Ele pode, em alguns casos, caçar ou

simplesmente recolher a comida, esconder-se em um abrigo ou até mesmo

construir uma casa, como o faz o João de Barro. No entanto, entre os animais

esse processo não implica um “afastamento” da natureza, estando mesmo

imersos no meio natural.

Entre os humanos, por sua vez, alimentar-se ou morar estão condicionados a

elementos culturais. Podemos perceber isso em nossos rituais e critérios para

nos alimentarmos. E se morar é uma necessidade, ela não é satisfeita de modo

uniforme pelos seres humanos nos diferentes espaços e no decorrer do tempo.

E o que nos faz diferentes é que, para satisfazer nossas necessidades, somos

levados a projetar antes, em nossa consciência, o resultado que pretendemos

alcançar com nossa atividade. Ou seja, agimos com um objetivo, ou uma

finalidade.

Esse pensamento teleológico é o que nos permite projetar o resultado que

pretendemos alcançar e é chamado de prévia ideação. Com essa ideia previa

em mente á que o trabalho se objetiva, ou seja, se torna uma prática através do

dispêndio de determinada energia física e/ou mental. Da mesma forma que

unicamente o pensamento (ideação) não pode ser entendido como trabalho,

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apenas a prática sem reflexão nos torna menos humanos. É essa prática sem

reflexão que fazem os animais. Para os seres humanos essa articulação entre

pensamento e ação implica no entendimento dialético do trabalho enquanto

articulação entre a prévia ideação e a sua objetivação. Se faltar um desses

termos não é possível afirmar que estamos diante de um processo de trabalho.

Os demais seres vivos não são capazes de um pensamento prévio da

realidade em que se encontram. Daí que ajam mais imersos na natureza que

os humanos e que, segundo nosso entendimento de trabalho como a relação

entre ideação e objetivação, os animais não trabalhem.

Mas para que o processo de trabalho seja efetivo é preciso que os seres

humanos tenham um prévio e bom entendimento da realidade onde vão atuar.

O prévio conhecimento permite a homens-mulheres planejarem sua s ações

dando-lhes um sentido teleológico, ou seja, uma finalidade conscientemente

assumida, vinculando de uma maneira mais articulada a ideação com a

objetivação. Ainda que essa preocupação em articular pensamento e ação seja

fundamental, é possível que ocorram situações em que elas sejam observadas

e mesmo assim o que se planejou (ideação) não coincide com o que foi

executado (objetivação). Enfim, fica claro que é importante conhecer bem a

realidade que se quer transformar para que os resultados sejam aqueles

esperados, ou seja, na relação homem-mulher com a natureza, é importante

que essa preocupação em articular ideação e objetivação esteja presente.

Como já afirmamos, mesmo com tudo bem planejado pode acontecer de o

resultado ser diferente daquilo que planejamos. Isso acontece porque, com a

objetivação do trabalho estando finalizada, seu resultado deixa de

corresponder apenas aos objetivos de quem a realizou. A essa mudança em

relação ao que foi objetivado chamamos causalidade.

Todas essas informações podem parecer um tanto confusas enquanto estão

apenas em um plano teórico. Mas acreditamos que as coisas podem ficar mais

claras a partir de algumas exemplificações. Vamos lá.

Suponhamos como se dá a construção da canoa que já utilizamos no exemplo

acima. Fazer a canoa é algo que nasce de uma necessidade de transporte

para determinado homem-mulher. Para satisfazer essa necessidade esse ser

humano específico deverá idealizar a canoa em sua mente, planejando como

ela será em conformidade com suas necessidades. Se for uma canoa para

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transporte de grandes cargas será de uma forma, para pescar será de outra e,

caso seja para ser usada em guerras, terá ainda uma forma diversa.

Suponhamos que nosso personagem pretenda construir uma canoa que

utilizará na pesca, o que o leva a escolher o melhor tipo de madeira ou árvore

para aquela função.

Se ele tem um conhecimento mais aprofundado da realidade em que ele atuará

– incluído os usos, as experiências que já teve, os tipos de madeira etc. -,

melhores são as chances de sua canoa atender sua necessidade. Alguém sem

tais conhecimentos pode escolher uma árvore inadequada, o que

comprometerá o uso de sua canoa para a finalidade pretendida. E aqui entra a

atividade da natureza nessa relação com os humanos que identificamos como

naturalização da humanidade. É preciso que o ser humano se relacione com a

natureza no sentido de ser capaz de encontrar a madeira mais adequada a

suas finalidades. Assim, o ser humano trabalha a natureza, mas condicionado

por algumas condições naturais. Exemplificando: se a floresta da qual o

humano retirará a madeira para sua canoa é formada por árvores com troncos

grossos, ele poderá talhar a canoa na madeira. No entanto, se todas as árvores

da floresta forem muito finas, ao invés de talhar a madeira, o trabalhador

poderá construir uma jangada.

Continuando, o conhecimento da realidade acontece já no plano da ideação,

mas se ele só permanecer nesse plano, não terá uma canoa, ou seja, não terá

objetivado seu trabalho. A objetivação significa colocar em prática a ideação,

concretizando o processo de trabalho, cujo resultado material é a canoa pronta,

mas sempre lembrando que tal processo se dá em condições específicas. A

canoa depois de pronta e mesmo que tenha sido planejada, por sua vez, pode

acabar sendo utilizada para outros fins, por exemplo, ao ser colocada com seu

bojo para baixo, servirá de abrigo para pequenos animais. Essa finalidade não

prevista é o que caracteriza uma causalidade. Outras causalidades poderiam

acontecer, sendo que algumas até poderiam trazer consequências negativas a

partir de um uso não previsto na ideação. Um bom exemplo seria a de uma

faca que, idealizada para cortar alimentos, acabe sendo utilizada como arma.

Enfim, todos esses processos acontecem porque, após a objetivação do

trabalho, ele ganha uma determinada autonomia em relação a quem o

executou.

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Por fim, é muito importante não se esquecer de que, mesmo tendo satisfeito a

uma determinada necessidade, o processo de trabalho acaba criando outras

necessidades. Vamos continuar com nosso exemplo da canoa: o processo de

trabalho que gerou a canoa de pesca que estamos analisando levou ao uso

mesmo da canoa pelos pescadores. Com ela foi bem confeccionada, os

pescadores se tornaram mais eficientes em seu trabalho, o que, por sua vez,

levou a uma nova necessidade de criação de condições de armazenamento

adequado do pescado. Ou seja, a satisfação de uma necessidade acabou

levando ao surgimento de outra. É esse processo sempre aberto de satisfação

de necessidades e criação de outras necessidades que torna a história humana

um processo sempre em aberto, ou seja, nunca finalizado. Além disso, a

história humana também não se dá como repetições, já que cada trabalho é

adequado à satisfação de uma necessidade naquelas condições em que ele foi

executado. Se as situações mudam, também mudam as necessidades e a

forma, ou o trabalho, para satisfazê-las.

1.1.3-Tecnologia, linguagem e sociedade e natureza.

É importante ressaltar que, no processo de trabalho ocorre a utilização de

instrumentos, ou seja, entre o ser humano e a natureza se dá a mediação de

determinado objeto. Dessa maneira, ao construir sua canoa, o ser humano

colocou entre suas mãos e a árvore – entre humanidade e natureza – um

objeto que possibilitou esse trabalho. Esse objeto, que no caso da nossa canoa

é um machado, constitui-se como uma ferramenta. Assim, ferramenta é aquilo

que os seres humanos interpõem entre seu corpo e a natureza, sendo algo tão

importante que alguns pensadores e cientistas chegaram a caracterizar o ser

humano como “aquele que produz ferramentas”.

O uso de ferramentas é realmente uma característica humana importante que

pode nos auxiliar na identificação das diferentes épocas históricas, já que

ocorre uma sofisticação maior das ferramentas no decorrer do tempo histórico.

Isso, contudo, não deve ser confundido com uma visão linear de progresso em

que ferramentas mais sofisticadas indicariam povos mais “adiantados”. Vamos

nos recordar que o processo de trabalho visa atender a uma necessidade.

Assim, um avião por mais sofisticado que seja não é um meio adequado para

que eu me transporte de minha casa até a de minha avó que fica a três

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quadras de onde moro. É necessária a adequação entre a ferramenta e o

trabalho a ser executado. Assim como não é adequado usar um machado para

cortar as unhas, não é conveniente se utilizar uma tesoura para derrubar uma

árvore.

Essa sofisticação a que estamos nos referindo pode ser mais bem entendida

como complexificação. Ou seja, à medida que as necessidades são satisfeitas

e outras são criadas, há que se entender que tais novas necessidades vão se

tornando mais complexas, já que aquelas mais simples foram satisfeitas.

Necessidades mais complexas, por sua vez, levam ao desenvolvimento de

ferramentas também mais complexas para que o trabalho possa ser realizado.

Mais uma vez não custa lembra que complexo não significa mais avançado ou

superior. Para nos alertar sobre isso já nesse momento de nosso estudo é

importante salientar algo que veremos com mais profundidade no decorrer de

nosso curso, que é o fato de, mesmo com tecnologias mais complexas, as

sociedades atuais, ainda que produzam alimentos em quantidade suficiente

para alimentar toda a humanidade, convive com a realidade da fome. Seria isso

algum sinal de avanço?

Além da tecnologia, o processo de trabalho implica ainda que, por mais que o

trabalhador execute individualmente aquele seu respectivo trabalho, tal

processo é sempre social. Não nos tornamos humanos por nossa própria conta

enquanto indivíduos, mas sim através da interação coletiva. Aqui aproveitamos

para destacar mais uma condição para que o ser humano trabalhe, pois, como

vimos acima, de maneira semelhante que a natureza coloca determinadas

condições para a realização do trabalho, as relações sociais também

estabelecerão as condições sobre as quais será possível trabalhar, o que

veremos mais detalhadamente a seguir.

Como seres sociais, relacionamos uns com os outros através da linguagem.

Assim, complementamos o nosso entendimento de trabalho ressaltando que

ele é um processo de interação entre humanidade e natureza que se dá com o

uso de ferramentas, sendo que homens e mulheres não agem individualmente

no sentido de estarem isolados uns dos outros, mas socialmente mediados

pela linguagem ou pela comunicação. Como é um processo não se pode dizer

que esteja finalizado em um determinado momento, mas sim em contínuo

movimento. Um movimento que, por sua vez, nasce das contradições:

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humanidade e natureza, necessidade e objetivação. Mas, como vimos a

contradição para o pensamento dialético não é algo a ser eliminada, e sim

entendida como o motor da transformação.

Os esquemas a seguir podem nos ajudar:

Aprofunde seus conhecimentos assistindo ao filme “Guerra do Fogo”,

disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=5bsjJzG-vEE

Mas atenção: não se importe em encontrar uma versão dublada ou legendada,

pois essas informações serão referentes apenas aos créditos do filme, já que o

próprio filme não depende de qualquer dublagem ou legendas.

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Você fará agora uma Atividade. Poste no Fórum do nosso curso suas

respostas, pois, o importante é debatermos nossas ideias de maneira a

aprofundar e construir conhecimentos. Participe!

1- Que tal encontrar expressões como essas que tentam justificar uma suposta

superioridade da humanidade sobre a natureza? Tente identificar com as

pessoas que você conhece outros caos em que o ser humano é entendido

como separado e até mesmo superior à natureza.

2- É muito comum vermos as ideias de racionalidade vinculadas às ideias de

justiça. Determinada situação seria “mais justa” por ser “mais racional”. Mas,

será que é possível comparar as situações de injustiça na natureza e na

sociedade? Para não nos perdermos nessa indagação, que tal compararmos

as situações de justiça social entre as sociedades indígenas (chamadas de

primitivas) e o que acontece nas grandes cidades brasileiras. Entre os

membros de qual sociedade há mais injustiça social?

3- Que tal o desafio de procurar ampliar um pouco nossa discussão e

incluirmos uma questão sobre gênero? Quando falamos sobre gênero estamos

discutindo sobre as condições de ser homem ou mulher em determinada

sociedade. Veja se é possível relacionar a relação entre homens e mulheres

com aquela que acontece entre homem e natureza. Em muitas sociedades as

mulheres são tratadas como inferiores aos homens justamente por serem mais

emotivas e, portanto, menos racionais. Essa forma de entender a realidade

coloca as mulheres mais “presas” a um comportamento mais natural e, por

isso, mais inferior diante do homem, que seria superior por ser mais racional. O

desafio é encontrar situações que confirmem ou não essa nossa preocupação

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2.1- Forças produtivas e relações sociais de produção

O entendimento do conceito de trabalho que até agora desenvolvemos nos

leva a identificar o ser humano com o trabalho. Filosoficamente podemos

afirmar que o trabalho é uma condição ontológica do ser humano, querendo

com isso significar que não dá pra entender a humanidade sem entender o

trabalho. Ontologicamente é uma expressão que se refere ao SER, no nosso

caso, o SER enquanto humano. Como já adiantamos em tópicos anteriores,

esse processo não se dá em um vazio, mas sim a partir de determinadas

condições naturais e sociais. Assim, ao trabalhar o ser humano deve

considerar as condições dadas pela natureza e pela sociedade naquele tempo

e espaço específicos em que ele vive. É por isso que não é possível pretender

ser um astronauta durante a chamada Idade Média, a época do Feudalismo,

dos castelos, e dos servos, pois não havia condições para isso. Não que não

existisse o espaço sideral a ser explorado pelo astronauta, mas, como já vimos

o processo de trabalho é uma interação entre humanidade e natureza mediada

por ferramentas e voltada à satisfação de necessidades. Portanto, como tais

ferramentas e necessidades não existiam na Idade Média, era inviável ser

astronauta naquele tempo.

No decorrer da história os seres humanos estabeleceram diversas modalidades

de relação com a natureza e entre si. Partindo do que já entendemos do

processo de trabalho, vamos agora verificar como se dão as organizações

dessas diversas modalidades de relação homens entre si e natureza.

Primeiramente vimos que para que o ser humano trabalhe é preciso que ele se

relacione com a natureza, que são os objetos de trabalho, a partir do uso de

ferramentas, que são os meios de trabalho. Assim, a natureza a ser trabalhada

e as ferramentas formam um conjunto que denominaremos de meios de

produção, resultado da vinculação entre objetos de trabalho e ferramentas.

Para movimentar as ferramentas os seres humanos utilizam de sua força de

trabalho, sendo ema mental e corporal. Por sua vez, a vinculação dos meios de

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produção com a força de trabalho humana forma um conjunto mais amplo que

chamamos de forças produtivas.

Esquematizando temos:

NATUREZA = OBJETO DE TRABALHO

FERRAMENTA = MEIO DE TRABALHO

OBJETO DE TRABALHO + MEIO DE TRABALHO = MEIOS DE PRODUÇÃO

MEIO DE PRODUÇÃO + FORÇA DE TRABALHO = FORÇAS PRODUTIVAS

Esse amplo conjunto formado pelas forças produtivas está em contínua

transformação no sentido de se tornar cada vez mais complexo. Afinal, como já

compreendemos, as necessidades humanas não se repetem de uma maneira

mecânica, mas se complexificam. Vamos a um exemplo? Pois bem: habitação

é uma necessidade humana. No entanto, ela tem sido satisfeita de maneiras as

mais diversas nos diferentes tempos e espaços. Não moramos da mesma

forma que nossos antepassados longínquos. E são diferentes as habitações de

esquimós e indígenas sul-americanos. Em ambos os casos importaram para

diferenciar as moradias as condições temporais e espaciais. Temporalmente

seria impossível construir um arranha-céu na Grécia Antiga por conta das

condições tecnológicas, bem como as condições espaciais não me permitem

morar em um iglu no deserto do Saara devido às condições naturais.

Continuando com os nossos exemplos de habitações, deve-se salientar,

contudo, que há outra ordem de elementos que faz com que os humanos

habitem de maneira diferente uns dos outros, ou até que alguns humanos não

tenham nem mesmo onde morar. E aqui entra outro tipo de condição além

daquelas temporais e espaciais: são as relações sociais de produção.

As relações sociais de produção são um conjunto relações que os seres

humanos estabelecem entre si e com a natureza e podem se constituir a partir

de critérios de competitividade ou solidariedade. Nas relações sociais de

produção as relações de propriedade ocupam uma posição fundamental. É a

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partir das relações de propriedade dos meios de produção que se determinam

se a relação entre os membros da coletividade serão de solidariedade ou de

competitividade. Onde não ocorre a propriedade privada de tais meios de

produção as relações são de solidariedade e cooperação. Por sua vez, a partir

do momento em que há propriedade privada dos meios de produção, as

relações passam as ser de competição entre aqueles que tem as terras e as

ferramentas e aqueles que não as possuem. Os que não tem os meios de

produção são, então, forçados a trabalhar para aqueles que são donos dos

meios de produção.

Dessa forma, as relações de propriedade acabam determinando o tipo de

ralações sociais que irão vigorar. No caso da habitação que vínhamos

refletindo, a propriedade que alguns tem sobre as moradias é capaz de impedir

que outros membros da sociedade não tenham sua necessidade de morar

atendida.

O conjunto das forças produtivas e das relações sociais de produção forma o

que denominamos modo de produção. Assim:

FORÇAS PRODUTIVAS + RELAÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO = MODO DE PRODUÇÃO

Antes de seguirmos, é preciso lembrar que enquanto as forças produtivas

possuem um caráter mais técnico, as relações de produção são evidentemente

sociais. Além disso, as forças produtivas são continuamente transformadas,

possibilitando um aprimoramento na relação dos humanos com a natureza. Por

seu lado, entretanto, as relações de produção não partilham da mesma

dinâmica de transformação, o que acaba gerando os períodos de

transformação social e mudança de um modo de produção a outro. É isso que

vermos a segui na brevíssima viagem histórica que faremos.

2.2- Da caça e coleta ao excedente

O que vamos fazer agora é uma viagem rapidíssima pela história humana com

o objetivo de verificar a aplicabilidade histórica dos conceitos que acabamos de

estudar. Não nos prenderemos a datas a outros detalhes nesse nosso percurso

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imediato, deixando para um momento mais a frente em nosso curso a

oportunidade de estar aprofundando alguns dos conhecimentos aqui

apresentados. Por ora, é apertar o cinto e se segurar porque a viagem é pra lá

de veloz.

Nos primórdios de sua existência, os seres humanos mantinham uma relação

de extrema proximidade com a natureza, limitando-se a retirar dela o que era

necessário para a sua sobrevivência e de seu grupo. Aliás, viver em grupo era

estratégia importantíssima para esses seres tão pouco preparados para os

rigores do meio natural. Diferentemente de outros animais, por exemplo, que

desenvolveram adaptações adequadas ao ambiente em que viviam, os

humanos, ainda que habitassem regiões extremamente frias, não eram

portadores de uma cobertura peluda em seu próprio corpo. A falta de uma

especialização de acordo com o ambiente que parecia ser uma desvantagem,

no entanto, acabou se revelando fundamental para que os humanos pudessem

sobreviver em condições mais adversas. E para isso contou certamente a sua

capacidade de executar o trabalho. Isso o diferenciava da natureza, sem,

contudo fazer com que o ser humano deixasse de ser natural.

As necessidades fundamentais como comer, vestir e morar eram satisfeitas de

maneiras muito simples nesse período histórico. A alimentação, por exemplo,

era obtida através da coleta, da caça e da pesca. E por não terem controle

sobre os recursos naturais de um lugar, os humanos nesse momento de sua

história eram nômades, ou seja, não fixavam suas habitações em um local

específico. Além disso, era muito reduzida a diferenciação social dentro dos

grupos, sendo que eles dividiam igualitariamente os resultados de suas

atividades produtivas. No interior desses grupos prevalecia a cooperação e não

havia a propriedade privada dos meios de produção.

Esse período em que os seres humanos viviam tão próximos à natureza e de

modo cooperativo compreende a maior parte da existência humana sob a Terra

e só com o decorrer do tempo é que as diferenciações sociais foram se

aprofundando. E isso se deu justamente a partir da descoberta – acredita-se

que peles mulheres – da agricultura e da domesticação de animais. A partir

dessas descobertas dois fatos muito importantes vão acontecer; o primeiro é

que passa a ocorrer certa diferenciação entre os seres humanos a partir de

suas realidades produtivas, pois alguns se tornam agricultores, outros pastores

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e alguns passam a se dedicar ao artesanato, já que era preciso construir vasos

ou cestos para armazenar os cereais colhidos, construir cercas e mais uma

série de atividades. É importante lembrar que a diferenciação crescia dentro

dos grupos sociais, mas isso não significava o aparecimento da desigualdade,

que á algo que vai surgir a seguir.

O segundo fato importante é que, com as atividades agrícolas e pastoris os

seres humanos puderam ter um maior controle sobre suas condições de

produção, o que permitiu que eles se tornassem sedentários, isto é, com

habitação fixa em determinado local, além de possibilitar que a produção

gerasse um excedente, ou um produto a mais que sobrava após a satisfação

das necessidades. Juntando a crescente especialização decorrente dos

diversos tipos de atividades – agricultura, pastoreio, artesanato – e a

ocorrência de um excedente, estava aberto o caminho para que as trocas

pudessem ocorrer.

Toda essa nova dinâmica produtiva foi se complexificando de forma que alguns

lugares se tornaram especializados em uma determinada atividade econômica.

O lugar onde as trocas eram efetuadas se tornaria o mercado e do mercado

surgiriam as cidades. Assim, as sociedades se tornavam mais complexas e

diversificadas.

Mas, se por um lado essa diversificação trazia novas potencialidades para os

grupos humanos, por outro, a ocorrência de um excedente levou à

especialização de alguns membros do grupo social na função de

administradores desse excedente. Com o tempo, a ampliação do excedente e

das trocas acabou consolidando esse grupo como um grupo separado dos

demais membros da coletividade. Enquanto esses poucos administravam o

excedente, a grande maioria se limitava a exercer suas atividades produtivas.

Nesse momento, o que antes era diferenciação social passou a se constituir

em desigualdade social, já que alguns trabalhavam e outros administravam.

Vamos ver isso mais de perto e a relação com o trabalho.

Aprendemos que o trabalho é uma relação do ser humano com a natureza que

supõe a articulação entre ideação e objetivação para a satisfação de uma

necessidade. Nesse processo tanto o trabalhador está de corpo e mente

inserido na dinâmica produtiva, quanto existe uma articulação entre homem e

natureza no processo de trabalho. Acontece que, a desigualdade social se

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fundamenta em uma separação entre que trabalha e quem pensa sobre o

trabalho, pois o administrador passa a cobrar tipo de produção e o ritmo da

mesma do trabalhador, que se limita a executar o trabalho. Assim, enquanto

um pensa, o outro age, o que leva à separação entre “trabalho” manual e

“trabalho” intelectual. Além disso, que passa a determinar as necessidades a

serem atendidas através do trabalho já não é o trabalhador, mas o

administrador.

Continuando nossa reflexão, vamos recordar que o trabalho é um processo

único (totalidade) que articula dialeticamente homem e natureza com um

objetivo previamente (teleologicamente) definido de atender uma necessidade.

Quando um desses constituintes do trabalho não está presente, como no caso

da separação entre trabalhador e administrador, o trabalho deixa de ser

realmente o que entendemos por trabalho e passa a ser uma mera atividade

produtiva.

Essa separação entre os seres humanos através da desigualdade social vai se

fundamentar em outra separação. Os administradores separam os

trabalhadores da natureza, o objeto de trabalho, pela instituição da propriedade

privada da terra. Sem a terra – e sem os demais meios de produção – os

trabalhadores são obrigados a trabalhar para os administradores para

garantirem suas sobrevivências. A partir de então, a cooperação deixa de ser o

fundamento do grupo social e a competição se torna a base das relações

sociais.

Ressaltemos que, a partir desse momento da história humana, aquelas

dicotomias sobre as quais refletimos no início de nosso curso se instalam em

nossa sociedade. O homem é separado da natureza e dos seus semelhantes;

o processo de trabalho é fragmentado, dicotomizando quem pensa e que

produz; a negação da propriedade para muitos é a condição para uns poucos

possam ser proprietários. Essas dicotomias, por sua vez, são a base para um

conceito que vamos aprender agora: o conceito de alienação.

Alienação é comumente usada para identificar aqueles que estão loucos, o

veículo que foi comprado financiado e até mesmo aquela pessoa que não se

liga nas questões sociais de seu tempo. Mas aqui vamos identificar alienação

com a situação específica em que os trabalhadores são separados dos meios

de produção e dos resultados de seus trabalhos, bem como a dicotomia entre

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trabalho manual e intelectual. Esse trabalhador alienado perde sua condição

básica de ser humano, pois deixa de ser sujeito de suas próprias condições de

vida. Alienação, portanto, implica em desumanização que nasce da separação

dos grupos humanos entre aqueles que são proprietários dos meios de

produção e os excluídos desses mesmos meios. Superar a alienação, então,

implica em acabar com a propriedade privada dos meios de produção. Mas

essa é uma reflexão a qual voltaremos mais a frente em nosso curso.

2.3- Diversas formas de controlar o excedente

A complexificação social a partir do excedente leva à diversificação em um

primeiro momento fazendo com que passe a ocorrer uma especialização

profissional: agricultores, pastores, artesãos, comerciantes etc. Mas em um

segundo momento, o que era apenas diversificação torna-se desigualdade,

separando os seres humanos entre aqueles que administram e controlam o

excedente e aqueles que produzem esse mesmo excedente com seu trabalho.

Acumulam-se, assim, diversas separações ou dicotomias: administradores e

trabalhadores, trabalho intelectual e trabalho manual humanidade e natureza e

aquela que se dá entre o campo e a cidade. Se no início a cidade é onde as

trocas são realizadas em um mercado para esse fim criado, com o passar do

tempo, as cidades passam a realizar uma dominação sobre o campo. Não só o

mercado se concentra na cidade, mas também o poder político passa a ser

disputado na área urbana e tem suas decisões válidas tanto para os habitantes

do meio urbano quanto do meio rural. Esse processo de crescimento de

importância da cidade não se deu de um momento para outro, mas sim ao

longo da história até chegar ao elevado poder que hoje a cidade detém. E esse

processo se relaciona com a produção e o controle do excedente que além de

ser direcionado para a cidade, passa a ser por ela definido, já que é da cidade

que emanam as decisões sobre o que e como produzir. Vamos verificar agora

como se deu ao longo do tempo essa concentração de poder na cidade em

detrimento do campo.

Com a possibilidade de excedente e complexificação social torna-se necessária

a criação de toda uma estrutura para possibilitar a manutenção das relações

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sociais fundamentadas na desigualdade. Essa estrutura tem um caráter

político, na medida em que é a partir dela que serão tomadas as decisões de

poder e de mando, ou seja, quem manda e quem obedece. Assim, a estrutura

de poder tem o objetivo de manter as relações sociais de desigualdade e para

isso utiliza-se de dois mecanismos: o convencimento e a violência.

O convencimento como forma de controle da sociedade acontece quando

aqueles que estão na condição de explorados são convencidos a aceitar a

exploração. E a dúvida que surge é: como alguém poderia ser convencido ou

aceitar se dominado ou explorado? É aqui que entra aquilo que podemos

chamar de ideologia: um conjunto de ideias e práticas que tem o objetivo de

transmitir alguma forma de entender a realidade. Acontece que esse

entendimento da realidade é realizado atendendo a alguns interesses que, no

caso que estamos estudando, objetiva manter a dominação social. Assim, a

ideologia faz com que as manifestações culturais e religiosas, por exemplo,

transmitam conhecimentos e valores que pretendem convencer aqueles que

são explorados a aceitar sua condição.

Exemplificando a ideologia na cultura podemos recordar que é muito comum

que se afirme que o ser humano é egoísta “por natureza” e que, por isso, vive

em uma situação de competição contínua contra os demais humanos. Ora,

quem pode afirmar com certeza que existe uma natureza humana que seja fixa

ao longo da história e que, além disso, ela seja marcada pelo egoísmo.

Historicamente, como já vimos, foi justamente a cooperação entre os humanos

e não a competição que possibilitou a adaptação e sobrevivência da

humanidade. Frente a um ambiente hostil diante das ferramentas precárias que

os humanos tinham nos primórdios de sua história, a cooperação se mostrou

fundamental para que a espécie humana se tornasse viável. Sem a cooperação

não estaríamos aqui hoje fazendo essas reflexões. Assim, percebe-se que é

por conta da ideologia que se afirma o egoísmo humano, a competição e a

divisão social que dela surge com o interesse de manter as estruturas sociais

tal como estão, ou seja, com a divisão social entre exploradores e explorados.

Esse é um dos exemplos de convencimento ideológico para que a exploração

seja aceita.

Outro mecanismo de convencimento em favor da manutenção da exploração

são aqueles valores religiosos que levam os explorados a identificar sua

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condição com a vontade divina. Dessa maneira aquele que se encontra na

condição de explorado afirma: devo aceitar minha situação porque foi “deus

quem assim o determinou”. Além disso, a aceitação da exploração pode se dar

em nome de uma recompensa futura depois da morte. E essa justificativa para

a manutenção da condição de exploração é utilizada em diversos contextos

históricos, seja na antiguidade até os dias de hoje.

Porém, além do convencimento possibilitado pela ideologia, quando apenas

essa não basta, o poder político dos exploradores se faz através da violência. É

por conta dessa necessidade de usar da violência quando o convencimento

não funcionou que os exploradores mantêm um grupo de pessoas preparado

para fazer valer seu poder. Esse grupo de pessoas constitui-se da força militar

e jurídica da sociedade. São eles que irão atacar, prender e julgar todos

aqueles que sejam vistos como uma ameaça ao poder exercido pelos

exploradores. E ao longo da história foram diversas as formas que esse grupo

de poder pela violência atuou: exércitos, grupos policiais, juízes, tribunais,

enfim, diversos mecanismos para fazer valer uma ordem social que,

juridicamente, favorece aos exploradores.

Devemos ressaltar, no entanto, que se existe a necessidade de criar

mecanismos como a ideologia e a violência para a manutenção das diferenças

sociais entre exploradores explorados é sinal que aqueles que são vítimas da

exploração do trabalho não aceitam passivamente a dominação. Ou seja, a

desigualdade social não é aceita sem resistência por parte dos explorados

contra ela, ainda que o papel da ideologia seja convencê-los disso e o da

violência seja o de coagi-los a aceitar a dominação. Esse entendimento da

resistência é fundamental para entendermos a história da humanidade como

resultado dessa luta contínua entre exploradores e explorados, com avanços e

recuos em favor de cada lado nos diversos períodos históricos.

Vamos ver alguns desses períodos a seguir.

2.4- Do escravismo ao feudalismo

Controlar o excedente passou a ser fundamenta em uma sociedade dividida.

Daí que as diversas formas que esse controle foi realmente exercido durante a

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história humana. Nesse tópico vamos chamar a atenção para duas maneiras

de controle do excedente: o escravismo e o feudalismo.

Vamos entender o escravismo em dois momentos em que ele foi utilizado para

controlar o excedente: o primeiro na chamada Idade Antiga, envolvendo as

sociedades gregas e romanas e o segundo já no início daquele momento

histórico designado por Idade Moderna.

O escravismo clássico foi aquele que prevaleceu nas cidades estados da

Grécia Antiga e na civilização romana. Sem pretender detalhar datas e locais,

podemos identificar que os escravos eram mantidos na condição de exploração

por conta de uma contínua violência. Afinal, a condição de escravo era

decorrente de guerras, dívidas ou nascimento. Ou seja, a pessoa se tornava

escrava quando seu grupo social, ao ser vencido em uma guerra, era

escravizado pelo grupo vencedor. Filhos de escravos em tais situações

herdavam a condição de escravos dos pais. Além disso, era comum nesse

período que pessoas, em muitos casos camponeses, que se encontravam

endividados, convertessem sua dívida em escravidão, seja por um período

determinado, seja sem essa determinação.

O ser humano escravizado perdia essa condição de humano e passava a ser

considerado uma coisa, propriedade de seu senhor. Assim, diante de uma

condição social tão degradante, eram comuns as revoltas dos escravos e suas

lutas por libertação, o que, por sua vez, fazia com que os explorados

exercessem seu poder através de intensa violência. Afinal, são reduzidas as

possibilidades de convencer ideologicamente alguém a ser escravo. Além

disso, a guerra era uma constante nessas sociedades, já que ela era o principal

mecanismo de obtenção de novos escravos. E é justamente quando essas

sociedades não conseguem mais se expandir através de seus guerreiros que

elas entram em crise e sua forma de controle do excedente desaparece.

O escravismo dos tempos modernos, no entanto, tem algumas características

diferentes daquele que ocorreu nas sociedades greco-romanas. Para ilustrar a

forma moderna de escravismo temos a sociedade brasileira de um período

histórico nem tão distante em que indígenas e negros foram escravizados. O

que diferencia essa forma de escravidão é o sentido mercantil que ela tem, ou

seja, a produção desses trabalhadores escravizados tinha como destinação o

mercado europeu. Povos originários da América e da África foram

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violentamente mantidos na condição de escravo para possibilitar a acumulação

de um excedente na Europa com seus trabalhos na lavoura e na mineração.

Além disso, no caso dos africanos, pode-se verificar que o tráfico de escravos

também era uma lucrativa forma de enriquecimento para os colonizadores

europeus. Essa forma de controle do excedente, porém terá o seu fim em

decorrência tanto das lutas dos escravos por sua libertação quanto pela sua

superação em uma nova forma de controlar o excedente, que será o

capitalismo. Antes de verificar essa forma de controle da produção excedente,

vamos verificar como esse controle se dava no feudalismo.

No feudalismo, a exploração de trabalho ainda era feita fundamentada na

violência, mas aqui a ideologia já passa a exercer seu papel de “convencer” os

trabalhadores a aceitar a exploração. É que nesse momento histórico e espaço,

a chamada Idade Média na Europa, a Igreja Católica exercia uma grande

influência sobre as mentalidades no sentido de acreditar que a divisão social

era uma “vontade divina”. A sociedade estava dividida em três ordens, às quais

a Igreja relacionava um papel social: o clero (padres, bispos e frades) teria a

função de rezar; os nobres, proprietários das terras deveriam cuidar da defesa

e da guerra; e os camponeses, na condição de servos, deveriam trabalhar a

terra. Por não serem proprietários das terras, os servos trabalhavam em uma

parcela do feudo da qual tiravam seu sustento e passavam uma parte para o

senhor feudal, o nobre proprietário. Em alguns dias da semana o servo ainda

trabalhava nas terras do senhor, além de ter a obrigação de pagar diversas

taxas. Toda essa estrutura de exploração dos servos era justificada pela Igreja

Católica como uma vontade de deus, o que mostra a força da ideologia em

“convencer” os explorados a aceitar essa sua condição.

Essas duas últimas formas de exploração estudadas – o feudalismo na Idade

Média e o escravismo na Idade Moderna, tal como praticado no Brasil -, no

entanto, são superadas por uma maneira de produzir em que a ideologia terá

um papel fundamental. O fim do feudalismo é normalmente associado ao

surgimento das cidades, mas o mais importante na determinação desse modo

de controlar o excedente é que, diante de um quadro de crise europeia, a

exploração dos servos aumenta em um grau exagerado, levando esses

mesmos servos a se rebelarem. Para controlar os servos rebelados é que os

exploradores desenvolvem um poderoso corpo repressivo através do estado,

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ou seja, do poder político. Mas mesmo essa violência contra os servos não é

capaz de garantir a manutenção do feudalismo, que será superado pelo

capitalismo. Aliás, para o surgimento do capitalismo, a outra forma de

exploração representada pelo escravismo moderno irá contribuir, pois a riqueza

gerada pelos escravos e os lucros decorrentes do tráfico de africanos irão

possibilitar um acúmulo de riquezas na Europa, em especial na Inglaterra, onde

ocorrerá a Revolução Industrial, que marca o nascimento do capitalismo.

2.5- A exploração capitalista

No capitalismo a violência continua presente como forma de possibilitar o

controle sobre os explorados. No entanto, o papel da ideologia passa a ter uma

força enorme no “convencimento” dos explorados. É que escravos e servos

não eram considerados trabalhadores livres, pois, os escravos eram tratados

como uma mercadoria de seu senhor, enquanto os servos estavam presos á

terra onde trabalhavam e moravam. A liberdade como possibilidade de definir

questões básicas de seus destinos não existia para esses explorados.

Essa é uma realidade que passa a ser modificada pelo capitalismo, já que,

diferentemente da ausência de liberdade das formas anteriores de exploração,

os trabalhadores são “livres” em uma sociedade capitalista. Teoricamente,

tanto os patrões podem escolher seus trabalhadores, quanto os assalariados

poderiam optar para qual patrão trabalhar. Essa suposta liberdade é que

garante que as pessoas não se revoltem radicalmente e tentem mudar as

relações sociais.

A prática, porém, mostra toda a força que os exploradores podem exercer

sobre os explorados. Um grande número de pessoas é mantido no

desemprego ou em um emprego precário, formando um “exército industrial de

reserva” pronto a assumir nos locais em que os trabalhadores estejam não

estejam mais sendo convencidos pela ideologia. Assim, não há uma

“negociação justa” entre trabalhadores e patrões, com vantagens para esse, é

claro. Acontece, porém, que a desigualdade que marca a relação entre

trabalhadores e capitalistas não pode ser vista claramente, como no caso da

escravidão, onde o escravo era visto como uma mercadoria ou no feudalismo,

onde o servo trabalhava parte do tempo para o senhor e lhe entregava parte de

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sua produção. No capitalismo, a exploração se dá de uma maneira mais

sofisticada. Vamos entendê-la.

O capitalista é aquele que possui capital. Costumamos identificar capital com

dinheiro, mas é preciso entender que o dinheiro só se torna capital quando é

utilizado para produzir mais dinheiro. Assim, em nossa sociedade é comum que

os capitalistas afirmem que suas riquezas são resultado do investimento de

seus dinheiros, ou capitais, como se tais riquezas fossem resultado de uma

poupança feita pelos capitalistas e posteriormente aplicada. Porém, é preciso

verificar que essa aparência pode esconder a verdadeira relação social que

está por detrás da riqueza dos capitalistas, ou seja, estamos diante da

ideologia.

O que não está revelado na afirmação da riqueza do capitalista é que ela é

resultado da exploração do trabalho, e não simplesmente uma multiplicação

automática do capital em que ele vai crescendo por si só. O capital, para

crescer e se transformar em riqueza nas mãos dos capitalistas precisa passar

por uma relação social com os trabalhadores, que produzirão um excedente

que será controlado pelo proprietário do capital.

É preciso não se esquecer do que foi afirmado acima que o capitalismo só foi

possível historicamente por conta da acumulação de riqueza nas mãos de

colonizadores europeus que se enriqueceram com a exploração colonial e com

o tráfico de escravos. Daí que tenha sido na Europa que o capitalismo tenha

surgido a partir da revolução industrial, quando aquela riqueza acumulada foi

investida na fábrica e suas máquinas. No entanto, apenas a riqueza, ou o

capital, não basta para o processo de produção. É preciso uma força de

trabalho para fazer com as máquinas e os objetos de produção se transformem

em um excedente a ser controlado pelo capitalista. Essa força de trabalho, no

caso de Inglaterra, onde a Revolução Industrial teve início foi resultado da

expulsão dos trabalhadores do campo através de um processo conhecido

como cercamento dos campos. Esse processo expulsou os camponeses para

as cidades, onde, para sobreviver, tiveram que vender sua força de trabalho.

Ora, mas esses camponeses que foram para a cidade não tinham outra forma

de sobreviver? É importante salientar que esses camponeses não tinham

capital ou riqueza, contando apenas com sua força de trabalho. Além disso, em

uma sociedade capitalista, tudo se transforma em mercadoria, ou seja, algo

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que deve ser comprado, ou que possui um valor de troca. Se por um lado não é

possível você produzir sem ter capital, como a terra no caso dos camponeses

que estamos estudando, também é impossível se alimentar, vestir, morar sem

comprar tais mercadorias, já que estamos tratando de uma sociedade

capitalista. Assim, para sobreviver nessa sociedade os camponeses tem que

vender sua força de trabalho que passa a ser considerada uma mercadoria

dentro do quadro das relações sociais de produção capitalistas. Em troca os

trabalhadores recebem um salário, com o qual poderão adquirir as mercadorias

que podem satisfazer suas necessidades básicas.

O salário recebido deve ser capaz de satisfazer as necessidades básicas

desse trabalhador, o que nem sempre acontece. Mas, suponhamos uma

situação em que os trabalhadores recebem um salário que realmente dê conta

da satisfação de suas necessidades. No processo de produção esses

trabalhadores não estarão trabalhando somente o tempo equivalente ao salário

que recebem, mas sim terão que trabalhar por toda a jornada para a qual foram

contratados. É nesse restante de jornada onde os trabalhadores produzem o

excedente que será controlado pelo capitalista, pois, como dono do capital

investido na fábrica, ferramentas e matérias-primas ele se encontra

juridicamente amparado para tomar para si tal excedente.

Como se pode perceber, o convencimento pela ideologia e pela violência

continua em ação para garantir o controle do excedente pelo explorador. A

ideologia funciona impedindo que os trabalhadores percebam a exploração,

pois, acreditam que estão sendo remunerados pelo que produziram, enquanto,

na verdade, produziram um valor a mais. E a violência fica implícita através dos

mecanismos jurídicos que garantem a propriedade capitalista. Bastaria que

essa propriedade fosse ameaçada pelos trabalhadores para que a violência se

tornasse explícita, fazendo com que os mesmos respeitassem a lei que garante

tal propriedade nas mãos de seu dono.

Tanto uma quanto a outra tem a função de permitir que tal relação social seja

continuamente reproduzida, mantendo cada grupo social em sua função e

garantindo que o excedente seja controlado por uma pequena parte da

sociedade. No caso do capitalismo, esse excedente que os trabalhadores

produzem, mas não percebem que o estão produzindo, recebe o nome de

mais-valia. A mais-valia é, então, aquela parte da riqueza que o capitalista

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extrai dos trabalhadores e que possibilita a ampliação contínua do capital.

Vemos assim que a riqueza do capitalista não decorre de uma multiplicação

automática do capital, mas sim do estabelecimento de uma relação social

voltada para o controle do excedente.

No entanto, como demonstram a ideologia e a violência implícita ou declarada,

é possível aos trabalhadores identificar a exploração a que estão submetidos e

lutar contra ela. Caso a resistência não existisse, ideologia e violência seriam

desnecessárias. E mais, é justamente da luta permanente dos exploradores

para controlar cada vez mais o excedente e dos trabalhadores para se livrarem

da exploração que se dá a dinâmica social. Daí que os capitalistas invistam em

máquinas cada vez mais sofisticadas não para poder ofertar um tempo livre

para seus trabalhadores, mas sim para acumular mais excedente, ou seja, para

explorá-los ainda mais, ainda que isso acabe causando desemprego de muitos.

Completando nosso estudo sobre a forma capitalista de apropriação do

excedente de uma maneira coerente com aquilo que já estudamos

anteriormente, é importante destacar que o capitalismo acentua a separação

entre os seres humanos ao mesmo tempo em que agrava a separação entre

humanidade e natureza. Isso porque dentro da lógica de acumulação contínua

de capital é preciso que a produção e o consumo sejam também

continuamente expandidos. Essa expansão, por sua vez, se dá ao incorporar

novos espaços naturais, o que leva à degradação ambiental e também a

criação de novas mercadorias como forma de incentivar o consumismo e a

cultura do supérfluo.

Em todos esses casos a motivação do capital é ampliar a taxa de lucro, já que

caso ela não continuasse a se expandir continuamente, não seria possível o

capital se expandir. E como já estudamos, o dinheiro só se torna capital

quando é utilizado para gerar mais dinheiro. Isso, por sua vez, só é possível

juntando elementos da natureza como matéria-prima e força de trabalho em

mercadorias que devem ser continuamente produzidas, substituídas, em uma

corrente aparentemente sem fim, o que nos coloca diante de um impasse: o

capital para existir precisa se expandir continuamente, o que só é possível com

aumento da exploração da natureza e da força de trabalho. Percebe-se que o

capitalismo leva ao extremo aquelas dicotomias ou separações que estão lá no

início de nossos estudos: a separação entre humanidade e natureza e da

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própria humanidade consigo mesma. Tendo em vista esse dilema, será que

podemos afirmar que o capitalismo é sustentável?

Para saber mais sobre o capitalismo, assista ao vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=d5CzZqauTVs (dublado)Você pode escolher a legenda em português.Aproveite para postar na sala de encontro suas opiniões sobre o vídeo.

Poste no Fórum on-line sua contribuição com relação às atividades a seguir:

1- Muito do que vimos nesse capítulo você provavelmente já estudou em suas

aulas de História. No entanto, nossa preocupação foi estudar esse processo

histórico tendo por base a apropriação do excedente e as justificativas que são

utilizadas para que isso ocorra.

A partir de seu conhecimento sobre ideologia, indique justificativas que hoje

são utilizadas pelos capitalistas para convencer os trabalhadores a aceitarem

ou nem mesmo perceberem a exploração.

2- É possível perceber o papel dos meios de comunicação no sentido de nos

fornecer uma visão única da realidade e que nos leva a aceitar passivamente a

exploração ou a desigualdade social? Bem, sua função é identificar e postar o

link de uma notícia nesse sentido e comentá-la.

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No decorrer de nosso estudo vimos que as relações entre humanidade e

natureza foram dicotomizadas de forma que o ser humano fosse colocado em

uma posição de superioridade em relação ao meio natural e também em

relação a uma parte da humanidade. Essa parte da humanidade e a natureza

passaram a ser continuamente dominadas no decorrer da história humana e

chegando a um nível de dominação extremamente intenso na sociedade

capitalista, já que nela os trabalhadores humanos e a natureza foram

mercantilizados para que pudessem servir à expansão do capital. Nesse

processo histórico a natureza e os povos com ela identificados, tais como os

indígenas, os negros e toda uma gama de povos originários, foram tratados

como inferiores e, por isso, dominados. Aliás, ao inferiorizar esses povos e a

natureza, os dominadores de todos os tempos buscavam justificar sua

dominação. O capitalismo tornou-se possível graças à dominação contínua de

diversos povos e uma destruição de diversos ambientes naturais, o que

demonstra a enorme insustentabilidade do capitalismo.

Mas a pergunta que devemos então fazer é se haveria possibilidade de uma

relação entre natureza e humanidade e dessa consigo mesma que fosse

fundada na sustentabilidade, sem dominação e compreendendo a dialética da

relação entre humanos e natureza em que a mútua transformação fosse a base

de relações sociais de solidariedade. E a resposta a essa questão pode ser

buscada naquelas relações que os camponeses estabeleceram no decorrer da

história entre suas comunidades e a natureza. É preciso salientar que os

camponeses desenvolveram suas relações com o ambiente no decorrer da

história através de modalidades diversas, ainda que estivessem ligados ou

ameaçados por outra modalidade de dominação da natureza e controle do

excedente. Assim, havia camponeses durante o escravismo, feudalismo e eles

continuam existindo nas sociedades capitalistas desse início de século XXI.

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Se por um lado a existência do campesinato é uma realidade verificável na

realidade mundial como o demonstra a força dos movimentos dos camponeses

tais como a Via Campesina no Brasil e no mundo, o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento dos Pequenos Agricultores,

dentre outros, no Brasil, é preciso considerar que o capital tenta incorporar

cada vez mais a produção agrícola a sua dinâmica de expansão dos lucros.

Para isso ele utiliza de diversas estratégias, dentre as quais podemos destacar

o agronegócio, a mecanização, o uso de cultivos transgênicos, os agrotóxicos,

dentre outras.

É essa dinâmica do embate entre as formas que os camponeses encontraram

para se relacionar entre si e a natureza que vamos estudar a seguir. Antes,

porém, é preciso justificar aqui porque preferimos utilizar a expressão

agricultura camponesa ou campesinato, ao invés de agricultura familiar. Como

se poderá aprofundar nos textos a seguir, o termo agricultura familiar passou a

ter maior utilização a partir dos programas governamentais de incentivo a esse

setor econômico. E justamente o maior enfoque na dimensão econômica dado

pela caracterização da agricultura familiar é que faz dela uma expressão

limitada. Afinal, ao nos propormos a refletir sobre a relação entre humanidade

entre si e com a natureza com base na sustentabilidade, é preciso reconhecer

que apenas a expressão “camponeses” é capaz de dar conta do significado de

“ser sustentável” a partir dos princípios da Agroecologia. É que a Agroecologia

não se limita a considerar apenas a dimensão econômica da sustentabilidade,

mas necessariamente articula essa dimensão com a social e ambiental. Assim,

a agricultura camponesa agroecológica que nos serve de modelo em nosso

estudo é diferente do agronegócio que visa à expansão do lucro e do capital e

é mais ampla que a agricultura familiar, já que a Agroecologia camponesa deve

ser economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável.

É essa agricultura camponesa agroecológica que representa uma forma de

relação não dicotomizada entre humanidade e natureza. Sobre ela é que

vamos aprofundar nossos estudos.

Para tanto, nesse vamos nos referenciar no artigo Modo de apropriação da

natureza e territorialidade camponesa: revisitando e ressignificando o conceito

de campesinato, escrito pelo professor Carlos Eduardo Mazzetto Silva e que

adaptamos.

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3.1- Sustentabilidade e território-habitat: a dimensão ecológica na definição de campesinato

A territorialidade camponesa tem um caráter eminentemente local, construído

na relação histórica e cotidiana com os ecossistemas que constituem seu

habitat. Entendo que também a noção de sustentabilidade tem de ser, inicial e

fundamentalmente, local. Sem sustentabilidade local, a sustentabilidade global

é uma abstração inútil, um discurso vazio, desterritorializado e

desmaterializado. Na relação com a noção de territorialidade, alguns princípios

da noção de sustentabilidade têm de ser explicitados. Assim, a perspectiva da

sustentabilidade: refere-se a uma relação sociedade-natureza ancorada na

noção de pertencimento e de relação afetiva com o lugar/ecossistema no qual

se está inserido; reforça a noção de lugar de viver e do valor de uso – lugar-

habitat, território-abrigo (mas também recurso), lugar do exercício da vida;

reforça a noção de produzir a partir dos fluxos e ciclos dos ecossistemas e não

contra eles (conhecimento ecológico para o manejo sustentável dos

agroecossistemas); reforça o princípio da precaução ou da prudência

ecológica; reforça o princípio da diversidade (ecológica e cultural), do diálogo

de saberes e da democracia e gestão participativa.

Uma sociedade sustentável só poderá ser realidade, se ela for o abrigo de

vários modelos locais, onde o conceito de sustentabilidade se materialize sob a

forma de configurações socioespaciais-produtivas que possibilitem relações

entre ser humano/sociedade/natureza moldadas pelas especificidades

socioculturais e ecológicas do lugar.

Essa perspectiva vem provocando uma reinvenção do termo habitat, antes

restrito às ciências naturais. Para Enrique Leff, o conceito de ambiente

relaciona-se a uma visão das relações complexas e sinérgicas, ou seja, cujas

contribuições mútuas se fortaleçam, que geram a articulação de processos de

ordem física, biológica, termodinâmica, econômica, política e cultural. Essa

conceituação do ambiente vem ressignificar o sentido do habitat como suporte

ecológico e o do habitar como forma de inscrição da cultura no espaço

geográfico. O habitat tem sido considerado como o território que assenta a uma

comunidade de seres vivos e a uma população humana, impondo suas

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determinações físicas e ecológicas ao ato de habitar. Nesse contexto, uma

visão ambiental das formas de ocupação do território destaca os processos

organizadores do habitat através do organismo que o habita, da cultura que o

significa, da práxis que o transforma. O habitat é habitado pelas condições

ecológicas de reprodução de uma população, mas, ao mesmo tempo, é

transformado por suas práticas culturais e produtivas. O habitat é suporte físico

e trama ecológica, mas é também o referente de simbolizações e significações

que configuram identidades culturais e estilos étnicos diversos.

Podemos acrescentar, então, que o habitat é lugar de criar hábitos, de

manifestação permanente das territorialidades que conferem uso e sentido ao

território – a experiência total do espaço. O território-habitat pressupõe a ideia

de lugar de viver, vínculo e pertencimento territorial, opondo-se ao sentido do

território-mercadoria e com este se confrontando. O habitat pressupõe conexão

com o ecossistema, ao contrário da separação moderna entre ser

humano/natureza.

A interação habitantes-habitat gerou diversos ecótipos, ou tipos ecológicos

portadores de diversas racionalidades ecológicas, e vem provocando alguns

pesquisadores a tentar redefinir o conceito de camponês, incluindo sua forma

básica de apropriação de natureza. Toledo, a partir da abordagem

etnoecológica e certamente influenciado pela noção tradicional de “campesino”

que vigora no México (seu país de origem) e em países andinos, chega a um

conceito inovador:

Possuidor de um fragmento de natureza do qual se apropria, de maneira direta

e em pequena escala, com seu próprio trabalho manual, tendo como fonte

fundamental de energia a de origem solar e como meio intelectual para a

apropriação seus próprios conhecimentos e crenças. Tal apropriação constitui

sua ocupação exclusiva ou principal, a partir da qual consome em primeira

mão, totalmente ou em parte, os frutos obtidos, satisfazendo com estes,

diretamente ou mediante seu intercâmbio, as necessidades familiares.

Para Toledo (1996), o modo agrícola-camponês de apropriação da natureza é

baseado num aperfeiçoamento do uso da energia solar para produção de

alimentos e fibras. As plantas cultivadas seriam organismos com alta

capacidade de transformação de energia solar em alimentos, e esse

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aprendizado de melhor utilização dessa conversão é que caracterizou o

desenvolvimento das sociedades camponesas durante milhares de anos. Ainda

para esse autor, o modo industrial de apropriação da natureza vai operar uma

ruptura com o anterior (agrícola ou camponês), ao basear-se no uso de energia

mineral-fóssil e tornar a sociedade cada vez menos rural e mais

urbanoindustrial, e, além disso, ao inaugurar um inédito conflito sociedade-

natureza que vai gerar o que hoje é chamado de crise ambiental.

Toledo ainda procura ressaltar três critérios para diferenciação do camponês

de outros tipos de produtores rurais: um de caráter cultural (a visão não-

ocidental da natureza), um de caráter agrário (a apropriação em pequena

escala) e o terceiro relacionado com a energia e a economia (o uso

predominante da energia solar e de insumos locais).

Uma outra definição que se articula ao ecológico é a formulada por Guzmán:

O campesinato é a forma de manejo da natureza que, na co-evolução social e

ecológica, gerou cosmovisões específicas (quer dizer, uma forma de vida

resultante de uma interpretação da relação homem-natureza que estabelece a

articulação de elementos para um uso múltiplo da natureza), mediante as quais

desenvolve processos de produção e reprodução sociais, culturais e

econômicos sustentáveis ao manter as bases bióticas e identitárias nele

implicadas.

Guzmán estabelece, portanto, uma relação entre apropriação camponesa da

natureza, identidade e sustentabilidade, a partir da noção de co-evolução social

e ecológica que dá base à abordagem agroecológica.

A discussão vai se complexando, em especial quando a transpomos para o

Brasil. As formações e as tipologias diferenciadas do campesinato brasileiro

acabam gerando confrontos como os que existem hoje entre os “gaúchos”, que

são aqueles camponeses ou grandes agricultores que vem só sul do Brasil e,

por conta da formação cultural europeia, possuem uma cultura de expansão

em que a relação com a natureza é dicotomizada e, por isso, entram em

conflito por ocasião da expansão da fronteira agrícola com as populações

locais – indígenas e camponesas. Os primeiros, em geral de origem

camponesa, são capturados pelo agronegócio internacionalizado, carregam

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aquela característica europeia de lutar contra a mata – agora também contra o

cerrado – e adotam os sistemas monoculturais.

As populações locais – do Cerrado e da Amazônia, indígenas e mestiças –

desenvolveram, historicamente, formas de apropriação dos ecossistemas que

articulam duas características fundamentais, observadas por Toledo: a

heterogeneidade espacial e a diversidade biológica. Os sistemas camponeses

combinam diferentes estratégias de adaptação, a partir das variações

ambientais e da diversidade de recursos disponíveis nas diversas unidades

ecogeográficas, tendendo a manter os processos ecológicos e a estabilidade

dos ecossistemas.

Os sistemas homogêneos da monocultura rompem com a base desses

processos, em especial dos processos biogeoquímicos (ciclo de nutrientes),

hídricos (ciclo hidrológico) e de equilíbrio biótico ou regulação de populações.

Esse rompimento vai desestabilizar os sistemas camponeses do entorno e vai,

muitas vezes, inviabilizar a permanência das famílias no local. Além disso, a

expansão das monoculturas dá-se muitas vezes através da apropriação de

terras de uso comum-ancestral das comunidades, como é o caso das

chapadas no bioma do Cerrado. É a desterritorialização forçada que o

agronegócio vai impondo ao campesinato, fato que não aparece nas contas de

nosso superávit comercial nem nos noticiários ufanistas sobre a eficiência

desse setor exportador.

3.2- Campesinato e agronegócio: disputa territorial e pelo modelo de

desenvolvimento rural

O valor de uso atribuído à terra pelos camponeses condiciona um tipo de

relação com a natureza diferente daquela baseada no valor de troca, terra-

mercadoria. Para o campesinato, a terra não é apenas terra de trabalho, como

ressaltou José de Souza Martins, mas acima de tudo lugar de viver, habitat.

A perspectiva da agricultura enquanto comércio e da terra enquanto

mercadoria encontra sua expressão mais clara e “fetichizada” no termo

“agronegócio”, mesmo entendendo que atualmente a noção de agronegócio

extrapola a agricultura ou o chamado “setor agrícola”. Como demonstra Franco

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da Silva, esse agronegócio global funciona hoje num sistema de corporações

em rede. São redes de poder que integram o domínio de diversos setores, que

se articulam para o funcionamento do agronegócio transnacional:

financiamento, fornecimento de máquinas e insumos, energia, comunicações,

pesquisa, produção, beneficiamento, circulação, transporte, distribuição,

exportação.

No contexto do neoliberalismo e enfraquecimento do Estado, algumas

corporações não só investem na produção, mas também financiam a lavoura

com insumos e capitais; investem na logística de transporte, energia e

armazéns; buscam o controle tecnológico de novas variedades de sementes;

mantêm o controle oligopolizado dos mecanismos de distribuição e

comercialização da produção em escalas nacional e global; e, por fim, atuam

no setor de beneficiamento da produção.

A corporação em rede seria um sistema de ações e objetos com dois recortes

espaciais: as horizontalidades e as verticalidades. Nas áreas de agricultura

moderna, as horizontalidades se estabelecem a partir da introdução da ciência,

da tecnologia e da informação nos processos produtivos. As verticalidades são

vetores da racionalidade capitalista que se manifestam através de redes

políticas, produtivas e financeiras em diversas escalas geográficas.

A unidade de produção agrícola, nesse contexto, é apenas um pequeno elo de

uma engrenagem gigantesca, controlada, de fora, por empresas do porte de

uma Cargill, de uma Bunge y Born, de uma Multigrain, com participação de

algumas empresas nacionais, como Sadia, Ceval e o Grupo Amaggi. Este

último tem à frente o atual Governador de Mato Grosso, Sr. Blairo Maggi, o

maior latifundiário de monocultura de soja do mundo, com mais de 130.000

hectares de soja, além do cultivo de milho e algodão. O Grupo Amaggi, além

de deter grandes áreas de produção, atua na indústria de processamento, na

infra-estrutura de armazenamento, na comercialização interna e externa, e na

abertura de estradas. Esse grupo detém, ainda, a concessão monopólica do

governo para o transporte de carga através da hidrovia do Rio Madeira, uma

das vias de escoamento da produção de grãos para o Atlântico, e foi objeto de

um polêmico empréstimo de U$ 30 milhões junto ao Banco Mundial para

expansão de seus cultivos em direção à Amazônia.

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A antítese dessa perspectiva é, justamente, a racionalidade camponesa que

guarda apego ao lugar, o que é anterior ao seu valor mercantil. Portanto, muito

mais do que o contraste entre agricultura familiar e agricultura patronal, é o

contraste atual entre campesinato (populações rurais locais) e agronegócio que

ajuda a explicitar as formas antagônicas e conflitivas de apropriação da

natureza e que, por consequência, importa mais no debate relativo à

sustentabilidade da agricultura, do espaço agrário e do desenvolvimento rural.

O caso da morte da irmã missionária Dorothy Stang no município de Anapu,

estado do Pará, no início de fevereiro de 2005, é mais um acontecimento

dramático e extremo que evidencia esse conflito, como também o foram a

chacina de Unaí (assassinato de três fiscais e um motorista do Ministério do

Trabalho) e o assassinato de cinco trabalhadores rurais sem-terra acampados

numa fazenda em Felisburgo, no vale do Jequitinhonha, fatos ocorridos em

Minas Gerais, no segundo semestre de 2004.

Para os setores identificados com o agronegócio, que têm representação na

chamada bancada ruralista do Congresso Nacional, interessa uma série de

medidas que visem à apropriação mercantilista mais absoluta do território

nacional, tais como aprovar uma lei de biossegurança mais permissiva possível

à introdução de cultivos transgênicos; modificar o código florestal com o

objetivo de diminuir o percentual de reserva legal hoje vigente na Amazônia;

flexibilizar mais a definição do que é considerado hoje como trabalho escravo;

diminuir o tamanho das reservas indígenas ainda não demarcadas e mesmo

rever o das já demarcadas; evitar a reapropriação, pelo Estado, das terras

públicas historicamente griladas ou concedidas e a sua destinação para

projetos ou programas de cunho social e/ou ecológico; criar hidrovias e mudar

o regime dos rios para propiciar o escoamento mais rápido e barato da

produção de grãos etc.

Na verdade, se podemos falar aqui de uma territorialidade do agronegócio25,

ela é um contrassenso em si mesma, pois é uma territorialidade que nada tem

a ver com o que Milton Santos chamou de “lugar do exercício da vida”. É uma

territorialidade sem vínculo com o lugar, pois o espaço tem o valor do negócio,

da oportunidade momentânea de acumulação, que amanhã poderá se dar num

outro espaço mais favorável.

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A territorialidade camponesa, ao contrário, procura se enraizar, procura

encontrar o lugar de viver e de trabalhar, de realizar sua co-evolução com o

ecossistema e moldar o agroecossistema que poderá lhe garantir a

sustentabilidade. É claro que, como o espaço é um só, essas duas

territorialidades vão se chocar no processo de apropriação/expropriação

territorial, em especial em grandes áreas de terras devolutas, como são os

casos do Cerrado e da Amazônia, e onde se avizinham comunidades rurais e

empresas agropecuárias. Posseiro e grileiro, sem-terra e latifundiário,

comunidade tradicional e sojicultores estão se enfrentando de forma acirrada

em vários locais.

Essa disputa será sempre desfavorável ao campesinato enquanto a noção de

sustentabilidade estiver colocada como adjetivo de desenvolvimento, termo

ideológico construído pelo centro do sistema-mundo para vender um modelo de

sociedade (e de relação mercantil com o espaço) para sua periferia. Para essa

ideologia etnocentrista, um campesinato negro ou mestiço, com traços de

tradicionalidade, é sempre um empecilho à transformação produtiva que

conduz as regiões à modernidade. E não é preciso dizer que a matriz

conceitual do Governo Lula e agora Dilma continua a se ancorar nesse

desenvolvimentismo importado, subordinado ao modo de produção e consumo

dominante que expropria ou subjuga as categorias sociais subalternas e menos

integradas a esse processo.

Nesse contexto, é fundamental que a ciência, no exercício de paradigmas

alternativos ao positivismo colonizador (produto do Iluminismo europeu e

exportado para os países colonizados visando à sua domesticação e a seu

enquadramento na modernidade), possa ser um instrumento de fortalecimento

dessas resistências camponesas. É igualmente essencial que ela ajude a

tornar visíveis essas contradições e incompatibilidades e a dar relevo tanto aos

saberes subalternos relacionados aos modos camponeses de apropriação da

natureza quanto ao potencial desses saberes para reinventar os caminhos que

possam levar a novas configurações sociedade natureza, tendo em vista a

falência da forma ocidental-moderna, geradora da crise socioambiental

contemporânea.

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Você pode saber mais sobre o campesinato acessando o site do Movimento

dos Pequenos Agricultores, disponível em:

http://www.mpabrasil.org.br/

Acesse a biblioteca do site e aprofunde seus conhecimentos com os textos lá

disponíveis. Na sala de encontro você pode compartilhar suas leituras e

opiniões.

Vamos participar mais uma vez do Fórum. Compartilhe suas opiniões.

1- Por que o texto afirma a incompatibilidade entre os projetos da agricultura

camponesa e os do agronegócio?

2- É possível identificar cada um dos modelos discutidos no texto – o da

agricultura camponesa e do agronegócio – com os modelos de relação entre

humanidade e natureza discutidos desde o início de nosso estudo. Faça essa

identificação e comente.

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Vamos aprofundar um pouco mais nosso entendimento da cultura camponesa

através do estudo do verbete “Cultura camponesa” do Dicionário de Educação

do Campo, escrito por José Maria Tardin e por nós adaptado.

Em se tratando do campesinato, ele se constitui a partir de uma diversidade

de sujeitos sociais históricos que se forjaram culturalmente numa íntima

relação familiar, comunitária e com a natureza, demarcando territorialidades

com as transformações necessárias à sua reprodução material e espiritual,

gerando uma miríade de expressões particulares que, ao mesmo tempo,

respaldam-se em elementos societários gerais, marcando sua humanização

e humanizando a natureza, em um intricado complexo de

agroecossistemas.

Nesses termos, o campesinato confirma e exige tomar o tratamento da

cultura em sua pluralidade; trata-se, portanto, de culturas do modo de ser de

cada sociedade, nas quais se supera a pretensão de que haja “a cultura” e,

fora dela, a “não cultura”, como, na particularidade no campo, tem-se as

culturas camponesas.

Há que tratar então das “agri-culturas” – do grego ager e do latim colere,

que significa cuidar do campo, criar no campo, cultivar o campo – como

expressões diferenciadas das relações das campônias e dos campônios no

campo e com o campo. A agricultura traduz, sem equívoco, uma relação

humano–natureza marcada pelo sentido de forte conexão, de

pertencimento, de ato transformador e criador, uma relação fundada no

cuidado, como assinalado anteriormente. É, portanto, identidade

humano/natureza.

Assinalamos um conjunto de aspectos que serão desenvolvidos em seguida

e que podem nos levar a uma primeira aproximação ao entendimento das

culturas camponesas, por meio da formulação relativa à experiência do

campesinato brasileiro: influências étnicas, relações cotidianas com a

natureza, conhecimento empírico amplo, oralidade e prática, espiritualidade,

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religiosidade, estética, relações diversificadas de cooperação, forte

predominância patriarcal, e relação família, comunidade e território.

Ademais desses aspectos, aos quais certamente se somam outros não

desenvolvidos aqui, há de se considerar que o campesinato como sujeito

social histórico se forja em condições sociais, materiais e políticas

acentuadamente adversas que marcarão suas culturalidades.

Aqui destacaremos três elementos, a saber: sofre violências e contínuas

agressões no percurso da história; é historicamente ativo em processos de

rebeliões; e apresenta elevado grau de radicalidade na sua ação política.

No Brasil, povos originários, povos africanos negros e povos europeus

foram condicionados historicamente a se encontrar neste vasto território,

sob o domínio das nobrezas de alguns países europeus, notadamente

Portugal e Espanha, e vão conformando o miscigenado campesinato

brasileiro.

Essa miscigenação tem continuidade histórica no país não só em

decorrência da vinda de outros povos para o Brasil, mas também pelo

intenso processo migratório existente no campo até os dias atuais. Essa

constituição pluriétnica cada vez mais miscigenada vai gestar tipos

humanos diferenciados e regionalizados territorialmente, os quais, em suas

interações com os ambientes específicos de cada lugar, vão configurar as

paisagens com suas peculiaridades culturais: os povos originários,

majoritariamente na Amazônia e dispersos nas demais regiões; o sertanejo,

no Agreste nordestino; os quilombolas, dispersos em várias regiões; o

ribeirinho, às margens de rios; o caipira, em partes do Sudeste; o caboclo,

em partes do Nordeste e da Amazônia; o gaúcho, nos pampas sulinos; o

colono imigrante europeu, no Sul e em partes do Sudeste, entre outros. Na

condição predominante de trabalhadores sem-terra, estão o peão de

boiadeiro, o pantaneiro, o agregado, o meeiro, o parceiro e, nas vilas e

cidades predominantemente, o boia-fria.

O mundo camponês é formado por ecossistemas complexos, dos quais é

preciso recolher e/ou transformar os materiais da natureza para assegurar a

satisfação das necessidades vitais e a reprodução social. A paisagem

natural vai sendo aculturada com os cultivos agrícolas, a criação de

rebanhos e o extrativismo florestal, que envolvem o manejo de

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incomensurável biodiversidade e agrobiodiversidade. A cada uma dessas

espécies, de uso alimentar, condimentar, medicinal, ornamental; fibras e

madeira; espécies necessárias à fertilização e à proteção de fontes, rios e

solo; ou que precisam ser mantidas visando a fins conservacionistas e de

preservação, corresponde uma multiplicidade de conhecimentos e saberes

relativos aos seus manejos e usos, e dos instrumentos de trabalho

utilizados em cada situação.

Em sua generalidade, o ser camponês está imbricado à natureza numa

relação cotidiana, e essa interação se dá por um contínuo conhecer, pelas

descobertas, por uma práxis empírica ampla e, preponderantemente, pela

experimentação durante largo lapso de tempo, efetivando tentativas que

levam a acertos e erros, e, com isso, orientam as escolhas.

Impõe-se ao camponês a exigência de conhecimentos amplos, entre outros,

sobre as plantas cultivadas e os animais silvestres criados; saberes sobre

reprodução, produção, proteção, conservação, transformação e

armazenagem; sobre usos que incluem a gastronomia, a terapêutica e a

transformação doméstica; sobre os solos e a água – seus manejos e

conservação, que implicam obras e equipamentos variados; sobre o clima –

vento, temperatura, chuva, seca, geada; sobre as estações do ano e o ciclo

lunar; sobre fertilizantes, ferramentas e máquinas de trabalho; sobre

construção; e sobre produção artesanal – roupas, calçados, adornos...

Nesses conhecimentos está implícita a exigência de habilidades, destrezas

e competências do fazer prático direcionado para o alcance de soluções

objetivas, o que proporciona constituir sujeitos com amplo desenvolvimento

de suas capacidades e possibilidades humanas.

A natureza do conhecimento camponês faz dele um efetivo práxicoempírico,

que preponderante e necessariamente faz ensinando e ensina fazendo, ao

mesmo tempo em que comunica oralmente explicações dos saberes

intrínsecos a cada objeto e prática. Estão presentes em suas relações

sociais acentuados valores humanos fundamentais, entre os quais a

solidariedade e a fraternidade, que se concretizam em múltiplas práticas de

ajuda mútua entre vizinhos, em situações de catástrofes, perdas de safra,

doenças e mortes, ou mesmo na organização de festividades comunitárias

ou casamentos, batizados, entre outras. Da mesma forma, a ajuda mútua

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faz parte não apenas do seu cotidiano – com sementes, animais de trabalho

ou para a reprodução, com ferramentas e máquinas –, mas também do seu

trabalho – seja nas trocas de dias ou nos mutirões, sendo que esses últimos

resultam sempre em festividade ao final das tarefas realizadas.

Essa tradição cultural leva-os a praticarem vários trabalhos coletivos para o

bem comum da comunidade, realizando obras públicas voluntariamente –

manutenção de estradas, bueiros e pontes, escolas, postos de saúde – de

acordo com as suas necessidades, muitas vezes ausência e por causa do

descaso do Estado. Também se verifica a formalização de sistemas

organizativos voltados para o alcance de resultados econômicos mais

vantajosos, como as associações comunitárias ou de produtores

especializados em determinadas mercadorias ou as cooperativas de porte

comunitário ou municipal, havendo também iniciativas de alcance regional,

estadual e nacional.

Esses sistemas aparecem ao longo da história camponesa, e muitas

experiências alcançam elevado nível de cooperação complexa, nas quais

todos os meios de produção e o trabalho são possuídos e geridos

coletivamente e a repartição da produção social e de seus resultados

econômicos é feita de forma igualitária ou mediante uma base geral

igualitária que estabelece diferenciações segundo a posição que cada

membro associado ocupa no trabalho – periculosidade, jornada de trabalho

etc.

Também estão à frente de sistemas de cooperativas de crédito ou de

serviços, e, tanto na forma de associações ou cooperativas quanto nas

demais atividades econômicas, voltam-se ainda para a realização de

atividades culturais e sociais. Sua imbricação e cotidianidade com a

natureza colocam o camponês ante a grandiosidade e a complexidade dos

fenômenos naturais, o que vai ser apreendido muito mais na sua aparência

do que em sua essência fenomênica, marcando profundamente a

subjetividade camponesa. Emerge daí um sentimento de pertencimento, um

vínculo umbilical com a “mãe Terra”, mito primitivo que persiste no tempo.

Essa relação com a natureza vai caracterizar uma espiritualidade própria,

que será traduzida numa estética de expressão variada, que se revela em

músicas de estilos variados, danças, poética, teatro, bailes e festividades,

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instrumentos musicais, causos e contos, histórias e lendas, artesanato,

artes plásticas, ritos, mitos e outros.

Esse contágio com o mistério natural, seja pela via da contemplação, seja

pela via do medo, do sentir-se pequeno, frágil e vulnerável, seja, ainda, por

sentir-se afagado, acolhido e contemplado, vai traduzir-se, também, na

constituição do sagrado como estado superior e exterior, mas também

igualitário e interior. O sentimento e a percepção do sagrado vão levar à

demarcação de ambientes naturais ou culturais especiais à sua

manifestação, com a determinação de mitos e rituais particulares. Os rituais

se voltam diretamente tanto para a natureza – olhos d’água, cachoeiras,

lagos, montanhas, grutas, bosques e florestas – quanto para processos do

trabalho – preparação da terra, semeadura e colheita, ou mesmo para a

matança e a preparação de animais, visando ao consumo ou para fins

exclusivamente ritualísticos, momentos em que se faz uso de simbologias

diversas: entoações de vozes, cantos, ritmos, oráculos, rezas, vestes e

roupas, velas, incenso, ervas e madeiras de cheiro.

O culto ao sagrado se concretiza na expressão de cosmovisões panteístas,

politeístas ou monoteístas, alcançando formas sincréticas de religiosidade

popular, em muitos casos refutadas, ou mesmo proibidas e perseguidas

como inculturadas em determinados períodos históricos, sob a hegemonia

das religiões oficiais, sobretudo a cristã católica.

O sagrado vai marcar também festividades fixadas no calendário anual,

estabelecendo as formas de expressão de momentos especiais no interior

das famílias e comunidades, em eventos como o nascimento, o batizado, a

crisma e o casamento – ou seja, a iniciação e a maioridade –, ou na morte e

no funeral.

Outro traço geral das culturas camponesas advém do patriarcalismo

constitutivo do paradigma historicamente hegemônico nas diferentes

sociedades. É notória a supremacia do homem na hierarquia familiar e nas

representações no espaço público. A divisão do trabalho segue

tradicionalmente uma base sexual que em geral sobrecarrega a mulher; por

isso, ela, ademais de cumprir com toda a gama de trabalhos de manutenção

e cuidado da família no âmbito domiciliar, também executa um conjunto de

trabalhos na produção agropecuária.

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A magnitude e a complexidade de seu “quefazer” exigem das mulheres

amplos conhecimentos e habilidades vistos como obrigações de uma boa

mulher e como ajuda ao marido. É um contexto secularmente opressor e

repressor no qual a relevância dos seus afazeres e a dignidade do seu ser

em geral não alcançam o devido reconhecimento, seja no interior da família

ou no âmbito social.

A essa opressão secular, acrescentam- se muitas outras manifestações de

violência, na forma de agressões morais e físicas, e de sociabilidade

restringida, levando a um sentimento de obediência e de inferioridades

física e subjetiva e à sua menor participação tanto na gerência do trabalho e

dos negócios quanto na repartição dos benefícios dos resultados

econômicos do trabalho da família. A dominação patriarcal erguida e

sustentada por milênios se materializa em cada período histórico de

diferentes maneiras, expressando-se na divisão sexual e social do trabalho,

e é reforçada diferentemente pelas distintas formas de consciência social,

nas quais as concepções do sagrado e as religiões vão exercer destacada

influência.

O politeísmo, que inclui divindades masculinas e femininas, e que se

expressa em panteísmo, tem uma influência diferente do monoteísmo – o

qual é sempre patriarcal e atribui à mulher culpabilidades como o pecado

original, responsabilizando-a, por exemplo, não só pelo sofrimento humano,

mas também pelo sofrimento da divindade encarnada. Toda essa

complexidade está acentuadamente posta nos marcos culturais do

campesinato brasileiro e vai, por sua vez, imprimir no homem camponês um

sentido de superioridade que o autolegitima como portador de certa

autoridade, um sentido exteriorizado na sua estética física e no seu

vestuário, na expressão de bravura e valentia, na supervalorização de ser o

macho, num sentir exacerbado da honra, da austeridade e de ser

trabalhador e na acentuada capacidade para o sacrifício diante das

asperezas do ambiente e do labor.

O horizonte imediato do campesinato é a família, que, forçosamente

consolidou-se aqui sob a forma cultural europeia cristã capitalista,

reforçando as relações patriarcais, ao mesmo tempo em que impediu, seja

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pela força jurídica e policial, seja pela ordem social moral, outras formas

típicas dos povos originários ou africanos.

Ocupando o epicentro imediato de sua visão de mundo, os membros do

campesinato brasileiro vão organizar e direcionar suas ações em geral e

seu trabalho em particular preponderantemente para a busca de satisfação

das suas necessidades individuais e familiares, ao mesmo tempo em que

demarcam seus horizontes existenciais pela incumbência maior de deixar

aos descendentes uma herança material superior à que receberam.

Do imediato familiar, as relações se estendem para o plano da comunidade,

como espaço da vizinhança, da realiza realização do trabalho solidário e

cooperado e da sociabilidade mais intensa, espaço que, para muitos, é

praticamente o único local conhecido. De outra parte, as relações externas

estão limitadas ao contato apenas para a resolução de necessidades

pontuais. Esse horizonte restrito fragiliza a tomada de consciência política, a

organização de classe e a exponenciação de sua humanização. A invasão

cultural burguesa, aí consolidada em suas formas prática e ideológica,

também turva a sua capacidade de se autoperceberem como sujeito social

complexo e de conceberem o seu espaço como território, aspecto menos

acentuado nos povos originários e nas comunidades quilombolas, para as

quais a existência social, que expressa uma visão de totalidade histórico-

espacial e populacional com recorte étnico, está diretamente vinculada a

determinado território.

A contenção, o impedimento de acesso à terra e a exploração do seu

trabalho constituem expressão da violência histórica e estrutural que

perdura sobre os povos camponeses; para isso, o Estado burguês e os

agentes do capital fizeram uso das mais variadas formas de agressão.

Porém, ainda que condicionados a situações materiais precárias e

inferiores, povos originários, africanos e o campesinato miscigenado

lançaram mão de sua indignação, capacidade organizativa e conhecimento

e ergueram-se em rebeliões com elevado grau de radicalidade, realizando

combates armados com seus inimigos expropriadores e exploradores.

Na sua relação com a natureza, o camponês utiliza meios e instrumentos de

trabalho que em geral exigem muito esforço físico. Além disso, ele está

posto diante de realidades que exigem sua ação direta familiar ou coletiva,

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essa associada a seu grupo étnico ou de vizinhança na comunidade. O

mesmo ocorre nas relações de produção e de busca de territórios, na

medida em que sempre encontrará forças inimigas no seu encalço. Esses

condicionamentos históricos – e, portanto persistentes – não só constituem

sua experiência prática, como também vão se imprimir em sua

subjetividade, sendo comunicados em causos, repentes, trovas, cordéis e

músicas, ocupando o seu imaginário e seu acervo cultural. Os povos

originários se defrontaram com os invasores europeus; os povos africanos

negros, com os senhores escravistas, europeus e nativos; e o campesinato

se deparou, e ainda se depara, com latifundiários e oligarcas, com o

agronegócio e o Estado burguês.

As rebeliões radicalizadas no enfrentamento armado se efetivaram ora

localizadamente, ora ocupando vastos territórios, a exemplo de Canudos,

no sertão baiano, da comunidade de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto,

no Ceará, e da Guerra do Contestado em Santa Catarina e Paraná.

Se nesses processos de rebelião a desumanidade imposta ao extremo

somou-se às inspirações messiânicas e colocou o campesinato em guerras,

sua resistência se atualiza e alcança outra qualidade política inicialmente

com a influência do ideário comunista e, depois, com a teologia da

libertação. Tais influências revitalizam a criatividade e a radicalidade do

homem do campo, levando o campesinato a estabelecer novas formas de

organização política, como as Ligas Camponesas e, mais recentemente,

entre outros, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o

Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Pequenos

Agricultores (MPA), o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC Brasil),

os quais, por sua vez, e de maneira inédita, vão integrar a articulação

internacional camponesa Via Campesina. Ao mesmo tempo, é organizada,

na Amazônia, uma ampla coalizão entre os Povos da Floresta e o Conselho

Nacional dos Seringueiros (CNS), enquanto os povos originários e

quilombolas se reposicionam, com vigor renovado, na luta política.

A ditadura militar instalada no país em 1964 impôs a Revolução Verde que

implica a utilização de todo um aparato industrial, financeiro, científico,

tecnológico, educacional, agroindustrial e comercial por meio de ações do

Estado e do capital privado, configurando um poderoso sistema e um bloco

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de poder burguês que invade amplos territórios camponeses, impondo-lhes

a modernização conservadora e a condição de subalternidade, seja como

“produtores menores” de alimentos e de determinadas matérias-primas, seja

como trabalhadores semi-assalariados ou assalariados em processos

produtivos agrícolas e agroindustriais.

Na atualidade, esse sistema e bloco de poder, reconfigurados sob a

hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais – os quais

ampliam e aprofundam a dominação e a exploração, impondo novas

tecnologias no campo, notadamente as biotecnologias, tendo à frente os

cultivares transgênicos, os associados a determinados agrotóxicos, mas

também as nanotecnologias e uma série de outras tecnologias baseadas na

informática satelitizada – passaram a ser identificados como “agronegócio”.

Tudo isso se associa às mudanças gerais nas legislações impostas por

organismos internacionais multilaterais a fim de legitimar a permissividade

para a maior dominação, a exploração do trabalho e a depredação e

mercantilização da natureza em escala planetária pelo agronegócio. Essa

expansão e invasão do capital no campo são devastadoras para o

campesinato, seja por imporem a mercantilização – um padrão de produção

e consumo absolutamente distante da sua trajetória cultural, étnica, familiar

e comunitária –, seja por alterarem intensamente suas bases materiais

produtivas, até então profundamente vinculadas aos processos ecológicos e

às tecnologias endógenas, seja, ainda, por elevarem as contradições a

ponto de fazerem irromper novo ciclo de lutas camponesas no país.

Nesse novo ciclo, agrega-se o que há de mais avançado politicamente no

movimento camponês brasileiro, com claro posicionamento de classe de

orientação filosófico-teórica e organizativa marxista, que direciona sua

formulação estratégica e sua ação política, de caráter socialista, para o

combate anticapitalista. Ademais de apreender e situar-se de forma

consciente em relação à sua condição de classe explorada e expropriada

dos meios de produção e da renda do seu trabalho pelo capital, esse

movimento integra a consciência e a prática internacionalistas e a memória

histórica das lutas libertárias e de emancipação humana, elaborando

diretrizes e lutas unificadas e ampliando enormemente o seu referencial

cultural.

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O movimento social camponês se situa culturalmente na

contemporaneidade, forjando respostas aos desafios da atualidade, tomada

em sua totalidade social. Sua autocrítica e sua crítica à ordem burguesa no

âmbito do seu modo de produção – relações sociais e com a natureza – vão

levá-lo a formular diretrizes e ações que, sob a orientação científica da

agroecologia como fundadora de uma práxis comprometida com a

“reconstrução ecológica da agricultura”, priorizam a soberania alimentar.

A violência histórica e estrutural do capital, agora exponenciada em seu

apogeu imperialista, segue encontrando o parapeito camponês, que resiste

criando e recriando-se culturalmente. Seu posicionamento como sujeito

social consciente e organizado se expressa historicamente em significativos

processos de rebelião, com elevado grau de radicalidade em suas ações.

Isso não apenas se inscreve em seu imaginário, expressando-se em sua

estética cultural, mas continua sendo ativado de forma renovada no tempo.

É notório, no presente, que a maior parcela do campesinato brasileiro se

encontra subsumida na alienação e na manipulação ideológica, enquanto

outra parte se situa no estado de consciência de classe em si e uma fração

menor, mas significativa, toma a frente da sua organização e ação em

movimentos sociais com clara consciência de classe para si, qualificando

sua prática política e produtiva e traduzindo-a na elaboração autônoma do

seu projeto de campo e de sociedade, em articulação e diálogo com os

setores populares urbanos e outras forças sociais da classe trabalhadora e

em interação internacionalista. Uma realidade tão clara e reveladora da sua

significatividade histórica e cultural, e, ao mesmo tempo, tão oculta e

ocultada.

A cultura camponesa pode ser percebida através de uma enorme quantidade de fontes. Você pode conhecer um pouco mais dessa cultura conhecendo suas músicas, por exemplo. Baixe a Cartilha de Músicas Camponesas disponível no link abaixo e aprofunde seus conhecimentos.http://www.mpabrasil.org.br/bibliotecas/nossas-publicacoes/cartilhas-de-musicas-camponesas

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A atividade proposta nesse capítulo tem relação com o “Para saber mais” e

você deve mais uma vez postá-la no Fórum do nosso curso.

1- Escolha uma música da cartilha e indique os elementos da cultura

camponesa por ela trabalhados.

2- Escolha uma música que retrate a cultura camponesa em um site de vídeo

(Youtube, por exemplo), poste o link e indique os valores camponeses que

podemos perceber na música escolhida.

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É possível ser Agroecológico em um latifúndio? Essa pergunta implica em um

entendimento sobre os princípios da Agroecologia em suas dimensões

econômica, social e ambiental. Daí que seja possível se praticar uma

agricultura orgânica em grandes unidades produtivas, mas isso não implica em

que tal produção seja agroecológica justamente por desconsiderar o elemento

social da sustentabilidade. O texto que estudaremos a seguir a partir de uma

adaptação que fizemos, permite-nos entender a conflituosidade que marca a

apropriação da terra no Brasil e indica a necessidade da reforma agrária para

garantir uma relação entre humanidade e natureza fundada na

sustentabilidade. A autoria é de Clifford Andrew Welch.

Para proteger e desenvolver o seu novo território, a Coroa Portuguesa

estabeleceu, a partir de 1530, uma rede de “capitanias” e passou o controle

dessas subdivisões a uma classe de nobres de sua total confiança. Esses

“donatários” se comprometiam a povoar, desenvolver, defender e administrar

os territórios em nome da Coroa, sob pena de perder as terras. Um legado

importante do sistema de capitanias foi a proliferação de uma série de

sesmarias. Trata-se, essencialmente, de áreas extensas, no interior das

capitanias, que foram sublocadas a terceiros pelos donatários. O sistema de

sesmarias implantado na colônia precisa ser examinado, uma vez que

permanece influenciando os conflitos no campo até o presente.

O sistema original de sesmaria foi criado em 1375, em Portugal. Com ele,

buscou-se promover o desenvolvimento rural por meio do cultivo de cereais,

além de segurar os camponeses na terra. O sistema ajudou a amenizar a crise

alimentar que devastara Portugal e causara grande êxodo do campesinato.

No século XV, o rei Afonso V utilizou a mesma lei para promover a colonização

das áreas de fronteira, aumentar a produção e assegurar as fronteiras de

Portugal contra a invasão espanhola pelo Reino de Castela. Quem não

conseguisse cultivar as terras num prazo previamente determinado, precisava

devolvê-las. Essas “terras devolutas” deviam ser repassadas, com as mesmas

restrições, para novos sesmeiros (aqueles que recebiam a doação).

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No Brasil – onde os “piratas” franceses e holandeses ameaçavam a

hegemonia portuguesa –, os motivos para a utilização do sistema não estavam

muito distantes daqueles que haviam inspirado o uso prévio da política pela

monarquia lusa. Uma vez doado pela Coroa, ficava a cargo do sesmeiro

cultivar, medir e demarcar o território. Entretanto, as exigências do sistema de

sesmaria não tiveram efeito prático no Brasil. O arrendatário, que recebia

porções de sesmarias para desenvolvê-las, alugava parcelas delas para

pequenos agricultores, mas ninguém se interessou em medi-las ou demarcá-

las. Muito pelo contrário, os grandes arrendatários aproveitavam a madeira

produzida pelo desbravamento e pressionavam os camponeses a desmatar

outras áreas. O abandono do cultivo da terra não resultou em devolução, pois

a fiscalização sempre foi muito precária.

Dessa forma, a sesmaria atribuída a determinado nobre no Brasil se tornaria

permanente, como uma grande área particular. É ela a base de um sistema de

latifúndio pouco produtivo, que contribuiu para a problemática da formação

social do país. Como dificilmente as sesmarias coloniais eram devolvidas ao

rei, o significado de “terras devolutas” também diferiu no Brasil, referindo-se

essencialmente às terras ainda não doadas ou desenvolvidas – isto é, a

grande maioria daquilo que viria a ser o Brasil independente a partir de 1822.

Parece claro que o período colonial produziu uma tendência a permitir que o

poderoso controlasse gigantescas porções de terras e sustentasse suas

vantagens através dos tempos. E isso transferiu para as futuras gerações uma

estrutura fundiária dualista, de terras subutilizadas em forma de latifúndio e de

terras superutilizadas em forma de minifúndio, bem como uma formação social

altamente estratificada.

Outra herança do sistema colonial é o uso pelos tribunais da data de

concessão da sesmaria como referência para determinar a titularidade. Em

caso de conflito sobre a legitimidade de um título de terra, os tribunais

geralmente exigem a realização de um processo de discriminação, a fim de

comprovar o direito original de uso e posse da sesmaria. A ironia dessa busca

de legitimidade é que, além da alteração do significado da palavra sesmaria no

Brasil, a exigência “cultive ou perca” permaneceu cega. Assim, em vez de

deslegitimar a reivindicação daqueles que pretendiam documentar seus títulos,

a descoberta da subvenção original geralmente confirmava o patrimônio de

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uma área, apesar de mostrar que as terras em litígio são, quase por definição,

não desenvolvidas. Até agora, então, o Judiciário tem interpretado o

descoberto como confirmação da legalidade do reclamante e não como prova

da falha total de cumprir as condições estabelecidas pelo rei para garantir o

usufruto da área.

A busca por títulos originais tornou- se especialmente importante após a

promulgação da Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850. Com o fim do

período colonial e o início do Império, os funcionários imperiais tentaram fazer

coincidir suas demandas com aquelas da monarquia inglesa. Sob a pressão

britânica para abolir a escravidão, conceberam a Lei de Terras, que procurava

valorizar a propriedade da terra, regulamentando a sua comercialização, e

atrair trabalhadores imigrantes com todo tipo de promessa.

Muitos estudiosos têm interpretado a lei como intencionalmente projetada pela

classe dominante para impedir que a “via farmer”, que foi a forma de expansão

da agricultura nos Estados Unidos, servisse como modelo de desenvolvimento

agrário. Para esses pensadores, o que a classe dominante tinha em mente era

a transformação da terra em mercadoria para que a vasta maioria de posseiros

brasileiros, imigrantes e escravos libertos não tivessem recursos suficientes

para adquiri-las. Além disso, acreditam esses estudiosos que o Estado imperial

queria garantir a disponibilidade dos escravos libertos no mercado de trabalho

que teria de ser criado quando a abolição eliminasse, de vez, a força de

trabalho baseada na escravidão.

Contudo, os elaboradores da lei buscavam exatamente o oposto: queriam criar

um mercado de terras seguro para atrair investidores e imigrantes com a

promessa de poderem virar proprietários no Brasil. Isso levou os latifundiários

que dominavam o Parlamento a resistirem à aplicação da lei até que seus

efeitos pudessem ser controlados. No contexto da próxima transição política,

quando da reinvenção do Brasil como República, conseguiram descentralizar a

administração da lei, passando a responsabilidade de sua execução aos

governos estaduais recém-formados.

Ao tornar os estados responsáveis pela questão da terra, o governo federal

deixou a questão agrária nas mãos do grupo mais interessado em não

implantar a “via farmer”: a oligarquia agrícola que governaria o país durante a

maior parte do século XX. Dependendo do estado e da região, problemas do

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uso e da posse da terra raramente foram abordados por legisladores

estaduais. Quando isso ocorreu, foram geralmente resolvidos pelos próprios

governadores estaduais, muitos dos quais fazendeiros e dependentes do apoio

dos ricos locais, não somente na busca por recursos, mas também por votos

dentro de uma lógica coronelista.

A necessidade da documentação original de aquisição e utilização efetiva no

interior do Brasil criou um novo protagonista para os conflitos no campo: o

grileiro. O grileiro falsificava documentos e os registrava oficialmente,

corrompendo os oficiais dos cartórios que, muitas vezes, fizeram parte do

processo de falsificação de títulos de propriedades. A prática da grilagem

continuou a falsificar documentos para a apropriação de terras que

pertenceram aos estados.

Já em tempos mais recentes, administração inicial da ditadura militar

conseguiu aprovar no Congresso Nacional a primeira lei de Reforma Agrária,

em novembro de 1964, o Estatuto da Terra definiu Reforma Agrária. Contudo,

tal como a Lei de Terras de 1850, o estatuto de 1964 foi escrito “pra inglês

ver”. A essência do estatuto final, entretanto, foi transformada pelos

representantes dos latifundiários no Congresso. Temendo a sua utilização por

parte dos camponeses, os ruralistas se articularam para alterar a linguagem e

os objetivos do estatuto, de modo que o apoio estatal ficou restrito à

modernização da agricultura de larga escala, consolidando a agroindústria

nacional.

Essa mudança delineou a face da Revolução Verde no Brasil, um processo

que intensificou as expropriações, os despejos e as expulsões, agravando o

êxodo rural, com a chegada de mais de 20 milhões de camponeses às

periferias das cidades. Essas manobras revelam a influência contínua dos

latifundiários no regime e nas políticas fundiárias. Sua capacidade de

dissimular a luta de classes foi sempre muito grande, bem como de impedir ou

de abortar políticas públicas para as populações camponesas. Com essa

prática de controle territorial, as oligarquias rurais fizeram que o problema

fundiário fosse mantido, e ele se intensificaria nas décadas seguintes, com o

aumento dos conflitos no campo no contexto do fim da ditadura militar e da

redemocratização do Brasil nos anos 1980.

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Os conflitos no campo documentados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra)

desde 1985 são novos capítulos de uma longa história. São os conflitos pela

terra que demarcam a história do Brasil, determinando as transições políticas,

sustentando ou derrubando governos, formando as classes sociais,

selecionando os privilegiados e os marginalizados, estabelecendo os sistemas

de dominação e resistência e deixando para a geração atual um punhado de

memórias de vencedores e vencidos.

Sabemos do guerreiro Zumbi e da resistência do quilombo de Palmares

durante o século XVII, da defesa dos guaranis, orientados por Sepé Tiaraju,

contra a sua redução a escravos em meados do século XVIII, da rebelião dos

camponeses do Nordeste contra os novos regulamentos de registro na oitava

década do século XIX, da contribuição dos africanos escravizados ao fim da

escravidão em 1888, da perseverança até a última gota de sangue dos

flagelados de Canudos nos anos 1890, dos colonos grevistas de São Paulo

que deram partida ao movimento sindical camponês no início do século XX, do

Partido Comunista Brasileiro (PCB), que sustentou durante décadas o

movimento, da insistência das Ligas Camponesas de Francisco Julião na

Reforma Agrária radical como única solução para os graves problemas do país

no começo dos anos 1960, da coragem dos fundadores, em 1963, da

Confederação dos Trabalhadores da Agricultura, dos guerrilheiros do Araguaia,

membros do Partido Comunista do Brasil (PcdoB), único partido que tentou,

durante anos, mobilizar os camponeses do sertão na guerra contra a ditadura

que ameaçava destruir o seu modo de vida nos anos 1970.

Relembrar as lutas sociais de destaque na história subalterna do campo não é

um exercício de história social, e sim a tentativa de caracterizar pontos chave

na tradição inventada do movimento camponês do fim do século XX e no início

do século XXI, que conseguiu elevar os eventos a mitos entre os seus

seguidores, se não na população em geral. A história subalterna é a escrita da

narrativa do passado pela perspectiva dos vencidos, dos subordinados, que se

colocam eles mesmos no papel de protagonistas dos eventos.

A tentativa de territorializar a história é outra marca dos conflitos no campo.

Mitos, longe de serem contos de deusas falsas, são a liga cultural que serve

como memória coletiva de comunidades, tais como os movimentos

socioterritoriais As histórias das lutas camponesas – relembradas em cartilhas

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ou recriadas em místicas – fortalecem o movimento camponês, dando sentido

e fundamento aos conflitos contemporâneos no campo. Eles não são conflitos

isolados, mas parte de um fio histórico. A luta de hoje faz parte de uma luta

contínua e permanente que precisa de seus soldados tanto quanto as lutas do

passado. Um dia seremos “nós” os sujeitos inspiradores de mais uma fase da

luta pela territorialização do campesinato no Brasil.

Enquanto o camponês tradicional, vivendo na terra durante gerações, sofreu

brutais transformações no Brasil, o camponês produto da luta pela Reforma

Agrária nunca esteve tão bem organizado. São mais de 1 milhão de famílias –

por volta de 5 milhões de pessoas – representadas por cerca de 30

organizações de diversas orientações. O novo camponês mora e trabalha em

mais de 8.500 assentamentos, estabelecidos pelos governos estaduais e

federal, e que ocupam quase 80 milhões de hectares – 20% da terra explorada

pela agricultura. A grande maioria dessas famílias foi assentada depois de

1988, quando foi promulgada a nova Constituição, que especificou, como

dever do Estado, a desapropriação para fins de Reforma Agrária, de

propriedades em violação das leis trabalhistas, ambientais ou simplesmente

improdutivas.

Nos embates provocados entre porta-vozes da Via Campesina e do

agronegócio, é clara a impossibilidade de diálogo entre as partes: a Via

Campesina prega a Reforma Agrária e a segunda, a extinção da mesma. Por

isso, a CPT relatou que as ocorrências de conflitos de terra aumentaram

bastante entre 2001 (625) e 2010 (853); as incidências de trabalho escravo

aumentaram mais do que cinco vezes, de 45 (2001) para 204 (2010); os

conflitos pela água pularam de 14 (2002) para 87 (2010); e a média dos

assassinatos – para mencionar só a forma mais extrema de violência praticada

no campo – foi de 38, com alta de 73 em 2003 e baixa de 26 em 2009.

Com tragédias e vitórias como essas, os conflitos no campo continuarão a criar

novos territórios e memórias de resistência.

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Acesse o site do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e aprofunde seus conhecimentos sobre Reforma Agrária.Disponível em: http://mst.org.br/

Acesse o site da Comissão Pastoral da Terra e veja como está a situação dos conflitos no campo.Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/Lá você encontra um link sobre os conflitos no campo.

Acesse aos sites indicados e compartilhe suas ideias na sala de encontros do nosso curso.

1- Os meios de comunicação não nos informam a questão agrária a partir de

uma visão histórica como a apresentada nesse capítulo, sendo comum que os

movimentos que lutam pela Reforma Agrária sejam até mesmo tratados como

“criminosos”. Sua tarefa é procurar na internet uma informação em que essa

situação esteja presente, ou seja, a criminalização de um movimento social de

luta pela terra e que tenha sido publicada por um veículo da grande imprensa

(Globo, Estadão, Folha, Uol, por exemplo). Poste no Fórum o link.

2- Seu desafio agora é procurar essa mesma notícia ou alguma outra a ela

relacionada em veículos de comunicação independentes (tais como Brasil de

Fato, Notícias do Planalto etc.) e postar o link no Fórum.

3- Depois de postar as duas notícias, é hora do seu comentário sobre a

situação. Compartilhe sua opinião no Fórum.

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No texto a seguir de autoria de Carlos Eduardo Mazzetto Silva que adaptamos,

o conceito de sustentabilidade é definido como algo mais amplo e até mesmo

crítico da noção de desenvolvimento sustentável. É que a expressão

“desenvolvimento sustentável” acabou sendo incorporada a uma lógica de

produção em que a dicotomia entre humanidade e natureza não é resolvida.

Sendo assim, é comum que essa expressão acabe sendo utilizada até mesmo

por aqueles que reproduzem relações sociais e ambientais onde tanto a força

de trabalho quanto a natureza são vistas como mercadorias. O autor propõe,

então, o termo “sustentabilidade” como mais adequado para o entendimento

das relações sócio-naturais fundadas no campesinato e na Agroecologia.

Vamos acompanhar.

Sustentabilidade é um termo que começa a fazer parte do debate público a

partir do que podemos chamar de advento da questão ambiental. Essa questão

ambiental, que começa a ser anunciada nos anos 1960-1970, diz respeito à

capacidade do planeta de sustentar as sociedades humanas e seu nível de

consumo de materiais e energia, e a consequente produção crescente de

dejetos e poluição. Como a natureza não é um ajuntamento de recursos

naturais aleatórios, e sim um conjunto integrado de unidades naturais, que

chamamos de ecossistemas, tal capacidade do planeta se expressa

concretamente na sustentabilidade ou insustentabilidade dos ecossistemas,

pois são os seus fluxos, ciclos, elementos e recursos que são atingidos pela

expansão da produção e consumo das sociedades. Como os ecossistemas são

complexos, auto-organizados e autorreprodutíveis, a insustentabilidade pode

ser gerada quando a intervenção humana desestrutura esse processo de

complexificação, auto-organização e autorreprodução. Nos ambientes tropicais,

como sabemos, a biodiversidade joga um papel-chave na estabilidade e

equilíbrio dos ecossistemas. Portanto, já podemos afirmar que a

homogeneização das monoculturas é um fator de simplificação e

desestabilização dos ecossistemas naturais.

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No entanto, podemos aumentar a escala desta análise e falar de sociedades

sustentáveis ou insustentáveis. Se hoje estamos discutindo a crise ambiental e

a problemática da sustentabilidade é por que determinado modelo dominante

de sociedade ameaça a natureza, ou, se quisermos dizer de outro modo,

determinada forma de relação sociedade–natureza nos trouxe a esta crise

ambiental que é, na verdade, socioambiental.

Estamos falando das sociedades ocidental-capitalistas que dominaram o

mundo nos últimos quinhentos anos e do modo industrial de apropriação da

natureza que se instituiu, a partir da Revolução Industrial, no final do século

XVIII e viabilizou enorme aceleração do processo de acumulação de capital, às

custas de uma também enorme capacidade de transformação de matéria e

energia contidas nos ecossistemas e em ilhas de recursos geologicamente

armazenados (petróleo, gás, jazidas minerais etc.). A insustentabilidade é,

portanto, um problema civilizatório do tipo de civilização ocidental dominante,

cuja relação com a natureza é guiada pelos seguintes fenômenos fundamentais

e associados:

• perda do caráter sagrado da mãe Terra, que se transforma em Natureza-

objeto e Natureza-máquina na concepção reducionista e mecanicista da ciência

moderna, operadora da divisão do conhecimento em compartimentos

estanques;

• instituição progressiva da mercantilização da vida pela lógica e ética próprias

do capitalismo (Natureza-mercadoria);

• crescimento econômico acelerado da produção e do consumo propiciado pela

tecnociência moderna e pela produção industrial, estimulado pela lógica da

acumulação de capital e pelo crescimento populacional;

• entendimento da natureza como algo exterior e inferior à vida humana,

caracterizando uma visão antropocêntrica do mundo na qual o homem é o

senhor e dominador da natureza.

A chamada modernização da agricultura é uma expressão da ascensão do

modo industrial de apropriação da natureza no campo. Alguns se referem a

esse processo como apropriacionismo, mas aí a referência é à apropriação da

agricultura pela indústria. Essa apropriação está baseada na artificialização

extrema dos agroecossistemas pela introdução de enormes áreas

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monoculturais, com material genético “melhorado” pela indústria, uso intensivo

da mecanização e de insumos industriais sintéticos (fertilizantes químicos,

agrotóxicos, rações, antibióticos, hormônios etc.). Todos conhecemos os

efeitos socioambientais perversos, fartamente documentados, dessa

modernização.

Ela se expressa muito simbolicamente hoje, nestes tempos de globalização

econômica, por meio do termo agronegócio, que radicaliza a noção de espaço

rural, e dos recursos naturais nele contidos, como mercadoria. Na sua

estratégia, a paisagem do campo, em vez da diversidade dos sistemas

camponeses tradicionais e da sociabilidade cooperativa das comunidades,

estaria reduzida a campos homogêneos e monótonos de monocultivos sem

gente.

Ressalte-se que essa lógica não é estritamente agro. Constitui também a base

de diversos complexos da economia global nas áreas da siderurgia, celulose,

energia etc. Portanto, para além do sistema agroalimentar global, o espaço

rural e seus recursos estão a serviço de um produtivismo acelerado e guloso. É

uma lógica de desenvolvimento que desterritorializa comunidades e culturas e

desloca, completamente, o lugar de produzir e viver do lugar de consumo. Os

fluxos que ligam os espaços rurais ao mundo são os complexos globais, que

demandam as commodities do campo para suas cadeias produtivas, as quais

devem sustentar a expansão do modelo de produção e de consumo urbano-

industrial. De sustentável, portanto, esse desenvolvimento não tem nada.

Numa lógica contrária a esse modelo, os modos camponeses de apropriação

da natureza há 10 mil anos (advento da agricultura) vêm desenvolvendo

estratégias de adaptação diversificada aos ecossistemas (Toledo, 1996), nas

quais produção e consumo sempre estiveram integrados e onde os espaços

rurais se constituíam não só em terra de trabalho, como disse José de Souza

Martins, mas também em lugares de vida, em habitats e territórios nos quais

natureza e cultura se articulam em modos de vida comunitários.

As paisagens camponesas, talvez com algumas raras exceções no contexto

europeu, sempre foram biodiversas, mesmo nas condições de expropriação

que marcaram sua história, seja no feudalismo, seja no colonialismo, seja ainda

no capitalismo. Nesses contextos, já está demonstrado que a economia

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camponesa sempre foi de natureza não capitalista, baseada no valor de uso e

visando à reprodução familiar e comunitária.

A definição de Sevilla Guzmán, baseada na abordagem agroecológica, revela a

articulação entre campesinato e modelos sustentáveis de uso dos

ecossistemas: O campesinato é a forma de manejo da natureza que, na

coevolução social e ecológica, gerou cosmovisões específicas (quer dizer, uma

forma de vida resultante de uma interpretação da relação homem–natureza que

estabelece a articulação de elementos para um uso múltiplo da natureza),

mediante as quais desenvolve processos de produção e reprodução sociais,

culturais e econômicos sustentáveis ao manter as bases bióticas e identitárias

nele implicadas.

É importante ressaltar que as características assinaladas por Sevilla Guzmán

são fruto de um saber local (muitas vezes também ancestral) sofisticado,

oriundo dessa coevolução histórica. Esse saber foi desprezado e tido como

atrasado pela ciência moderna, sendo objeto de políticas de crédito e de

extensão rural visando à sua substituição por métodos moderno-industriais.

Hoje, com a crise ambiental e a ascensão das abordagens etnoecológica e

agroecológica, começa-se a se reconhecer a importância desses saberes

locais, também chamados de tradicionais, para a manutenção de paisagens e

sistemas que conservam a biodiversidade e as águas. É uma conservação

dinâmica, não a concepção estática museológica do mito moderno da natureza

intocada. Ela se dá no seio de modelos produtivos que dependem desses

recursos naturais para a sua reprodução. Esses modelos só serão

reprodutíveis se conservarem a base de recursos que os mantém. É a ideia da

coevolução e da correprodução simultâneas. Por isso, grupos que podemos

chamar de camponeses, e que são hoje, em geral, chamados de povos ou

comunidades tradicionais, vêm se tornando os maiores defensores dos

principais biomas brasileiros – muitas vezes, inclusive, sendo assassinados por

causa da disputa com os setores predatórios. É o que Martínez Alier chamou

de ecologismo de sobrevivência, em contraste com o ecologismo da

abundância, praticado por membros da classe média urbana que não

dependem diretamente desses recursos para a sua sobrevivência.

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Por tudo isso, é importante dizer que campesinato é uma categoria social

genérica que abriga diversas identidades específicas de caráter localterritorial,

cuja denominação, muitas vezes, refere-as aos ecossistemas de origem ou a

algum recurso neles abrigado e que é estratégico para a sobrevivência do povo

do lugar: seringueiros, ribeirinhos, caiçaras, geraizeiros, vazanteiros,

caatingueiros, sertanejos, pantaneiros, quebradeiras de coco, pescadores,

catadores de caranguejo, apanhadores de flor, faxinalenses etc.

Algumas comunidades, como as que chamamos hoje de quilombolas, são

etnicamente identificadas.

São modos de vida e modelos socioespaciais-produtivos portadores de

relações ser humano/sociedade/ natureza moldadas pelas especificidades

socioculturais e ecológicas do lugar. Sua sustentabilidade está

permanentemente ameaçada pelo avanço das formas moderno-industriais de

produção de commodities e pelas demandas por recursos das sociedades

urbanas energo-intensivas. Por isso, a questão do direito territorial está, hoje,

no centro dos problemas e das estratégias de resistência e reprodução dessas

comunidades. Com tudo isso e por tudo isso, as comunidades camponesas (e

também as indígenas) são, e poderão ser muito mais, células implementadoras

da noção da sustentabilidade na prática cotidiana, assegurando a conservação

dinâmica e cuidando de ecossistemas e paisagens diversificadas e produtivas,

incrementando a economia local, gerando segurança alimentar e beneficiando,

assim, o conjunto da sociedade da qual participam.

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Aprofunde seus conhecimentos e relacione Agroecologia, campesinato e

sustentabilidade com a leitura da revista: “Agroecologia e o futuro sustentável

para o planeta. Um debate” publicada pelo IHU.

Compartilhe seus conhecimentos na sala de encontro do curso.

1- Escreva um texto com o mínimo de 15 e o máximo de 20 linhas sintetizando

os conhecimentos adquiridos nesse nosso curso relacionando com a sua

realidade e poste no Fórum. Aproveite para comentar os textos dos colegas.

2- Compartilhe no Fórum uma imagem, vídeo ou música que possa significar

os conhecimentos construídos a partir do nosso curso.

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BIBLIOGRAFIA

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CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2010.

DANTAS, Gilson. Natureza atormentada: marxismo e classe trabalhadora. Autores Associados, 2012.

LESSA, Sérgio & E TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Os descaminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 2001.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004.

SILVA, Carlos Eduardo Mazzetto. Modo de apropriação da natureza e territorialidade camponesa: revisitando e ressignificando o conceito de campesinato. Revista Geografias Vol.3, N°1. Belo Horizonte: UFMG, Departamento de Geografia, 2007.