instrumentos vintage -...

4
70 www.backstage.com.br 70 Instrumentos Vintage João Pequeno [email protected] uitas vezes confundido com a definição de instrumentos velhos e de marcas céle- bres, vintage é um termo que a música adaptou da tradição vinícola e que significa uma ‘safra’ de características especiais, definidas em boa parte pelo período em que foram produzidas, mas também por outros fatores, que muitas vezes ajudam a formatar sonoridades peculiares e, alguns casos, consideradas únicas, cujo exemplo mais re- corrente é o dos violinos Stradivarius. Denominação colhida da vinicultura Especialista em guitarras vintage, músico e luthier, Henry Ho explica a origem da denominação, tirada da produção de vinhos. “Em inglês, vint significa a colheita das uvas, e age idade. Os instrumentos vintage são, portan- to, como uvas de uma safra muito especial”. Um exemplo dado por ele é a Gibon Les Paul Sunburst de 1958, vendida entre R$ 80 mil e R$ 200 mil. “Foram construídas muito poucas; de 1958 a 1960 não foram feitas nem três mil Les Paul”, explica. “O Jimmy Page tem uma”, acrescenta. Violões datados de épocas das grandes guerras nor- malmente também entram nesta classificação, por- que além do marco histórico em si, soma-se o fato de M INSTRUMENTOS Constantemente usado por músicos que buscam sonoridades marcantes de determinadas épocas em cada estilo musical, o termo vintage é ora bem, ora mal utilizado para designar os instrumentos e demais equipamentos utilizados nesta procura pelo timbre perfeito para cada situação uma safra muito especial, raros como os bons vinhos Vintage Vintage eles terem sido feitos nestes períodos, quando, por moti- vos econômicos, a produção era pequena. “Por causa disso, alguns violões fabricados em 1945 podem custar muito mais do que outros do século 19”, afirma Ho. Aplicável a instrumentos em geral, este fator tam- bém pode ajudar a explicar porque especialistas estran- geiros apontam como vintage os pianos norte-america- nos Steinway & Sons e os alemães Bosendorfer e Bechstein de épocas que correspondem às duas gran- des guerras ou a períodos de recessões econômicas. Há ainda outros fatores, inclusive a má construção, caso das Gretsch semi-acústica da década de 1950. Henry Ho afirma que são instrumentos de valor histó- rico, mas muito frágeis, que quebravam facilmente. “Por isso, acabou ficando difícil encontrar uma hoje, o que agregou valor a ela”, diz. “O fato de ter pertenci- do a algum músico importante, especialmente se ele fez algum show ou gravação determinante, também valoriza o instrumento”, acrescenta. O exemplo mais claro, porém, talvez seja o das Fender Stratocaster, que só podem ser consideradas vintage se fo- ram fabricadas antes de 1965, “e com as peças originais”, acrescenta Ho. A passagem à produção industrial dos ins- trumentos é o marco importante neste caso, já que 1965 foi o ano em que o fundador Leo Fender deixou de produzi- las em sua oficina, ao vender a marca para a CBS.

Upload: phamduong

Post on 03-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: INSTRUMENTOS Vintage - backstage.com.brbackstage.com.br/newsite/ed_ant/materias/155/Instrumentos_Vintage.pdf · Instrumentos Vintage 72 acabou optando por uma japo-nesa de 400 dólares”

70 www.backstage.com.br70Instr

um

en

to

s V

intag

e

João [email protected]

uitas vezes confundido com a definiçãode instrumentos velhos e de marcas céle-bres, vintage é um termo que a música

adaptou da tradição vinícola e que significa uma‘safra’ de características especiais, definidas emboa parte pelo período em que foram produzidas,mas também por outros fatores, que muitas vezesajudam a formatar sonoridades peculiares e, algunscasos, consideradas únicas, cujo exemplo mais re-corrente é o dos violinos Stradivarius.

Denominação colhidada viniculturaEspecialista em guitarras vintage, músico e luthier,

Henry Ho explica a origem da denominação, tirada daprodução de vinhos. “Em inglês, vint significa a colheitadas uvas, e age idade. Os instrumentos vintage são, portan-to, como uvas de uma safra muito especial”.

Um exemplo dado por ele é a Gibon Les PaulSunburst de 1958, vendida entre R$ 80 mil e R$ 200mil. “Foram construídas muito poucas; de 1958 a 1960não foram feitas nem três mil Les Paul”, explica. “OJimmy Page tem uma”, acrescenta.

Violões datados de épocas das grandes guerras nor-malmente também entram nesta classificação, por-que além do marco histórico em si, soma-se o fato de

M

INSTRUMENTOS

Constantemente usado por músicos que buscam sonoridadesmarcantes de determinadas épocas em cada estilo musical, otermo vintage é ora bem, ora mal utilizado para designar osinstrumentos e demais equipamentos utilizados nesta procurapelo timbre perfeito para cada situação

uma safra muito especial, raroscomo os bons vinhos

VintageVintage

eles terem sido feitos nestes períodos, quando, por moti-vos econômicos, a produção era pequena. “Por causadisso, alguns violões fabricados em 1945 podem custarmuito mais do que outros do século 19”, afirma Ho.

Aplicável a instrumentos em geral, este fator tam-bém pode ajudar a explicar porque especialistas estran-geiros apontam como vintage os pianos norte-america-nos Steinway & Sons e os alemães Bosendorfer eBechstein de épocas que correspondem às duas gran-des guerras ou a períodos de recessões econômicas.

Há ainda outros fatores, inclusive a má construção,caso das Gretsch semi-acústica da década de 1950.Henry Ho afirma que são instrumentos de valor histó-rico, mas muito frágeis, que quebravam facilmente.“Por isso, acabou ficando difícil encontrar uma hoje, oque agregou valor a ela”, diz. “O fato de ter pertenci-do a algum músico importante, especialmente se elefez algum show ou gravação determinante, tambémvaloriza o instrumento”, acrescenta.

O exemplo mais claro, porém, talvez seja o das FenderStratocaster, que só podem ser consideradas vintage se fo-ram fabricadas antes de 1965, “e com as peças originais”,acrescenta Ho. A passagem à produção industrial dos ins-trumentos é o marco importante neste caso, já que 1965 foio ano em que o fundador Leo Fender deixou de produzi-las em sua oficina, ao vender a marca para a CBS.

Page 2: INSTRUMENTOS Vintage - backstage.com.brbackstage.com.br/newsite/ed_ant/materias/155/Instrumentos_Vintage.pdf · Instrumentos Vintage 72 acabou optando por uma japo-nesa de 400 dólares”

www.backstage.com.br 71

Envelhecendocomo os vinhosAlém da origem do termo, al-

terações causadas pelo tempocom conseqüências positivas sãooutro dado em comum com a vi-nicultura que músicos apontam.

Guitarrista de banda coverdos Beatles e co-editor do siteVintage Guitar, Marcus Ram-pazzo afirma ainda que outrasmodificações sofridas pelas gui-tarras ao longo do tempo vão dan-do características especiais ouacabam identificando o som doinstrumento de acordo com seumodelo e época de fabricação.

“Entre minhas guitarras, tenhouma (Fender) Telecaster 54 que seencaixa na classificação de vintage.Além da madeira, noto que ela so-freu modificações que deram ou-tra forma ao som, como no capta-dor, por exemplo. Talvez pelo ní-quel usado na fabricação ter enve-lhecido, ele acabou perdendo emboa parte os agudos, mas o resulta-do ficou bem interessante, deu umtom aveludado, mesmo na capta-ção mais aguda. Às vezes, noto asguitarras com um excesso de agu-dos, um som de ‘lata’ que desagrada”, diz.

Entre outros modelos vintage de sua coleção, Ram-pazzo ainda destaca três Stratocaster, de 1956, 1957 e1960 e uma Gibson Les Paul de 58, “igual à que o EricClapton deu de presente para o George Harrison”.

Entre modelos mais recentes que simulam a sonorida-de das vintage, Rampazzo destaca a série Custom Shop,da Gibson, criadas exatamente com este propósito. Sefuncionam? Ele diz que “em 78%, o som é igual”, diz,exagerando propositalmente o detalhe da porcentagem.

A principal diferença, segundo o guitarrista, está naidade da madeira. “Quanto mais antiga, mais harmôni-cos ela emite. Por isso, esta questão do tempo é tão impor-tante”, afirma Rampazzo, que indica o Gruhn’s Guide, doamericano George Gruhn, como guia para identificaçãode guitarras vintage.

Sorte ao encontraroriginal subvalorizado

Ex-dono de uma Fender Stra-tocaster de 1964, Wander Taffo,que além da Rádio Táxi já tocoucom inúmeras outras bandas eartistas, já não toca mais com gui-tarras genuinamente vintage,mas com modelos que simulamseu feitio, como a Gibson LesPaul Custom de 83 que, há 10anos, ganhou de presente deHerbert Vianna, endorsee damarca no Brasil.

“O Herbert disse que semprese lembrava de mim como umguitarrista que tinha uma LesPaul, isso em várias das bandascom as quais toquei, como Madein Brazil, Joelho de Porco e Secose Molhados. Mas eu a perdi por-que o braço arrebentou. Ele meperguntou um dia por essa LesPaul antiga, eu contei a história,e algum tempo depois, quandotocamos no mesmo festival, em1997, ele me chamou no cama-rim dizendo que tinha uma ‘lem-brança’ pra mim”, lembra Taffo.

Foi em outra coincidência queele adquiriu sua velha Strato 64,

“em uma lojinha em Botucatu (interior de São Paulo). Odono havia feito parte de um conjunto nos anos 60, masnão tocava mais profissionalmente e me vendeu barato,uns 800 dólares”, conta o guitarrista, que a passou adian-te. “Vendi para um aluno meu, que foi morar naHolanda”. Taffo não se arrepende e defende a qualida-de das Custom Shop. “Tem as diferenças do feitio, dotempo, mas você encontra umas muito boas e o preço,normalmente, é muito mais acessível”, diz o guitarrista,que ainda co-projetou um modelo próprio, WanderTaffo Signature, lançado pela Giannini.

“Existe muita variação, dependendo do tipo desom que você procura”, afirma Taffo, exemplificandoque “à procura de uma Fender na Norman’s (famosaloja de guitarras raras na Califórnia) para gravar emum disco, o Steve Vai testou mais de 40 modelos e

Gibson Les Paul 1958

Page 3: INSTRUMENTOS Vintage - backstage.com.brbackstage.com.br/newsite/ed_ant/materias/155/Instrumentos_Vintage.pdf · Instrumentos Vintage 72 acabou optando por uma japo-nesa de 400 dólares”

72 www.backstage.com.br72Instr

um

en

to

s V

intag

e

acabou optando por uma japo-nesa de 400 dólares”.

Quatro anos paracopiar sistema davelha companheirado HammondPara emular o som de outro épico

da sonoridade vintage, caixa Leslieacoplada ao órgão Hammond B3,Daniel Latorre passou nada me-nos do que quatro anos traba-lhando em um projeto com aMeteoro para fazer uma caixaque replicasse sua sonoridade.

Representante no Brasil daHammond – que voltou a fabri-car o B3 nos anos 90 – o organistasentia a falta de continuidade dosom da Leslie, que, somada aoinstrumento, dava a característi-ca indissociável de seu som espe-cialmente na década de 60 atra-vés de expoentes do jazz, comoJimmy Smith, ao rock, comoSteve Winwood e Ray Man-zarek (The Doors), passandopelo rythm’n’blues de Booker T.Jones, dos MGs.

“O que acontecia”, explicaLatorre, “é que nenhum fabrican-te respeitava o sistema giratório das cornetas da caixaLeslie, cada um queria fazer do seu jeito e, até por se tra-tar de um sistema muito sofisticado, deta lhado, osom não era o mesmo”. Para chegar a esse som, ele pegousua Leslie original e começou a trabalhar no projeto “jun-to com o Zé Luís, dono da Meteoro”, lembra. “Duroutanto tempo porque eu sempre aprovava uma coisa, re-provava outra. Não ia me dar por satisfeito se a idéia nãofosse realmente realizada”.

A caixa, batizada Vibrotone, foi lançada em 2005, e,segundo o músico, a única diferença substancial em rela-ção à Leslie é o “peso”. “Antigamente, alguns músicos,como o John Lord, do Deep Purple, faziam modificaçõesna caixa para que o órgão soasse mais pesado. Era um equi-pamento originalmente mais do jazz e que acabou sendoadotado pelo rock posteriormente. Então, já sabendo disso,

coloquei um pouco mais de satura-ção, com este propósito. Mas, deresto, é o mesmo padrão”, afirma.

Sem abrir mãodos originais

A volta da fabricação doHammond B3 facilitou as coisaspara a produção do Free Jazz(atual TIM Festival) em 1999,quando Johny Lang exigiu o ór-gão não para ele, que é guitarris-ta, mas para sua banda.

Trabalho mais difícil aconteceuseis anos antes, mas não poderia serrecusado, afinal tratava-se deChuck Berry, pela primeira vez seapresentando no Brasil, no mesmofestival. O criador dos riffs maisclássicos dos primeiros tempos dorock’n’roll não trouxe banda – atéporque não ensaiava mesmo –nem guitarra. E não tocava comnenhuma outra que não fosseGibson ES 350T como a dele.

Não encontrando nenhummodelo disponível à venda, aprodução procurou algum mú-sico que o tivesse. Acabou en-contrando exatamente um, ocantor Marcelo Nova – naque-

la época já se revezando entre a banda Camisa deVênus e sua carreira solo.

Autor – com letra de José Carlos Capinam – de Gothan

City, gravada pelo Camisa em 85, Jards Macalé é outroque nutre uma relação inseparável com um instrumentovintage, no caso, um violão uruguaio Santurion, de 1965,que pegou emprestado no ano seguinte com Turíbio San-tos e o convenceu a vender “por uma bagatela”. SegundoMacalé, foi o violão com que Turíbio venceu, em 65, oConcurso Internacional da Rádio e Televisão Francesa.“Depois, ele quis comprar de volta, não vendi de maneiranenhuma. É um violão que se manteve durante todo estetempo, nunca precisou ser consertado”, conta Macalé quelembra tê-lo emprestado, algum tempo depois, a João Gil-berto e dele “ter gostado a ponto de eu precisar ir pegar,senão acho que ficava”.

Fender Esquire Custom 1961

Page 4: INSTRUMENTOS Vintage - backstage.com.brbackstage.com.br/newsite/ed_ant/materias/155/Instrumentos_Vintage.pdf · Instrumentos Vintage 72 acabou optando por uma japo-nesa de 400 dólares”

74 www.backstage.com.br74

A revolução francesado saxEntre os instrumentos de sopro, notada-

mente o saxofone, modelos fabricados pelacompanhia francesa Selmer são verdadei-ra religião entre músicos por suas inovaçõesnos anos 40 e 50. O mais célebre é o modeloMark VI, fabricado entre 1954 e 1975. “Osmodelos que vieram depois foram se modi-ficando e não mantiveram a mesma quali-dade”, diz o luthier Reginaldo de Jesus.

Embora o Mark VI seja o mais badala-do, a grande inovação da Selmer em saxesfoi feita, entre 1935 e 1946, com o modeloBalanced Action. Foi com ela que aSelmer inovou com o conceito de todas aschaves do lado direito do sax, tornou aschaves mais anatômicas e deu a opção deuma “chave de fa” alternativa, explica oespecialista Leonardo Almada, em artigono site Toca do Sax.

Além de saxes, a companhia também émais citada entre os demais instrumentosde sopro vintage. “Os trompetes e clarinetastambém são cultuados entre os músicos dejazz, de choro”, lembra Reginaldo de Jesus.

Segredo do Stradivarius,perto de ser desvendado?Peças de colecionadores e museus, os

Stradivarius já foram avaliados em maisde R$ 10 milhões e largamente falsifica-dos. Dos cerca de mil fabricados no iní-cio do século 18 pelo italiano AntonioStradivari (1644-1737), pouco mais de600 ainda existem, e apenas alguns con-têm o verniz cuja ação sobre a madeira é

apontada como eventual razão de seu somconsiderado único por especialista. O maisfamoso deles, finalizado em 1716 e guarda-do no Ashmolean Museum, de Oxford, In-glaterra, foi batizado de O Messias.

Em dezembro de 2006, uma equipe depesquisadores da Universidade A&M doTexas, comandada pelo cientista húnga-ro Joseph Nagyvary, publicou um estudona revista científica Nature que relacio-na a madeira do Stradivarius a uma pos-sível fervura em sais para protegê-la depragas comuns na época. De acordocom Nagyvary, o som que fabricantestentaram copiar, sem sucesso, por prati-camente três séculos pode ter origem naaplicação química de sal e cobre na ma-deira para prevenir a ação de cupins efungos, um grande problema para ar-tesãos daquela época.

Stradivarius

Hammond B3