instituto santo inÁcio faculdade jesuÍtica de … · conselheiro, ce travail présente une...

198
INSTITUTO SANTO INÁCIO FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA JOSÉ WILSON ANDRADE A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS 2006

Upload: phungduong

Post on 13-Nov-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

INSTITUTO SANTO INÁCIO

FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

JOSÉ WILSON ANDRADE

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS

ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CO NSELHEIRO

Dissertação de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio

BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS

2006

INSTITUTO SANTO INÁCIO

FACULDADE JESUÍTICA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

JOSÉ WILSON ANDRADE

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIOPOLÍTICA DE CANUDOS

ASPECTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE ANTÔNIO CO NSELHEIRO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Instituto Santo Inácio, Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, sob a orientação do Dr. João Batista Libanio.

Dissertação de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio

BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS

2006

AGRADECIMENTOS

Ao querido Dom Esmeraldo Barreto de Farias, bispo da Diocese de Paulo Afonso – BA.,

por ter me liberado para essa aventura, não obstante a carência de padres e as dificuldades

financeiras da Diocese. Sempre apostou na formação dos leigos e padres.

Ao querido grande orientador Pe. Libanio, pelas suas sábias “dicas”. Foi uma alegria tê-lo

como professor e, ainda mais, como orientador.

Ao amigo Pe. Charles da Diocese de Grajaú – MA, pelo acompanhamento sistemático;

Oscar José Ramos, da Paróquia Nossa Senhora Mãe da Igreja – Belo Horizonte, católico

fervoroso, pelas “dicas” da língua portuguesa e pelas conversas sobre o tema. Ao meu irmão

Antônio Mendonça, pelo estímulo ao Mestrado. A Raimundo, irmão marista, pela ajuda na

tradução para a língua francesa. Ao companheiro no Ministério, Pe. Hélio Raso, pelos elogios.

Aos professores da Companhia de Jesus, pela partilha do saber, de modo especial ao Pe.

Konings, que me incentivou no aprofundamento da temática de Canudos.

Aos amigos da Província do Brasil Centro-Leste da Companhia de Jesus, pelo

apoio financeiro, sem o qual não seria possível esse estudo. Estendo o reconhecimento ao Centro

de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, na pessoa dos padres Mac Dowell, Vitório e Ir.

Carmelita, pela bolsa institucional.

Aos amigos da Adveniat pelo computador, parte dos livros, plano de saúde, etc., durante

estes anos.

Ao Pe. Célio (Paróquia Rainha da Paz), Pe. Fernando (Paróquia Santo Inácio de Loyola),

Pe. Carlinhos (Paróquia Santa Inês) e Pe. Danilo (Paróquia Mãe da Igreja), pelo apoio pastoral.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para que este projeto se realizasse,

especialmente pelo atendimento sempre cordial e carinhoso de Dulcinéia Guides, na Secretaria da

Faculdade.

ÍNDICE GERAL

Índice geral.....................................................................................................................................03

Resumo...........................................................................................................................................06

Resumé...........................................................................................................................................07

INTRODUÇÃO............................................................................................................................08

1- Motivação inicial.......................................................................................................................08

2- Pretensões...................................................................................................................................09

3- Organização do trabalho.............................................................................................................10

4- Nossa opção................................................................................................................................11

5- Opção hermenêutica...................................................................................................................14

CAPÍTULO I

ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS.......................................................................16

1.1. Origem, formação humana e religiosa de Antônio Conselheiro..............................................17

1.2. Formação religiosa de Antônio Conselheiro...........................................................................19

1.3. Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina e Padre Cícero de Juazeiro...........................................22

2.3.1- Antônio Conselheiro e o Padre Ibiapina.......................................................................23

2.3.2- Antônio Conselheiro e o Padre Cícero..........................................................................26

1.4. Padre Ibiapina, Padre Cícero e Conselheiro: semelhanças e dessemelhanças.........................28

1.5. Contextualização do Nordeste do Brasil no tempo de Antônio Conselheiro........................32

1.6. A Conjuntura eclesial..............................................................................................................36

1.7. De Antônio Vicente Mendes Maciel a Antônio Conselheiro: história de um Beato

Conselheiro.....................................................................................................................................43

Conclusão.......................................................................................................................................48

5

CAPÍTULO II

UNIVERSO RELIGIOSO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO.......... ............................50

2.1. As fontes do projeto de Antônio Conselheiro.........................................................................51

2.2.1. Alcance e limites da interpretação marxista.............................................................58

2.2.2. A utilização da Bíblia Sagrada..................................................................................63

2.2.3. A Missão Abreviada como livro de cabeceira..........................................................64

2.2.4. Obra manuscrita por Antônio Conselheiro...............................................................71

2.2. Descrição do imaginário religioso de Antônio Conselheiro....................................................75

2.2.1- As dores de Nossa Senhora......................................................................................77

2.2.2. Os Dez Mandamentos da lei de Deus.......................................................................80

2.2.3. Textos tirados da Sagrada Escritura..........................................................................82

2.2.4. Prédicas de circunstâncias e discursos......................................................................84

2.2.4.1- Sobre a Cruz..........................................................................................................86

2.2.4.2- Sobre a Missa........................................................................................................88

2.2.4.3- Sobre a confissão...................................................................................................89

2.2.4.4- Sobre as maravilhas de Jesus.................................................................................91

2.2.4.5- Construção e edificação do templo de Salomão....................................................92

2.2.4.6- Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, Padroeiro do Belo

Monte..................................................................................................................................93

2.2.4.7- Sobre a parábola do semeador...............................................................................94

2.2.4.8- Sobre a República, o casamento civil, a família imperial, a libertação dos

escravos...............................................................................................................................95

2.2.4.9- Prédica de despedida.............................................................................................98

2.3. Tentativa de uma leitura sistemática do pensamento teológico do Conselheiro.....................99

2.3.1- O Deus Criador, Misericordioso e Onipotente.......................................................103

2.3.2- Concepção sobre Jesus Cristo................................................................................106

2.3.3- A idéia sobre o Espírito Santo................................................................................107

2.3.4- A idéia sobre a Igreja Católica...............................................................................105

2.3.5- A idéia sobre o papa, cardeais e bispos..................................................................109

2.4- O enfrentamento de Masseté.................................................................................................111

2.5- A comunidade solidária de Canudos.....................................................................................111

2.6- Por que a comunidade de Canudos constituiu-se um perigo para a República?...................117

4

2.7- A participação da Igreja Católica na destruição de Canudos................................................124

Conclusão.....................................................................................................................................130

CAPÍTULO III

ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE CANUDOS.. ......................134

3.1- Natureza eclesial do movimento de Canudos.......................................................................139

3.2- A eclesiologia subjacente em Canudos.................................................................................139

3.3- A relação de Antônio Conselheiro com as autoridades eclesiásticas....................................149

3.4- Canudos: Igreja pobre acolhendo os pobres..........................................................................152

3.5- Os colaboradores diretos na Igreja dos pobres em Belo Monte............................................155

3.6- Outras manifestações religiosas em Canudos.......................................................................165

3.7- Características fundamentais da Igreja de Canudos..............................................................167

3.7.1- Uma Igreja fundada pelo Bom Jesus......................................................................167

3.7.2- Uma Igreja alicerçada na sucessão apostólica........................................................168

3.7.3- Uma Igreja pobre e para os pobres.........................................................................171

3.8- Fundamentos bíblicos e teológicos da eclesiologia da comunidade de Canudos..................174

Conclusão..........................................................................................................................177

CONCLUSÃO GERAL.............................................................................................................179

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................188

5

RESUMO

O presente texto examina a história da Guerra de Canudos, pelo viés dos “vencidos”: seus

aspectos históricos e eclesiológicos. A partir dos manuscritos deixados por Antônio Conselheiro,

este trabalho apresenta uma leitura do universo religioso do Conselheiro, líder principal da Igreja

do Belo Monte, este conhecido por Canudos. Ele liderou uma comunidade que se constituiu em

uma alternativa para o povo sertanejo, submergido na crise política, econômica e religiosa, no

final do século XIX. Quer-se com isso discutir a natureza da experiência da grei canudense: seus

aspectos político-sociais e eclesiológicos. Pretende-se mostrar, ainda, os elementos eclesiológicos

presentes na experiência da Igreja de Canudos e suas conseqüências para a igreja católica hoje.

Palavras-chaves: Guerra de Canudos, movimento social, movimento popular, religião,

igreja católica, eclesiologia, comunhão eclesial, teologia sistemática, práxis cristã, recepção da

Bíblia Sagrada, comunidade cristã, liderança cristã.

Resumé

Le présent texte examine l´histoire de la Guerre des “Canudos”, selon la biais des vaincus:

ses aspects historiques et éclésiologiques. À partir des manuscrits laissés par Antônio

Conselheiro, ce travail présente une lecture de l´univers réligieu du Conselheiro, chef principal de

l´Eglise du “Bello Monte” (Belle Montagne), celui-ci connu par le nom de Canudos. Il a

commandé une communauté que s´est constituée en une alternative pour la population de la

région (de l´intérieur) submergée dans la crise politique, économique et religieuse, à la fin du

disneuvième siècle. Ainsi, on veut discuter la nature de l´expérience de la communauté des

Canudos: ses aspects politiques, sociaux et éclésiologiques. On prétend montrer encore, les

éléments éclésiologiques présents dans l´expérience de l´Eglise des Canudos et ses conséquences

pour l´Eglise catholique d´aujourdhui.

Mots principaux (importants) : Guerre des Canudos, mouvement populaire, réligion, église

catholique, éclésiologie, communion éclésiale, théologie sistématique, práxis chrétienne,

réception de la Sainte Bible, communauté chrétienne, lidérance chrétienne.

INTRODUÇÃO

1- Motivação inicial

O primeiro contato sério que tive com a literatura sobre Antônio Conselheiro e Canudos

deu-se quase por acaso. No final de 1990, após ter concluído licenciatura em Filosofia, na

Universidade Católica do Salvador, estava finalizando o Bacharelado em Teologia, quando

apareceu um anúncio no Jornal A Tarde, de Salvador, comunicando um Curso de extensão

universitária sobre Canudos,1 na Universidade Federal da Bahia, de 11 de setembro a 11 de

dezembro de 1990, ministrado pela professora Noemi Salgado Soares. No final do curso de

teologia, iria eu residir na Diocese de Paulo Afonso (BA), nas proximidades de Canudos: eis a

motivação principal para melhor conhecer Antônio Conselheiro e a história de seu povo.

O curso foi um aperitivo. Despertou-me interesse para aprofundar a história de Canudos.

Deu-me a munição necessária para entrar na Comissão da Romaria de Canudos, de 1991 a 2002,

participar da criação do Instituto popular Memorial de Canudos, do qual fui secretário de 1993 a

1996 e presidente, de 1996 a 1999. Nesse intervalo, tive oportunidade de participar, na qualidade

de debatedor e palestrante, de diversos seminários, em universidades, Assembléia Legislativa,

Câmara dos Deputados, Câmara de Vereadores, colégios, igrejas, etc.

1 Tema do curso: “A mentalidade do homem sertanejo de Canudos: análise literária e análise antropológica”.

Essa militância na atualidade de Canudos, especialmente nos dois grandes centenários: o

da chegada de Antônio Conselheiro a Canudos (1993) e o da destruição do arraial (1997),

iluminou-me na decisão da escolha do tema desta Dissertação de Mestrado: A experiência

Religiosa e Sociopolítica de Canudos: aspectos eclesiológicos da comunidade de Antônio

Conselheiro. Minha monografia de Pós-Graduação em Ensino Religioso, apresentada na

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em 2004, versou sobre um tema semelhante: A

comunidade de Canudos: uma experiência religiosa ou político-social?

2- Pretensões

Este estudo nasceu, assim, de uma longa experiência pastoral junto ao Canudos atual.

Perceber os diversos olhares que se entrecruzam num movimento como Canudos é enriquecedor,

muito revela sobre os sujeitos sociais nele envolvidos. Levando em consideração toda a parte

histórica de Canudos, presente no primeiro capítulo, nosso olhar sobre Canudos é teológico ou,

mais especificamente, eclesiológico. Nossa aproximação visa particularizar tal abordagem,

procurando enfocar aspectos mais eclesiológicos e responder a algumas perguntas: 1- Foi a

experiência do séquito de Antônio Conselheiro uma motivação de ordem meramente político-

social, ou de natureza religiosa? 2- Por que a experiência da comunidade de Canudos desperta

tanta controvérsia entre historiadores, cientistas sociais e religiosos? 3- Qual a novidade

eclesiológica subjacente na experiência da Igreja em Canudos? 4- Que tipo de contribuição a

Teologia poderia dar para uma melhor compreensão do aspecto teológico, no diálogo com as

ciências humanas e sociais? Fundamentalmente pretendemos realçar os aspectos eclesiológicos

da comunidade de Antônio Conselheiro.

9

3- Organização do trabalho

Esta pesquisa divide-se em três capítulos. O primeiro apresenta a história de vida de

Antônio Conselheiro, principal ator do acontecimento Canudos: sua história de vida, formação

humana, intelectual e religiosa. Ressaltar-se a contextualização histórica e sociológica do Brasil,

o contexto específico do Nordeste do final do século XIX, os interesses políticos das forças

sociais, o deslocamento do eixo da economia nacional, o fim do ciclo da cana-de-açúcar no

Nordeste e a ascensão do cultivo da borracha e do café, respectivamente, no Norte e Sudeste do

Brasil. Finaliza com uma análise da conjuntura eclesial: o papel do catolicismo popular, a

romanização verso religiosidade popular, o encontro entre Padre Ibiapina, Padre Cícero e

Antônio Conselheiro.

O segundo capítulo apresenta o universo religioso de Antônio Conselheiro; analisa as

fontes do projeto do Peregrino, a utilização da Bíblia, a Missão Abreviada e os Manuscritos do

Beato, publicados por Ataliba Nogueira. Destacam-se, ainda, a ortodoxia da catequese ensinada

pelo Conselheiro no acampamento: os sacramentos (batismo, eucaristia e penitência), a missa, os

Dez Mandamentos, etc., a comunidade solidária, sua destruição e o papel da Igreja Católica no

episódio.

Finalmente, o terceiro capítulo apresenta os elementos eclesiológicos da comunidade de

Canudos, sempre partindo de textos manuscritos por Antônio Conselheiro. Aqui se apresentam a

natureza eclesial do movimento de Canudos, a eclesiologia subjacente na grei, o contato do

Peregrino com as autoridades eclesiásticas, a forma de acolhida em Canudos, os ministérios, as

características fundamentais da Igreja em Canudos.

10

4- Nossa opção

Optamos, ao logo da pesquisa, por alguns autores: Euclides da Cunha, Abelardo

Montenegro, Edmundo Muniz, Rui Facó, José Calazans, Marco Antônio Villa e Alexandre Otten.

Euclides da Cunha é a “porta de entrada” para Canudos. Os Sertões não perdeu o caráter de

grande obra da literatura brasileira. De Os Sertões, derivam uma infinidade de obras, contra ou a

favor. Diante desse escrito de Euclides da Cunha é sempre possível reação. Durante quase cem

anos, ele exerceu forte influência no pensamento dos intelectuais brasileiros. Por muito tempo,

não se conseguia superar essa monumental obra, acusada por autores contemporâneos de ter

“engaiolado” a história da Guerra de Canudos, em uma única versão: a oficial. É preciso

reconhecer o valor de Euclides da Cunha. Porém, outros ventos sopraram na historiografia

brasileira, nas últimas décadas.

Optamos também por Abelardo Montenegro, Rui Facó e Edmundo Moniz. Eles nos

proporcionam uma boa reflexão sobre os aspectos marxistas, a dimensão do comunismo

primitivo em Canudos. Levantaram muitas dúvidas sobre visões tidas como verdadeiras sobre o

Beato. Edmundo Moniz foi acusado de idealizar Canudos, enquadrá-lo num igualitarismo

romântico, sem comprovação histórica e de não apresentar fundamentação teórica. A visão de

Abelardo e a de Rui Facó partem do mesmo referencial teórico que Edmundo Moniz, porém com

maior fundamentação bibliográfica. Abelardo Montenegro é rico em detalhes, muito citado por

autores modernos e apresenta uma vasta bibliografia. Rui Facó estruturou seu livro no que

Hoornaert caracterizou de “esquema mecanicista de caráter marxista”. 2 Seu livro apresenta uma

base para ler Canudos de forma crítica, especialmente na compreensão do “jogo” das forças do

Estado o do enfrentamento dos movimentos sociais. Seu enfoque é um excelente instrumental

teórico de viés marxista. Porém, não conseguiu superar a imagem fundamental de Euclides da

2 HOORNEAT, Eduardo, Os anjos de Canudos: revisão histórica, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 3.

11

Cunha, Maria Isaura de Queirós, Gilberto Freyre e Djacir Menezes dos “dois brasis”.3 Abelardo

Montenegro, Rui Facó e Edmundo Moniz estimularam a pesquisa sobre Canudos.

José Calazans tomou outro caminho. Foi um dos pioneiros na revisão histórica. Procurou

auscultar o povo, especialmente alguns sobreviventes da guerra. Valorizou e preferiu pisar o chão

firme do relato preciso dos fatos históricos. Visitou diversas vezes a região do Vaza-Barris.

Tornou-se o “pai da oralidade” sobre a Guerra de Canudos. “No seu discurso, nada de

“extraordinário” aparece em Canudos, nem socialismo, nem igualitarismo, nem exaltação

religiosa”.4 José Calazans iniciou seus estudos históricos sobre Canudos no início da década de

1940, com mais de 50 anos de dedicação. Foi pioneiro na revisão histórica. Superou a visão

dicotômica de povo em “dois brasis”: a do litoral e o sertão. Costuma-se dizer que ele nos

libertou das “amarras” euclidianas: “desengaiolou” Canudos e o entregou aos estudiosos.

Segundo Eduardo Hoornaert, José Calazans “pertence à corrente historiográfica dos que

pretendem interpretar o Brasil a partir do Brasil, e não de esquemas interpretativos importados”. 5

Marco Antônio Villa trata do Canudos mais especificamente histórico. Ele reconstrói

dados factuais, há tempos submersos no esquecimento. A obra de Marco Antônio Villa propõe-se

apresentar uma visão de totalidade de Canudos. Por ser um autor crítico, apresenta uma análise de

certas visões cristalizadas, sempre partindo de documentos históricos e, muitos, até raros.

Diferentemente de Alexandre Otten, afirma que a Igreja ficou satisfeita com a destruição de

Canudos e comemorou a volta dos militares. Sua publicação é de nível acadêmico, não se perde

em detalhes fúteis.

3 Ibid, p.98. 4 Ibid, p. 95. 5 HOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: revisão histórica, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 93.

12

Alexandre Otten, por ser, na concepção de José Calazans, a obra mais completa sobre a

história de Canudos,6 é o texto que não deve faltar numa pesquisa que se propõe abordar os

aspectos eclesiológicos de Canudos. Alexandre Otten, pioneiro na abordagem de Canudos nos

aspetos religiosos, como o subtítulo revela: “a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro” é o

autor mais completo sobre a Guerra de Canudos, pelas diferentes interpretações, pela seriedade

de abordagem, acompanhada de uma vasta fundamentação científica. Além de tratar da parte

histórica, o quarto capítulo apresenta excelente base da vida em Canudos, na perspectiva da

sociologia da religião. Especialmente nos capítulos dois e três de nossa pesquisa, vamos trabalhar

com o pensamento de Alexandre Otten.

Diversos outros autores serão citados no corpo e nas notas do trabalho. O fato de não

receberem os destaques merecidos, não significa, necessariamente, negar sua importância. Por

mais completa que possa parecer, toda fonte carrega seu limite. Nossa opção decorre em vista da

circunscrição de páginas. Apreciações críticas serão feitas. Isso faz parte do espírito acadêmico.

Não temos a última palavra sobre Canudos. Esperamos colaborar para melhor conhecer e fazer

justiça ao que Antônio Conselheiro e sua gente significaram para a Igreja e, assim, colaborar para

o desenvolvimento da ciência.

Tenho consciência de que não vamos dar a ultima palavra sobe esse tema. O pensamento

de Ronhus Zuurmond sobre as fontes da Cristologia, guardadas as devidas proporções, também

vale para dá o valor devido aos autores de nossa opção e aos que não entraram na escolha, no

decorrer do trabalho.

Mesmo quando fidedigna, uma fonte focaliza apenas determinado aspecto do ocorrido. Nunca pode ser abarcada a totalidade do acontecimento, tanto por falta de testemunhas como pelo fato de que dados importantes de toda espécie (motivos coletivos e individuais, processos intrincados de causa e efeito, circunstâncias fortuitas) sempre estão e permanecerão ocultos. Nunca enxergamos tudo, nem quando as coisas se passam na frente

6 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é Grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro, São Paulo: Loyola, 1990.

13

de nosso nariz, e muito menos quando estamos a séculos de distância do que é descrito. Querer imagens definitivas é uma ilusão. 7

A cada fonte descoberta é um novo avanço no campo da ciência histórica e teológica.

Onde existe vida humana envolvida, há mistério a ser desvendado. Diante do mistério da

existência humana, com seus feitos, atitudes e façanhas é ingênuo querer enquadrá-lo totalmente

em teorias objetivas. Isso não significa que os estudos não tenham valor. Falando do mistério

trinitário, Boff apelou para o silêncio. Também podemos silenciar. Porém,

calemos somente no fim do esforço de falarmos o mais adequadamente possível daquela realidade para a qual não há nenhuma palavra adequada. Calemos no fim e não no começo. Só no fim o silêncio é digno e santo. No começo seria preguiçoso e irreverente. As palavras morrem nos lábios. Os pensamentos obscurecem na mente. Mas o louvor incendeia o coração e a adoração faz dobrar os joelhos. 8

5- Opção hermenêutica

Antes de apresentar este trabalho, externo minhas preocupações de ordem hermenêutica

sobre a historiografia brasileira e, portanto, sobre as publicações e estudos sobre Canudos. Pelo

menos duas realidades interpretativas permeiam a historiografia brasileira. Uma, a ensinada nas

escolas oficiais, do pesquisador e historiador Varnhagem, que conta a história ortodoxa do Estado

e da Nação, fiel à “verdade histórica”, à versão dos grandes, dos poderosos, das instituições que

dominam o povo. É a história amplamente divulgada nas escolas públicas. Essa versão conta com

vasta documentação, arquivos, monumentos, construções.

Outra orientação vem de Capistrano de Abreu. Ele documentou a história na perspectiva

das pessoas comuns, dos feitos deixados pelos atores do povo simples, com limitação, é claro.

Um dos problemas da historiografia na óptica dos “vencidos” é que eles quase não deixam

monumentos, documentação e outros vestígios. Pouco sabemos, por exemplo, da história do

Quilombo dos Palmares, Cangaço, Lampião, Contestado, dos povos indígenas e tantos outros

7 ZUURMUND, Ronhus, Procurais o Jesus histórico?, São Paulo: Loyola, 1998, p. 42. 8 BOFF, Leonardo, A Trindade, a sociedade e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986, p. 19.

14

levantes em defesa da vida, ao longo de séculos. Para refazer ou reinterpretar a história dos

pobres, faz-se necessário um trabalho de garimpagem. Os pobres e excluídos, mesmo tendo

importância vital no processo histórico, quase sempre são lembrados como marginais, fanáticos,

bandidos, revoltosos e desordeiros. Canudos não fugiu a essa lógica.

No tocante à Guerra de Canudos, a versão oficial, unilateralmente, tentou enterrar sua

memória nas águas do açude do Cocorobó.9 Porém, a partir de 1945, cresceu o interesse pelo

resgate histórico, versão que vai além de Os Sertões, do clássico Euclides da Cunha, superando

uma interpretação preconceituosa e racista sobre o sertanejo. Para Ataliba Nogueira, essa visão

preconceituosa vem sendo purificada “de todas as deformações propaladas pelos partidos

políticos, pela meia-ciência, pelos propósitos inconfessáveis, pela forma literária imaginosa e

sacrificadora da verdade”. 10 Os pobres e considerados vencidos estão com a palavra! Durante o

ano de 1997, centenário da destruição de Canudos, a mídia nacional colocou na ordem do dia a

temática da experiência ocorrida no acampamento e os reais motivos pelos quais o governo

republicano mobilizou quatro expedições militares e promoveu o maior massacre dos próprios

brasileiros de nossa história.

Esta pesquisa se propõe trilhar pelo caminho da revisão histórico-teológico da Guerra de

Canudos e das lições para nossa vida hoje. Tento garimpar, dentro dos mais de cem anos de

produção literária sobre Canudos, os elementos fundamentais do projeto de Antônio Conselheiro

e sua experiência eclesial inovadora na Igreja de seu tempo.

9 Cocorobó foi o nome da antiga Canudos. Em 1968 foi construído o açude do Cocorobó no local do cenário da guerra, com 16km de extensão, por 5km de largura e 20m de profundidade, no leito do Rio Vaza-Barris que deságua no Oceano Atlântico, zona Sul de Aracaju – SE. Cf. INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Almanaque de Canudos 1999, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1998, p. 60 e 82. 10 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo: Nacional, 1974, p. 1.

15

CAPÍTULO I

ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS

A primeira parte deste trabalho traça, em linhas gerais, o itinerário histórico de Antônio

Conselheiro e o roteiro de sua vida, situando-o no contexto mais amplo da região nordestina do

Brasil, no que diz respeito aos aspectos culturais, políticos, econômicos e eclesiais do final do

século XIX.

A segunda metade do referido século, como momento histórico, provocou inquietações na

vida social e religiosa do País, o que causou em Antônio Conselheiro indignação ética e o levou a

buscar novos caminhos de solidariedade para com as vítimas das agitações políticas, sociais e

eclesiais, que caracterizaram o final desse século. Antônio Conselheiro sentiu-se, então, chamado

por Deus para organizar um movimento de caráter religioso, com dimensões sociais e políticas,

inserido em um contexto de crise da Monarquia, de implantação da República e de separação

entre Igreja e Estado.

Este estudo não apresenta exaustiva análise da conjuntura social e política do final do

século XIX, nem uma interpretação sociológica dos fatos, mas descreve o perfil do líder Antônio

Conselheiro, destaca as possibilidades e as bases de sua atuação, o que provocou reação das elites

agrária e política da República. A natureza e o alcance do movimento deixaram um enorme

legado para a historiografia brasileira e para a Igreja, o que permitiu que fosse redescoberto o

papel do cristão leigo na sua atuação pastoral. A inserção de Antônio Conselheiro no Catolicismo

Popular do final do século XIX, sua formação religiosa, o contato com o Padre Cícero e a

experiência com o movimento das Beatas do Padre Ibiapina, proporcionaram-lhe inspiração para

organizar a comunidade do Belo Monte, como era conhecido o acampamento de Canudos.

1.1- Origem e formação humana de Antonio Conselheiro

Antônio Vicente Mendes Maciel, popularmente conhecido por Antônio Conselheiro1,

nasceu na vila de Quixeramobim, então Província do Ceará, aos 14 de maio de 1830. Era filho de

Vicente Mendes Maciel e Maria Joaquina de Jesus (também conhecida por Maria Chana),

conforme assentamento de seu batizado.2 Logo aos seis anos, ficou órfão de mãe, juntamente com

suas três irmãs passando a viver com a madrasta. Segundo a tradição, ela tinha sérias

perturbações mentais. Abelardo Montenegro confirma: “A madrasta do pequeno Antônio,

Francisca Maria Maciel, considerada ‘mulher geniosa, que não poupava maus tratos’, irritava-se

com o marido e desforrava-se nos enteados. Chamava o pequeno Antônio de mandrião e sem

vergonha”.3 Seu pai, Vicente Mendes Maciel, após ser obrigado a deixar o campo, tornou-se

comerciante e construtor, edificando algumas casas na praça principal de Quixeramobim.

Maciel originou-se de uma família residente em Vila Nova, lugarejo entre Tamboril e

Quixeramobim, em conflito com os Araújos, por questões de terra, nas acirradas disputas no

interior da Província cearense (motivo que o obrigou a migrar para a cidade). Antônio Vicente

teve uma vida conturbada desde o início. Seu pai começou a vida como vaqueiro e foi obrigado a

1 No decorrer do trabalho, usaremos os diversos títulos atribuídos a Antônio Vicente Mendes Maciel, durante sua vida e cristalizados na literatura atual: “Antônio Maciel”, “Antônio Vicente Maciel”, “Antônio Conselheiro”, “O Conselheiro”, “O Peregrino”, “O Peregrino do sertão”, “Santo Antônio”, “Antônio Aparecido”, “Santo Antônio Aparecido”, “Antônio dos Mares”, “O Bom Jesus”, “O Ermitão Antônio Conselheiro”. 2 Conforme cópia do original da certidão de batismo, que se encontra no acervo do Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC), na atual cidade de Canudos – BA, a 420Km de Salvador, com o seguinte teor: “Aos vinte e dois de maio de mil oitocentos e trinta, batizei e pus os santos óleos nesta Matriz de Quixeramobim ao párvulo Antônio pardo nascido aos treze de março do mesmo ano supra, filho natural de Maria Joaquina: foram padrinhos, Gonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula. Do que, para constar, fiz este termo, em que me assinei. O vigário, Domingos Álvaro Vieira”. Grande parte dos autores divulga incorretamente 1828 como o ano do nascimento de Antônio Conselheiro. 3 MONTINEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros, Fortaleza: Henrique Galeno, 1973, p. 114.

17

fixar-se em Quixeramobim, distanciando-se dos confrontos com os Araújos, “que

ensangüentavam o sertão cearense desde o início do século XIX”. 4 Para Manoel Benício, os

Maciéis formavam uma família numerosa, de homens álidos, ágeis, inteligentes e bravos, que

faziam parte de grandes fastos criminais do interior da referida Província, em guerra de família,

nas cercanias de Quixeramobim e Tamboril. Os confrontos se deram com os Araújos, distinta

família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da Província. “Foi uma das lutas mais

sangrentas dos sertões do Ceará a que se travou entre estes dois grupos de homens, desiguais na

fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências”. 5 Naquele tempo,

imperava a “lei do mais forte”. Uma certa feita, um tal Silvestre Rodrigues Veras, residente no

termo de Vila Nova, declarou guerra de extermínio aos Maciéis ou Carlos. “Pertencente à

poderosa família dos Araújos, que controlava as autoridades locais, pôs em jogo a influência

clânica, forçando os Maciéis a abandonarem a Vila Nova e virem para Quixeramobim”.6 Silvestre

conseguiu uma ordem de prisão e fez uma tentativa de prender os Maciéis que, avisados,

reagiram, provocando a retirada dos ameaçadores. “Os inimigos dos Maciéis, não podendo

prendê-los, convidaram para auxiliá-los o capitão do mato José Joaquim Meneses, que, vindo de

Fortaleza, ia para o Piauí acompanhado de sicários e do terrível Vicente Lopes”.7 Sem

possibilidade de reação, os Maciéis se entregaram. Essa atitude não foi capaz de aplacar a fúria

dos perseguidores. “Meneses passou os presos aos Araújos e Veras que, no dia 9 de junho de

2833, entre as fazendas Convento e Araras, entre Quixeramobim e Sobral, simulando um ataque à

4 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo da terra, São Paulo: Ática, 1995, p. 14. 5 BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos, Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 7. “Boa Viagem, pequena povoação, estava em grande afinidade de interesses, pela sua indústria pastoril, com Santa Quitéria, Vila Nova e Tamboril, cujos valentões tinham muita fama por esses tempos e influíram grandemente nas lutas sertanejas. Era do número deles o célebre José Joaquim de Meneses, oriundo de Pernambuco, corajoso até a temeridade; o afamado Vicente Lopes; os Mourões; João da Costa Alecrim e outros”. Ibidem. 6 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111. 7 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111.

18

escolta, os assassinaram”.8 Dois irmãos, chefes de família dos Maciéis, tombaram: Manuel Carlos

Maciel e Antônio Maciel.

As famílias sem influências políticas e econômicas eram condenadas ao silêncio ou a

migrar para outras áreas, distantes dos coronéis do sertão. Nesse tempo, o Doutor Ibiapina, que

posteriormente seria missionário católico, exercia o cargo de Juiz de Direito na Comarca de

Quixeramobim e protegia os Maciéis. Dr. Ibiapina foi famoso por ser um juiz justo e, por esta

razão, uma outra família “valentona”, conhecida por Miguel, se sentia intimidada. Entretanto,

Doutor Ibiapina era substituído pelo Juiz leigo Antônio Duarte de Queiroz, parente dos Araújos,

que iniciou uma forte perseguição aos Maciéis.9 Os mais fracos estavam entregues ao “Deus

dará”. Foi nesse ambiente familiar e social que Antônio foi formando a personalidade infantil,

agregando a isso posteriormente, a escola, a experiência religiosa e os enfrentamentos políticos.

1.2- Formação religiosa de Antônio Conselheiro

Mesmo sabendo-se que o homem não é somente produto do meio - no caso, o sertão -

marcado pelos conflitos de terra, as brigas políticas, o abandono das populações sertanejas e os

conflitos familiares foi esse ambiente a primeira escola na vida de Antônio Vicente Mendes

Maciel. O pai de Antônio Vicente sonhava que o filho fosse padre. Procurou colocá-lo na escola

do professor Manuel Antônio Ferreira Nobre, onde o menino teria uma base razoável de

português, latim e francês. Não se tem conhecimento dos motivos que desencaminharam o

menino da vocação sacerdotal. Abelardo Montenegro afirma que Antônio era filho de uma

8MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 111. E. Moniz documenta o mesmo episódio: “A luta sangrenta, iniciada em 1833, de vinditas em vinditas entre os Macieis e os Araújos, ficou famosa no sertão cearense. Essa luta agravou-se com o massacre da família Maciel, depois que se rendeu num confronto armado com os Araújos, sob a promessa não cumprida, de que ninguém seria morto. No massacre, morreu Miguel Mendes Maciel, avô de Antônio Conselheiro, cuja honestidade – segundo Manuel Ximenses – era reconhecida pelos próprios inimigos”: MONIZ, Edmundo, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial, 1982, p. 12. 9 Cf. ibidem, p. 112.

19

família tradicionalmente católica e recebia influências do catolicismo popular. Foi educado nos

princípios da Igreja do seu tempo. “Ensinaram-lhe a sofrer com resignação, a esquecer as

misérias terrenas para gozar as delícias celestiais e a aceitar como provações divinas os golpes

impiedosos do destino. A leitura de obras sacras mostrava como os santos haviam sofrido e

buscavam o sofrimento”.10 Euclides da Cunha colheu informações significativas junto a amigos

sobre o genitor de Antônio Conselheiro, Vicente Mendes Maciel: irascível, de excelente caráter,

meio visionário, desconfiado, de capacidade prática impressionante (mesmo sendo analfabeto).

Ele negociava largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de

memória, sem mesmo ter escrita para os devedores. Homem de honradez.11 Na concepção

euclidiana, Antonio Vicente foi educado longe das turbulências da família. Porém, as marcas da

personalidade do velho pai, de rigidez, seriedade, ríspida sisudez e de honestidade ficaram

cravadas na personalidade daquele que se tornaria andarilho pelo sertão. Assim Euclides da

Cunha resume-lhe a infância: “Indicam testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente

tranqüilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído,

avesso à troça... coragem tradicional e rara”.12 Sempre “revelava-se muito religioso, morigerado

e bom, respeitoso para com os velhos. Protegia e acariciava as crianças. Sofria com as rusgas

entre o pai e a madrasta. Ao longo da trajetória de vida, internalizou o conteúdo de um

cristianismo rústico, tradicional, de um Deus que castiga duramente os que erram. Consideravam-

no a pérola de Quixeramobim, por ser um moço sério, trabalhador, honesto e religioso”.13

Acompanhou o pai no comércio, trabalhando como caixeiro. Conforme tradição oral, por ocasião

do falecimento do pai em 1855, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vida corretíssima e

10 MONTENEGRO, Abelardo, F, Fanáticos e Cangaceiros, ..., p. 119. 11 Cf. CUNHA, Euclides da, Os sertões, São Paulo: Ediouro, 2003, p. 212. 12 Ibidem. 13 MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros..., p. 114.

20

calma.14 Em sua biografia, não constam atos de desonestidade ou atitudes desabonadoras de sua

conduta.15 Ao contrário, ele revelou um caráter que não se deixava abater. Viveu sempre

trabalhando e resolvendo problemas deixados pelo pai, inclusive “a tarefa de valer por três irmãs

solteiras (após a morte do pai) revelou abnegação. Somente depois de tê-las casado procurou, por

sua vez, um enlace que lhe foi nefasto”.16

Com 25 anos, assumiu a direção dos negócios, após a morte de seu genitor. Aos 7 de

janeiro de 1857, casou-se com Brasilina Laurentina de Lima, em Quixeramobim. Teve dois filhos

desse casamento. Nesse mesmo ano, sua casa comercial entra em falência. Segundo Abelardo

Montenegro, Antônio não tinha vocação para o comércio. Os negócios não prosperavam, as

dívidas aumentavam e chegou a hipotecar imóveis para pagar dívidas que não paravam de

crescer.17 Marco Antônio Villa aponta, para justificar o fracasso de Maciel, a crise econômica

cearense, especialmente devida às sucessivas secas.18 O autor de “Os Sertões” indica 1858 como

o início da transformação do caráter de Antônio Vicente Mendes Maciel. É a partir desse

momento que ele “Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidade de gênio com a esposa ou, o

que é mais verossímil, a péssima índole desta torna instável a sua situação. Em poucos anos, vive

em diversas vilas e povoados. Adotou diversas profissões”.19 Ele se desfaz completamente do

comércio. Procurou mudar de atividade profissional. Passou a lecionar português, aritmética e

geografia em uma fazenda vizinha. “Tenta sorte em Tamboril, depois em Campo Grande. É outra

vez caixeiro. Passando algum tempo, o dono fecha a casa de comércio e de novo fica

desempregado”.20 Chegou a militar no Fórum de Campo Grande e Ipu como advogado

14 Ibidem, p. 212-213. 15 Como conseqüências de sua opção, Antônio Conselheiro foi acusado de uma série de crimes não comprovados, tratados de forma aprofundada no final do próximo capítulo. 16 Ibidem, p. 313. 17 Ibidem, 115. 18 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo da Terra, São Paulo: Ática, 1995, p. 15. 19 CUNHA, Euclides da, Os sertões...,p. 213. 20 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo: Nacional, 1974, p. 5. Para uma reflexão mais recente, cf.: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA/ CENTRO DE ESTUDOS EUCLIDES

21

provisionado.21 Nesse período em Ipu, sua esposa foge com João da Mata, furriel da força pública

da província. Em meio à instabilidade econômica e afetiva, Antônio teve uma aventura com

Joana Imaginária, gerando o último filho, Joaquim Aprígio, em Santa Quitéria.22

Essa vida de ambulante não era exclusiva de Antônio. A crise econômica da segunda

metade do século XIX provocava desespero na população pobre. Como muitos outros

conterrâneos, ele não tinha medo de mudar de perspectivas e procurar outro meio de vida, como

única possibilidade de continuar vivo. A vida ambulante foi uma característica marcante na

personalidade do peregrino de Deus, que lutava pela melhoria da vida de seus irmãos sertanejos.

1.3- Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina e Padre Cícero de Juazeiro

Antônio Vicente Mendes Maciel (1830) conheceu Padre Ibiapina (1806) e Padre Cícero

(1844), de Juazeiro. Mesmo com uma pequena diferença de idade, eles formaram um verdadeiro

trio antológico no cenário nordestino do século XIX,23 embora sabendo-se que não houve um

plano de ação pastoral em conjunto. As práticas religiosas entre Padre Ibiapina, o Conselheiro e

Padre Cícero eram semelhantes, porém, nunca iguais. Existem diferenças significativas entre a

missão de Antônio Conselheiro e a dos dois padres, que serão abordadas a seguir.

A CUNHA, Revista Canudos, v. 4, n. 1/2 (dezembro de 2000), Salvador: UNEB, 2000; BOAVENTURA, Edvaldo, O Parque Estadual de Canudos, Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 1997; ÊNIO, José da Costa Brito e TENÓRIO, Waldecy (org.), Milenarismos ontem e hoje, São Paulo: Loyola, 2001: SANTOS NETO, Manoel Antônio dos e DANTAS, Roberto (org.), Os intelectuais e Canudos: o discurso contemporâneo: história oral temática, Salvador, UNEB, 2002; ROSSI, Luiz Alexandre S, Messianismo e modernidade: repensando o messianismo a partir das vítimas, São Paulo: Paulus, 2002. 21 Advogado provisionado, ou advogado dos pobres: profissão sem diploma, muito comum no Nordeste do Brasil, no século XIX. 22 Cf. MONTENEGRO, Abelardo F, Cangaceiros e fanáticos..., p. 116. 23 PINTO, Luis Araújo, O padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil, in: Perspectiva Teológica, Belo Horizonte: n. 93, p. 216, maio/agosto, 2002.

22

1.3.1- Antônio Conselheiro e o Padre Ibiapina

Há uma estreita relação entre Antônio Mendes Maciel e Padre Ibiapina, conhecido como

“apóstolo da caridade”. José Antônio Maria Ibiapina nasceu em 5 de agosto 1806, na cidade de

Sobral, no Ceará. Em 1832, formou-se em Advocacia pela Faculdade de Direito de Pernambuco.

Exerceu, por um curto período, a advocacia e a docência na academia de Olinda. Em dezembro

de 1833, foi nomeado juiz de Direito e chefe de polícia de Quixeramobim, terra de Antônio M.

Maciel. O Doutor Ibiapina chegou a advogar para os Maciéis, período em que Antônio

Conselheiro o conheceu, na região de Quixeramobim.24 Tornou-se famoso pela sua opção de

vida, pautada na verdade, na honestidade e na justiça. Como professor, magistrado, advogado e

deputado geral na legislatura de 1834/37, ficou famoso pela sua competência e seriedade

profissional. No exercício da magistratura, acumulou larga experiência junto às camadas menos

favorecidas do sertão nordestino. Aos 44 anos, em 1850, abandonou a magistratura, comprou

uma casa nos arredores de Recife, onde residiu por três anos, como retirante, dedicado à

meditação, aos exercícios de piedade, às leituras e às atividades manuais. Foi um tempo de

revisão de vida e de parada para repensar o destino. Nesse entremeio, decidiu abraçar o

sacerdócio ministerial, tornando-lhe possível servir ao Reino de Deus como padre diocesano.

Dom João da Purificação, conhecendo suas qualidades humanas e coerência de vida, o dispensou

das formalidades canônicas. Aceitou o pedido de ordenação para ingressar no clero secular.

Houve agilização do processo: “entre as primeiras ordens e a ordenação sacerdotal, transcorreu

pouco mais de um mês – a tonsura se deu a 11 de junho de 1853 e a ordenação, a 3 de julho do

mesmo ano”.25 Em fevereiro de 1854, o novo padre foi nomeado professor de Eloqüência

Sagrada no Seminário de Olinda, lecionando também, História Sagrada e Eclesiástica.

24 MONTENEGRO, Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros..., p. 112. 25 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil..., p. 202.

23

A vida itinerante do Mestre Ibiapina, iniciou-se em dezembro de 1855, no sertão da

Paraíba. Visitando diversos municípios pobres (como Campina Grande, Pilar, Ingar e Araras)

com a intenção de se encontrar com os pobres atingidos pela cólera, seguindo as pegadas do

Salvador: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção, para anunciar a

boa nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos cativos a libertação...” (Lc 4,18-19). O

sonho de missionar aos pobres, já era realidade. Ainda na Paraíba, em 1866, ele fundou a

primeira Casa de Caridade, conhecida por Santa Fé, no município de Araras. Sua missão tinha

pelo menos dois objetivos: anunciar aos pobres a chegada do Reino de Deus e construir casas de

caridade para socorrer os desvalidos do interior. Para Padre Ibiapina, o Reino de Deus acontece

concretamente onde há solidariedade e partilha dos bens. O amor aos pobres faz parte integrante

da opção de Jesus. Padre Ibiapina sabia harmonizar o material e o espiritual. A pregação era

bastante pragmática: “um chamado a romper o isolamento individualista, no qual se encontrava o

povo, através do testemunho de sua ação social. Nisto residia a diferença entre Pe. Ibiapina e os

missionários tradicionais”.26 Para o teólogo José Comblin, as Casas de Caridade do Padre

Ibiapina eram muito mais do que “obras de caridade”. Concretamente uniu os sertanejos com o

objetivo de encarnar o Evangelho entre os pobres, alertando-os para a união. “As casas de

caridade vão ser núcleos ao redor dos quais o povo se constitui como comunidade organizada.

Trata-se de implantar centros comunitários que vão mostrar a todos uma encarnação visível da

unidade”.27 Para o missionário pai dos pobres, “Evangelizar era unir os desbravadores dispersos,

os pobres desunidos para formarem um só povo”.28 Daí a necessidade de ele construir várias

casas de caridade, escolas, açudes, igrejas, hospitais e cemitérios. “O filão teológico que perpassa

26 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres da Igreja do Brasil..., p. 205. 27 COMBLIN, José, Ibiapina, o missionário, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS (CEHILA), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 123. 28 Ibidem, p. 122.

24

as obras de Ibiapina é de fato o da opção pelos pobres, e esta se expressa na ação civilizatória de

promoção humana motivada pela caridade evangélica”.29

O contato de Antônio Conselheiro com o Padre Ibiapina seria importante para a vida do

Peregrino. José Calazans, estudioso proeminente de Canudos, professor emérito de história da

Universidade Federal da Bahia, afirma categoricamente: “Antônio Conselheiro se aproximou do

notável pregador de missões (Padre Ibiapina), tendo trabalhado como irmão pedinte, angariando

fundos para os projetos de construções do antigo magistrado”.30

A convivência com o missionário dos pobres o torna, de certa maneira, um exemplo a ser

seguido: “mui justamente impressionado com o Pe. Ibiapina, procurou imitá-lo. Na humildade,

no vestuário, no uso do cajado, no combate ao luxo, na preocupação constante de fazer obras.

Como o Pe. Ibiapina, queimava objetos considerados supérfluos”.31 Para Alexandre Otten, a

influência de Padre Ibiapina sobre o Conselheiro se confirma especialmente pelas semelhanças

no pensamento teológico. “Ambos ligam a percepção do pecado com o fato da diluição do mundo

sertanejo tradicional [...], os dois tornaram-se, aos olhos dos seus seguidores, imagens do Bom

Jesus nesta terra”.32 Na concepção de José Comblin, a vida de Padre Ibiapina foi marcada por

uma opção de classe, materializada na opção pelos pobres.33 “O sentido da ação do padre

Ibiapina, como a do padre Cícero, foi político: ele permitiu, mais do que estimulou, a emergência

de um precário projeto popular (mutirão, resolver em comum os problemas) no nível das

instituições”.34 Antônio Conselheiro, ao acompanhar o Padre Ibiapina e aproximar-se de Padre

29 PINTO, Luis Araújo, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil... p. 205. 30 CALAZANS, José, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo da companhia de Canudos, Salvador: Tipografia Beneditina, 1950, p. 44. 31 CALAZANS, José, O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo..., p. 44. 32 OTTEN, Alexandre, Só Deus é Grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro, São Paulo: Loyola, 1990, p. 273. 33 Cf. HOORNEART, Eduardo, Crônica das Casas de Caridade do Padre Ibiapina, São Paulo: Loyola, 1981, p. 13. 34 HOORNEART, Eduardo, Ibiapina e os desclassificados: à procura de uma chave interpretativa da cônica das casas de caridade, in: HOOENAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 83.

25

Cícero, percebeu que poderia engrossar o cordão dos defensores de sua gente. O jeito carinhoso

de o líder maior de Juazeiro receber os pobres e as ações concretas do Padre Ibiapina marcariam a

vida do Peregrino e influenciariam seu pensamento nas andanças pelo sertão brasileiro. Essas

marcas permaneceram encravadas na vida do Peregrino durante suas andanças pelos rincões

sertanejos. Inspirando-se na vida dos dois padres, Antônio Conselheiro percebeu, então, que era

possível encontrar um novo caminho ao lado de sua gente.

1.3.2- Antônio Conselheiro e Padre Cícero

Um outro personagem que influenciou o pensamento de Antônio M. Maciel foi o Padre

Cícero de Juazeiro, nascido aos 24 de março de 1844, no Crato, na Chapada do Araripe cearense.

Cícero Romão Batista, filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, viveu sete

anos no seminário, saindo dali aos 30 de novembro de 1870 ordenado padre, depois de passar

pelo crivo da formação dos padres da Congregação da Missão Lazarista, de origem francesa.35

Após o término dos estudos, o reitor do seminário, o francês Padre Pierre Chevalier,

“desaconselhou a ordenação sacerdotal porque achava Cícero demasiadamente místico, cabeçudo

e por vezes audacioso em matéria doutrinal. No entanto, dom Luís tinha muita simpatia por

Cícero e o ordenou”.36 Logo, ele vai para Juazeiro, onde fica 60 anos, trabalhando com

populações que viviam “numa situação de miséria tal, que não tinham sequer a consciência dos

direitos mais elementares ao ser humano”.37 Andava de povoado em povoado, pregando missões,

celebrando novenas, promovendo terços, procissões e festas religiosas, como um andarilho,

cumprindo um chamado de Deus. Proibia as danças, as bebidas alcoólicas e lutava,

implacavelmente, contra os vícios dos fiéis. Sua vida de pobreza e simplicidade cativava o povo,

35 Cf. BARRETO, Francisco Murilo de Sá, Padre Cícero, São Paulo: Loyola, 2002, p. 14-19. 36 COMBLIN, José, Padre Cícero de Juazeiro, São Paulo: Paulinas, 1991, p. 8. 37 FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos..., p. 136.

26

que procurava seguir as ordens do novo padre. Reuniu um grupo de beatas dedicadas a uma vida

de piedade, ao estudo da doutrina católica e à participação em todos os ofícios e celebrações da

Igreja. Em 1889, o “milagre da hóstia” transformada em sangue, foi marco divisor na vida de

Padre Cícero. Esse acontecimento ocorreu no dia 2º de março de 1889, durante a distribuição da

comunhão. Na missa celebrada antes do café da manhã, em jejum, conforme determinação da

Igreja, uma hóstia que padre Cícero entregou em comunhão à beata Maria de Araújo

“intumesceu, sangrando”, criando um rebuliço no povo de Juazeiro. Na missa de 7 de julho,

Domingo do Preciosíssimo Sangue de Cristo, Mons. Francisco Rodrigues Monteiro, durante a

missa na Igreja Nossa Senhora das Dores de Juazeiro, comentou para mais de três mil pessoas os

fatos extraordinários de “sangue na hóstia”. A multidão que veio ao Crato entrou em delírio. O

povo se multiplicava e aumentavam as súplicas e romarias. Juazeiro crescia e atraía multidões.

Padre Cícero acreditava no milagre e muitas autoridades eclesiásticas também. Por causa do

milagre, o povo migrava para Juazeiro. Segundo José Comblin, “Entre 1890 e 1898, a população

passou de 2.000 a 5.000 habitantes. Em 1905 já era de 12.000 habitantes e em 1909 chegou a

15.000”.38 Em 1911, Juazeiro era emancipada, tornando-se o maior centro urbano do Ceará,

depois da Capital, Fortaleza. O Bispo suspendeu o Padre Cícero de Ordem. Para o povo, o Padre

estava sendo perseguido. “A questão religiosa de Juazeiro abriu uma fenda no coração deste

povo. Tantos estudos sérios, tantos livros, teses só chegaram a uma conclusão – Padre Cícero

ganhou terreno”.39 Para o teólogo Comblin, esse delírio do povo sertanejo foi estimulado pela

fama de Santo que Padre Cícero já tinha. Além disso, é preciso levar em conta que, no interior

do Ceará, a proclamação da República foi acolhida como o fim do mundo. Os republicanos eram

tidos como inimigos e destruidores da Igreja de Cristo – eram anticristos. Maçons e republicanos

38 COMBLIM, José, Padre Cícero de Juazeiro..., p. 18. 39 BARRETO, Francisco Murilo de Sá, Padre Cícero..., p. 33.

27

eram tidos como “filhos do diabo”. “Muitas profecias vieram renovar a convicção de que o fim

do mundo era iminente. Essa mesma fé apocalíptica ia animar Canudos alguns anos mais

tarde”,40 afirma José Comblin.

Juazeiro cresceu rapidamente e passou a ter grande importância no interior do Ceará e

objeto de disputa das oligarquias da região do Cariri. Padre Cícero resolveu entrar na disputa

política. Segundo José Comblin, com o objetivo de “evitar lutas ferozes e sangrentas. Era a única

pessoa capaz de estabelecer certa unidade entre os partidos. De fato, padre Cícero conseguiu

diversos pactos de não agressão entre partidos e coronéis que podiam muito bem ter

desencadeado guerras sangrentas”.41 Padre Cícero ocupou também a vice-presidência do Ceará.

Quando o presidente Cel. Franco Rabelo foi deposto pela revolução de 1924, ele responsabilizou

seu amigo Doutor Floro Bartolomeu pelo acontecido. “Com a vitória da revolução, Padre Cícero

reassumiu o cargo de Prefeito, do qual havia sido retirado pelo governo deposto, e seu prestígio

cresceu”.42 A missão do Padre Cícero na política de Juazeiro não significou novidade, nem

melhoria na qualidade de vida dos menos favorecidos.

Assim, o que Antônio Conselheiro tinha em comum com Padre Cícero era a solidariedade

com o povo sofrido e o desejo de levar a mensagem cristã aos desvalidos e desprotegidos pelo

cruel sistema de marginalização. Entre Padre Cícero e Antônio Conselheiro havia muitos pontos

de desencontro, como veremos a seguir.

1.4- Padre Ibiapina, Padre Cícero e Conselheiro: semelhanças e dessemelhanças

As práticas religiosas de Padre Cícero, Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro foram em

favor dos pobres. Padre Cícero, no entanto, esteve mais atrelado ao poder: beneficiava-se dele e

40 COMBLIN, José, Padre Cícero de Juazeiro..., p.11. 41 Ibidem, p. 25. 42 SITE DO GOOGLE, Biografia do Padre Cícero, acesso em 9 de agosto, 2005.

28

não era capaz de contrariar as práticas e “normas estabelecidas” na política vigente. A chamada

ação social, muito presente na missão de Antônio Conselheiro e de Padre Ibiapina, quase não

aparece na vida de Padre Cícero. Luís Araújo Pinto afirma: “A ação social desse sacerdote (Padre

Cícero) ainda é bastante discutida. Há os que dizem que ele nunca fez nada pela educação de

Juazeiro, nem mesmo quando foi prefeito da cidade”,43 mesmo reconhecendo-se a relação

solidária do Padre Cícero com os pobres, por meio de sábios conselhos44 para a vida prática dos

humildes, tais como curas, higiene, cultivo de plantas apropriadas ao clima, alternativas que lhes

propiciariam conviver em tempos de secas. Para Rui Facó, o apostolado de Padre Cícero se

distinguia dos outros padres: “não cobra em dinheiro os serviços religiosos. É o ponto de partida

da sua popularidade, ao lado, é claro, de certas manifestações místicas coincidentes com as

camadas mais atrasadas da população sertaneja local”.45 Quanto às práticas de muitos padres no

sertão, Euclides da Cunha é implacável: “o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo

no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. [...] sua ação é negativa:

destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos”.46

43 Ibidem, p. 219. 44 Cf. INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Almanaque de Canudos 1995, Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 2995, p. 64. São apresentados treze conselhos do Padre Cícero: “1- Cada casa seja um oratório e, ao mesmo tempo, uma oficina; cada quintal, uma horta. 2- Procure adquirir sua moradia. Quem tem uma casa para morar, tem um pedacinho de céu aqui na terra. 3- Não derrube a mata; é ela que atrai a chuva. 4- Não toque fogo na roça, porque senão a terra fica cada vez mais fraca; plante feijão e fava dentro dos garranchos. 5- Prepare o seu roçado. Choveu, plantou; nasceu, limpou; colheu guardou. 6- Não cace por brincadeira, mas para comer. 7- Não crie o boi ou o bode soltos; faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer. 8- Não plante de serra acima, nem faça roçado em ladeira muito em pé, para que a água não arraste a terra e não perca sua riqueza. 9- Nunca plante uma coisa só, varie as culturas. E se uma não der, outra pode dar. 10- Represe os riachos de 100 em 100 metros, ainda que seja com pedras soltas. 11- Plante, cada vez que puder, um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só. 12- Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema. Elas podem ajudar vocês a conviver com a seca. 13- Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar a água da chuva”. Se o sertanejo obedecer a estes conselhos, a seca irá, aos poucos, se acabando, o gado melhorando, e o povo terá sempre trabalho e o que comer. Mas se não obedecer, dentro de pouco tempo, o sertão todo vai virar um deserto só”. 45 FACO, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 135. 46 CUNHA, Euclides da, Os sertões..., p. 296. Grifo do autor. “E alucina o sertanejo crédulo: alucina-o, deprime-o, perverte-o”. P. 198.

29

Já o Padre Ibiapina, por outro lado, tem uma ação pastoral que vai além da prática de

Padre Cícero. O conhecido Mestre Ibiapina fazia diversas construções para amparar os pobres:

hospitais, casas de caridade, cemitérios, igrejas e várias outras obras com o objetivo de atender

aos desvalidos e abandonados pela política dominada pelos coronéis47, práticas ausentes na

missão de Padre Cícero, que nem sequer passou por essa experiência peregrina junto ao povo,

como aconteceu com Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro. A única vez em que saiu de Juazeiro

foi quando teve que ir explicar-se em Roma acerca de seus supostos milagres. Sua ação foi

restrita a Juazeiro e teve como finalidade dar conselhos ao povo que o procurava. Além de um

bom atendimento pessoal aos pobres, do atendimento sem cobrar dinheiro pelos sacramentos, das

bênçãos, ele dava orientações médicas (ensinava-lhes a preparar remédios caseiros) e dava-lhes

outras orientações simples, porém muito significativas para um povo mergulhado na pobreza, na

ignorância e na mais absoluta miséria. Eram populações desprovidas de quaisquer possibilidades

de levante que pudessem significar interferência na ordem política. Foi acusado de ter adotado

uma pastoral assistencialista. “Seria exigir-se muito de populações marginalizadas secularmente

num tão grande atraso, num isolamento não menor, numa situação de miséria tal que não tinha

sequer a consciência dos direitos mais elementares ao ser humano”48, afirma Rui Facó. Isso não

desmerece a coerência da ação pastoral do Padre Cícero. De fato, a sua única preocupação era a

peleja do dia-a-dia para suprir as necessidades básicas do povo pobre.

47 Para Dom Marcelo Pinto Cavaleira, hoje Arcebispo emérito da Arquidiocese da Paraíba, o povo simples se encantava pelas coisas concretas criadas pelo Padre Ibiapina e se beneficiava do que acontecia: “nos fartos almoços de que todos os pobres participavam em missões do Padre Ibiapina; nos açudes d’água que ele construía em mutirão com o povo do Nordeste, fragelado pelas secas; nas 22 casas de caridade onde acolhia pobres e abrigava órfãs desamparadas, educando-as para a vida; nos hospitais que ele edificava com o povo para recolher os doentes tão numerosos do interior; nos cemitérios para sepultar com dignidade os corpos de tantos mortos, sobretudo no tempo da peste... E o povo pensava também nas Igrejas que o padre Ibiapina, em mutirões, construía nos povoados. Sabendo, sem dúvidas, que esses templos eram marcos vivos não apenas de uma fé devocional, para o povo sempre necessária, mas também de uma fé prática, manifestada nas obras da justiça e do amor fraterno. Ibiapina mostrava bem, em sua ação missionária, como a fé cristã articula inseparavelmente a religião com a vida”. HOORNAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 6. 48 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos... p. 136.

30

Diferentemente de Padre Ibiapina e Padre Cícero de Juazeiro, Antônio Conselheiro não se

restringia a um trabalho de apaziguamento das massas como fazia Padre Cícero, nem somente à

criação de Casas de Caridade para amparar os pobres, como era a prática de Padre Ibiapina.

Antônio Conselheiro imprimia práticas religiosas que iam além de tudo isso. Formava uma

comunidade alternativa, instruía o povo na oração, procurava conscientizar o sertanejo para

mudar o sistema agrário e transformar a política coronelista regional. Isso incomodou as elites

agrárias e políticas.49 Esse é o diferencial mais significativo da comunidade do Conselheiro. O

Barão de Jeremoabo não escondia a preocupação com o crescimento da comunidade alternativa

de Canudos e sua proposta inovadora, ao lamentar:

Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal o aluvião de famílias que subiam para Canudos, local escolhido por Antônio Conselheiro para as suas operações. Causava dó ver exposta à venda na feira a extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, além de objetos, por preço nonada como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar dinheiro e ir reparti-lo com o santo Conselheiro.50

O que diferenciava o leigo Conselheiro dos dois padres era sua ação social. De Padre

Ibiapina, o Conselheiro herdou o impulso de construir. Ele levantava igrejas, construía

cemitérios, acolhia os pobres, organizava a comunidade dos “desvalidos” e “sem sorte”. Luis

Araújo, diferenciando o protagonismo dos três missionários, afirmava que a novidade era a forma

como Antônio Conselheiro organizou seu povo, dando “uma resposta à situação de miséria em

que jazia a maioria do povo sertanejo. Foi também uma resposta provocadora à sociedade

opressora republicana, um protesto radical expresso no não-pagamento de impostos e no não-

reconhecimento da República e de sua moeda”.51 Padre Cícero era conhecido como milagreiro.

Padre Ibiapina fazia de tudo para que seu povo não lhe atribuísse esse poder, “sua intenção era,

49 Esse ponto será mais bem desenvolvido no capítulo II, nos itens 2.4: A comunidade Alternativa de Canudos e 2.5: Por que a comunidade de Canudos se constituiu num perigo para a República? 50 Cit in: MONIZ, Edmundo, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial Latino-Americano, 1981, p. 42. 51 JÚNIOR, Luis Araújo Pinto, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil..., p. 219.

31

sobretudo, a de que as pessoas se convertessem à caridade, superando intrigas e atendendo aos

mais necessitados”.52

Na concepção de Consuelo Novais, Canudos foi uma comunidade de sertanejos que ousou

criar uma forma própria de organização social, motivo principal que fez a elite política da época

varrer do mapa tal experiência53, que foi criando uma nova estrutura agrária, conforme

aprofundamento a seguir54, na análise da conjuntura política do Nordeste, no final do século XIX.

Os três líderes: Padre Ibiapina, Antônio Conselheiro e Padre Cícero exprimiram as lutas e

esperanças do povo desclassificado pelo sistema. Alexandre Otten afirma que é “provável que

historicamente Pe. Ibiapina tenha aberto a brecha para o Conselheiro. Seguramente influenciou

muito o beato. Este, porém, promove um projeto mais popular”.55 Nesse sentido, eles são

semelhantes, porém, cada um a seu modo e com suas características. Afirmar, além disso, é

projetar as categorias de análises sociais modernas, num momento histórico em que não se

dispunha de tais categorias.

1.5- Contextualização do Nordeste do Brasil no tempo de Antônio Conselheiro

O final do século XIX foi de turbulências política e social. O advento da República,

instalada em 1889, não alterou o desenvolvimento desigual do sertão nordestino, nem resolveu os

problemas na economia. A Igreja vivia o conflito de separação do Estado. O novo regime

republicano não superou os problemas ligados à concentração da terra, ao declínio do ciclo da

cana-de-açúcar, nem amenizou as conseqüências das sucessivas secas. Os fazendeiros,

“verdadeiros donos das terras”, não toleravam manifestações de independência de homens livres,

52 Ibidem, p. 218. 53 Cf. SAMPAIO, Consuelo Novais, Canudos: a construção do medo, in: SAMPAIO, Consuelo Novais (org), Canudos: cartas para o Barão, São Paulo: EDUSP, 2002, p. 31. 54 A natureza da comunidade alternativa de Canudos será abordada no capítulo II, 2.4. 55 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 380.

32

de “status” inferior. “A hipertrofia do poder privado e a atrofia do poder político, assevera Costa

Pinto, criavam condições propícias ao aparecimento da vingança privada como modo típico de

controle social”,56 especialmente no que diz respeito à luta pela terra. Na concepção de Rui Facó,

esse monopólio da terra no Brasil, herdado das capitanias hereditárias, e a subseqüente concessão

das sesmarias, deram origem aos latifúndios atuais.57 A defesa da propriedade, ao longo da

história do Brasil, vinha sendo feita, quase sempre “pelos próprios donos da terra”, se não com a

conivência do aparelho do Estado, pelo menos com o silêncio do aparelho estatal. Imperava a “lei

do mais forte”. No sertão, dominado pela ação dos donos das grandes propriedades, valia um

código de honra: “seria humilhante não se desforçar, não exercer vindita. A pressão do grupo

colocava o indivíduo no seguinte dilema: ou vingar-se e provar que respeitava a vontade grupal,

ou não se vingar e excluir-se do grupo”.58 Era a verdadeira lei de Talião.59 As autoridades

consideravam-se impotentes ou, porque não afirmar, condizentes, diante de tal prática.

Constatava-se que, “no sertão, a única força real era a do senhor rural. Havia mesmo um

compromisso do Estado com a casa grande: esta apoiava aquele na defesa de seus interesses,

enquanto o Estado transferia o poder que pudesse à casa grande”.60 Rui Facó vai mais longe: “O

latifúndio se manteve intacto através da Monarquia e não se modificou com o advento da

República, que não tocou num fio de cabelo da grande propriedade territorial”.61 A terra sempre

fora uma questão aguda que vinha se arrastando ao longo da história do Brasil. Mesmo em meio

às reações dos donos das grandes propriedades, houve uma tentativa de interferir na legislação

56 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros, p. 110. 57 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 16. 58 MONTENEGRO, Abelardo F..., Fanáticos e cangaceiros, p. 112 59 No Antigo Testamento, a lei do “talião” era um princípio jurídico segundo o qual a pena deveria ser proporcional à ofensa: “Mas se acontecer dano grave, pagarás vida por vida, olho por olho, dente, por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão” (Ex 21,23-25). Cf. também Lv 24,19 e Dt 19,21. No Brasil do final do século XIX, a justiça era feita pela elite rural, pelos coronéis e pelos barões. O povo era simplesmente desprotegido com a quase total ausência do Estado. 60 MONTENEGRO, Abelardo F, Fanáticos e cangaceiros..., p. 110. 61 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 128.

33

sobre a terra, não com o objetivo de democratizá-la, mas com o intuito de acolher os imigrantes,

conforme o que segue:

Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertido em lei, como julga vossa sabedoria, a proposta para o fim de regularizar a propriedade territorial e facilitar a aquisição e cultura das terras devolutas. Nessa ocasião resolvereis sobre a conveniência de conceder ao governo o direito de desapropriar, por utilidade publica os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais.62

Somente a partir de 1940, com os primeiros planos de reforma agrária, lançados pelo

Estado sem muito progresso que se percebe o desejo de mudanças na ordem agrária do País. As

décadas de preparação para a proclamação da República foram marcadas por muitas tensões e

crises. De 1864-1870, guerra do Paraguai; 1870-1889, o declínio da Monarquia. “O que mais

caracterizava a Monarquia era o predomínio, em todos os níveis, dos interesses dos grandes

proprietários de terra, de escravos e de capitais em prejuízo das camadas populares”.63 O poeta

popular sintetiza bem a situação: “O Nordeste desta época/ era mais agonia/ pesado pela

República/ Morto pela Monarquia/ Milhares de nordestinos/ abandonados viviam”.64 Os conflitos

eram intensos. As transformações políticas e sociais iniciaram-se em 1850 e chegaram ao século

seguinte, sem que se encontrassem soluções para minorar os problemas sociais.

O movimento pela abolição da escravatura deságua na assinatura da Lei Áurea, em 13 de

maio de 1888. Além das pressões sociais contra o sistema escravocrata, este não respondia mais

aos interesses das elites rurais. No final do século XIX, o Nordeste foi marcado pelo “incremento

do banditismo, do fanatismo religioso e pelo desânimo dos grandes proprietários que se

desinteressavam com a sorte da Monarquia [...], à beira da efervescência revolucionária”.65 O

sistema imperial estava com os dias contados. O império monárquico não gozava mais de

62 FALAS DO TRONO, 1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. 63 CASALECCHI, José Enio, A Proclamação da República, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 8. 64 VIOLÃO, Zequinha do, cit. in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, uma história de luta e resistência, Paulo Afonso: Fonte Viva, 1993, p. 8. 65 MONTEIRO, Hamilton de Matos, Nordeste insurgente: 1850 – 1890, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 23, 30.

34

legitimidade. Liberais e conservadores atacavam impiedosamente o imperador. “O Estado erigido

sobre os escombros das revoltas de 1817, 1824, Balaiada, Sabinada, Cabanagem, Farroupilha e

a Revolução Praieira de 1848 já não mais atendia às necessidades decorrentes da conjuntura do

final do século XIX”.66

Com relação a esse momento, o Economista Celso Furtado constata que dados das duas

últimas décadas do século XIX apontam um crescimento da população nordestina em cerca de

80%, enquanto a renda real gerada pelo setor exportador não ultrapassou 54%.67 Em fins de 1879,

a população indigente, no Ceará, ultrapassava a casa dos 300 mil. Outras 300 mil pessoas haviam

morrido ou emigrado.68 A grande seca de 1877/1879 desencadeou ações dos grupos de

cangaceiros mais famosos do século XIX: os Brilhantes, os Variatos e Calangros. Como

conseqüência das secas, aumenta o número de óbitos no Ceará e nas outras províncias

sacrificadas pelo flagelo causado pela estiagem, como a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Nesse

mesmo período, cresce a migração com destino à Amazônia. Levas e levas de infelizes

procuravam a todo custo sobreviver à fome, sem querer aventurar-se aos seringais do Norte.69

As rebeliões nordestinas anunciavam transformações na ordem política e econômica que

não aconteciam. “Os conservadores eram defensores da Monarquia, da centralização do poder, da

administração e instituições do Império”.70 As reformas liberais não apontavam para um cenário

político que pudesse superar os conflitos. “Os liberais pretendiam reformas: extinção do poder

moderador, do senador vitalício, a descentralização do poder, o Conselho de Estado, reforma

eleitoral, etc.”.71 Nota-se que não havia propostas significativas que alterassem, por exemplo, o

conflito agrário e a crise econômica.

66 VILLA, Marco Antônio, Canudos e o povo da Terra..., p. 90. 67 Cf. FURTADO, Celso, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Nacional, 1974, p. 147-149. 68 BRASIL, Tomás Pompeu de Sousa, O Ceará no cenário da Independência, v. I, Fortaleza: 1922, p. 231. 69 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 132. 70 CASALECCHI, José Enio, A proclamação da República..., p. 18. 71 CASALECCHI, José Enio, A proclamação da República..., p. 18.

35

A monocultura da cana-de-açúcar, principal alavanca da região Nordeste, estava em

declínio. Investia-se na cultura do café em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e no

plantio da seringueira, na Região Norte, para onde se deslocou o centro dos interesses

econômicos. Do ponto de vista político e econômico, o Nordeste foi perdendo paulatinamente sua

importância. A nova economia exigia mão-de-obra especializada. O País estimulou a imigração,

“tendo-se em vista a necessidade de serem atendidos os interesses da lavoura cafeeira,

amplamente processada de braços (...) pelas alterações resultantes da recente abolição da

escravatura”.72 O Norte, o Sul e o Sudeste, para onde se voltavam os interesses econômicos,

recebiam os imigrantes.73 Nesse período, as eleições eram cartas marcadas: “Os governadores

impunham seus candidatos, (...) transformando as eleições em ato formal e confirmatório dos

acordos da oligarquia. Isso não significava inexistência de conflitos intra-oligárquicos”.74

O Nordeste era carente de lideranças significativas. Cada um se “salvava como podia”. É

nesse contexto de um Nordeste em chamas que Antônio Conselheiro chegou para organizar o que

não interessava às elites: o povo. A Igreja também passava por grandes transformações, que

interferiam no processo político e social, com deficiências na hierarquia eclesiástica, o que fazia

com que o povo criasse sua própria religiosidade, como veremos a seguir.

1.6- A conjuntura eclesial

Com a proclamação da República (1889), a Igreja separou-se do Estado. O processo

conflituoso de independência acarretou algumas perdas. O Estado criou o casamento civil,

assumiu a administração dos cemitérios, etc. A Igreja católica já vivia em conflito com o sistema

imperial. A questão religiosa se arrastou de 1872 a 1875, período no qual foram presos os bispos

72 VIANA, Hélio, História do Brasil: Monarquia e República, São Paulo: Melhoramentos, 1974, p. 293. 73 Cf. Ibidem, 294-295. 74 VILLA, Marco Antônio Villa, Canudos, o povo da terra..., p. 113-114.

36

de Olinda, Dom Vital e do Pará, Dom Macedo Costa. Esse conflito foi conseqüência do

regalismo dominante na política imperial, da própria situação ambivalente em matéria religiosa

gerada pela instituição do regime de padroado, do qual se beneficiavam os próprios bispos, em

termos de sustentação econômica de suas respectivas igrejas.75 D. Manoel Joaquim da Silveira,

arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, saiu em defesa de um de seus colegas que havia sido

preso, com uma declaração publicada no Diário de Notícias.76 A Igreja do Brasil vivia o reflexo

do que acontecia na Europa. A Barca de Pedro estava agitada pelos ventos do liberalismo que se

confrontava com as decisões da Igreja. Thales de Azevedo documentou a repercussão do conflito

no Brasil entre Igreja e Império, nestes termos:

Nos primeiros anos 70 do período imperial, ressoava na Bahia – aparentemente só nos jornais – a questão religiosa que envolveu os bispos D. Vital de Oliveira, de Pernambuco, e D. Antônio de Macedo Costa, do Pará. Sucede que o primeiro, uma vez pronunciado, foi preso, e ao ser levado para a Corte sob custódia de um general, e acompanhado por seu secretário, esteve no porto da Bahia a bordo da corveta de guerra Recife, sendo transferido para o transporte Bonifácio em que, ao cabo de três dias, prosseguiu viagem. Segundo instrução do governo central, o presidente da Província fez por evitar quaisquer manifestações na cidade, as quais, ao que se pode presumir dos noticiários, não se tentaram. Importa registrar que somente o arcebispo primaz, Dom Manoel Joaquim da Silveira, frustrado seu pedido para hospedar o colega, teve autorização para visitar D. Vital na companhia de seu secretário e de algumas outras pessoas; estas teriam sido um religioso franciscano, representações da Associação Católica, seminaristas e estudantes de medicina, entre os quais Manoel Vitorino Pereira (vide Diário de Notícias); porém, a não ser seu secretário e o referido franciscano, todos os demais impedidos de subir a bordo, limitando-se a permanecer na pequena embarcação que até lá levava, onde saudaram o homenageado. O periódico Crônica Religiosa, que acompanhava aqueles acontecimentos, com editoriais e notícias, protestou.77

75 Cf. AZZI, Riolando, A Sé Primacial de Salvador: a Igreja Católica na Bahia (1551-2001), Período imperial e republicano, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 18-19. 76 “Nós, D. Manoel Joaquim da Silveira, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Arcebispo da Bahia, metropolitano e primaz da Brasil, conde de São Salvador, do Conselho de S. M. o Imperador: Visitando nas águas da capital desta arquidiocese o nosso muito colega e irmão, o Exmo e Revmo. Sr. Bispo de Olinda, D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, que segue para a Corte do Império preso por ordem do governo imperial, e reconhecendo a injúria que se faz com esse ato à sua sagrada pessoa, e se arroga à Igreja Católica, e a todo o seu episcopado, especialmente o do Brasil; protestamos solenemente perante os fiéis de toda a Santa Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, com especialidade os deste Império, e perante o mesmo governo de S. M. o Imperador, contra essa violência, que tão cruelmente fere os sentimentos católicos e toda a população, do mesmo Império. Bahia, 8 de janeiro de 1874. Arcebispo. Conde de São Salvador”. Cit in: Ibidem, p. 20-21. 77 AZEVEDO, Thales, A guerra aos Párocos, Salvador: EGBA, 1992, 65-66.

37

Nesse período, as idéias do ultramontanismo influenciavam o pensamento conservador e

agitava as elites letradas da Bahia. Em 1871, o Concílio Vaticano I definiu o dogma da

infalibilidade do Papa, segundo o qual, o Sumo Pontífice é infalível toda vez que proferir

decisões, não somente em questão de fé, como também no domínio moral, acerca da religião com

a sociedade, da Igreja com o Estado, e até das instituições nacionais.78 Portanto, cabe a “todos os

católicos uma submissão absoluta e sem reservas; cumpre-lhes respeitá-las no falar e no proceder.

Daqui vem que, aos olhos do ultramontanismo, é completamente monárquico o poder do papa

sobre a Igreja, e não conhece nem tolera limites”.79 Logo veio a reação dos intelectuais com

tendência esquerdista. O livro O Papa e o Concílio do teólogo alemão J. J. Von Döllinger foi

traduzido por Rui Barbosa e tornou-se uma obra que “pode ser considerada como um

complemento da questão religiosa, mediante a denúncia do ultramontanismo”.80 O debate entre o

clero ultramontano e os intelectuais liberais prolongou-se até as últimas décadas do período

imperial. Hugo Fragoso apresentou o contexto mais amplo em que ocorreu a questão religiosa:

Esta questão religiosa representou o clímax do conflito entre a Igreja ultraconservadora (ultramontana) e o liberalismo, representado de maneira especial pela maçonaria. Tal conflito revelou que a aliança entre Altar e Trono era como um casamento híbrido: matrimônio de uma Igreja conservadora com um Estado liberal. Este fermento liberal-maçônico era também um fator de desagregação da monarquia, pois, em última análise, era aquele uma extensão da ideologia republicana”. Todo esse conflito (ultramontano versus liberais) era uma transplantação de um conflito maior que agitava a Europa, sob cuja influência ideológica estavam nossos políticos e nossos homens da Igreja. Sobretudo, refletia-se no Brasil, o que se passava na Itália em revolução pela unidade nacional, em conflito com a Igreja de Pio IX. Também aqui no Brasil tivemos o eco desse ‘grito’ na luta entre a maçonaria e a Igreja.81

78 Dois novos dogmas foram proclamados: 1) O primado de jurisdição do Papa: o Papa é a instância suprema da Igreja, não há outra instância superior a quem se possa apelar. Compete ao sumo Pontífice a “plenitude” e não somente a “primazia”, como opinava o galicanismo. A Sé apostólica e os sucessores de Pedro, vigários de Jesus Cristo detém a plenitude do poder em questão de fé, de costumes, de organização e de governo de toda a Igreja. Neste sentido, o Papa está acima do próprio Concílio; 2) A infalibilidade do magistério solene do papa: Essa “verdade” de fé é decisiva de todo serviço à unidade da Igreja. O que for determinado pelo papa deve ser seguido por todas as igrejas particulares. Mesmo aceitando as novas decisões solenes do romano pontífice, houve críticas no campo teológico. Um maior aprofundamento desse tema cf. MARTINA, Giocomo, História da Igreja, de Lutero aos nossos dias: III – a era do liberalismo, São Paulo: Loyola, 1996, 147-286. 79 Ibidem, p.51. 80 AZZI, Riolando, A Sé Primacial de Salvador..., p. 21. 81 FRAGOSO, Hugo, Cadernos de restauração, I, Salvador, EPSSAL, 1993, p. 11-12.

38

A conhecida atitude antiliberal de Pio IX, a partir de 1850, aumentou o abismo entre

Igreja e a Era Moderna, de um lado, e da real ameaça política aos Estados Pontifícios, de outro.

Em 1864, Pio IX publicou o Silabo, documento magisterial polêmico, que fazia uma síntese dos

erros mais comuns do laicismo que se alastrava. O Silabo criou um forte rebuliço entre os

próprios teólogos, bispos, e teóricos da modernidade. O referido documento papal, julgado por

muitos como condenação pontifícia a todas as formas de liberalismo, atingiu não somente o

liberalismo imanentista e radical, como também o liberalismo católico, despertando reações de

teólogos que adotavam uma postura de diálogo com os modernistas.

A Igreja no Brasil vivia um processo de romanização. Ocorria, assim, uma política de

hierarquização amparada nas decisões romanas, com o objetivo de formar bispos e sacerdotes

obedientes às regras vindas de Roma, distintas do povo e do modelo do catolicismo popular luso-

brasileiro. Eram duas modalidades de catolicismos. Se, por um lado, o sertão vivia um

catolicismo popular, predominantemente laical, das novenas, procissões, e sem muito “controle”

da hierarquia – que fazia aliança com o governo imperial - por outro, surge um novo projeto

pastoral para a Igreja do Brasil, que se preparava para enfrentar o liberalismo cuja característica

principal era o anticlericalismo. “É a Igreja que se fecha sobre si mesma para organizar-se e,

posteriormente, reiniciar a luta no campo político; é a época dos bispos reformadores”.82

Riolando Azzi descreveu as características desse novo modelo de Igreja entre os sertanejos,

afirmando que ele é romano, clerical, tridentino e sacramentalista, com a finalidade do controle

hierárquico sobre a vida religiosa dos fiéis. Os bispos fazem, então, uma opção por uma

europeização das Igrejas Particulares, como forma de obediência às ordens emanadas da Cúria

Romana.

A formação européia recebida por grande parte dos bispos reformadores em São Sulpício, na França, ou em Roma, e as novas congregações européias que se estabelecem no país

82 PINHEIRO, José Francisco, Dependência e marginalidade, in: HOORNAERT, Eduardo e DESRECHERS, Georgette (org.), Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 49.

39

passam a pesar fortemente na Igreja do Brasil [...] Os novos valores religiosos importados da Europa trazem todas as marcas do romanismo, ou seja, de uma declarada vinculação com a Cúria Romana.83

Três grupos de missionários se destacavam entre os sertanejos: os lazaristas franceses que,

posteriormente, assumiram a função nos seminários; os padres diocesanos que exerciam forte

influência na organização das missões, e os capuchinhos italianos, identificados fortemente com

o povo do sertão.84 Esses “novos institutos religiosos trazem novos santos, novas devoções, novas

práticas religiosas que, progressivamente, se sobrepõem à vida do catolicismo tradicional”.85

Mesmo com as iniciativas de apoio aos pobres, como construções de casas de caridade,

mutirões comunitários, sacramentalização, etc., a Igreja Católica não respondia às reais

expectativas do povo. “O sertanejo, por sua vez, é vítima de um contato fugidio, mecânico,

formal, sempre apressado, irregular e, afinal de contas, pouco orgânico por parte da Igreja oficial.

Por isso, ele cria um cristianismo próprio, alimentado pelas santas missões”.86 A migração

provocada pela crise dilacerava a estrutura familiar, criando uniões fora do casamento e outros

problemas pastorais.87 Havia um dúbio comportamento do clero. “Os vigários não correspondiam

ao ideal do caboclo: não praticavam nem a pobreza, nem o desprendimento, nem a castidade e

muitas vezes nem a caridade”.88 A chegada de um padre numa localidade “é um horror para o

pobre, rapa todo o dinheiro”, 89afirma o beato Pedro Batista. A agitação política, a crise de

valores, os problemas do clero, a separação entre a Igreja e o Estado, a implantação do projeto de

romanização aumentam ainda mais a insegurança do sertanejo, “entregue ao Deus dará”.

83 AZZI, Riolando, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular, Petrópolis: Vozes, 1977, p. 112. 84 Cf. HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil, Petrópolis: Vozes, 1990, p. 50-51. 85 AZZI, Riolando, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular..., p. 115. 86 Ibidem, p. 49. 87 Cf. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Ômega, 1977, p. 327. 88 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 317. 89 Cit. in: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O Messianismo no Brasil e no mundo..., p. 317.

40

O povo foi criando uma experiência própria, a partir da religiosidade popular, com

características especiais, alimentada pelas Santas Missões. A Igreja oficial atendia aos fiéis

ocasionalmente, ora quando o padre diocesano aparecia para as desobrigas, ora quando os

missionários chegavam para as Missões ocasionais, que se constituem num método reconhecido

pelo Concílio de Trento no século XVI, para atingir populações rurais mal assistidas pelo sistema

paroquial. Esse método foi usado “por jesuítas, carmelitas ou franciscanos do século 17 e

primeira metade do século 18, oratorianos portugueses e capuchinhos italianos, lazaristas

franceses e grupos de sacerdotes seculares do tipo Ibiapina ou Herculano”.90 As idéias de Trento

começaram a ser aplicadas no Brasil no final do século XVIII e no início do século XIX. A

romanização do catolicismo brasileiro se realizou em oposição ao sistema do Padroado, centrado

em Lisboa, a partir da segunda metade do século XIX. Nesse período, as Santas Missões criaram

dinamismos que perduram até hoje.

O cristianismo trazido pelos missionários portugueses continha misturas de conteúdos.

Junto com os sacramentos e as devoções aos santos, apareciam as grandes pregações sobre o céu,

o inferno e o purgatório. O povo abraçou esse cristianismo devocional, segundo Eduardo

Hoornaert, de caráter penitencial, sacramentalista, profundamente social e laical. Era um

cristianismo que trazia o medo, como método para conquistar adeptos. As marcas deixadas pelas

Santas Missões eram inesquecíveis para o povo pobre.91 Por onde a hierarquia eclesiástica foi

90 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil…, p. 49. 91 Eduardo Hoornaert chama a atenção para a influência dos dias de missões para o povo. Para ele, “as Santas Missões tiveram igualmente um aspecto profundamente social, não só no sentido de unir o povo que normalmente vivia tão isolado nas imensidões do sertão, mas sobretudo realizando obras de máxima importância para as comunidades interioranas, como pontes, estradas, canais de irrigação, açudes, cemitérios, igrejas, tanques, ou cacimbas. Uma obra que marca em todo canto a realização das Santas Missões é o cruzeiro erguido em mutirão na praça central da cidade. (...) Podemos dizer que as Santas Missões eram momentos de ‘administração popular’ da coisa publica e que elas desta forma contribuíram muito para criar no povo um senso comunitário e público. Isso tanto é verdade que se dizia dos missionários que eles eram os verdadeiros ‘governadores’ do povo sertanejo, e eles em conseqüência disso recebiam missões oficiais por parte de um governo que não se aventurava em penetrar no interior, por exemplo, a missão de apaziguar o povo em momentos de revoltas e rebeliões, como no caso de Canudos, onde Frei João Evangelista de Monte Marciano atuou como conciliador entre o povo de Canudos e o governo da Bahia”. Ibidem, p. 52.

41

construindo “igrejas e catedrais, conventos e mosteiros, a devoção construiu uma multiplicidade

de santuários que vão desde os santuários domésticos (os oratórios com enorme variedade de

santos) até os centros de romarias que hoje congregam milhares e milhares de devotos”.92

Sabemos que a “devoção freqüentemente é marginalizada socialmente, mas eclesialmente ela

pode apresentar documentos de veracidade insuspeita. Ela constitui um legítimo modelo

eclesial”.93 Eduardo Hoornaert fala em duas forças sociais que modelaram o modo de pensar dos

brasileiros no final do século XIX: “a força da instituição oficial (a missão) e a devoção”.94

A fé do sertanejo foi motivada por orações, benditos, procissões e novenas aos santos.

Esse catolicismo popular e devocional não era exclusividade do leigo, embora ser leigo fosse uma

característica marcante. Faziam parte dessa corrente de espiritualidade os padres Cícero de

Juazeiro, Ibiapina e outras lideranças como Pedro Batista, em Santa Brígida e o Beato Lourenço,

em Pau de Colher, que exerceram forte influência na vida religiosa e social do sertanejo, a partir

do final do século XIX, até nossos dias. O século XIX foi fértil no cultivo de conselheiros e

beatos.95 Eles participavam ativamente das Santas Missões, eram confirmados pelo povo, a partir

do envolvimento nas atividades religiosas, como responsáveis pela continuidade dos trabalhos,

após a despedida dos missionários. A realização das missões tornava-se verdadeira escola prática

de lideranças leigas que continuavam os trabalhos nas comunidades sertanejas, especialmente

aonde o padre diocesano demorava a retornar. Os momentos de mutirões, celebrações,

confissões, casamentos comunitários, bênçãos, pregações e benditos das missões funcionavam no

92 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil...,p. 67. 93 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil..., p. 67. 94 HOORNEART, Eduardo, O cristianismo moreno no Brasil..., p. 67. 95 CALAZANS, José, Quase biografia de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro, Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 1986, p. 13: “Ao beato cabia a missão de tirar rezas, contar ladainhas, pedir esmolas para as obras da Igreja. O Conselheiro ia além disso, porque, mais bem preparado sobre os temas religiosos, pregava, dava conselhos”.

42

imaginário religioso do sertanejo como uma avalanche de conteúdos, no processo da

continuidade dos trabalhos, agora coordenados pelas próprias lideranças leigas.

Antônio Conselheiro, vivendo nesse contexto, fez parte dessa experiência popular do

catolicismo sertanejo que, mesmo com a chegada da romanização, continua existindo até hoje. Os

grandes centros de romarias no Nordeste, como as romarias de Canudos, da Juventude em

Adustina, Patamuté, Bom Jesus da Lapa e Senhor do Bom Fim, na Bahia; Nossa Senhora Divina

Pastora, em Sergipe; Juazeiro e Canindé, no Ceará; Zumbi dos Palmares, em Alagoas e outros

pequenos centros de romarias alimentam essa religiosidade.96

1.7- De Antônio Vicente Mendes Maciel a Antônio Conselheiro: história de um

Beato Conselheiro

Inicialmente, é preciso considerar a figura do beato e da beata no sertão nordestino do

século XIX. Eduardo Hoornaert define o beato como um “Tipo de cristão engajado na ‘via

peregrina’ ou no cristianismo itinerante. É também chamado ‘devoto’ ou ‘romeiro’. Foi

marginalizado pela romanização”.97 Esta estabeleceu as grandes linhas postas em prática pelos

bispos reformadores, de formação européia: ela é romana, clerical, tridentina e sacramentalista.

Tudo devia ser enquadrado no “institucional” e dentro das normas do Direito Canônico. Padre

Ibiapina, por exemplo, teve que orientar a vida religiosa de suas beatas, à revelia das orientações

vindas de Roma.98 Hugo Fragoso fez um paralelo entre as irmãs de Caridade do Padre Ibiapina e

as irmãs trazidas pelos bispos reformadores. Aquelas, além de serem nativas, tinham o pé no chão

do próprio Nordeste; estas, porém, estavam ligadas às instituições religiosas, tinham a cabeça

96 Um excelente estudo sobre o discernimento da fé foi feito por Pedro Rubens. Cf. BUBENS, Pedro, Discerner la foi dans des contextes religieux ambigus: enjeus d’ une théologie du croire, Paris: Cerf, 2004. 97 HOORNAERT, Eduardo, O Cristianismo Moreno do Brasil..., p. 170. 98 Cf. FRAGOSO, Hugo, As beatas do Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa para os sertões do Nordeste, in: HOORNAERT, Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org.), O Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres..., p. 85-106.

43

voltada para a Europa e faziam parte do projeto de romanização.99 As Beatas do Padre Ibiapina

“teriam mais o cheiro do sertão sem ranços de academismos; teriam mais o sabor dos interiores

nordestinos sem gosto de frutas estrangeiras”.100 As “Irmãs de Caridade podem ter sido

excogitadas como uma tradução sertaneja das SOEURS DE CHARITÉ DE SAINT VINCENT

DE PAUL”.101 Nessa época, as beneméritas Filhas de São Vicente estavam chegando da França,

solicitadas zelosamente pelos bispos reformadores, “para desenvolverem suas atividades nas

capitanias e grandes centros urbanos. Ao invés disso, Padre Ibiapina plantou suas beatas lá no

mato, onde vivia todo um povo desamparado”.102

Antônio Vicente conhecia a mística dos Beatos e Beatas do Nordeste. Primeiro, ele é um

Beato, seguidor dos missionários e puxador de rezas; quando recebe o título de Conselheiro é

com uma missão específica. “Parece que se sente obrigado a pregar. Por nenhum preço larga suas

prédicas”.103 Conselheiro é aquele que fala, que dá conselhos. Um penitente ou Beato não prega.

Nos três anos, de 1871 a 1874, não se têm notícias seguras sobre o paradeiro de Antônio

Vicente. Foi esse o período em que ele rompeu com os laços familiares e sociais, abandonou as

necessidades materiais e fez uma intensa experiência religiosa,104 como um verdadeiro peregrino.

Ouviu o chamado do Senhor, à semelhança de João Batista, pregador no deserto da Judéia:

“Convertei-vos, porque o Reino do Céu está próximo” (Mt 3,2) e do Padre Ibiapina. Aliás, o

distanciamento estratégico da sociedade e da família, foi uma prática implantada pelo próprio

Cristo e inspirou diversas práticas ao longo da história da Igreja: “Quem tiver a própria vida

99 Cf. FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 94-101. 100 FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 94. 101 FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 95-96. 102 FRAGOSO, Hugo, As Beatas de Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa nos sertões do Nordeste..., p. 96. 103 OTTEN, Alexandre, Só Deus é Grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 145. 104 Também, antes ser ordenado sacerdote, o Mestre Ibiapina passou um tempo retirado, preparando-se para uma vida de intensa missão. Quanto a Jesus, o Espírito o conduziu ao deserto para ser tentado pelo diabo. Foi durante a experiência do deserto, que Jesus superou as tentações. Cf. Mt 4, 1-11; Mc 2, 12-13; Lc 4,1-13.

44

assegurada perdê-la-á e quem perder a vida por minha causa vai achá-la” (Mt, 10,39) ou, ainda:

“E todo aquele que houver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do

meu Nome, receberá muito mais e, em herança, a vida eterna” (Mt 19,29).105

A essa altura, a vida itinerante já tinha se consolidado. Durante suas andanças pelo Sul do

Ceará, em Paus Brancos, em direção do Crato, “fere com ímpeto de alucinado, à noite, um

parente, que o hospeda. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima,

reconhecendo a não-culpabilidade do agressor”.106 Euclides da Cunha fala que Antônio V. Maciel

desapareceu por um período de dez anos, de todo esquecido107, sem que houvesse notícias

confirmadas. Manoel Benício fala em seis anos sem notícias de Maciel. Em 1865, ele esteve na

pequena cidade cearense de Campo Grande e, em seguida, visitou a ex-mulher, a quem

recomendou, pela ultima vez, o filho. “É provável que, engrossando o número dos peregrinos que

acautelavam os missionários, ele atravesse os sertões do Norte até a Bahia, nesta data do seu

desaparecimento do Ceará, 1867 a 1868”.108 Em 1873, foi encontrado em Itapicuru, Estado da

Bahia. Para Euclides da Cunha, Antônio Vicente percorreu os sertões de Pernambuco e apareceu

na cidade sergipana de Itabaiana em 1874. De fato, o jornal semanário O Rabudo, da cidade

sergipana de Estância, noticiou sua passagem por Sergipe, na edição de 22 de novembro de 1874,

qualificando-o de Antônio dos Mares. Euclides da Cunha traça as características do andarilho

Antônio, durante a passagem por Sergipe. Era um desconhecido, suspeito e trajes esquisitos:

camisolão azul, sem cintura, chapéu com abas largas e derrubadas, e sandálias. Levava nas costas

105 Ao longo da história do cristianismo, desde Jesus, passando pela Europa Medieval, quando “alguém decidia tornar-se um pregador itinerante, ortodoxo ou dissidente, muitas vezes começava por afastar-se para uma floresta, vivendo durante algum tempo como eremita. Durante esse período de retiro ascético, adquiria o poder espiritual para a sua missão, podendo, ainda adquirir também a fama de santo e atrair os seus primeiros seguidores”. COHN, Norman, Na senda do milênio, Lisboa: Presença, 1981, p. 35. Isso aconteceu com Antônio Vicente. Possivelmente, Padre Ibiapina tenha sido exemplo. 106 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 114. 107 Ibidem, p. 214. 108 BENÍCIO, Manoel, O rei dos jagunços: crônicas históricas e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos..., p. 22.

45

um surrão de couro, com papel, pena e tinta, dois livros intitulados a Missão Abreviada e as

Horas Marianas.109

Ataliba Nogueira defende a tese segundo a qual, a partir do fechamento do comércio por

falta de vocação e da fuga da mulher, que fugiu com João da Mata, furriel da força pública da

província, Antônio mudou inteiramente a vida e sentiu-se livre para realizar seu sonho de

missionar junto aos sertanejos desvalidos. É a partir desses episódios que ele entrou numa crise

aparentemente profunda. Alexandre Otten entende que a crise pessoal “se torna, tudo indica, seio

para uma vida nova. Começaria uma nova fase na vida de Antônio. Ele perambula pelos sertões

como peregrino penitente”.110 Ataliba Nogueira divide a história de Antônio Vicente em duas

etapas bastante distintas.111 A primeira, foi um período de profunda instabilidade, migração,

mudança de empregos e atividades em locais diferentes. Desde a liquidação da casa comercial,

ascendeu a profissões de maior status: escrivão, solicitador e advogado provisionado. Há os que

supõem que ele procurava a mulher e seu sedutor para uma possível vingança, por terem

maculado a honra de sua família. “Não há outra explicação para a vida andeja. Sua presença é

notada em muitos pontos do Ceará. Tudo, porém, em vão. Não os encontrou nunca”.112 É uma

hipótese que não tem consistência. Talvez a hipótese mais provável seja a crise econômica que

produzia uma leva de migrantes em busca de sobrevivência. Antônio fazia parte dessa leva. Na

segunda etapa de sua vida, após comprovação de sua competência e criatividade, ele passou a

construir cemitérios, capelas e igrejas, com muita eficiência. Nessa fase, o Andarilho passa pelos

sertões baianos de Curaçá, estacionando-se em Chorrochó (1877), cuja movimentada feira

juntava a maioria dos habitantes dos lugarejos do Médio São Francisco. O autor de Os sertões

109 Cf. CUNHA, Euclides da, Os sertões..., p. 217. 110 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 144. 111 Cf. NOGURIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 5-6. 112 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 5.

46

adjetivava as Igrejas, construídas por Antônio Vicente, de “Capela Elegante”,113 como é o caso da

Igreja de Chorrochó, que existe até hoje.

O Jornal de Notícia114 da capital baiana publicou um artigo de Durval Vieira Aguiar, de

26/6/1893, no qual constatava a forte liderança do Conselheiro, seguindo “sertão adentro”

acompanhado por um enorme séquito, gente inofensiva que só se assanhava em defesa do

Conselheiro. Ele atraía para si as mesmas honras, as mesmas práticas e o mesmo apoio dos

missionários. Ele “aconselha o casamento, os batizados, as orações e os bons costumes, se bem

que em linguagem menos correta”.115 O professor José Calazans reconhece que nenhuma outra

pessoa, diante dos volumosos problemas dos sertanejos, tenha prestado maiores serviços aos

pobres como Antônio Conselheiro.116 Em 1893, um jornal de Salvador noticiou que um certo

Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido por Antônio Conselheiro, acompanhado de um

numerosíssimo séquito, “faz pregações públicas sobre religião, a modo das missões feitas por

capuchinhos ou lazaristas nas paróquias rurais”.117 Por essa altura, sua popularidade era

incontestável. Alguns serviços que o Estado e a Igreja não conseguiam realizar, Antônio

Conselheiro os fazia com o povo em mutirões. É claro que isso criaria conflitos com a Igreja

instituição e o ineficiente Estado, como veremos na seqüência deste trabalho.

113 Cf. CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 222. O Peregrino, “De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até o litoral, em Villa do Conde (2887). Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinha, Iambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe e outros, viram-no chegar acompanhado da frândula de fiéis. Em quase todas deixava um traço de passagem: aqui um cemitério arruinado, além uma igreja renovada; adiante uma capela que erguia, elegante sempre”. Ibidem, p. 222-223. 114 Um bom documentário sobre o papel da imprensa na cobertura da Guerra de Canudos, cf. GALVÃO, Walnice Nogueira, No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais, 4ª expedição, São Paulo: Ática, 1974. 115 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 150. 116 CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor de Igrejas e cemitérios, in: Revista Brasileira de Cultura, 26 (1973), p. 71. 117 Jornal de Notícias, Salvador, 16/6/1893.

47

Conclusão

O primeiro acesso à Guerra de Canudos, após mais de cem anos do final do

acontecimento, continua sendo o clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha. Antes de escrever

Os Sertões, Euclides da Cunha tratou, pela primeira vez, da Guerra de Canudos no artigo A nossa

Vendéia, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 24 de março de 1897, motivado pelo

revés sofrido pela Expedição Moreira Cezar, no enfrentamento com os seguidores de Antônio

Conselheiro, como se verá com mais detalhe na segunda parte desta pesquisa. Porém, como se

pode perceber neste primeiro capítulo deste trabalho, há uma série de novos autores que ampliam

a visão de Os Sertões. Criticam-no ele e vão muito além de sua visão marcada pela filosofia

positivista e pelos condicionamentos próprios de um jornalista que acompanhou as tropas

oficiais. Isso, evidentemente, não desmerece o papel fundamental de Euclides da Cunha e a

qualidade literária de Os Sertões, mas redimensiona essa grande obra da literatura brasileira.

Pode-se perceber, a partir da releitura histórica da Guerra de Canudos,118 dados que não

são encontrados no referido autor como, por exemplo, a data correta do nascimento de Antônio

Conselheiro, a superação de certos preconceitos no que diz respeito ao povo nordestino, tratado

de raça inferior ou sub-raça, etc.

Mesmo sem ter oportunidade de passar por um maior aprofundamento formal nos estudos,

Antônio Conselheiro teve uma formação consistente, capaz de assumir com clareza uma opção de

classe, ameaçar a República e questionar a prática dos cristãos, especialmente da alta hierarquia

eclesiástica. Canudos não foi uma Igreja paralela, nem um movimento de revoltosos no seio da

Igreja Católica, mas uma voz profética, inspirada pelo próprio Espírito de Deus, capaz de formar

uma Comunidade de irmãos, cuja orientação maior era a Palavra de Deus (a Bíblia Sagrada) e os

118 Uma releitura da Guerra de Canudos, foi feita por Vargas Llosa, cf. LLOSA, Mario Vargas, A Guerra do fim do mundo: a saga de Antônio Conselheiro na maior aventura literária do nosso tempo, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

48

ensinamentos da Igreja. Antônio Conselheiro não era contra a Igreja, mas reagia a certas práticas

de muitas lideranças eclesiásticas, que se beneficiavam do padroado, distanciando-se cada vez

mais do verdadeiro sentido da fé cristã.

Com a crise econômica, política e social do final do século XIX, Antônio Conselheiro

ocupou um espaço significativo, junto às classes menos favorecidas dos sertões nordestinos. Ele

experimentou na vida familiar a luta pela terra, que causou perdas significativas no seio de sua

família. Além disso, sua conversão à missão religiosa foi uma arma poderosa, tanto para suas

convicções pessoais, quanto para sua aceitação no meio dos pobres. Nesse sentido, ter participado

das missões com o Padre Ibiapina, assegurou-lhe a facilidade necessária para entender as massas,

trabalhar com elas e responder às suas reais aspirações. Para o povo, não havia alternativas nem

no campo político e econômico e, tampouco, na dimensão religiosa. A Igreja oficial estava

distante dos reais interesses das classes menos favorecidas, tentando resolver a crise do padroado,

como forma de se preparar para enfrentar sua independência financeira e política. O movimento

de Canudos foi a via possível, para atingir tal fim num momento de crise social. A romanização

se contrapôs ao Catolicismo Popular, causando desdobramentos, tanto para a classe política,

quanto para a Igreja institucional, o que aprofundaremos no próximo capítulo.

49

CAPÍTULO II

UNIVERSO RELIGIOSO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO

Este capítulo é consagrado a uma apresentação da natureza concernente ao universo religioso do

principal fundador da comunidade de Canudos, Antônio Conselheiro. A descrição do universo

religioso da comunidade de Belo Monte1 será feita a partir de fontes deixadas pelo próprio

Conselheiro, com o auxílio de elementos da própria historiografia sobre o fato Canudos,

especialmente de autores que optaram pela revisão histórica do referido acontecimento. Não se

esgotam todas as questões apresentadas para a compreensão da Comunidade belo-montense:2

surgimento, organização, destruição, a função das elites rurais, políticas, religiosas e o papel do

Estado brasileiro no episódio que mais preocupou o mundo político e a própria Igreja Católica,

no alvorecer da República, início da década de 1890.

Antônio Conselheiro não chegou a Canudos por acaso. A organização de sua comunidade

foi fruto do planejamento e efetivação de um projeto religioso, com dimensão claramente

política. Há estreita relação das dimensões política e religiosa no projeto do Peregrino. Muitos

estudiosos afirmam que o religioso aparece em Canudos como passo necessário para chegar a

fins políticos e econômicos. O que revelou a prática do Peregrino? Ele foi um agente político ou

procurava implantar o reino de Deus na terra? A nossa proposta parte da experiência de Canudos.

A motivação foi de ordem meramente político-social ou de natureza religiosa? Paira uma dúvida

1 Além de Canudos, a comunidade que abrigou o povo peregrino, liderado por Antônio Conselheiro, também foi batizada por Belo Monte. No Estado de Alagoas há uma pequena cidade chamada Belo Monte. Porém, provavelmente Antônio Conselheiro tenha se inspirado no mundo bíblico, na Jerusalém do Alto, ou na Terra Prometida. 2 Euclides da Cunha batizou a vila conselheirista como a “Jerusalém de Taipa”.

que não foi totalmente esclarecida ao longo dos estudos históricos, antropológicos e teológicos.

Procuraremos analisar essa questão, ao longo deste segundo capítulo.

2.1- As fontes do projeto de Antônio Conselheiro

Sempre houve controvérsias entre os estudiosos de Canudos quanto ao caráter do seu

movimento. Para uns, o movimento de Canudos foi exclusivamente político: Antônio

Conselheiro teria como objetivo derrubar a República. O aspecto religioso seria apenas uma

apropriação do sagrado com a finalidade de fortalecer o projeto político-transformador de

Antônio Conselheiro e sua gente, no sertão brasileiro. Para outros, o discurso teológico tem

incidência política, mas a ciência teológica tem seu objeto próprio de pesquisa, distinto da ciência

política. O discurso teológico tem impacto político transformador. A revelação de Deus é

histórica e é recebida pelo homem, num determinado contexto histórico. O Deus cristão escuta os

clamores de seu povo e vem libertá-lo (cf. Ex 3,7-9).

Não é tão simples fazer uma distinção entre os interesses políticos e religiosos, mesmo

sabendo, de antemão, que são coisas distintas, e com implicações às vezes mútuas. Reduzir o

campo religioso-teológico ao sociopolítico, provoca uma espécie de confusão semântica. Reduzir

atrapalha a compreensão da relação entre o religioso e o sociopolítico, suas mútuas implicações e

as devidas especificidades. Faz-se necessário superar os preconceitos dicotômicos, os enfoques

reducionistas, a interpretação puramente positivista, segundo a qual o conhecimento teológico é

um estágio pré-filosófico, o filosófico, pré-científico e o científico, o estágio mais avançado e

definitivo da vida humana e que, portanto, os conhecimentos teológicos e filosóficos devem ser

superados, para se estabelecer a era da ciência positiva. A interpretação de Canudos recebeu

influência dessa visão cientificista.

51

Desde o início da teologia da esperança de J. Moltmann (1964),3 passando pela teologia

política de J. Baptist Metz (1928)4 e a teologia da libertação de G. Gutiérrez (1968-72?)5, tanto no

âmbito da produção teológica católica quanto na da protestante, a reviravolta política da teologia

vem procurando um diálogo com as várias ciências, especialmente políticas e sociais. Essa

possibilidade nasce nos encontros do jovem teólogo católico J. B. Metz, com seu mestre Karl

Rahner. A partir daí, Metz usou a expressão “teologia política”, com a elaboração de um novo

projeto teológico, publicado no livro Sobre a teologia do mundo, em 1968. Por essa altura, o

pensamento Europeu já havia superado o dogmatismo positivista. Entretanto, foi a teologia

latino-americana da libertação que melhor se serviu das ciências sociais e políticas como

instrumentais teóricos para uma melhor compreensão das realidades históricas. Isso nunca

significou fusão semântica. Toda reflexão teológica, conservadora ou progressista, tem dimensão

sociopolítica de mudança ou de preservação do “status quo”. Para ser coerente com o Deus dos

cristãos, a reflexão teológica leva o cristão à transformação de sua vida pessoal e social. A

religião tem um papel importante e, em alguns casos, preponderante na transformação social.

Os historiadores e os sociólogos de filiação marxista, ao adotarem a revisão histórica,

afirmam que Antônio Conselheiro fundou uma comunidade socialista e sua inspiração foi

predominantemente marxista. Eles não encontram documentação histórica para sustentar essa

tese. Mesmo reconhecendo que “Antônio Conselheiro imaginou a criação de uma comunidade

3 Cf. MOLTMANN, Jürgen, Teologia de la esperanza, Salamanca: Sígueme, 1969 e MOLTMANN, Jürgem, Il Dio crocifisso: la Croce di Cristo, fundamento e critica della teologia cristiana, Brescia: Queriniana, 1973. 4 São duas obras clássicas de Metz, sobre a teologia política: METZ, Johann Baptista, Sulla teologia del mundo, Brescia: Queriniana, 1969 e La “Teologia Política” in discussione, in: Debattito sulla “teologia política”, Brescia: Queriniana, 1971, p. 231-276; METZ, Johann Baptista, Sulla teologia del mundo, Brescia: Queriniana, 1969. 5 Cf. GUTIERRZ, Gustavo, Teologia della liberazione: perspectivas, Brescia: Queriniana, 1971. Esta obra apresenta o conteúdo programático para uma teologia propriamente latino-americana da libertação. G. Gutiérrez formula com clareza seu projeto como um novo modo de fazer teologia e não como um tema a mais. Segundo J. B. Libanio, “A proposta teológica de Gutiérrez fundamenta-se num trípode: a intenção de valorizar a teologia como reflexão crítica sobre a praxes; o papel da coletividade dos pobres e fiéis como objeto e destinatário original na história, na Igreja e na teologia; e a articulação entre libertação histórica e salvação divina”. LIBANIO, João Batista, Gustavo Gutiérrez, São Paulo: Loyola, 2004, p. 13.

52

em que prevalecesse a igualdade cristã dos primeiros séculos da nossa era”,6 Edmundo Muniz

afirma ser Antônio Conselheiro “um socialista utópico, que tentou organizar uma comunidade

igualitária. Há uma profunda semelhança entre as suas idéias e as idéias de Thomas Münzer tais

como Engels as apresenta”.7 E vai mais além: “Ninguém, realmente pode duvidar do socialismo

de Antônio Conselheiro que foi reconhecido por muitos de seus contemporâneos. [...] Apesar de

se apegar aos Evangelhos, o movimento que desencadeou no interior da Bahia teve mais um

caráter social do que religioso”.8 Para justificar sua tese, atribui a Antônio Conselheiro o uso da

Utopia de Tomás More [Thomas Morus]9 pois na experiência de Canudos, existiu “a fusão das

idéias que promoveram, no campo, os levantes igualitários dos séculos XVI, XVII e XVIII com

as utopias do renascimento e do século XIX”. 10 Quando Edmundo Moniz afirma: “Apesar de se

apegar ao Evangelho”, o movimento de Canudos “teve um caráter mais social do que religioso”,

ele não fundamenta sua afirmação. Mais na frente, até admite, falando sobre o Conselheiro: “Não

tinha nem tivera nenhuma ligação política com os monarquistas. Defendera Canudos sem seu

auxílio, apenas com seus próprios recursos”.11 Ao contrário, a literatura usada por Antônio

Conselheiro e a prática de vida da Comunidade do Belo Monte12 não confirmam essa versão. A

6 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 30. 7 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 264. “Sua doutrina política procede diretamente do seu pensamento religioso revolucionário e adiantava-se à situação social e política de sua época, da mesma forma que sua teologia também ia além das idéias e conceitos existentes... Em seu programa, o resumo das reivindicações plebéias aparece menos importante do que a antecipação genial das condições de emancipação do elemento proletário que acabava de aparecer entre os plebeus. Tal programa exigia o estabelecimento imediato do reino de Deus, da era milenária de felicidade tantas vezes anunciada pela volta da Igreja às suas origens, e pela supressão de todas as instituições que se achassem em contradição com este cristianismo que se dizia primitivo e que, em realidade, era sumamente moderno. Segundo Münzer, porém, este reino de Deus não significava outra coisa senão uma sociedade sem diferença de classe, sem propriedade e sem poder estatal independente e alheio aos seus próprios membros. Todos os poderes existentes que não se conformassem com a revolução seriam destruídos. Tornavam-se comuns os trabalhos e os bens, estabelecendo-se a igualdade completa”. Ibidem, p. 264-265. 8 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos, p. 265. 9 Cf. MORE, Thomas, A Utopia, São Paulo: Nova Cultural, 2004. 10 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 30. 11 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 255. 12 A comunidade, organizada por Antônio Conselheiro, recebeu diversas designações ao longo da vida: Canudos, a Comunidade de Canudos, a Comunidade do Belo Monte, a Comunidade do Belo Monte de Canudos, a Comunidade do Bom Jesus, a Comunidade de Antônio Conselheiro, a Comunidade igualitária de Canudos, a Comunidade solidária de Canudos, etc.

53

tese fundamental de Alexandre Otten inverte a afirmação de Edmundo Moniz. A vida da

Comunidade de Canudos gravita em função da religião.

A vida apostólica será o berço da nova comunidade [...] A entrada no arraial era ligada à conversão. Não bastava o batismo cristão. Para pertencer aos fiéis do Bom Jesus, ao povo do Conselheiro, era necessário converter e emendar-se, aderir e professar a ‘verdadeira Religião’ [...] Devem seguir minuciosamente a lei de Deus [...] A conversão e a vida nova exprimem-se também no apelo do beato de viver uma vida santa [...] A religião predominava em tempos de paz [...] regulava a vida social e econômica. Com esse regime a comunidade de Belo Monte se situava fora do espaço do domínio do Estado, do coronel e da Igreja oficial.13

Marco Villa também sai em defesa do caráter predominantemente religioso do

movimento nordestino, ao afirmar: Edmundo Moniz, “seguindo a tradição do marxismo

brasileiro, desconsiderou a influência religiosa como se a religião fosse somente um invólucro

que encobrisse as razões de ordem material. Assim, a religião não passa de uma interpretação

desfocada da realidade”.14 Moniz imputou “a Antônio Conselheiro aquilo que ele nunca foi e

tudo indica que nem pretendeu ser. Sua insistência em tentar provar que a leitura de A utopia de

Thomas Morus tenha servido de inspiração para fundar Belo Monte é um grande equívoco”.15

Uma análise mais cuidadosa da citação de Thomas Morus, presente nos manuscritos de Antônio

Conselheiro, indica que ela se deu num contexto exclusivamente religioso, e não serve como

fonte para afirmar o uso ou manuseio de A Utopia, no projeto político de Canudos. Comentando

os chamados Textos extraídos das escrituras, Antônio Conselheiro se refere a Thomas Morus

como vítima dos protestantes, na Inglaterra, e não no contexto político. O professor Calazans não

concorda com a tese da utilização do referido texto de Thomas Morus. Não “há nada que indique

haver o Conselheiro lido a obra de More. A nosso ver, essa é mais uma dedução infundada para

tentar mostrar que Canudos foi planejada como sociedade igualitária”.16

13 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 345-347. 14 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237. 15 VILLAS, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237. 16CALAZANS, José, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos do episódio de Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS - BLOCH, Didier (org.) Canudos, 100 anos de produção:

54

É fato. O povo sertanejo não precisou importar do além-mar modelo de transformação

social. A bem da verdade, não se tem conhecimento da circulação dessas idéias nos sertões

pobres e desprovidos de condições econômicas e educacionais. “A razão do surgimento, da

existência e da resistência de Canudos deve ser encontrada no mundo sertanejo, nas relações

sociais, na vivência religiosa e na luta cotidiana pela sobrevivência. Não cabe incluir Canudos na

linha evolutiva seqüencial das revoluções ocidentais”.17 Aliás, não se pode desconhecer a

dimensão solidária da cultura sertaneja, as práticas de mutirões, esmolas, ajudas entre os pobres,

o sistema de compadrio, e outras formas de ajuda mútua em tempo de necessidades. Dessa

espécie de “comunitarismo, produto da tradição sertaneja, dependia a vida de milhares de

desvalidos em uma área pobre em recursos naturais”,18 e não da transladação de experiências

extemporâneas ao povo sertanejo.

Seguindo a mesma linha de interpretação marxista de Edmundo Muniz, Rui Facó defende

semelhante tese na obra clássica Cangaceiros e Fanáticos, afirmando: “A epopéia de Canudos

ficará em nossa história como um patrimônio das massas pobres do campo e uma glória do

movimento revolucionário pela libertação”.19 E acrescenta: “os fenômenos do messianismo ou

misticismo, que se convencionou chamar de fanatismo, disseminados pelos sertões em nosso

passado ainda recente, têm um fundo perfeitamente material e servem apenas de cobertura a esse

fundo. É uma exteriorização”.20 Marco Villa não comunga com os historiadores e sociólogos de

filiação marxista. Eles procuraram interpretar o movimento de Canudos sob a ótica marxista.

Sendo assim, “a religião nunca passou de uma fachada que encobria as razões de ordem material:

era a falsa consciência. Curiosamente, assim como o Estado brasileiro nunca soube reconhecer e

vida cotidiana e economia dos tempos do Conselheiro até os dia atuais, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997, p. 44. 17 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237-238. 18 VILLA, Marco Antônio, Canudos, o povo da terra..., p. 237. 19 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 122. 20 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 9.

55

conviver com a diferença, esses pesquisadores agiram da mesma forma”.21 Parece grave não

reconhecer a originalidade no movimento de Canudos. Os marxistas não admitem algo próprio e

capacidade revolucionária, a partir das próprias condições do homem sertanejo, como se a

referida experiência tivesse sido uma cópia autenticada de outros modelos revolucionários

antecedentes. O “entendimento de Canudos por aquilo que realmente foi era tão complexo e

exigia tamanha invasão analítica que optaram por ignorar estas especificidades, preferindo repetir

a cantilena de que a religião não passa de uma ideologia típica de movimentos pré-políticos”,22

desconsiderando-se a força histórica do povo da Bíblia, das comunidades primitivas e do próprio

movimento em questão.

Interpretar o movimento de Canudos como uma experiência de lastro predominantemente

materialista e de inspiração marxista, desmerece o potencial revolucionário do estilo de vida do

povo sertanejo, da influência da Bíblia Sagrada na vida da comunidade de Belo Monte,

especialmente as fontes utilizadas por Antônio Conselheiro, tais como os livros do Êxodo, os

quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos e outras obras de autores religiosos, que serão

analisadas a seguir.23

Não parece sustentável a tese segundo a qual o líder maior de Canudos tenha usado outras

obras de cunho mais político que religioso. Levando-se em consideração o estilo de vida interno

da comunidade belo-montense, não se pode afirmar que Canudos foi uma experiência coletivista.

“Não é plausível afirmar que Canudos era uma comunidade socialista. [...] havia propriedade

privada, a acumulação privada de parte dos lucros e desigualdades sociais”.24 José Calazans

prefere afirmar: “Se Canudos não foi uma sociedade igualitária, ele foi, sem dúvidas, uma

21 VILLA, Marco Antônio, Canudos: a luta pela terra..., p. 238-239. 22 VILLA, Marco Antônio, Canudos: a luta pela terra, p. 239. 23 A importância do uso da Bíblia e de outras publicações no projeto religioso de Antônio Conselheiro, serão objeto de análise ainda neste capítulo. 24 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 237.

56

sociedade solidária – não devemos confundir solidariedade com socialismo”.25 Calazans afirma

haver

diversos documentos, escritos e orais relatando que Antônio Conselheiro recebia bens e dinheiro de pessoas abastadas e os redistribuía. Em Canudos, o mutirão era prática comum. Também, podia-se plantar na terra dos outros e os necessitados eram atendidos pelas esmolas, feitas muitas vezes em gêneros (feijão, farinha, etc.)”26

Canudos, então, não foi uma comunidade socialista nos moldes marxistas, mas uma

experiência solidária, com características sertanejas e inspiração cristã. O sertanejo sempre portou

marcas de solidariedade e ajuda mútua. No Nordeste, adotar criança pobre ou de pai e mãe

desconhecidos, com o argumento de “onde comem nove, comem dez”, mutirões entre os pobres

para construção de pequenas casas, capinar roças, comprar ou fazer remédios das ervas para

pessoas carentes, etc. são práticas corriqueiras do povo ainda hoje. Essa forma de vida na

comunidade do Conselheiro pode encontrar explicações na própria experiência do povo e não em

filosofias, muito mais presentes na mente de intelectuais, do que no cotidiano do povo pobre.

Isso, no entanto, não inviabiliza a identificação de elementos do marxismo ortodoxo na

comunidade de Antônio Conselheiro. Ao narrar a vida interna de Canudos, Maria Isaura de

Queiroz sustenta a tese segundo a qual toda ela ostentava características religiosas. Em Canudos

havia um conjunto de regras bem definidas, apoiadas em um substrato de crenças religiosas.

Quanto a Antônio Conselheiro, “vemo-lo ocupado em resolver também questões práticas da vida

diária, solucionando problemas socioeconômicos e políticos, além de desenvolver seu papel de

chefe religioso e de enviado divino”.27 Para Maria Isaura de Queiroz, o “destino terrestre” era

levado muito a sério pelo Conselheiro, que instituíra uma série de normas destinadas a

regulamentá-lo, a fim de que realmente em Canudos se realizasse o Paraíso Terrestre”.28 E

25 CALAZANS, José, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos..., p. 44-45. 26 CALAZANS, José, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos..., p. 44. 27 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p. 236. 28 QURIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 236.

57

acrescenta, ainda: “Tais instituições ou são copiadas da sociedade rústica circundante, ou surgem

devido a problemas novos que a predominância grande da religião, a vontade do líder e a

aglomeração de povo em quantidade, criavam”.29 Prevaleciam características religiosas quanto às

formas de organização, encontros comunitários, celebrações e procissões. É o que demonstra nas

conclusões do sério estudo de Otten: “A partir da biografia de Antônio Vicente Mendes Maciel,

ressalta-se o fato de que ele foi, não obstante o choque das interpretações proferidas por amigos e

inimigos, uma personalidade marcada pela religião”,30 e não pela política, ainda que esta tenha

sido uma dimensão fundamental do seu projeto de inspiração religiosa. Os textos usados por

Conselheiro, em quase sua totalidade, foram religiosos. Isso é possível provar a partir da análise

de documentos usados. Alexandre Otten confirmou a tese da sociologia religiosa, segundo a qual

o berço dos movimentos religiosos de protesto social seria o catolicismo rústico. Por isso, a

motivação de Antônio Conselheiro foi impulsionada pela sua espiritualidade.31 A Bíblia Sagrada,

autores da Patrística, citações de vários santos, e de outros pensadores cristãos demonstram que o

Conselheiro esteve mais familiarizado com a literatura religiosa que com autores do campo

político ou sociológico.

2.1.1- Alcance e limites da interpretação marxista

Reconhece-se, inicialmente, a interpretação marxista da história como um legado da

sociologia contemporânea. Não se poderia fazer uma análise sociológica profunda das realidades

históricas, nem entender a existência e os reais interesses das classes sociais nas relações do

trabalho sem se usar o instrumental teórico da análise marxista. Com a teoria da mais-valia, Marx

29 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, O messianismo no Brasil e no mundo..., p. 236-237. 30 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 201. 31 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro...p. 202. No capítulo quarto dessa obra, Otten confirma, sociologicamente, a tese segundo a qual Antônio Conselheiro teve motivações religiosas. Cf. p. 203-355.

58

percebeu a causa da exploração capitalista, mostrou as contradições internas do capitalismo e a

força revolucionária do proletariado. Mediante as “teorias do valor do trabalho e da mais-valia,

Marx interpreta o capitalismo como um sistema de exploração do trabalhador pelo capitalista, o

qual guarda para si a mais-valia criada pelo primeiro”.32

A sociologia marxista, como instrumental teórico, contribuiu para a compreensão do

conflito dos protagonistas da República com os movimentos de resistência em todo o Nordeste,

especialmente o de Canudos. Ela identificou, na prática da comunidade de Canudos, elementos

do comunismo primitivo, a exemplo de Rui Facó, ao assumir o testemunho narrado por Euclides.

A “apropriação pessoal de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das

pastagens, dos rebanhos e dos produtos das culturas, cujos donos recebiam exíguas cota-parte

revertendo o resto para a companhia”.33 São visíveis os elementos da prática coletivista dos bens,

conforme apontam com tanta propriedade Rui Facó e Edmundo Moniz, ao interpretarem Canudos

no viés marxista. Antônio Conselheiro, com certeza, não conheceu a teoria do marxismo

ortodoxo, porém sua prática revela sintonia com as idéias do autor do “manifesto comunista”.

Rui Facó não acreditava que o potencial revolucionário do povo de Canudos fosse capaz

sequer de identificar o inimigo da luta, quanto mais de mudar o sistema semifeudal baseado nas

grandes propriedades rurais, causa principal de todo o atraso no campo:

Naquele atraso medieval, a reação da classe potencialmente revolucionária – os semi-servos da gleba – é de nível correspondente das forças produtivas: uma reação primária em que o inimigo de classe não é percebido claramente, em que as desgraças parecem cair do céu, como castigos, e é mesmo necessário implorar as bênçãos do céu, em que o individualismo campesino prevalece e a solidariedade grupal é bem limitada.34

José de Souza Martins rejeita o evolucionismo mecânico apresentado por interpretação

que leva em conta uma força de “fora” ou de “cima” para tornar o movimento camponês

32 Marxismo, In: BRUGGER, Walter, Dicionário de filosofia, São Paulo: EPU, 1977, p. 258. 33 Cit. in: FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 97. 34 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 43.

59

legitimamente político, como se houvesse algo pré-determinado, em uma seqüência evolutiva e

determinista. O “messianismo, como aconteceu em Canudos e no Contestado; banditismo social,

como aconteceu no Nordeste com Antônio Silvino e Lampião; associativismo e sindicalismo,

como aconteceu com as Ligas Camponesas e com os sindicatos dos trabalhadores rurais”.35 A

religião seria suplantada pela política. Para J. de Souza Martins, é “significativo que o movimento

messiânico e o movimento sindical se entrecruzem com freqüência, sem causar nos seus

participantes o mesmo choque que tal cruzamento causa nos guardiães da pureza política das

lutas populares”.36

Mais problemática ainda para os marxistas ortodoxos é a questão da religião. Quando Rui

Facó e Edmundo Moniz escreveram sobre Canudos, a religião continuava sendo “ópio do povo”,

como “parte da superestrutura da realidade econômica” ou, ainda, superável pelo

desenvolvimento da ciência positiva. Não seria possível detectar qualquer outro capital

revolucionário, capaz de promover a verdadeira libertação.37 No caso de Canudos, a motivação

religiosa seria apenas uma tendência natural das massas rurais espoliadas, em determinadas

condições, para criar uma religião própria, que lhes servisse de instrumento em sua luta pela

libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião de escravos e proletários

da época. Nesse tempo, não havia estudos do catolicismo popular do pós-concílio, especialmente

os realizados na década de 1970 e o potencial libertador das CEBs. Autores como Alexandre

Otten e Eduardo Hoornaert reconhecem que é preciso uma leitura mais sistemática da mensagem

religiosa de Antônio Conselheiro, para superar certos mitos sobre a religião do povo (catolicismo

popular), quase sempre tratada como se fosse uma seita.38 Canudos não pode ser reduzido a uma

seita! Para Hoornaert, “a própria construção do imponente edifício de uma igreja nova, logo em

35 MARTINS, José de Souza, Os camponeses e a política no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1982, p. 27. 36 MARTINS, José de Souza, Os camponeses e a política no Brasil..., p. 30. 37 Docunto de Puebla (DP), 281. 38 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica..., p. 122-125.

60

1893, quando o povoado se organiza, e na qual toda a comunidade se empenha, é um sinal do

modelo-igreja existente no imaginário dos canudenses”.39

João B. Libanio afirma que a religiosidade popular é “o elemento mais importante para a

vida cotidiana do pobre e lhe dá resistência, coragem, esperança, futuro. Ela tem força enorme em

fazer a verdadeira face de Deus, como um Deus da vida e também em desqualificar muitos

projetos, como verdadeiro ‘sindicato da morte’”.40 Quando os autores marxistas ofereceram suas

publicações sobre o ocorrido em Canudos acreditava-se que a “evolução intelectual iria suplantar

o papel da religião, a função desta é limitada e será superada”.41 Ela não passa de elemento

ideológico da “superestrutura” e “ópio do povo”. Rubens Alves sintetiza essa mentalidade, ao

afirmar: “A religião, como reflexo invertido, como efeito, é reduzida à insignificância. Dedicar-se

à investigação da religião implica um perigoso desvio teórico e prático [...] Por que não

abandonar a religião, simplesmente, e atacar o problema das relações de produção numa

abordagem frontal?”.42

Para Rui Facó a religião não pode ocupar o foco principal em Canudos e os que o fazem é

por motivos ideológicos:

Não é por acaso que historiadores, mesmo os mais honestos, exageram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e o transformam no móvel único de sua luta. Procuram assim esconder as causas que a geraram, os verdadeiros motivos de sua resistência maravilhosa e de suas arrancadas heróicas: a opressão semifeudal do latifúndio, a miséria e a fome, frutos da posse monopolista da terra por uma minoria de grandes fazendeiros. Desta forma, tratam também de amesquinhar a resistência inquebrantável dos homens de Canudos diante da esmagadora superioridade das forças armadas com que os governos representantes dos latifundiários tentavam esmagá-los.43

39 HOORNAERT, Eduardo, Os Anjos de Canudos: revisão histórica..., p. 122. 40 LIBANIO, João Batista, I- Panorama da teologia da América Latina nos últimos anos – 1999; II- Teologia da libertação (textos inéditos: destinados a uma enciclopédia italiana), 2001, p. 40. Belo Horizonte: agosto 2002. Apostila mimeografada. 41 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 66. 42 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 64. 43 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 120.

61

Mesmo com essa insistência de Rui Facó em focar os motivos da resistência dos

canudenses exclusivamente a partir do viés material: opressão feudal do latifúndio, a miséria e a

fome, etc., pergunta-se: a força da resistência da comunidade de Canudos foi somente de ordem

material? A mística religiosa não teve papel relevante? Porque Antônio Conselheiro insistiu tanto

na espiritualidade, com orações diárias e catequese sistemática? Se o próprio Rui Facó reconhece

que Antônio Conselheiro nunca cogitou filiação política,44 não seria interessante um estudo

imparcial sobre o papel da religiosidade popular, na formação da mística que sustentou a

resistência do povo de Canudos? Para os cristãos, os “mártires latino-americanos, de fato, foram

mortos por defender a mesma causa de Jesus, o reino de Deus para os pobres, e foram

ameaçados, perseguidos e mortos pelo anti-reino. [...] Não são mártires da Igreja, embora vivam e

morram na Igreja, mas mártires do reino de Deus, da humanidade”.45 Analisando o

relacionamento do Conselheiro com fazendeiros da região, E. Hoornaert observa: “nos esquemas

marxistas fica incompreensível: diversos fazendeiros ajudavam o povoado de Canudos, com

lealdade e franqueza. O relacionamento entre o Conselheiro e os habitantes de Canudos era

decerto paternalista e hierárquico”.46 Porém, sem perder a dimensão ética. Com isso, não se deve

descartar a análise marxista. Ao contrário. Os autores de filiação marxista deram uma

contribuição incomensurável ao episódio de Canudos. Frei Beto costuma dizer: “O comunista é

cristão sem saber e o cristão é comunista sem querer”. Pode haver sintonia, especialmente nos

aspectos que os unem.

Finalmente, o que ocorreu em Canudos, especialmente no “mundo simbólico”, não pode

ser mensurado pelas ciências sociais. No que diz respeito aos atos celebrativos, à vivência da fé, à

invocação do bom Jesus, às práticas de penitência, à salvação como iniciativa de Deus, que exige

44 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 84. 45 SOBRINO, Jon, Jesus, o Libertador: I- a história de Jesus de Nazaré..., p. 385. 46 HOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica..., p. 99.

62

resposta humana: com a palavra a teologia. Compreender, portanto, Canudos hoje, exige do

pesquisador interdisciplinaridade, especialmente entre História, Sociologia, Antropologia,

Teologia, Psicologia e Arqueologia.

2.1.2- A utilização da Bíblia Sagrada

A Bíblia Sagrada exerceu grande influência na vida da comunidade de Canudos. Serviu

para fundamentar a luta dos conselheiristas, como primeira e mais importante fonte de inspiração

do Conselheiro. Há uma longa discussão sobre a utilização da Bíblia na organização da

comunidade canudense. Antônio Conselheiro copiou trechos do livro do Êxodo, o Evangelho de

Mateus, partes das Cartas de São Paulo e do livro do Apocalipse de São João. Esse fato,

possivelmente, se deu pela dificuldade de o cristão leigo de ter acesso ao Livro Sagrado. Não se

tinha facilidade de adquirir um exemplar da Bíblia. Daí uma das explicações da necessidade de

copiar partes do Livro Sagrado. É provável que Antônio Conselheiro não possuísse um exemplar

da Bíblia, mas que a tenha pedido emprestado para transcrever ou copiar trechos de maior

utilização nas suas prédicas. O professor José Calazans, especialista no assunto, julga provável

que o Cônego Agripino, vigário de Itapicuru, muito próximo do Conselheiro, tenha emprestado

muitas vezes a Bíblia a ele, para a transcrição de partes da Palavra de Deus. Já para Edmundo

Moniz, Antônio Conselheiro sempre teve consigo a Bíblia. As prédicas estão marcadas por

citações diretas do Livro Sagrado. “Além de um destaque à figura de Paulo e aos evangelhos, no

manuscrito inédito, são várias as histórias bíblicas narradas pelo Conselheiro, e no meio delas,

[...] há um alongamento sugestivo sobre os episódios do êxodo e dos inícios do povo de Israel”.47

47 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terras das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo monte..., p. 214.

63

A Bíblia não parece confirmar argumentos de forma apologética, como poderia ser praxe. Temas

bíblicos são transformados em reflexões e conselhos para o povo, de forma natural e prática.

Um estudo amplo e de bastante qualidade sobre a utilização da Bíblia por Antônio

Conselheiro foi feito por Pedro Lima. “O recurso da Bíblia nessas circunstâncias teve

implicações profundas: impactou na definição de territórios, na nomeação e qualificação de

lugares, na estigmatização ou engrandecimento de pessoas e instituições”.48 É possível perceber,

por exemplo, no contato com seus manuscritos que a “ seleção do material bíblico encontrada em

alguns cadernos que levam o nome de Antônio Conselheiro não é fortuita, e configura a visão que

ele imprimia ao vilarejo que liderava”.49 A Bíblia não é um livro neutro. Seu uso evidenciou o

“confronto entre o Conselheiro e seu povo, de um lado, e a instituição eclesiástica com seus

missionários e as forças republicanas, do outro... aliados, aqui, não têm necessariamente a mesma

leitura dos acontecimentos, nem a mesma apropriação de referenciais bíblicas”.50

2.1.3- A Missão Abreviada como livro de cabeceira

Em Canudos, conforme argumentos apresentados, os aspectos religiosos se sobressaíram

aos político-partidários. Essa afirmação não são ilações, se levarmos em consideração a formação

cristã de Antônio Conselheiro, as relações com os padres Cícero e Ibiapina, a influência do

Catolicismo Popular, o envolvimento nas missões e a enorme literatura religiosa usada ao longo

da vida do Beato. O mesmo não se pode afirmar de seu envolvimento político. Analisando

cuidadosamente os textos de Edmundo Moniz e Rui Facó, que mais insistem na tese da

sociologia de orientação marxista, não se encontra qualquer alusão documental que prove, por

48 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre o Belo Monte (Canudos), 2004. Tese de doutoramento, PUC, São Paulo, p. 12. 49 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém Maldita: memórias bíblicas..., p. 12. 50 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo Monte (Canudos), 2004. Tese de doutoramento, Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 12.

64

exemplo, que Antônio Conselheiro, ou alguém do seu grupo, tenha freqüentado grupos de

orientação político-partidária (republicano ou monarquista), com a intenção de apoiar ou

desestabilizar o governo republicano. Ao contrário, seu envolvimento sempre foi no âmbito

eclesial. O fato de ter feito duras críticas à República, não credencia ninguém concluir pela sua

ligação a esse ou àquele partido político, mesmo sabendo-se que ele não era uma pessoa ingênua

politicamente. “O Conselheiro antagonizou a República, não porque fosse de um então propalado

partido monárquico, [...] mas porque adotava a teocracia. O poder, que só pertencia aos príncipes,

vinha de Deus. Política e religião nele se unem indissoluvelmente”.51 Na concepção de Euclides

da Cunha, o

profetismo, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias. A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongando sempre e, ao cabo, de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II.52

Ao falar de Canudos, deve-se considerar a profunda ligação de seu representante maior

com a Igreja do Nordeste, dos valores cristãos recebidos pelo líder, do povo e da forma de vida

interna de sua comunidade. Observando as fontes nas quais Antônio Conselheiro bebeu, é

fundamental para entendermos quais eram mesmo os reais interesses do líder carismático. Um

marxista ortodoxo não destaca tanto a teoria do Peregrino, mas sua prática revela elementos da

teoria marxista.

A Missão Abreviada,53 redigida por um padre português, circulou em grande escala nos

sertões nordestinos e se tornou um texto de muita valia deixado pelos missionários para a

continuidade das missões populares, através de lideranças leigas. Os historiadores são unânimes

51 NUNES, Benedito, A cidade sagrada, in: FERNANDES, O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões..., p. 249. 52 CUNHA, Euclides, Os Sertões..., p. 229. 53 Cf. COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores sustentar o fruto das missões: Porto [22ª ed.], 1878. A 11ª edição é melhorada, não significando, porém, alteração no teor da obra. Será indicado por 11ª ou 9ª edição, de 1873. Missão Abreviada, manual útil para os párocos, vigários e capelães do interior e para qualquer liderança católica. Era uma espécie de “Catecismo da doutrina católica”.

65

ao afirmarem que o Peregrino usou a Missão Abreviada como manual orientativo na mística de

sua comunidade. Não há dúvidas quanto ao uso da Missão Abreviada pelo Conselheiro. Foi um

livro devocional por excelência, dos sertões nordestinos, pois sua “forma acessível e concreta de

catequização facilitou o entendimento, também, da gente simples e permitiu que o livro se

apresentasse como a suma doutrinal e catequética”.54 Com 993 páginas, 211 meditações,

instruções tituladas, 21 vidas de santos, apartados de práticas e devoções, a Missão Abreviada

apresenta aquilo de que o padre ou qualquer missionário leigo deve fazer uso nos trabalhos da

pós-missão.55 A finalidade do livro encontra-se no próprio título: despertar os descuidados,

converter os pecadores e sustentar o fruto das missões. De ampla circulação e assimilação de seu

conteúdo pelas camadas menos letradas, Eduardo Hoornaert classifica o livro de uma espécie de

“bíblia do povo sertanejo”.56 Joaquim Cabral atesta a grande utilidade para todas as pessoas pela

“extração de noventa e dois mil exemplares em tão pouco tempo; uma grande multidão de

pecadores verdadeiramente convertidos e emendados; muitas confissões gerais que se têm feito e

se fazem por toda parte, só por ter lido, ou ouvido ler este livro”.57 Vilanova, sobrevivente da

guerra de Canudos, conviveu de perto com Antônio Conselheiro e deixou este depoimento sobre

Missão Abreviada:

O livro do Peregrino era a Missão Abreviada, onde muito se fala da morte, do inferno, do juízo final, dos açoites e espinhos e da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os frades pregadores daquele tempo conduziam sempre este livro, que de tão cru, nas palavras, fechava sem piedade as portas do céu. Também o Peregrino amava esse livro e varava o dia e a noite lendo ou copiando as Meditações e os Exemplos dos Santos. Quando a mão do Peregrino estava cansada, escrevia por ele Leão de Natuba, que tinha boa caligrafia e era muito devoto.58

54 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande, a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 274. 55 Cf. COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada...,p. 21. 56 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste, Salvador: Beneditina, 1972, p. 77-87. 57 Cabral, Joaquim, “Missão Abreviada”: Da pobreza de uma teologia... ao Estigma funesto de uma moral, dissertação de licenciatura em Teologia Moral na Academia Afonsiana, Pontifícia Universidade Lateranense, Roma: 1986, p. 5. 58 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 49.

66

Alexandre Otten confirma o conteúdo descrito por Vilanova. A Missão Abreviada fala de

Céu, Inferno, Purgatório, Vida, Paixão, morte, Ressurreição e traz belos relatos da vida de

diversos santos.59 Como manual de espiritualidade, Missão Abreviada mostrava a mentalidade

teológica presente na Igreja. Apresentava uma visão dicotômica da vida espiritual: céu – inferno,

vida – morte, bem - mal, pecado - raça, Deus – diabo, salvação - condenação. Essa visão

teológica, comum aos pregadores de missões, iria influenciar a fundamentação da teologia

subjacente ao pensamento religioso da comunidade canudense.

Missão Abreviada refletia o esquema teológico da época. Apresentava um Deus

vingativo e castigador, implacável com o pecador. Eduardo Hoornaert fez da obra uma análise

bastante crítica, mostrando as lacunas teológicas e os avanços para uma pastoral renovada, na

perspectiva da Missão Abreviada. “Esta Bíblia do Nordeste, confrontada com a Sagrada

Escritura, nos revela as grandes lacunas da mensagem missionária, e ao mesmo tempo, os pontos

de apoio de uma pastoral renovada”.60 O pecado é o elemento estruturante de todo o conteúdo

doutrinal teológico, exortativo e ascético, formando o eixo condutor de toda a obra. O ser

humano, visto como pecador devia temer os riscos pessoais que corria, a gravidade da

condenação, as penas do inferno. Sem o arrependimento e a confissão não é possível conter a ira

de Deus. Hoornaert aponta pelo menos três lacunas na visão teológica do devocionário.

Em primeiro lugar, a mensagem cristã era reduzida ao âmbito estritamente individual e

moral.61 Seu autor, o Padre Couto, seguia a linha da teologia do pecado original de Santo

Agostinho, construída nas discussões com Pelágio. Os argumentos de Agostinho, produto de uma

disputa apaixonada, assumem posições dialéticas diante do seu interlocutor como acontece em

59 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande, a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 273-287. 60 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste, Salvador: Beneditina, 1972, p. 77-87. O autor faz uma análise crítica do conteúdo teológico da Missão Abreviada, destacando, principalmente, as lacunas teológicas. 61 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e Falsa religião no Nordeste..., p. 78-80.

67

discussões acirradas. O futuro Bispa de Hipona fora, antes de sua conversão, durante um longo

tempo, maniqueu: acentuou certos aspectos do maniqueísmo e influenciou a antropologia

católica, especialmente a teologia sobre o pecado.62

Essa visão, um tanto dualista, da Antropologia Cristã assumiu posição central na pregação

popular da Igreja no ocidente cristão. A insistência pela salvação da alma dominava a pregação

dos missionários na época do Conselheiro. Ao comentar a Missão Abreviada, E. Hoornaert

chama a atenção do leitor para a procura quase exclusiva da religião cristã com a intenção de

salvação da alma. Essa “perspectiva reduz tudo: o evangelho se torna uma coleção de histórias

edificantes, a moral engole a mensagem do Reino de Deus, Cristo se torna instrumento no

caminho da salvação individual, a Igreja nem entra em consideração”.63 O tema do “poucos se

salvam” perpassa todo o livro, com advertências quase sempre dirigidas ao pecador. Por isso, o

cristão necessitava converter-se, confessar-se e comungar, para livrar-se do castigo eterno. A

pregação dos missionários e as orientações do manual entregue às lideranças, orientador dos

participantes das missões, adotavam uma pedagogia da sensibilização pelo medo, intimidação

pelos castigos. O inferno seria o destino dos desobedientes e malfeitores.

Em segundo lugar, a Missão Abreviada fazia uma exaltação unilateral da obediência e

penitência como virtudes cristãs.64 A mortificação e as várias formas de penitência ocupavam o

lugar do Reino de Deus. “No século XIX, a penitência se chama mortificação. Esta mortificação

não prepara o advento do Reino de Deus como a penitência (conversão, metanóia) pregada por

João Batista (Mt. 3, Mc 2,3), mas prepara a morte”.65 Só pelo caminho da mortificação e

62 MANIQUEÍSMO, in: BRUGGER, Walter, Dicionário de Filosofia, São Paulo: EPU, 1977, p. 257: “O mundo é explicado por dois princípios : um bom, o da luz; outro mau, o das trevas (da matéria)”. Ainda, segundo a concepção maniqueísta, o universo foi criado e dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo. 63 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 79. 64 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 80-84. 65 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 80-81.

68

penitência chegava-se ao céu. “Para o céu não se vai por meio de solturas, divertimentos e bailes.

Para o céu se vai, sim, mas é por meio de muitas mortificações e jejuns”.66 O destaque da

pregação voltava-se para o pecado e o castigo, em detrimento da graça de Deus e o amor

misericordioso de Jesus de Nazaré. Isso se comprova pela importância que o autor deu ao inferno,

pelo fato de ter atribuído um capítulo inteiro ao tema, intitulado Uma visão do inferno que tem

convertido a muitos e grandes pecadores.

A confissão limitava-se à “lista” dos pecados pessoais e domésticos. Os “pecados de

âmbito social ou político (a não-colaboração na construção da sociedade) não eram sentidos

como tais [...] “fazer caridade” na linguagem do confessionário significava “dar esmolas”. A

moral do confessionário é uma redução da moral cristã”.67 O mandamento da Igreja de confessar-

se, ao menos uma vez ao ano, era rigorosamente observado para o bem do fiel. O pecado da

desobediência quase sempre funcionou como controle social. O povo, atingido por essa visão de

pecado, penitência e obediência, ficou preso a uma Igreja atrelada ao poder do Estado e pouco

comprometida com as mudanças sociais efetivas para os pobres. Diante das mudanças, a Igreja

não conseguia assumir uma posição de independência.

A terceira deformação do cristianismo apresentada pela Missão Abreviada, consistia na

quase-identificação entre vida cristã e “vida de piedade” (pietismo).68 A vida cristã se restringia

ao âmbito das devoções e da recepção dos sacramentos. A Igreja não cria devoções. Elas eram

conseqüências de uma forma de pregação, do conteúdo teológico, de liturgias celebradas e

decodificadas pela experiência do povo sertanejo, de influência indígena e negra. “Milhões de

escravos africanos foram sumariamente importados e ainda mais sumariamente introduzidos no

cristianismo através do batismo e quase sem catequese senão a declaração mecânica de algumas

66 COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada...,p. 562 (9ª ed.). 67 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 82. 68 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 84-87.

69

fórmulas estereotipadas”.69 O cristianismo lusitano, devocional, em processo de romanização,

encontrou-se com a vitalidade das religiões indígena e africana. No encontro do cristianismo com

essas culturas, quase não houve inculturação da fé, nem respeito pela experiência das

comunidades locais, mas transladação e imposição cultural. Cultura européia e evangelho

tornaram-se dois lados da mesma moeda. A vida cristã foi reduzida à assimilação da cultura

européia, muitas vezes em simbiose com o evangelho. O índio, o negro, o sertanejo “iletrados”, e

“sem cultura”, foram ressignificando e reprocessando a mensagem cristã a partir do paradigma

indígena, africano e sertanejo, criando o que Eduardo Hoornaert batizou de cristianismo moreno

do Brasil ou cristianismo rústico.

Missão Abreviada também dava um destaque especial à devoção mariana, com

características feudais.70 De nossa parte, somos servos ou escravos de Maria. Essa devoção

“provém de uma visão medieval do Reino de Deus, como um Reino que se realiza aqui na terra

pela cristandade”.71 As festas de Cristo-Rei, Nossa Senhora-Rainha, causavam incidência na

espiritualidade do povo. Havia uma ligação natural com a vida prática. Assim como Maria-

Rainha obedecia ao Cristo Rei, o povo deveria obedecer às autoridades. Quem quisesse ser

cristão verdadeiro deveria obedecer às ordens da Igreja e a seus ministros. Por isso, precisava

observar as principais práticas religiosas. As “as orações de cada dia, a santificação dos domingos

e dias santos, a observação da abstinência e jejuns da Igreja, a freqüência dos sacramentos, numa

palavra, a obediência a tudo quanto nos é mandado por parte da Igreja”.72

Essa espiritualidade de submissão foi reinterpretada pelo Conselheiro na perspectiva da

libertação de sua comunidade. Não a repetiu pura e simplesmente, mas trouxe algo novo, como

69 HOORNAERT, Eduardo, O cristianismo moreno do Brasil..., p.37. 70 Cf. HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 85. 71 HOORNAERT, Eduardo, Verdadeira e falsa religião no Nordeste..., p. 85. 72 COUTO, José Gonçalves, Missão Abreviada... [9ª ed.], p. 180.

70

veremos no último capítulo. Antônio Conselheiro estava de acordo com essa doutrina. Porém,

obedecer plenamente, só a Deus. A todo o momento ele repetia: “Só Deus é grande”. Ele

inaugurou uma nova maneira de agir na Igreja, desde o final do século XIX.

2.1.4- Obra manuscrita por Antônio Conselheiro

As Prédicas ou manuscritos de Antônio Conselheiro, examinadas cuidadosamente, são

indispensáveis para se formular um julgamento aproximado, porém, sério, do pensamento e da

conduta do líder maior de Canudos. Foram poucos os que se debruçaram sobre o aspecto

religioso da vida interna da comunidade de Canudos. Talvez o preconceito sobre religião, até

recentemente vista no meio acadêmico como o “ópio do povo”, e a influência do materialismo

histórico de K. Marx tenham impedido análise mais apurada e isenta da religião, como força

motora e determinante na resistência do povo de Canudos frente à arrogância irracional do Estado

brasileiro. “Certamente concorreu para tal a pouca importância dada à religião na abordagem dos

fenômenos sociais, tida que era como expressão de uma consciência atrasada, ou apenas refluxo

(ou encobrimento) de realidades e conflitos situados na base socioeconômica da sociedade”.73

Outros condicionamentos foram a força da ditadura militar e a falta de investimento do Estado

para um estudo mais profundo dos movimentos sociais, especialmente o ocorrido no sertão da

Bahia.

Desde o Concílio Vaticano II, a Teologia da Libertação, a expansão do pluralismo

religioso, o advento das ciências da religião, os estudos da religiosidade popular, o empenho por

uma melhor compreensão da religião ou do fenômeno religioso nas transformações sociais, vêm

aumentando sempre mais o interesse por movimentos como Canudos. Os estudos mais recentes

73 VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das Promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo Monte..., p. 210.

71

sobre o movimento em questão constituem um desses exemplos.74 Ataliba Nogueira, jurista e

escritor, fez publicar o caderno contendo manuscritos de Antônio Conselheiro, datados de 22 de

janeiro de 1897.75 “[...] a caligrafia do texto e a assinatura são suas, as mesmas que se podem ver

em duas cartas emolduradas e suspensas na parede, no Instituto Geográfico e Histórico da

Bahia”.76 Não há qualquer suspeita quanto à autoria do texto:

O volume é encadernado, conta com 628 páginas, numeradas e sem margem. Cada página com 24 linhas. Tinta preta, letra bela e sempre igual. Formato 10 x 14. Diz na folha de rosto:

‘A presente obra mandou subscrever o peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel

No povoado do Belo Monte, província da Bahia

Em 12 de janeiro de’ ‘897’.77

Para Ataliba Nogueira, a expressão “mandou subscrever”, na primeira página, não põe em

dúvida a veracidade da autoria, mas confirma a humildade do autor.78 Alexandre Otten se refere a

um “outro” manuscrito, não conhecido pelo público, também de autoria do Conselheiro: “O

manuscrito não publicado não apresenta as últimas prédicas, mas oferece uma transcrição do

Evangelho de Mateus, tirada da Bíblia Vulgata, na tradução de Pe. Antônio Pereira de

Figueiredo”.79 Esse outro manuscrito foi encontrado em 1972, na preparação do inventário de

Aloísio de Carvalho, senador e professor da Faculdade de Direito de Salvador. Atualmente a

relíquia encontra-se na posse da família do saudoso professor José Calazans.80

74 Desde o início da década de 1990, Canudos não é mais um acontecimento marginal da historiografia brasileira. Além dos filmes, publicações de livros e jornais sobre o acontecido em Belo Monte, há diversas teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre o significado de Canudos. 75 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos...,p. 46-290. A paginação contém um erro. Da página 569 salta-se para a 600. Entretanto, não há descontinuidade no discurso. O manuscrito termina na página 628. Mesmo usando a referida publicação de Ataliba Nogueira, a citação seguirá do caderno manuscrito, pela sigla MAC (Manuscritos de Antônio Conselheiro), seguida da página do original. A ortografia é do século passado e difere da nossa; será mantida conforme o texto manuscrito, publicado por Ataliba Nogueira. 76 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos...,p. 23. 77 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos, p. 23 78 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos..., p. 23 79 OTEEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 203. 80 Cf. NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos..., p. 23. A prova concreta da autenticidade da obra é o texto na página que precede à folha de rosto: “No dia 5 de outubro de 1897, em que as tropas legais sob o comando do general Artur de Andrade Guimarães se assenhoraram vitoriosa e decididamente do arraial de Canudos, dando

72

As chamadas Prédicas de Antônio Conselheiro estão organizadas em quatro partes e um

discurso sobre a República, conforme índice abaixo:

Esquema geral do Manuscrito de Antônio Conselheiro

PRIMEIRA PARTE

I. Tempestades que se levantam no coração de Maria (até a página 223), com 29 mistérios,

divididos em três pontos, cada um.

1. Tempestades que se levantam no coração de Maria por ocasião do mistério da anunciação (p. 3-9).

2. Sentimento de Maria por causa da pobreza em que se achava, por ocasião do nascimento de seu divino

filho (p. 10-16).

3. Dor de Maria na circuncisão de seu Filho (p. 17-23).

4. Humilhação de Maria no Mistério da apresentação (p. 24-29).

5. Dor de Maria na profecia de Simeão (p. 30-37).

6. Dor de Maria por ocasião de sua fugida para o Egito (p. 38-46).

7. Dor de Maria na morte dos inocentes (p. 47-55).

8. Desolação de Maria durante o seu desterro do Egito (p. 56-62).

9. Aflição de Maria na sua volta do Egito (p. 63-70).

10. Dor de Maria na perda de seu Filho no Templo (p. 71-77).

11. Sentimento de Maria na morte de seus pais (p. 78-85).

12. Dor de Maria durante a vida particular de Jesus em Nazaré (p. 86-92).

13. Sentimento de Maria quando seu Filho se retirou para o deserto (p. 93-101).

14. Dor de Maria por causa das injúrias proferidas contra seu Filho (p. 102-109).

15. Dor de Maria por ocasião da permissão que Jesus lhe pediu para suportar a morte (p. 110-117).

16. Dor de Maria na prisão de seu Filho (p. 118-124).

17. Dor de Maria na flagelação de seu Filho (p. 125-133).

18. Dor de Maria quando seu Filho foi apresentado por Pilatos ao povo (p. 134-139). busca do lugar denominado Santuário, em que morou o célebre Antônio Conselheiro, foi este livro encontrado em uma velha caixa de madeira, por mim, que me achava como médico em comissão do governo estadual e que fiz parte da junta de peritos que no dia 6 exumou e reconheceu a identidade do cadáver do grande fanático. Submetido ao testemunho de muitos conselheiristas, este livro foi reconhecido ser o mesmo que, em vida, acompanhava nos últimos dias a Antônio Maciel, o ‘Conselheiro’. Bahia, março de 2898, João Pondé”. Cit. in: ibidem, p. 22 e 51. JoãoPondé (1874-1974), natural de Itapicuru de Cima Na infância, beijou a mão de Antônio Conselheiro. Cf. Ibidem p. 22.

73

74

19. Dor de Maria encontrando seu Filho com a Cruz aos ombros (p. 140-147).

20. Dor de Maria na agonia de Jesus (p. 148-155).

21. Dor de Maria quando os soldados repartiam entre si os vestidos de seu Filho (p. 156-163).

22. Compaixão de Maria na sede de seu Filho pregado na Cruz (p. 164-171).

23. Dor de Maria na agonia de Jesus (172-179).

24. Dor de Maria quando seu Filho lhe falou da Cruz (p. 180-187).

25. Martírio de Maria na morte de seu Filho (p. 188-194).

26. Dor de Maria quando o lado de seu Filho foi aberto com uma lança (p. 195-202).

27. Dor de Maria no descimento da cruz e funeral do cadáver de seu Filho (p. 203-209).

28. Dor da Senhora em sua soledade (p. 210-216).

29. Maria, Rainha dos Mártires (p. 217-223).

SEGUNDA PARTE

2. Exposição sobre os dez mandamentos da lei de Deus (p. 224-426). Reflexão sobre cada

mandamento

1º Mandamento (p. 224-250).

2º Mandamento (p. 251-270).

3º Mandamento (p. 271-292).

4º Mandamento (p. 293-318).

5º Mandamento (p. 319-342).

6º Mandamento (p. 343-362).

7º Mandamento (p. 363-380).

8º Mandamento (p. 381-403).

9º Mandamento (p. 404-415).

10º Mandamento (p. 416-426).

TERCEIRA PARTE

3. Textos extraídos da Sagrada Escritura (p. 427-485), sem divisão.

Quarta parte

4. Prédicas de circunstâncias e discursos, (p. 486-559), com 7 subdivisões. 75

Sobre a República (p. 560-623) e com duas partes.

1. Sobre a Cruz (486-508).

2. Sobre a Missa (509-516).

3. Sobre a confissão (517-528).

4. Sobre as maravilhas de Jesus (529-530).

5. Construção e edificação do templo de Salomão (531-536).

6. Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, padroeiro de Belo Monte (p. 537-553).

7. Sobre a parábola do semeador (p. 554-559).

Sobre a República (p. 560-623).

A companhia de Jesus – O casamento civil – A família imperial – A libertação dos escravos (p. 560-523).

Despedida (p. 624-628).

2.2. Descrição do imaginário religioso de Antônio Conselheiro

Mesmo não sendo um manual de teologia sistemática, é possível fazer uma leitura

sistemática do pensamento de Antônio Conselheiro, a partir dos referidos manuscritos. Seria

exigir muito de um cristão leigo no Brasil, no final do século XIX, radicado nos sertões do Ceará

e Bahia, um conteúdo sistemático no sentido estrito do termo. Esta capacidade nem estava

presente no manuscritos dos ministros ordenados. Ele foi teólogo, sem sequer cursar teologia, um

teólogo por intuição. Desenvolveu muito mais os aspectos práticos da fé cristã, que os de

natureza sistemática. Encontramos intuições teológicas muito concretas no seu pensamento,

identificando-se um fio condutor nas suas reflexões. A forma de citar textos bíblicos, os Padres

da Igreja e a Missão Abreviada desmentem o preconceito de Euclides da Cunha sobre a pouca

formação do Peregrino. Tomando por base o conteúdo e a forma a respeito da qualidade literária

e conceitual “da leitura dos sermões o que surge, entretanto, é a figura de um sertanejo letrado,

capaz de exprimir-se correta e claramente na defesa de suas concepções políticas e sociais, e de

suas crenças religiosas”.81 A fé é um ato primeiro. Na concepção dos teólogos clássicos, Teologia

é a ciência da fé. Ao pensar a fé, ao envolver-se na vivência comunitária, produzir textos de

próprio punho para orientar sua comunidade, Antônio Conselheiro fazia teologia. Suas prédicas

estão marcadas pelas fontes essenciais da ciência teológica: A Bíblia, Tradição e Magistério. Seu

discurso teológico deve ser lido e interpretado no contexto da teologia da Contra-Reforma na

Europa e da Reforma Católica no Brasil (1840-1920). “Foi nesse período que se gestou o

pensamento de Antônio Conselheiro. A preocupação dominante por parte da hierarquia católica

era mudar o tradicional modelo de Igreja da Cristandade, vinculado à cultura lusitana, pelo

modelo de Igreja hierárquica, conforme fora formulado pelo Concílio de Trento”.82

A cosmovisão de Antônio Conselheiro não se diferenciava da concepção teológica de seu

tempo. As pregações seguiam um tripé teológico ensinado nos seminários: purgatório, céu e

inferno. São as três possibilidades destinadas aos mortais. Esse esquema teológico estava

presente no conteúdo das pregações dos próprios missionários, párocos e conselheiros,

continuadores das missões. A diferença residia na prática. Conselheiro se apossou de manuais

reprodutores do pensamento teológico medieval. Não inventou um novo sistema. Sendo um filho

fiel de seu tempo, viveu as contradições políticas e religiosas, conseguindo, porém, propor novos

caminhos para uma alternativa de vida, organizada em comunidade. Antônio Conselheiro não foi

um mero reprodutor do pensamento teológico medieval. Os manuais da Igreja, os ensinamentos e

sacramentos eram recebidos e reinterpretados, à luz da praxe comunitária. O amor a Deus e a

caridade aos irmãos, especialmente aos mais necessitados, tornaram-se regras de vida na

comunidade.

81 MONTEIRO, Duglas Teixeira, Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado, in: FAUSTO, Bores (org.), História geral da civilização brasileira, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, t. 3, v. 2, p. 65. 82 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 67.

76

As Prédicas são “um eco amortecido de suas concepções religiosas e políticas. São, com

certeza, apontamentos para suas pregações em determinados momentos. Mas não dão a clara

noção da maneira envolvente com que se dirigia aos seus fiéis seguidores”.83 As Prédicas revelam

um nível teológico, cujo vocabulário nem sempre condiz com o de pessoas de pouca instrução.

Estava em sintonia com as fontes essenciais da teologia cristã. Tinha facilidade de conjugar

citações da palavra de Deus e autores da Patrística. Textos do Êxodo, evangelhos, cartas de

Paulo, João, Apocalipse, foram facilmente comentados pelo Conselheiro, com citações ou

referências aos Santos Padres.

2.2.1- As dores de Nossa Senhora

Os manuscritos trazem 29 reflexões sobre as consideradas “Dores de Nossa Senhora”, em um

total de 221 páginas. Cada meditação parte de textos ou pequenas histórias bíblicas sobre a

Virgem Maria, com as devidas considerações teológicas, mesmo sabendo que não eram

exposições com interesses teológicos, mas orientações de espiritualidade, com a intenção de

animar a comunidade nos momentos difíceis. O conjunto do texto “As Dores de Nossa Senhora”

apresenta excelente embasamento bíblico, conjugado com a lógica do pensamento teológico do

Conselheiro.84 Alexandre Otten afirma: “São descrições vivas do sofrimento de Cristo e das dores

de Maria que têm a finalidade de comover os ouvintes, apelando aos seus sentimentos, a fim de

levá-los à conversão de suas atitudes diante de Maria e do Filho”.85 As “Dores de Nossa Senhora”

é uma verdadeira teologia marial; eram instrumentais pedagógicos para levar o povo ao

seguimento do Jesus Cristo. O destaque recaía para os verbos “ver”, “contemplar”, “imitar” e

“sentir” o amor e a misericórdia da Mãe e do Filho para com os pecadores. “Convida os ouvintes

83 Cf. MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 247. 84 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande..., p. 204-211. Otten faz um comentário teológico de cada dor de Maria, a partir do manuscrito do Peregrino. 85 OTTEN. Alexandre, Só Deus é grande...,p. 210.

77

a “associarem-se” ao Filho e à Mãe e aos seus sofrimentos, a “acolhê-los”, a “consolar” Nossa

Senhora, chorando com ela ou chorando os próprios pecados, arrependendo-se e emendando as

suas vidas para assim serem dignos do amor do Filho e da Mãe”.86 Com facilidade, identificam-se

palavras-chave no imaginário mariológico de Antônio Conselheiro. Artur Peregrino, do atual

grupo de Peregrinos do Nordeste, desenvolve “Uma Teologia marial”, tendo como base “As

Dores de Nossa Senhora”.87 Identificou 85 vezes a palavra Dor/Dolorosa; 83 vezes, Coração; 51,

Lágrimas/Chorar; 51, Amor/Compaixão/Caridade; 18, Morte/Crime; 16, Cruz; 14, Martírio; 11,

Misericórdia/Penitência; 10, Terra/Céu e 9, Pobreza.88 Artur Peregrino faz uma ligação da dor da

mãe com os filhos sofredores de Canudos: “Através do sofrimento de Maria o próprio

Conselheiro ia, com certeza, ligando o sofrimento, a dor e a morte tantas vezes presenciados nos

sofrimentos de grandes parcelas da população dos sertões nordestinos”.89

Em meio a uma cultura marcada pelo machismo, a mulher ocupava um lugar central nas

atividades comunitárias. Não seria esse o motivo principal para tanto destaque à figura de Maria

Santíssima? Euclides da Cunha, nos relatos sobre a guerra, foi acusado de preconceito contra as

mulheres. Silvio Rabelo, biógrafo de Euclides, descreve sua vida sem amor e vazia de afeição

feminina, ao afirmar: “A presença do outro sexo nada acrescentava ao homem seco e triste que

ele era, em conforto pessoal, em gosto do mundo, em pletora de vida. O outro sexo, ele trazia

narcisicamente em si mesmo”.90 Um estudo de Os Sertões, a partir do viés da mulher, realizado

por José Calazans, comprova essa lacuna na vida do literato, no que diz respeito ao sexo oposto:

“Uma experiência como a de Euclides da Cunha, tão pobre de amor e tão vazia de mulheres,

haveria de refletir, necessariamente e de modo especial, na sua atitude de escritor em face do

86 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 210. 87 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 62-64. 88 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 62. 89 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 63. 90 RABELO, Sílvio, Euclides da Cunha, Rio de Janeiro, C.E.B., 1948, p. 453.

78

mundo feminino”.91 O professor Calazans observa a forma depreciativa com que as mulheres são

tratadas em Os Sertões: “Causa pena vê-las. Estão terrivelmente marcadas, duramente

estigmatizadas. São feias, magras, bruxas, viragos, zanagas. Uma autêntica caqueirada humana,

que o autor parece ter tido o prazer de debuxar”.92 E levanta uma indagação: “Acreditamos que

não será despropositado indagar, terminada a leitura do trecho acima, se na imputação feita ao

Bom Jesus Conselheiro não estaria também o biógrafo se projetando no pensamento do

biografado?”93. O Conselheiro não maltratava as mulheres. Ao contrário, elas tiveram um papel

preponderante em todos os trabalhos internos da comunidade, inclusive no final da guerra.

Ao falar de Maria, Conselheiro destaca também a importância das mulheres na comunidade

de irmãos e irmãs. “A mulher, na pessoa de Maria, tem um lugar de destaque nas Prédicas de

Antônio Conselheiro. Há um olhar para a mãe de Jesus como se fosse um olhar para ele mesmo e

a situação vivida naquele momento”.94 Ao escutar as Prédicas, as mulheres se identificavam logo

com Maria, mulher alegre e sofredora, mas forte e vencedora. “Bendita seja Maria em suas dores.

Quando, à força de marteladas, os cravos iam penetrando as mãos e pés do Salvador, as dores que

ele sofria se unificavam com as da Virgem Maria”.95 O coração de Maria, “como a cera junto ao

91 CALAZANS, José, As mulheres de Os Sertões, in: RINALDO, de Fernandes, O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões, São Paulo: 2002, p. 191. 92 CALAZANS, José, As mulheres de Os Sertões..., in: RINALDO, de Fernandes, o Clarim e a oração: cem anos de Os Sertões, p. 192. “Ali estavam”, inicia Euclides da Cunha a descrição, “gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas – êmulos das bruxas das igrejas – revestidas da capona preta, lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despojadas, soltas na garridice sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias, nivelando-se pelas mesmas rezas. E prossegue – “faces murchas de velhas – esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; - rostos austeros de matronas simples, fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho’. Mais ainda – “Todas as idades, todos os tipos, todas as cores”. E Depois – Grenhas maltratadas de crioulas retintas, cabelos corredios e duros de cablocas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais nobre. Nos vestuários singelos de algodão ou chita, deselegantes e escorridos, não havia obrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador”. Cit in: ibidem, p. 195-196. Grifos do autor. 93 CALAZANS, José, As mulheres de Os Sertões..., p. 193. 94 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 62. 95 MAC , p. 153.

79

fogo, se derrete de pura dor, a qual causando estragos no interior pôs sinais visíveis e seus traços

naquele rosto santíssimo completamente desfigurado”.96 O pesquisador José Calazans não

alimenta dúvidas quanto à bravura das mulheres de Canudos, especialmente no momento da

guerra: “Acreditamos, também, que morreram muitas mulheres. Eram mais corajosas que os

homens, por serem mais religiosas e terem mais convicções”.97

As meditações sobre Maria “acentuaram-se no genocídio a que foram submetidos os

canudenses. O seu testemunho é suportar com amor o martírio, assim como fez Jesus”.98 Assim

como Maria venceu o sofrimento, a comunidade vai celebrar a vitória contra o inimigo. “A

teologia marial desenvolvida nas prédicas (naturalmente cem anos atrás) revela uma correta

compreensão da teologia cristã. Maria é aquela que nos leva a Jesus”.99 Essa é a principal

intuição mariológica do Conselheiro: “Que grande diferença entre o procedimento desta e o da

primeira mãe? Em Eva sobressai a curiosidade e a desobediência a Deus; em Maria, o amor e a

obediência a levam ao pé da cruz e onde está a vontade do Senhor”. De fato, na teologia católica,

Maria é apresentada como a Nova Eva e a Mãe dos viventes. Em Canudos, Maria foi mãe dos

mártires e mãe de todos os que proclamam com confiança: “vida doçura, esperança nossa,

salve!”.

2.2.2- Os Dez Mandamentos da lei de Deus

A segunda parte ocupa 213 páginas dos manuscritos100 e revela o destaque que o Peregrino

deu aos Dez Mandamentos. Comentou cada mandamento; fundamentou com fatos dos primeiros

96 MAC , 153-154. 97 CALAZANS, José e NÓBREGA, José Dionísio, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos controvertidos do episódio de Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, BLOCH, Didier (org.), Canudos, 100 anos de produção..., p. 45. 98 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 63. 99 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 64. 100 Cf. MAC , p. 224-426.

80

séculos; referiu-se a diversos autores da Patrística. “Antônio Conselheiro tinha um conhecimento

fabuloso da patrística. Cita com facilidade Padres da Igreja, santos, como também uma

enormidade de figuras bíblicas, da tradição da Igreja e da Grécia Antiga”.101 Entre os Padres da

Igreja citados aparecem: São João Crisóstomo,102 São Basílio,103 São Jerônimo,104 São Gregório

(papa?),105 São Dionísio Areopagita.106 Santo Agostinho.107 Santos e santas como: Santa

Madalena de Pazis,108 São Boaventura,109 Santo Tomás de Aquino,110 São Pedro Damião,111Santa

Luzia,112 São Bernardo,113 Santa Brígida,114 Santo Antônio.115

Outros personagens importantes referidos: O Papa Urbano IV,116 Papa Eugênio IV117,

Henrique VIII,118 Thomas Moro, Luís (Rei da França)119 e Cardeal Hugo.120 Quase todas essas

referências foram feitas nas meditações sobre os Dez Mandamentos, demonstrando o destaque

dos ensinamentos divinos para organizar a vida comunitária. Antônio Conselheiro se mostra um

conhecedor não só da história da Igreja, mas também da história universal.121

Nas Prédicas sobre os Dez Mandamentos, o autor se apropriava da resposta de Jesus ao

doutor da lei: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o

101 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo...,p. 64. 102 MAC , p. 227, 368, 397, 422, 483. 103 MAC , p. 398. 104 MAC , p. 356, 419. 105 MAC , p. 348. 106 MAC , p. 464. 107 MAC , p. 335, 236, 258, 353, 383, 513. 108 MAC , p. 322. 109 MAC , p. 233, 247. 110 MAC , p. 228, 246, 279, 320, 321,353, 369, 421. 111 MAC , p. 231. 112 MAC , p. 303. 113 MAC , p. 313-314. 114 MAC , p. 313. 115 MAC , p. 537, 539. 116 MAC , p. 514. 117 MAC , p. 514. 118 MAC , p. 514. 119 MAC , p. 479. 120 MAC , p. 226, 245. 121Cf. PEREGRINO, Artur, Canudos: Um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 65.

81

teu entendimento. Esse é o máximo e o primeiro mandamento (Mat., cap. 22, v. 38)”122 e

percebe a dificuldade para pôr em prática este mandamento. “A maior parte dos homens não

observa este preceito, cuja verdade não necessita de prova. [...] Mas ah! Que ingratidão daqueles

que assim procedem! Até quando viverão na tibieza e indiferentismo?”123 Como a comunidade de

Canudos não tinha Constituição, Leis Orgânicas ou Código Civil, os Dez Mandamentos

funcionavam como uma espécie de legislação da comunidade, uma forma de estabelecer limites e

respeito nas relações humanas. Daí a justificativa para o uso tão intenso dos mandamentos, nas

pregações igualmente intensas do Conselheiro. Os membros da comunidade acreditavam na força

da graça de Deus, veementemente anunciada pelo Conselheiro. Na concepção do Beato, a

salvação é Dom de Deus. É preciso crer na misericórdia infinita de Deus que envia seu próprio

Filho como nosso Salvador. “Quem poderá jamais compreender o excesso desse amor, pelo qual

para resgatar o escravo quisestes dar vosso Filho Unigênito? Deus nos deu seu próprio Filho e

porque motivo? Unicamente por amor”.124 Segundo A. Otten, [...] “as prédicas sobre os

mandamentos são muito caracterizadas pela necessidade de o homem nutrir o temor de Deus.

Mesmo assim o amor de Deus e o amor a Deus permanecem presentes. Para o peregrino é este

amor que salva o homem”.125 O temor a Deus criava vontade de viver o amor em comunidade. É

o desejo da salvação que forçava os moradores de Canudos a evitarem o mal e praticarem o bem.

A vida correta é desejo de Deus. Através de sua graça, Deus auxilia o homem pecador. Só a graça

pode domar e reprimir os instintos mais selvagens dos pecadores. Insistia na necessidade de o

pecador recorrer a Deus, nos momentos de necessidade: “Deus abandona os que escondem os

seus crimes e perdoa aos que os acusam. Movido de compaixão a favor dos pecadores, instituiu

Jesus Cristo o sacramento da penitência, que os regenera no sangue do cordeiro e os reveste da

122 MAC , p. 224. 123 MAC , p. 225. 124 MAC , p. 228. 125 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 219.

82

inocência primitiva”.126 Deus reconhece nossa fraqueza e perdoa aqueles que, na auto-entrega da

fé, se curvam diante do Senhor compassivo do universo. O Peregrino admirava aqueles que se

confessavam ao menos uma vez a cada ano, conforme determinava o mandamento da Igreja. Para

os que verdadeiramente se arrependiam, há a certeza do perdão divino. Essa prática consciente

dos integrantes da comunidade de Canudos reatava a amizade com Deus e a convivência fraterna

com os irmãos de comunidade. A vida interna na comunidade organizava-se à luz da lei divina. O

ato extremo de matar era duramente reprovado pelo Peregrino, ao comentar o quinto

mandamento. Não

se deve proteger o assassino, que deve expiar o seu crime na cadeia para não sair dela, para servir de exemplo àqueles que o queiram imitar. Para que foi constituída a lei se não para garantir o direito do homem? Aquele porém que não quer sofrer injúrias por Nosso Senhor Jesus Cristo, cujo exemplo deve imitar, então recorra à lei para punir aquele que lhe (sic) injuriou, porque só assim evitará de tirar a existência do próximo e arrancar tantas lágrimas de uma família.127

Mesmo tendo consciência do valor da misericórdia de Deus pelo pecador, o Peregrino

reprovava o falso juramento, como também o furto de qualquer objeto do próximo. Ele defendia

a punição dura para os que insistiam no erro: “Se o primeiro passo dado pelo ladrão na carreira

do crime fosse logo rigorosamente punido, a ponto de não sair da cadeia, não havia de ver tantas

desgraças”.128 E foi mais exigente, ao citar o pensamento de Santo Agostinho, para quem não se

perdoa o pecado sem restituir o furto.129 O ladrão não merece proteção. Ao contrário, a

impunidade daquele que comete o furto anima aos outros no mesmo procedimento.130

126 MAC , p. 519 e 520. 127 MAC , p. 325 e 326. 128 MAC , p. 363 e 364. 129 Cf. MAC , p. 364. 130 Cf. MAC , p. 367.

83

2.2.3- Textos tirados da Sagrada Escritura

Mesmo sem certa sistematização, essa parte dos manuscritos131 se divide em dois

momentos: primeiro, destaca o amor de Jesus Cristo pelo ser humano e sua aplicação para a vida

do povo de Canudos.132 Começa com a anunciação do Anjo a Maria (cf. Lc 1,28). Para ele, Jesus

veio ao mundo com a finalidade única de “trazer às almas o fogo do divino amor, e que não tinha

outro desejo senão de ver esta santa chama acender em todos os corações dos homens”.133 Inicia

sempre fazendo uma citação do evangelho ou outro texto do Novo Testamento em latim, seguido

de seu próprio comentário. Em muitos casos, há comentários desconexos. Os destaques recaem

nos textos sobre o sofrimento de Jesus e sua capacidade de superação, em função do amor aos

homens e mulheres.134 Em muitos casos, assume textos bíblicos em seus comentários, como se

fossem seus.135 E afirma: “Todo aquele, pois, que me confessar diante dos homens também eu o

confessarei diante de meu Pai que está nos céus”.136 Para o Conselheiro, amor aos inimigos fazia

parte do testemunho dos que querem salvar-se.137 Assim como os discípulos deixaram tudo para

seguir ao Cristo, os que querem pertencer ao Senhor deveriam entregar tudo o que possuem para

serem seus discípulos. Os que tivessem essa coerência receberiam sua recompensa: a vida eterna,

o atendimento dos seus pedidos e o descanso de suas almas. Aqueles que negassem o Cristo

seriam negados; os que o confessassem seriam confessados. São esses que formariam a Igreja de

Cristo, sobre a qual as portas do inferno não prevalecerão, enquanto os outros seriam

surpreendidos pelo fim do mundo.

131 Cf. MAC , p. 427-485. 132 Cf. MAC , p. 427-458. 133 MAC , p. 429. 134 Cf. MAC , p. 430-431. 135 Cf. Como exemplos, MAC , p. 345, 438, 441-442. 136 MAC , p. 441. 137 Cf. MAC , p. 444.

84

Na Segunda parte dos manuscritos, Antônio Conselheiro revela um caráter discursivo e

apologético de suas prédicas.138 Diferentemente da primeira, foram poucas as citações bíblicas,

ainda seguidas dos referidos comentários. Constituíam-se de pequenos comentários e tentativa de

aplicação na vida concreta da comunidade. O gênero literário continua sendo catequético e

demonstra um amor muito grande pela revelação de Deus, por intermédio de sua palavra.

Ao retomar as palavras do Apóstolo Paulo (2Cor 2,4), Antônio Conselheiro mostrava que

seu interesse não era deste mundo e suas palavras não eram palavras meramente humanas: “Os

meus sermões (diz o santo Apóstolo) não se fundam em palavras vãs da humana sabedoria, mas

sim em espírito e virtude”.139 Em tais palavras, condenava a eloqüência humana e inculcava a

eficácia necessária para repreender os vícios e mover o coração ao santo temor de Deus.140

2.2.4- Prédicas de circunstâncias e discursos

Mesmo sendo discursos esparsos, é o texto mais bem elaborado das prédicas.141 Quase

não tem citações diretas da Bíblia. Mesmo assim, são comentários nos quais Antônio Conselheiro

se apropriou de pequenas perícopes ou versículos da Bíblia e transmitiu sua mensagem aos fiéis.

Em compensação, aí foram citados, por diversas vezes, os Santos Padres. Havia uma opção na

escolha de certos temas, em que o texto vem seguido de verdadeira reflexão teológica. Foram sete

temas trabalhados intensamente pelo Peregrino, durante suas prédicas, o que demonstra o

interesse na escolha e na abordagem ao longo de suas pregações: a cruz,142 a missa,143 a

confissão,144 sobre as maravilhas de Jesus,145 construção e edificação do templo de Salomão,146 o

138 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio conselheiro..., p. 219-221. 139 MAC , p. 459-460. 140 Cf. MAC , p. 264-266. 141 Cf. MAC , p. 486-559. 142 Cf. MAC , p. 486-508. 143 Cf. MAC , p. 509-516. 144 Cf. MAC , p. 527-528. 145 Cf. MAC , p. 529-530. 146 Cf. MAC , p. 531-536.

85

recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio,147 sobre a Parábola do Semeador,148 a

República149 e uma despedida.150 Em cada tema, ele desenvolveu pura teologia, articulando textos

da Bíblia, citações dos Santos Padres e outras fontes do magistério eclesiástico. Eram verdadeiras

homilias, ou aulas de catequese, com a finalidade de animar a comunidade eclesial, sob sua

direção, com destaque na ortodoxia magisterial.

Analisando as Prédicas de Antônio Conselheiro podemos observar o quanto ele é respeitoso e obediente às normas e doutrina da Igreja. Algumas vezes ele faz menção aos bispos e arcebispos de maneira positiva. Vemos o quanto ele era equilibrado emocionalmente. A severa perseguição do arcebispo da Bahia não lhe tiraria a capacidade de discernir as “coisas de Deus” das “coisas do mundo”.151

As prédicas, portanto, estão balizadas pela Palavra de Deus e ensinamentos do magistério

eclesial. Não eram reflexão à parte, de um grupo à revelia da comunidade eclesial. Trata-se de

uma experiência em busca da supressão das deficiências da Igreja. Para melhor compreensão das

prédicas de circunstâncias, retornar-se-ão os sete pontos abordados pele Peregrino.

2.2.4.1- Sobre a Cruz

A cruz recebeu destaque na quarta parte dos manuscritos com 23, das 74 páginas.152 O

sofrimento de Jesus é modelo para os que queriam trilhar os caminhos da vida eterna. Por isso,

“Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt

26,24), retoma o Peregrino. Foi prático na aplicação do texto sagrado: “O homem deve carregar

sua cruz debaixo de qualquer forma que se apresente, deve penetrar-se assim de júbilo, sabendo

que em virtude dela vai ao céu”.153 A humilhação passada por Jesus foi por amor à humanidade.

A cruz purifica o cristão das paixões desordenadas. “A cruz reconciliou o céu com a terra, que

147 Cf. MAC , p. 537-553. 148 Cf. MAC , p. 554-559. 149 Cf. MAC , p. 560-623. 150 Cf. MAC , p. 624-628. 151 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 69. 152 Cf. MAC , p. 486-508. 153 MAC , p. 486-487.

86

estava em guerra. Da árvore da cruz brota o pomo de vida que se perdeu no paraíso terreal”.154

Segundo a mentalidade teológica de Antônio Conselheiro, o fato de um Deus morrer na cruz

revela um mistério profundo, perante o qual a razão humana se inclina sem entender.155 Quem

deseja a salvação procura a cruz, não como maldição, mas como “doce cruz! Por mim desejada e

agora preparada para esta alma que por ela tão ardentemente suspira!”156 A cruz é mais que um

símbolo. É o

estandarte da glória, símbolo da fé, chave do paraíso, divino arco-íris da paz entre Deus e os homens, terror do inferno, espada contra o demônio, alegria dos cristãos, esforço dos fracos, escudo dos fortes justificados na graça de Deus, cruz bendita, sempre estimada de Deus, desde o princípio do mundo, no fim do qual haveis de aparecer como estandarte real nas mãos do verdadeiro Deus, castigando com a sua justiça os maus, e triunfando de glória para os bem-aventurados.157

No cristianismo, a cruz teve significado paradoxal, escandaloso e soteriológico. A morte

de Jesus na cruz, presente nas tradições evangélicas, surpreendeu Antônio Conselheiro. Sua vida,

marcada pela cruz do sofrimento, da migração forçada, do conflito de terra, do povo machucado,

encontra inspiração no Cristo, Servo Sofredor. Trata-se da coerência com a tradição sertaneja do

cristianismo moreno, da Via Peregrina, do Cristo da Sexta-feira Santa, da identificação com o

sofrimento do Crucificado. Ao comentar a morte de Jesus na cruz, obediente até a morte, o

Peregrino transcreveu o texto do Profeta Isaías 50,6: “Eu entreguei o meu corpo aos que me

feriam, minha face aos que despedaçavam, não desviei a minha face dos que me diziam

impropérios e cobriam de escárnios”.158 Facilmente relacionava a cruz de Cristo com o

sofrimento de seu povo. Perguntava: “Quem poderá fugir às ignomínias vendo a Jesus tratado

154 MAC , p. 503. 155 Cf. MAC , p. 502. Um aprofundamento bastante sério sobre o emblema da cruz foi feito por SOBRINO, Jon, Jesus Cristo Libertador: I- A história de Jesus de Nazaré, São Paulo: Vozes, 2994. Especialmente a terceira parte: A Cruz de Jesus, p. 285-390. Um outro trabalho pioneiro em teologizar os povos do Terceiro Mundo como povos crucificados, foi feito por: I. ELLACURÍA, El pueblo crucificado: ensaio de soteriología histórica , RLT, 18 (1989, p. 303-333 ( publicado pela primeira vez in: vários, Cruz y resurrección, México, 1978, p. 49-82). 156 MAC , p. 503. 157 MAC , p. 506-507. 158 MAC , p. 438.

87

como louco, como rei de teatro, como malfeitor escarnecido, coberto de escarros e preso a um

patíbulo?”.159 São grandes os bens espirituais para os que meditam os mistérios de Deus na cruz

de seu Filho. Para chegar a um amor perfeito de Deus, era preciso meditar sobre a cruz

salvadora.160 O povo sertanejo se identifica com o sofrimento de Cristo. Alexandre Otten não tem

dúvidas: “A prédica (sobre a cruz) é uma das revelações mais autênticas da espiritualidade do

peregrino. Numa situação de grandes tribulações e confrontos escatológicos, ele interpreta o

mundo pela cruz, tendo nela orientação e segurança que transmite aos seus”.161 Na cruz de Cristo,

a comunidade de Canudos encontrava sentido para superar a morte e a dor. Dela proviam a

mística da resistência da Igreja dos pobres do Belo Monte. Para crescer no amor a Deus, não

havia “exercício mais útil que meditar muitas vezes na sua Paixão (de Cristo)”.162 Insistia, ainda,

“ são tão grandes os bens que resultam da veneração devida à Santa Cruz, que a missa, sendo tão

excelente sacrifício que Deus fez, não se pode celebrar sem assistência da Cruz”.163

2.2.4.2- Sobre a missa

Antônio Conselheiro atuou em Canudos na qualidade de autêntico catequista. Desenvolveu uma

catequese sobre a missa. Quem descobrir os bens advindos da missa, deixa todos os afazeres para

não faltar a este tão grande bem espiritual. Ensinava aos fiéis que “a missa é a melhor cousa e

mais sagrada que Deus deixou à sua Igreja, por ser a representação da paixão e morte de Nosso

Senhor Jesus Cristo”.164 Tinha uma compreensão clara da Eucaristia e a transmitia ao povo: “E

quando se está à missa, é o tempo mais oportuno que há para a oração e para falar com Deus,

pedir-lhe mercês em companhia de milhares de anjos, que Lhe assistem, ajudando-o: por ser a

159 MAC , p. 488. 160 MAC , p. 489. 161 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 223. 162 MAC , p. 489. 163 MAC , p. 490. 164 MAC , p. 509-510.

88

oração um dos maiores remédios que há para destruir os vícios e chegarmos a Deus”.165 E

continuava: “Se bem soubera um cristão o que lucra em assistir e ouvir a missa todos os dias,

deixaria os maiores negócios deste mundo para não faltar a tão grande bem espiritual”.166 A

missa “é a melhor obra, de mais proveito, e não há palavra, nem sinal, nem cerimônia nela que

não tenha significações e mistérios”.167 Além das diversas indulgências garantidas pelos romanos

pontífices para os que participam da missa, “os papas Urbano IV, Martinho V e Eugênio IV,

concederam duzentos anos de indulgência a quem devotamente ouve a missa, ou a diz, ou dá

esmola para ela, como consta em suas bulas”.168 Na missa “se acha para os aflitos alívio, para os

tristes consolação, para os atribulados remédio, para os combatidos socorro, para os consolados

esperança e toda mais paciência, fortaleza, graça, [...] indulgência para os vivos e também para as

almas do purgatório”.169 Sobre a interpretação do mistério eucarístico na óptica de Antônio

Conselheiro, afirma Alexandre Otten: “ A missa, aos olhos do Beato, tem valor porque é um forte

meio para a santificação: para o amor e serviço a Deus, para a conversão dos pecados, para o

cumprimento das obras meritórias; ela dá fortaleza em tempos difíceis”.170 Suas idéias sobre a

missa eram claras. Com facilidade, ensinava isso ao povo, estimulando-o a participar

fervorosamente da missa. Era um bem inestimável de revigoramento da vida e de salvação.

2.2.4.3- Sobre a confissão

Nesta prédica, Conselheiro conjugou os sacramentos da eucaristia e da penitência.171 Na

sua óptica, o católico confessava-se para ir à comunhão. O ser humano carrega dentro de si o

165 MAC , p. 50-511. 166 MAC , p. 509. 167 MAC , p. 511-512. 168 MAC , p. 514. 169 MAC , p. 515-516. 170 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 223. 171 Cf. MAC , p. 517-528.

89

germe do mal, sementes de morte: a soberba atrevida e violenta, apetites insaciáveis, o ódio, a

inveja e a avareza. São heranças do pecado original. Somente a graça de Deus poderia mais ou

menos, domar e reprimir.172 “Deus abandona os que escondem os crimes e perdoa aos que os

acusam. Movido de compaixão a favor dos pecadores, instituiu Jesus Cristo o sacramento da

penitência, que os regenera no sangue do cordeiro e os reveste da inocência primitiva”.173 O

Conselheiro reprovava o procedimento daqueles que deixam de confessar-se ao menos uma vez a

cada ano.174 A confissão combatia a tríplice concupiscência:

Uma soberba ora atrevida e violenta, ora disfarçada e astuciosa, uma curiosidade desmedida, apetites insaciáveis, o ódio acompanhado de injúria, do ultraje e da calúnia, a inveja, mãe do homicídio, avareza que diz continuamente: traze, traze; a dureza da alma, as alegrias culpáveis do espírito.175

Desde o pecado original, a humanidade fora afetada pela tríplice concupiscência citada

pelo Conselheiro. Ele tinha consciência da fraqueza do ser humano, das conseqüências do pecado

original e sua incidência na natureza do homem. Somente pela graça e misericórdia de Deus, o

homem poderia recuperar o “estado original”. Foi para isso que Jesus instituiu o sacramento da

penitência e da reconciliação. Na concepção do Peregrino, a confissão era o único remédio para

curar o pecado e combater a concupiscência. O sacramento do perdão serviria de alívio e alegria

para os oprimidos, necessitados da misericórdia do Filho de Deus:

Vós que andais oprimidos com o peso de vossos pecados, dai-vos pressa, ide, com dor sincera e amorosa esperança, aliviar-vos aos pés daquele que faz as vezes do Filho de Deus; ide e humilhai-vos, ide e chorai-vos; a mão divina enxugará vossas lágrimas, e restabelecidos em graça com Deus, em paz convosco cantareis com alegria o hino do perdão. Ditosos aquele cujas iniqüidades foram perdoadas e cobertos seus pecados! Feliz aquele a quem o Senhor não imputou seu crime e cujo coração não é fraudulento.176

O Beato indicava ao penitente uma forma catequética prática para a confissão. Devia

percorrer os mandamentos da lei de Deus, os pecados mortais, as obras de misericórdia, os

172 MAC , p. 519. 173 MAC , p. 519-520. 174 MAC , p. 521. 175 MAC , p. 518. 176 MAC , p. 520-521.

90

pecados de omissão, especialmente quando se tinha algum cargo ou poder. Em seguida, devia

declarar os pecados ao confessor, sem omissão – por mais grave que fosse – crer na bondade

misericordiosa de Deus, compenetrar-se na dor de tê-los cometido, assumir o firme propósito de

não voltar a cometê-los e, finalmente, cumprir a penitência imposta pelo confessor.177 Sem a

confissão não haveria salvação eterna.178 Após a recepção do sacramento da penitência, agora

com o coração purificado e a consciência tranqüila, o fiel se aproximava da mesa da eucaristia,

onde se dá o maior encontro do cristão com Deus.

2.2.4.4- Sobre as maravilhas de Jesus

Neste pequeno trecho, de apenas duas páginas,179 Antônio Conselheiro não escondeu sua

satisfação, ao contemplar a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, subentendido o texto de

Lucas (cf. Lc 29, 29-40). A única novidade foi o caráter otimista pinçado da narrativa. Durante o

acontecimento, os discípulos estavam “transportados de gosto”, cheios de “chusma a louvar a

Deus pelas maravilhas” e diziam: Bendito o reino que vem em nome do Senhor, paz no céu e

glória nas alturas.180 Nem sequer o apelo dos fariseus para Jesus repreender os discípulos foi

atendido: “Seguro-vos que se eles se calarem, clamarão as mesmas pedras”.181 Constata-se um

grande amor do Peregrino no manuscrito dos textos bíblicos, não deixando dúvidas quanto ao seu

caráter inspirado.

177 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 225. 178 Cf. MAC , p. 525. 179 Cf. MAC , p. 529-530. 180 MAC , p. 529. Ele trocou a palavra rei do texto de Lc 29,38, por reino: “Bendito seja aquele que vem, o rei,...”; por “Bendito seja aquele que vem, o reino...”. Teria sido um mero engano na transcrição do texto evangélico, ou ele identificava, de fato, Jesus com o Reino de Deus? 181 MAC , p. 530.

91

2.2.4.5- Construção e edificação do templo de Salomão

Com uma prédica de seis páginas,182 ele descreveu em detalhes a construção do templo de

Salomão. Destacou a multidão de fiéis que trabalhou durante a edificação. Foram 70 000

carregadores de material; 80 000 cortadores de pedra; 3 600 inspecionadores e 2 000 cortadores

de cedro no Líbano.183 A construção era majestosa. Foram 60 côvados de comprimento; 20 de

largura; 30 de altura; um espaçoso alpendre em volta. Além disso, grandes odres para os

sacerdotes e o povo.184 Por dentro, as paredes eram forradas de cedros, representando querubins,

palmas de flores variadas. Havia belíssimos altares para o culto: 10 mesas; 100 taças ou cálices

de ouro puríssimo; o Santuário e o Santo dos Santos eram chapeados de lâminas de ouro.185

Descreveu a inauguração solene do templo: estavam presentes os Príncipes e anciãos,

transladando a Arca da Aliança. Os levitas tocavam atabales, saltérios e cítares; 220 sacerdotes

embocavam suas trombetas e romperam todas as vozes nesse festim o seguinte cântico: “Bendizei

ao Senhor porque ele é bom e sua misericórdia é eterna”.186 Ao entrar no templo com a Arca,

Salomão adorou ao Senhor, fez uma oração e foi atendido por ele: “Ouvi a tua oração, santifiquei

esta casa e meus olhos e meu coração aqui estarão sempre atentos para todos os que

invocaram”.187

A façanha da construção do templo de Salomão tinha similar: o sonho da construção das

várias capelas, por onde o Peregrino andava. A escolha do relato da construção do templo de

Salomão não foi aleatória. Antônio Conselheiro foi construtor de belas igrejas, como a de Monte

Santo, Chorrochó, Iambupe, existentes até hoje. Traça logo a relação: “O Templo de Salomão é,

182 Cf. MAC , p. 531-536. 183 Cf. MAC , p. 531. 184 Cf. MAC , p. 532. 185 Cf. MAC , p. 532-533. 186 MAC , p. 534. 187 MAC , p. 536.

92

como o antigo Tabernáculo, uma figura das nossas Igrejas”.188 Zeloso pelas igrejas, tinha bom

gosto pelas construções: “uma autoridade de Itapicuru acusou o beato com seus superiores em

Salvador pelo desperdício de dinheiro que traz a construção de uma capela”.189 Inclusive, o

suposto motivo do desencadeamento da guerra foi a busca da madeira para a construção da igreja

nova de Canudos. Matéria abordada ainda neste capítulo.

2.2.4.6- Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, padroeiro do Belo

Monte

O relato de sua prédicas, em 17 páginas,190 é uma comemoração da inauguração da igreja

do Patrono de sua comunidade. Primeiro, o novo templo, recebido pelo povo como dádiva do

Bom Jesus, tocou o coração dos fiéis a prestarem esmolas e seus braços durante os mutirões. Aos

colaboradores, ficava a certeza da recompensa generosa do Bom Jesus. O Peregrino sabia da

importância da nova igreja de Santo Antônio para agregar o povo, na casa de Deus. Considerava-

se indigno encarregado da construção. O novo templo de Canudos foi objeto de júbilo para o

Conselheiro.191 Não restavam dúvidas. Chegou o momento de reconhecer as contribuições dos

doadores e comemorar em comunidade. Convidou o povo para se alegrar e contemplar “com

júbilo as maravilhas que o Onipotente Senhor está fazendo aqui, por tanta glória, louvor e honra

ao nosso amável Jesus”.192

Teceu, ainda, duras críticas aos judeus, protestantes, maçons e republicanos.193 Eles deram

um triste testemunho de incredulidade, assemelhando-se aos judeus que só acreditam na Lei de

Moisés. Os judeus, maçons, protestantes e republicanos espalham doutrinas falsas e errôneas:

188 MAC , p. 536. 189 MAC , p. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 226. 190 Cf. MAC , p. 537-553. 191 Cf. MAC , p. 536. 192 MAC , p. 538. 193 Cf. MAC , p. 548.

93

93

além das perseguições que fazem à religião do Bom Jesus, nunca eles vão triunfar porque Deus

protege sua obra.194 Eles eram ingratos. Não havia dúvidas quanto à verdadeira Igreja. “Foi

Nosso Senhor Jesus Cristo, fiéis, que fundou a sua Igreja, cujo ensino vem do Senhor: nela não

há erro, porque o seu fundador é a fonte de toda a sabedoria, santidade e perfeição”.195 Se Jesus é

o fundador da Igreja, quem tem coragem de não contribuir para a construção de um novo templo?

indagou o Peregrino, acrescentando: “Vejam, fiéis, se não é de grande utilidade e agradável aos

olhos divinos do nosso Bom Jesus a construção dos templos. [...] certamente não deixaria de

concorrer com suas esmolas e com seus braços para a construção de tão belas obras”.196

Sua crítica aos judeus, maçons e protestantes advinha do processo de romanização, tão

marcante na vida da Igreja. A visão eclesiológica do Peregrino era a de uma única Igreja, fundada

pelo próprio Cristo, detentora da verdade: não erra, pois seus ensinamentos procedem do próprio

Cristo, única porta pela qual passam as ovelhas. E comentou Jo 10,9: “Eu sou a porta e se algum

por mim entrar será salvo. Acreditem pois, fiéis, na lei da graça que é a verdadeira lei que devem

observar irrepreensivelmente para vossa salvação”.197 Para ele, não restam dúvidas, de que só

existia uma única Igreja: a Católica, Apostólica, Romana.

2.2.4.7- Sobre a parábola do semeador

O autor das prédicas contou, com suas palavras, a parábola do semeador (Lc 8,4-18) e o

convite aos pobres para o jantar (Lc 4, 2-14), em forma de resenha.198 Parecia identificar-se com

o semeador sertão afora. Teve consciência da prioridade do convite aos pobres. Estes deveriam

ser chamados para as refeições, respeitando a lógica do evangelho: “quando deres um festim,

194 Cf. MAC , p. 548. 195 MAC , p. 550. 196 MAC , p. 552. 197 MAC , p. 549. 198 Cf. MAC , p. 554-559.

94

convida os pobres, aleijados, coxos e cegos, e serás feliz porque eles não têm com que retribuir:

com efeito, isso será retribuído na ressurreição dos justos” (Lc 14,13). A palavra de Jesus era

norma, Alexandre Otten acredita que o “trecho de Lc 24,12-14, alude, no entanto, no gosto do

conselheiro, que seguindo a palavra de Jesus, acolhe em sua companhia sobretudo os mais

miseráveis, que, segundo o Evangelho, não têm como retribuir. Canudos torna-se refúgio dos

pobres, coxos, aleijados e cegos”.199 O Evangelho precisava ser semeado no meio da gente

maltratada pela República.

2.2.4.8- Sobre a República, o casamento civil, a família imperial, a libertação dos

escravos

Com uma longa prédica de 34 páginas,200 Antônio Conselheiro comentou três temas

distintos: A Companhia de Jesus, o casamento civil, a família imperial e a libertação dos

escravos. Com um discurso eminentemente político, o Peregrino externou sua posição contra o

sistema republicano. Do ponto de vista da comunidade, a República era um assunto assombroso.

Ele não mediu as conseqüências e disparou contra o chefe da Nação: “O presidente da República,

porém, (é) movido pela incredulidade que tem atraído sobre ele toda sorte de ilusões, entende que

pode governar o Brasil como se fosse um monarca legitimamente constituído por Deus; tanta

injustiça os católicos contemplam amargamente”.201 Em seguida, atacou o sistema republicano.

Por ter uma base sobre um princípio falso, dele não se poderia tirar conseqüências legítimas.202 A

República era um grande mal para o Brasil. Seus governantes chegaram à incredulidade de

proibir até a Companhia de Jesus, de oprimir a Igreja e os fiéis do Bom Jesus.203 Os republicanos

199 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 228. 200 Cf. MAC , p. 560-623. Da página 569, há um salto para a página 600. Porém, não se constata descontinuidade no texto. 201 MAC , p. 564. 202 Cf. MAC , p. 567. 203 Cf. MAC , p. 560-569.

95

também querem acabar com o casamento religioso. Por essas atitudes políticas, Antônio

Conselheiro posicionou-se contra a instituição: “A República é o ludíbrio da tirania para os fiéis.

Não se pode qualificar o procedimento daqueles que têm concorrido para que a República

produza tão horroroso efeito! Homens que olham por um prisma, quando deviam impugnar

generosamente a República”.204 As práticas excludentes dos republicanos acirravam os ânimos de

Antônio Conselheiro diante da crise política e do conflito entre Igreja e Estado. Não deixou seus

liderados à revelia da corrupção dos republicanos. Apelou para a moralidade da família. Animou

o povo diante da desordem: “Vamos com coragem combater os nossos inimigos com os olhos

fixos em Jesus Cristo, que pelos merecimentos da sua paixão nos oferece a vitória e a coroa”.205

Conselheiro não conseguiu superar a visão teocrática do poder. Em seu entendimento,

somente a família imperial teria legitimidade para governar o Brasil. Um juiz desse sistema tirava

o direito de quem tem para dar a quem não tem: “Negar estas verdades seria o mesmo que dizer

que a aurora não veio descobrir um novo dia”.206 Os que receberam legitimamente o poder de

Deus, somente a ele devem obediência: pontífice, o pai de família e os ministros de Deus para o

bem do povo. Quem, por direito divino, deveria governar legitimamente o Brasil é o Príncipe, D.

Pedro . Ele atribuiu o ódio dos republicanos à família real, porque sua alteza, a senhora Dona

Isabel, libertou os escravos das senzalas. Por isso, os republicanos guardavam ressentimento

desse ato de bondade.

Interpretando a visão maniqueísta e a teocrática presentes nos manuscritos do Peregrino,

José Luiz Fiorin conclui sobre sua cosmovisão:

A cosmovisão conselheirista insere-se num esquema axiológico maniqueísta: bem vs mal. Ao bem pertence os semas da cosmovisão exposta acima. Ao mal, seus contrários. O tempo histórico é, pois, uno, uma vez que a história se reduz à peleja entre o bem e o mal,

204 MAC , p. 562. 205 MAC , p. 613. 206 MAC , p. 569.

96

ou seja, entre a Igreja católica, encarnação do bem, e os seus inimigos, que representam o mal.207

Essa visão teocrática incide, determinantemente, nos organismos sociais e produz ou

confirma uma determinada forma de conceber a organização da sociedade humana. A idéia

medieval atribui os semas englobante e englobado, respectivamente, às ordens espiritual e

temporal. “Os semas pertencentes a essa visão são, pais: / teocratismo/, cosmopolitismo/,

naturalidade/, estaticidade/, masculinidade/”.208

Antônio Conselheiro saiu em defesa do casamento religioso. Pediu aos pais de família que

não apoiassem as atitudes do governo contra o verdadeiro casamento religioso, único deixado por

Deus. Diante de Deus, o casamento civil não tem qualquer valor. Sendo a união religiosa um

contrato entre duas pessoas ligadas por amor, os casados na Igreja “são justificados com a graça

que lhes deu Nosso Senhor Jesus Cristo e autorizada com a cerimônia que lhes juntou a santa

madre Igreja”.209 O casamento entre homem e mulher, elevado pelo próprio Cristo à dignidade de

sacramento, seria puramente de responsabilidade da Igreja e só seus ministros teriam poder para

celebrá-lo.210 O poder temporal não devia exercer qualquer tipo de interferência nos atos

sagrados. O casamento cristão é da lei de Cristo, “figurando nele a sua união com a santa Igreja,

como diz São Paulo. Assim, pois, é prudente e justo que os pais de família não obedeçam à lei do

casamento civil, evitando a gravíssima ofensa em matéria religiosa que toca diretamente a

consciência e a alma”.211 Se o casamento civil foi inventado pelos republicanos que, por sua vez,

eram contra a Igreja, logo, não deveria ser seguido pelos membros de sua comunidade. Não

deveria haver medo. Deus protegeria sua Igreja, porque era obra-prima de suas mãos. O

207 FIORIN, José Luiz, A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas de Antônio Conselheiro. Dissertação de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo, 1999, p. 154. 208 Ibidem. 209 MAC , p. 605. 210 Cf. MAC , p. 607. 211 MAC , p. 607-608.

97

Peregrino apelou para o Evangelho: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e a

Potência da morte não terá força contra ela” (Mt, 16,18). No cumprimento do direito divino

estava garantida a certeza da vitória. A Igreja e seus fiéis encontravam-se protegidos por vontade

divina.

No final dessa prédica, Antônio Conselheiro dirigiu uma reflexão sobre a escravidão

negra e sua abolição.212 O ato da Princesa Isabel não foi mais do que cumprir a ordem vinda do

céu. Era “chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo desse semelhante estado, o

mais degradante a que podia ver reduzido o ente humano”.213 Muitos escravos morriam debaixo

dos açoites, outros oprimidos do peso da fome e do trabalho. Alguns já não suportavam com

paciência tanta crueldade e, revoltados, se matavam!214 Os senhores de engenhos não sabiam que

era da vontade de Deus libertar os escravos. Deus agiu em socorro de seu povo nas senzalas:

“Chegou enfim o dia em que Deus tinha de pôr termo a tanta crueldade, movido de compaixão a

favor de seu povo e ordena para que se liberte de tão penosa escravidão”.215 Na concepção

religiosa de Antônio Conselheiro, o poder que desrespeita o ser humano, o oprime e o escraviza

não vem de Deus, mas de satanás. Até mesmo os clérigos aliados ao poder republicano, não

foram poupados pelo Beato de Canudos. Eles não passavam de falsos cristãos.

2.2.4.9- Prédica de despedida

O chamado discurso de despedida216 revela o otimismo de um homem satisfeito com a

missão recebida, agradecido de ter cumprido a vontade de Deus. Pelo desenrolar dos

acontecimentos, tinha consciência da proximidade da morte. Já com idade avançada, saúde

212 Cf. MAC , p. 619. 213 MAC , p. 619. 214 Cf. MAC , p. 623. 215 MAC , p. 623. 216 Cf. MAC , p. 624-628.

98

bastante fragilizada, ficou chocado com as invasões militares a Canudos e o massacre ao seu

povo. No final da guerra, em outubro de 1897, desejou que seus conselhos produzissem

abundantes frutos. Encorajou seus seguidores: “podeis entretanto estar certos de que a paz de

Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa luz e força, permanecerá em vosso espírito”.217 Lembrou-se de

pedir perdão dos erros cometidos: “Antes de fazer-vos minha despedida, peço-vos perdão se nos

conselhos vos tenho ofendido. [...] todavia não concebam que eu nutrisse o mínimo desejo de

macular a vossa reputação”.218 De forma poética e dramática, sente que é hora de despedir-se de

sua comunidade. Cheio de vivos sentimentos, pronuncia as últimas palavras, demonstrando as

gratas recordações, que jamais se apagarão de sua lembrança: “Adeus povo, adeus árvore, adeus

campos, aceitai a minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós,

que jamais se apagarão da lembrança deste Peregrino”.219 Finalmente, este Peregrino “aspira

ansiosamente à vossa salvação e ao bem da Igreja. Praza aos céus que tão ardente desejo seja

correspondido com aquela conversão sincera que tanto deve cativar o vosso afeto”.220 Foi o final

emocionado do seu discurso, dias antes da morte!

2.3- Tentativa de uma leitura sistemática do pensamento teológico do Conselheiro

Como ficou evidente, Antônio Conselheiro produziu um discurso teológico possível de

detectar uma linha de reflexão ou pensamento sistemático. Na qualidade de líder leigo, não foi

um cristão qualquer. O Peregrino não teve formação teológica para tal tarefa. Pode-se garimpar

nos seus escritos, elementos teológicos, enriquecedores, dos que se propõem compreender em

profundidade a contribuição que Antônio Conselheiro deixou para a história do Brasil,

especialmente para a Igreja Católica. “Não é de se esperar que o Conselheiro, como uma simples

217 MAC , p. 624. 218 MAC , p. 625-626. 219 MAC , p. 267-268. 220 MAC , p. 628.

99

pessoa religiosa leiga, desenvolva todo um sistema teológico coeso”.221 Com olhar mais atento

sobre seus manuscritos detectam-se verdadeiros filões teológicos.222 Com a finalidade de animar,

libertar e salvar o povo do Nordeste, Antônio Conselheiro oferecia algo que o historiador não

consegue mensurar na experiência do povo de Canudos: o aspecto religioso. Este deu sustentação

à organização sociológica do acampamento. Prevaleceu o interesse de alimentar a resistência dos

canudenses, a convivência respeitosa entre os membros de sua comunidade eclesial, inspirada nos

ensinamentos da fé cristã. Os Dez Mandamentos foram assumidos de forma concreta, tornando-

se a ética de sustentação da conduta dos integrantes do Arraial. Das prédicas sobre os

mandamentos, emergem três tipos de pecados: mácula, transgressão da lei divina e sujeição à

carne.

O Conselheiro demonstra conhecer razoavelmente Santo Agostinho; acreditava na força

da graça de Deus como superação do pecado. Por isso, para superar o pecado, faz-se necessário a

ascese. Ele deixa claro a necessidade de não infringir, de modo algum, nem mesmo por causa de

extrema necessidade material, as ordenações divinas. “A ética ensinada pelo Conselheiro tem um

traço qualificacional bastante nítido, a juridicidade. Há uma preocupação, corrente na época, com

a lei. [...] O conjunto doutrinário torna-se, então, lei, cuja violação é punida com a ira divina”.223

Euclides da Cunha, com sua cultura letrada, fez duras críticas ao conteúdo das pregações

do Beato do sertão nordestino. Não esconde a arrogância do letrado, detentor da ciência positiva,

fora da qual não existe verdade. E dispara contra o conteúdo das prédicas:

Uma oratória bárbara e arripiadora, feita de excertos truncados das Horas marianas, desconexas, abstrusas, agravadas, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e profecia esdrúxula... Era truanesco e era pavoroso. Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse... Parco de gestos, falava largo

221 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 232. 222 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 232. 223 FIORIN, José Luiz, A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas de Antônio Conselheiro..., p. 158.

100

100

tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopéia fatigante.224

O ataque de Euclides da Cunha ao Conselheiro não encontrou respaldo nas multidões que

acompanhavam o Peregrino. O literato não entendia como as pessoas davam ouvidos a tanta

“futilidade”, a um discurso atrasado, uma “moral ultrapassada” e “sem base científica”. De sua

boca saía apenas “uma ou outra frase incisiva. Enunciava-a e emudecia: alevantava a cabeça,

descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o

olhar – uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo”.225 O mais intrigante: “A

multidão sucumbida abaixa, por sua vez, as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo daquela

insânia formidável”.226 Euclides da Cunha percebeu a reação positiva do povo às prédicas de

Antônio Conselheiro e uma “vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões,

estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem os ouvia não se forra a

aproximações históricas sugestivas”.227

Não era de esperar de Euclides da Cunha uma reação de admiração ao Peregrino. Eram

representantes de dois brasis. O Brasil do litoral e o do sertão. Um representava o “letrado”; o

outro, o “ignorante”. Aquele, representava a “ciência”, o “homem civilizado” e o “Estado de

direito”; este, o “analfabeto”, o “homem atrasado”, “sem cultura” e a reação ao “Estado de

direito”. Não se podia exigir de um literato, um homem pautado pela ciência militar, formado nos

ditames da filosofia positiva, compreender um catolicismo enraizado na vida do povo, sem base

científica, liderado por um líder sem qualquer contato com o positivismo francês. Euclides não

foi capaz de perceber a base contestadora desse catolicismo, sem a qual a resistência não

encontraria explicação.

224 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 223-224. 225 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 224. 226 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p, 224. 227 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 224.

101

Eduardo Hoornaert nos faz entender o papel desempenhado por esse catolicismo, na

religiosidade cultivada pelas principais lideranças eclesiais e suas marcas na vida das

comunidades. “O povo tem uma cultura própria e podemos mesmo afirmar que o catolicismo

popular constitui a cultura mais original e mais rica que o Brasil já produziu”.228 Rubens Alves

preencheu a lacuna deixada por Euclides, quando não percebeu o caráter contestador e próprio

dessa religiosidade. Esta funciona como “um protesto contra uma realidade estranha (cultural,

econômica e política) que é imposta de cima para baixo [...] O arcaico se transfigura em utópico,

a aparente presença do passado se transforma em anúncio do futuro, a memória torna-se

profecia”.229 A nosso ver, faltou essa percepção ao literato. Com isso, comprometeu sua visão

religiosa correta do discurso do Conselheiro. Euclides entendeu como “excertos truncados das

Horas marianas” e ousadas “citações latinas”.230 O olhar do teólogo detecta como uso de fontes

da ciência teológica.

Os fundamentos teológicos de Antônio Conselheiro foram bem sedimentados pela

experiência adquirida no contato com os padres Ibiapina, Cícero e os diversos manuais de

religiosidade popular circulantes no seu meio. A teologia encontrada nos seus manuscritos não

difere do pensamento teológico presente nos manuais de teologia de seu tempo. Antônio

Conselheiro não incorreu em heresias. Ao contrário, suas homilias concorrem com os

missionários capuchinhos e vigários da região. Salta aos olhos a ligação de seu pensamento com

a Tradição da Igreja, o uso freqüente da Bíblia; recorreu diversas vezes aos Santos Padres. O fato

de reconhecer essa ortodoxia nas prédicas do Conselheiro não o abdica da liberdade para criticar

o sistema eclesiástico, distante do povo, a exigir compromisso da República e repulsa ao sistema

coronelista, causadores dos males no sertão.

228 HOORNAERT, Eduardo, A formação do catolicismo brasileiro..., p. 99. 229 ALVES, Rubens, A volta do sagrado, in: O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas. 1992, p. 139. 230 Cf. CUNHA, Euclides da, Os sertões..., p. 223.

102

A fé no Deus presente ao lado do povo da Bíblia, na escravidão, o amor misericordioso de

Jesus, alimentado pela oração diária, a participação nos sacramentos – especialmente do batismo,

reconciliação e eucaristia – uniam a comunidade num único objetivo: viver a fé cristã na oração,

na fraternidade, no trabalho, no cuidado aos pobres e indefesos que chegavam a Canudos. A

presença de Jesus na vivência dos sacramentos, a certeza de um Deus compassivo e

misericordioso para com os pobres, presença do Cristo libertador e o exemplo de Maria e dos

santos, forma uma espécie de “núcleo duro” do pensamento de Antônio Conselheiro, são o “fio

condutor” de sua reflexão teológica, conforme a análise dos principais pontos, a seguir.

2.3.1- O Deus Criador, Misericordioso e Onipotente

É o ponto mais significativo das prédicas de Antônio Conselheiro. Ele trata do primeiro

mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o

teu entendimento. Este é o máximo e o primeiro mandamento (Mat., cap. 22, v. 38)”.231 O Beato

levanta uma pergunta sobre Deus, num tom de admiração, contemplando a bondade do Pai, ao

enviar seu Filho para resgatar o homem do pecado: “Ah! Que maior amor podia Deus mostrar-

nos depois de condenar à morte seu Filho inocente para salvar miseráveis pecadores como

nós?”232 E contrapõe o poder de Deus ao poder dos poderosos da República e coronéis do sertão:

“Só Deus é grande”. Expressão que ficou consagrada no pensamento do Peregrino. Nada neste

mundo está acima do Criador: “Deus é rico e Todo-Poderoso, Senhor do céu e da terra, do mar e

de todos os bens e haveres deste mundo”.233 Somente diante de Deus, Eterno Pai, o homem deve

dobrar seus joelhos. Poder supremo, só Deus. O Peregrino revelava isso, através da oração: “ó

Criador Supremo, o plano da vossa providência: Maria é nossa co-redentora; isto basta para

231 MAC , p. 224 232 MAC , p. 241. 233 MAC , p. 477.

103

convencer-nos de que ela tem de ser a mais atribulada de todas as mães, porque Jesus, seu Filho,

vai ser o mais humilhado de todos os homens”.234

Antônio Conselheiro desenvolveu uma reflexão segura e teologicamente correta ao tratar

das três pessoas trinitárias e suas relações entre si. Ainda, comentando o primeiro mandamento, o

Peregrino se alegra. Reconhece a proteção de Deus diante de Isaac, prestes a ser sacrificado por

vontade divina. Deus acudiu, mandando-lhe o anjo suspender o golpe, provando seu amor para

com Abraão, seu Pai.235 Impressiona a forma de dirigir-se a Deus, parafraseando São João

Crisóstomo:

Oh! Maravilhosa condescendência de vossa ternura! Oh! rasgo incomparável de caridade! Para resgatar o escravo entregastes o Filho! Deus infinito! Como pudestes usar de ternura tão amável. Quem jamais poderá compreender o excesso desse amor, pelo qual para resgatar o escravo quisestes dar vosso Filho Unigênito?236

A linguagem utilizada pelo Peregrino sobre Deus-Pai-Criador revela a visão de um Deus

amoroso. Valorizou o aspecto do amor divino, a ternura de Deus, a graça recebida sem

merecimento humano, instalada com a morte vicária de Cristo. Recebeu influência da teologia do

pecado original de Santo Agostinho. Deus tem, ainda, características bem definidas: “Há uma

tendência de enfocar no Onipotente Todo-Poderoso o Eterno Pai, no Deus infinito o Deus de

amável ternura, no Ser supremo sem sofrimento o Deus da compaixão, no Deus Criador soberano

o Deus que quer habitar em meio do seu povo”.237 Apresentou um argumento tomista sobre o

Deus Uno e Trino, ao referir-se a Santo Tomás de Aquino:

“Ora o Dom que o Eterno Pai nos fez de seu Filho foi verdadeiro dom gratuito e sem merecimento algum de nossa parte; é por isso que se diz que a Encarnação do verbo teve lugar pela operação do Espírito Santo, isto é, unicamente pelo amor, como se exprime o mesmo doutor”.238

234 MAC , p. 144-145. 235 MAC , p. 225. 236 MAC , p. 287-228. 237 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 236. 238 MAC , p. 229-230.

104

O Deus Uno e Trino demonstra seu amor, enviando-nos seu único Filho. Nota-se, de certa

maneira, a insistência no aspecto da ternura do Pai e uma visão de Deus distinta daquela pregada

pelos missionários: um Deus vingativo e castigador dos pecadores. Visão que ficará mais nítida

quando ele fala sobre o sacramento do perdão. Quem é ingrato a Deus vive cego. Quem conhece

Deus abandona o pecado e muda de vida”.239 Após exame do pensamento do Cardeal Hugo,

afirma que Deus enviou Jesus para dar o último golpe e ferir de amor os corações humanos. “Na

antiga lei podia o homem duvidar se Deus o amava com ternura, mas depois de o ter visto

derramar o seu sangue num suplício e morrer, como podemos duvidar se nos ama com toda

ternura do seu coração?240 Mesmo pregando sobre o amor misericordioso de Deus, não deixou de

chamar a atenção para os que não seguiam seus mandamentos e insistiam no desprezo a Deus e

na ofensa aos irmãos. Todos os homens devem temor a Deus e precisam acertar contas em

qualquer cargo ou poder em que se vêem constituídos.241 Quem não respeita a vida humana está

sujeito às penas divinas: “Ação digna de um grande castigo e repressão, tanto pela ofensa a Deus,

como do próximo”.242 O Peregrino não tolerava a injustiça aos filhos de Deus. Sempre insistia na

prática da Palavra de Deus.

Alexandre Otten é categórico no que diz respeito à linha de pensamento de Antônio

Conselheiro: “Este centro do pensamento teológico do Conselheiro – o Pai amoroso que entrega

o próprio Filho para salvar os homens – é pelo beato representado e atualizado para seus

seguidores”.243 No tempo certo, Deus libertou os escravos da dura servidão.244 O fim desta

humilhação tornou-se possível por amor de Deus ao seu povo sofrido.

239 MAC , p. 243-244. 240 MAC , p. 226. 241 MAC , p. 263. 242 MAC , p. 265. 243 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 235. 244 Cf. MAC , p. 616 e 623.

105

2.3.2- Concepção sobre Jesus Cristo

Antônio Conselheiro não deixava dúvidas: Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, é o

Bom Jesus, o Divino Redentor.245 Oferecendo-se por nossos pecados, o Bom Jesus se fez amável

Redentor, segunda pessoa da Santíssima Trindade.246 Dirigindo-se ao Bom Jesus, externava sua

total confiança: “Oh! Bom Jesus, que fazendo tantos prodígios de amor, não pode ainda ganhar os

nossos corações? [...] Oh! Se todos os homens pensassem no amor que Jesus Cristo nos

testemunhou morrendo na cruz por nós [...]”.247

Jesus, por ser o Rei dos mártires, cujo poder está acima de qualquer outro, tornou-se

homem sem deixar de ser Deus, foi uma vítima destinada ao sacrifício, para o bem do gênero

humano. Jesus Cristo nos alcançou mais bem por sua morte do que o demônio nos fez mal pelo

pecado de Adão.248 Jesus veio tomar a natureza humana, concebida de Maria, nascida em Belém,

“despachando do Poço da Santíssima Trindade, trazendo o poder, o saber e o amor. Foi assistido

dos anjos, adorado dos reis e visitado dos homens”.249 Como Filho do Eterno Pai, nasceu pobre,

“viveu independente, morreu despido e partiu para sua pátria com muitas enchentes de graças;

pelos merecimentos que fez na terra em todo o tempo do seu bom governo, levando o título de

rei”.250 Morreu na cruz para nos salvar; no fim do mundo ele voltará vitorioso.

Podemos encontrar diversos títulos cristológicos sobre o Deus encarnado: Filho de

Deus,251 Nosso Senhor Jesus Cristo,252 O Bom Jesus,253 Adorável Jesus,254 Amado Filho.255

245 Cf. MAC , p. 224 e 239. 246 MAC , p. 229-230. 247 MAC , p. 233. 248 Cf. MAC , p. 244. 249 MAC , p. 268. 250 MAC , p. 269. 251 Cf. MAC , p. 10. 252 Cf. MAC , p. 268. 253 Cf. MAC , p. 239. 254 Cf. MAC , p. 133. 255 Cf. MAC , p. 134.

106

Enfim, “O mais gentio dos filhos dos homens entre os brutos e na mais completa pobreza”.256

Poder-se-ia desenvolver uma verdadeira cristologia, a partir desses títulos.

2.3.3- A idéia sobre o Espírito Santo

Antônio Conselheiro pouco ocupou-se da pessoa do Espírito Santo. Refere-se à terceira

pessoa da Trindade, por ocasião da visita do anjo à Maria, na encarnação do Verbo de Deus

dizendo: “O Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra

[...].257 Lembra Santo Tomás de Aquino: “é por isso que se diz que a encarnação do verbo teve

lugar pela operação do Espírito Santo, isto é, unicamente pelo amor, como se exprime o mesmo

doutor”.258 Não se poderia esperar uma longa reflexão do Conselheiro sobre a pessoa do Espírito

Santo. É a partir do desenvolvimento do pentecostalismo evangélico e católico, pouco antes do

Concílio Vaticano II, nos Estados Unidos, que a terceira pessoa da Trindade passou a ocupar

lugar de destaque na pneumatologia ocidental. Foi uma lacuna no pensamento de Antônio

Conselheiro.

2.3.4- A idéia sobre a Igreja Católica

Ao predicar sobre a Igreja, o Conselheiro apresentou sua definição sobre ela,

aconselhando seus membros ao dever de permanecerem unidos ao Deus Criador: “a Igreja é a

congregação dos fiéis que, por dever indeclinável, devem curvar-se reverentemente diante de

Deus, rendendo-lhe as devidas adorações, invocando seu nome com amorosa confiança, tendo

por certo que Deus lhe será propício”.259 É de origem divina, nasceu da vontade do Salvador. Não

tem medo de dirigir-se aos fiéis para comunicar esta verdade de fé: “Foi Nosso Senhor Jesus

256 MAC , p. 10. 257 MAC , p. 428. 258 MAC , p. 229-230. 259 MAC , p, 550 -551.

107

Cristo, fiéis, que fundou a sua Igreja”.260 Ele fundou uma única Igreja. Se ela é uma obra-prima

da vontade do Bom Jesus, “conseqüentemente só ela é verdadeira, cujo ensino vem do mesmo

Senhor: nela não há erro, porque seu fundador é a fonte de toda sabedoria, santidade e

perfeição”.261 A salvação de Cristo realiza-se através da Igreja Católica, Apostólica Romana. A

única Igreja verdadeira é constituída “pelos santos e convertidos, por aqueles que puseram o amor

de Deus e a busca da salvação em primeiro lugar, que seguem a Lei divina e os preceitos da Santa

Igreja e da Santa Religião com pertinência e assiduidade”.262 Conselheiro não acha normal, nem

da vontade do Bom Jesus, o aparecimento de Igrejas protestantes e outras atitudes que

contestavam a soberania de Deus e o trabalho da Igreja Católica. Pelo menos com os protestantes

não estava disposto ao diálogo. Colocava os judeus, maçons e republicanos na vala comum dos

que atrapalhavam a missão da Igreja:

Quem teria nunca imaginado que no século dezenove, cujo povo foi educado nos santos salutares princípios da religião cristã, que muitos deles deixassem de se nutrir do verdadeiro sentimento do amor de Deus; além de terem tão triste testemunho, ocorre que se movem pela incredulidade, imitando assim os judeus, idéia horrorosa, pensamento ingrato; que eles não ligam a menor importância pela sua salvação, como são os maçons, protestantes e republicanos, porque eles também só acreditam na Lei de Moisés, espalhando doutrinas falsas e erronias aos ignorantes, arrastando assim tantas almas para o inferno, além das perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus, nunca eles hão de triunfar, porque Deus protege a sua obra.263

Conselheiro não estava fora do seu tempo. Seu pensamento sobre o protestantismo, os

judeus, a maçonaria e a República se coadunava com a Igreja Católica, do final do século XIX.

Dos próprios ensinamentos da Igreja oficial nasceram, no coração do Peregrino, o amor à Igreja e

a reação a seus opositores.

A ojeriza ao protestantismo e judaísmo talvez decorresse mais dos livros de piedade,

escritos na Europa (especialmente em Portugal e Roma), do que de um confronto com igrejas

260 MAC , p. 550. 261 MAC , p. 550. 262 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 242. 263 MAC , p. 547-548.

108

diferentes, no contexto sertanejo. O protestantismo só começa ter influência no Brasil, a partir do

início do século XX, com a chegada das primeiras convenções ao País, com os imigrantes

europeus. Francisco Rolim data de 1910 e 191 a chegada das igrejas Assembléia de Deus e

Congregação Cristã no Brasil, respectivamente.264 Nesse período, o Nordeste não recebia

qualquer influência religiosa, além da Igreja Católica, tão querida pelo Peregrino e das religiões

indígenas e afro. Na comunidade de Canudos, havia uma grande quantidade de índios e negros.

Aliás, diga-se de passagem, não há registro de conflitos entre o Conselheiro e as religiões dos

índios e negros; se existiram, não foram significativos, a ponto de atrapalhar a comunidade. Tudo

leva a crer que havia uma tolerância às diferentes experiências religiosas, trazidas pelos membros

que chegavam à comunidade. Prevalecia, é claro, o catolicismo.

2.3.5- A idéia sobre o papa, os cardeais e os bispos

Nos textos extraídos da Sagrada Escritura, mesmo sem muitos comentários, Antônio

Conselheiro não se esqueceu de citar Mt 16,18. Como de costume, primeiro transcreve a citação

em latim (prática que irritou Euclides da Cunha), seguida da tradução: “Tu és Pedro e sobre esta

pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.265 Reconhecia

a liderança do Papa, afirmando: “Na vara do sumo pontífice se vêem expressamente estas três

cruzes, símbolo do supremo poder daquele supremo ministro de Deus”. Não cita o outro texto de

Mt. 18,15-18, (sobre a correção fraterna), interpretado teologicamente à luz de Mt 16,18, que

amplia o peso da autoridade individual de Pedro, à luz da comunidade. 266 Ele não se colocava

contra a Igreja ou suas autoridades. Só fazia críticas quando os prelados abandonavam os pobres

e optavam pelos ricos e poderosos, muitos deles contra a Igreja do Bom Jesus e seus pobres. O

Conselheiro superou a média de conscientização entre os excluídos do sistema político e 264 Cf. ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 15. 265 MAC , p. 435. 266 MAC , p. 500-501.

109

religioso. Conseguiu perceber as deficiências da Igreja e da República. Papas, cardeais,

arcebispos e bispos devem estar a serviço de Deus e, através das bênçãos, dirigir o povo para o

bem:

Estas bênçãos se vêem lançar os papas, cardeais, bispos e todas mais pessoas constituídas em dignidade eclesiástica, no fim da missa e mais cerimônias da Igreja, quando abençoam os cristãos, invocando as três pessoas da Santíssima Trindade, que as formou e dirigiu para nosso bem.267

Antônio Conselheiro, como leigo, não celebrava os sacramentos da Igreja. Ao falar da

investidura dos papas, dos cardeais, dos arcebispos, dos bispos e de outras pessoas “constituídas

em dignidade eclesiástica”, o Peregrino deixa entender a prática do uso da aspersão dos fiéis com

água benta, por cristãos leigos. Não havia recomendações em contrário por parte da Igreja,

mesmo sabendo do forte uso, pelos missionários ordenados, de bênçãos com aspersão, durante as

missões populares. O Beato afirmava venerar os Santos Padres, porque eram colunas da Igreja

Católica Apostólica Romana.268 Essa veneração aos Santos Padres levou Antônio Conselheiro a

assumir, ao lado da Bíblia e dos documentos eclesiais, uma das fontes essenciais da ciência

teológica. Por isso, justifica o conteúdo teológico de suas prédicas como corretos no ponto de

vista da tradição teológica. Facilmente, lidava com autores das principais fontes eclesiais: Bíblia,

Santos Padres, papas e diversos santos e santas (doutores da Igreja).

A partir desses temas teológicos concretos, os atores políticos e religiosos da República

perceberam a grandeza prática do projeto de Antônio Conselheiro. A comunidade de Canudos

cresceu rapidamente e, por isso, a decisão de impedir a proliferação da experiência foi uma

atitude das autoridades de não deixar essa forma de organização social prosperar. A partir daí,

vêm as decisões de reprimir de qualquer jeito, a comunidade solidária de Antônio Conselheiro.

267 MAC , p. 500. 268 Cf. MAC , p. 474-475.

1104

2.4- O enfrentamento de Masseté

Antes de chegar a Canudos, em 1893, durante a passagem por Bom Conselho,269 no

distrito de Soure, Antônio Conselheiro reagiu às altas taxas de impostos. Os editais eram

afixados, por determinação da Câmara de Vereadores. Em dia de feira livre, o Conselheiro reuniu

o povo e, entre foguetes e aplausos, mandou arrancar das paredes e queimar os editais, como

forma de protesto para não pagá-los. Durante o ato, não houve vítimas. Num lugarejo chamado

Messeté, entre Tucano e Cube as forças policiais atacam duramente o povo do Conselheiro. A

resposta do grupo do Conselheiro foi a altura. Os soldados bateram em retirada. Pressionadas

pelas lideranças políticas e pelos comerciantes da região, as autoridades locais, entre elas, o juiz

Arlindo Leone, posteriormente transferido para Juazeiro, não tiveram como reagir. Antônio

Conselheiro, sem ser incomodado, pôde sair de Bom Conselho para Monte Santo. A denúncia do

ocorrido chegou a Salvador, pelo citado juiz. A “vingança” chegará. Mesmo transferido para

Juazeiro, Dr. Arlindo Leone espera um dia encontrar o Conselheiro.

2.5- A comunidade solidária de Canudos

Pelo caminho já percorrido, foi possível mostrar os fundamentos políticos e religiosos da

comunidade de Canudos. Mesmo partindo de uma cosmovisão teocrática (Deus é o verdadeiro rei

e dele emanam todos os poderes deste mundo), Antônio Conselheiro deu passos significativos na

organização da comunidade solidária. O projeto de vida em Canudos escapa à racionalidade

sociológica, não segue as leis que os sociólogos consideram constitutivas para a edificação de

uma sociedade. Assim como essa forma de organizar a vida em Canudos se recusa a ser nivelada

pela ideologia funcionalista e desenvolvimentista, do mesmo modo não deve ser enquadrada num

processo dialético de sociedade. A experiência vivida em Canudos se inspirava no modelo

269 Atual Cidade de Cícero Dantas.

111

evangélico simples da vida apostólica. Como profeta de Deus, Conselheiro sentia-se ordenado a

criar uma comunidade alternativa, orientada por outras leis, capaz de abrir aos desiludidos as

portas do céu e, com elas, um caminho a uma vida digna nesta terra.270 A sociologia deve admitir

a “inércia” da fé no processo formativo da comunidade do Belo Monte, e não dedicar a ala

atenção secundária. Para Otten, “é pouco dizer que era um passo para a conscientização da

realidade de classe. A base transcendental do projeto pretende o “outro” ou o “novo” e quer mais

do que a eliminação da sociedade classista”.271

Canudos foi-se formando aos poucos. O País tinha superado a escravidão oficial, parte da

população negra migrara para Canudos; aumentava o séquito de Antônio Conselheiro. As altas

taxas de impostos inviabilizavam a vida das pessoas; o desemprego, a migração interna no

Nordeste e as sucessivas secas provocavam na população a busca de novas formas de vida. O

Barão de Jeremoabo não escondia sua preocupação ao perceber o deslocamento de pessoas,

deixando os povoados, lugarejos e fazendas, para acompanharem o Conselheiro. Sintetizou a

angústia dos grandes proprietários rurais: “O povo em massa abandonava suas casas a afazeres

para acompanhá-lo. Com a abolição do elemento servil, ainda mais se fizeram sentir os efeitos da

propaganda pela falta de braços livres para o trabalho”.272 Na visão do Barão, o abandono do

trabalho nas fazendas e comunidades, não era fruto da racionalidade. “A população vivia como

que em delírio ou êxtase e tudo quanto não fosse útil e agradável ao inculcado enviado de Deus

(A. Conselheiro) facilmente não prestava”.273 E não atraía somente os pobres, desempregados e

sem terra, mas “famílias inteiras, algumas abastadas, vendiam o que possuíam, reuniam os

parentes afastados e marchavam para a Cidade-Sagrada”,274 afirma o combatente oficial tenente

270 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 362-363. 271 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 362. 272 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 153. 273 Cit. In: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 153. 274 SOARES, Henrique Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos, Rio de Janeiro: Altina, 2903, p. 36.

112

Macedo Soares. Belo Monte tornou-se a única alternativa capaz de vislumbrar dias melhores para

o povo. Além do sonho de encontrar um lugar durante a peregrinação pelo sertão para fundar uma

comunidade e poder alimentar a esperança de sua gente, o Conselheiro carregava a fama de

construtor de Igrejas, cemitérios, pequenos açudes, coordenar trabalhos de mutirão, organizar

rezas e defender os pobres. A passagem pelo interior do Ceará, Sergipe e Bahia, fez ampliar o

horizonte da escolha de uma localidade certa (Canudos) às margens do rio Vaza-Barris, tendo

como principais afluentes os riachos Mauruquem, Umburana, do Mato, da Providência e o rio

Sargento, para instalar sua comunidade. A região desfrutava de posição privilegiada: passagem

para Cumbe, Camboio, Calumbir ou Rosário, Massacará e Jeremoabo; caminhos abertos à

penetração do Rio São Francisco de um lado, Juazeiro e do outro, Paulo Afonso; saídas para

Aracaju, via Jeremoabo e Salvador, pela estrada de Monte Santo. Ao chegar a Canudos, sua

liderança já tinha sido consolidada nas estradas. No início da aventura, Antônio Conselheiro disse

ao povo reunido, de onde vinha sua façanha:

- Sim, meus irmãos, obedecei à Igreja e aos mandamentos de Deus Nosso Senhor, nosso pai e salvador eterno, de quem sou na terra um miserável apóstolo, porque ele me apareceu uma noite e disse: - Antônio, sairás pelos sertões, como seu xará de Lisboa, a fazer penitência, pregando o meu Evangelho e as Escrituras Sagradas; sofrerás perseguições dos maus e dos hereges, que retribuirás com benefícios derramados por onde passares; terás como Pedro, Paulo e todos os meus santos discípulos, o teu povo que te seguirá e de que serás o guia; encher-te-ei de poder na terra e serás tu e serão os teus adeptos cheios de graça na vida eterna.275

Batizado, pelo próprio Peregrino, de Belo Monte, o local, até então conhecido como

fazenda Umburana, serviu como chão para o início do sonho dos cerca de 800 seguidores de

Antônio Conselheiro, em meados de junho de 1893. A ocupação teve início de forma organizada.

O historiador observou a preocupação do Peregrino com os que chegavam sem que houvesse casa

para todos. Já bem próximo a Canudos, na Freguesia de Itapicuru, o Conselheiro havia mandado

construir “um barracão para abrigar os romeiros e cavou um tanque, onde os habitantes iam

275 BENÍCIO, Manoel, O Rei dos Jagunços: crônicas históricas e de costumes..., p. 51.

113

buscar água. Batizou o arraial com o nome de Bom Jesus e tratou de edificar a capela sob sua

invocação, defronte da qual ergueu um imponente cruzeiro”.276 Não foi Antônio Conselheiro

sozinho quem construiu Canudos. Em pouco tempo a comunidade se estruturou. Não perderam

tempo. Muita gente precisava se organizar, plantar e comer. O entusiasmo pela terra motivou a

imaginação do trabalhador sertanejo. Terra boa, água do rio Vaza-Barris, sol e coragem de

trabalhar. A comunidade iniciou imediatamente as plantações:

As margens frescas do rio eram cultivadas com plantações de diversos legumes, milho, feijão, grogotuba, favas, batatas, melancias, jerimuns, melões, canas, etc. Nos terrenos arenosos, vinham-se milhares de matombos, grelando o talo tenro das mandiocas e outros com estacas de diversos tamanhos. Pela vizinhança, os pequenos cultores da terra (pequenos agricultores), em Canudos, possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bodes, animais vacuns e cavalares [...].277

A “plantação obedecia a um plano preestabelecido para garantir à cidade o seu auto-

abastecimento. A produção ultrapassava o consumo, e o excedente era armazenado ou vendido

em localidades vizinhas como Jeremoabo e Monte Santo”.278 Tudo sob a coordenação do

Conselheiro. Ele não permitia que seus colaboradores “cometessem abusos nem tão pouco que os

encarregados da fiscalização se excedessem no exercício de suas funções. Ninguém ousava

desobedecer-lhe. Para manter a ordem, Antônio Conselheiro não poderia fraquejar”.279 Em menos

de quatro anos, Canudos recebeu mais de 25 mil peregrinos.280

Honório Vilanova recebeu tal confiança do Peregrino que chegou a ser encarregado de

receber as esmolas ofertadas e dividi-las para os pobres e mendigos. “Ele era para o Conselheiro

276 CALAZANS, José, Antônio Conselheiro: construtor de Igrejas e cemitérios, in: Revista Brasileira de Cultura, 26 (1973), p. 75. 277 Cit in: BLOCH, Didier (org.), Canudos, 200 anos de produção, vida cotidiana e economia..., p. 82. 278 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 121. 279 MONIZ, Edmundo, A guerra social de canudos..., p. 121. 280 Cf. VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra...p. 220. Há divergências quanto ao número de habitantes em Canudos. A Comissão de Engenharia do Exército, no final da guerra, fala em 5 200 casas. Cerca de 25 mil habitantes. Marco A. Villa duvida que três oficiais do Exército, em poucas horas tenham contado casa por casa e chegado a 5 200. A Capital do Estado da Bahia, contava com 174 mil habitantes. Santo Amaro, o maior município do interior, tinha cerca de 66 mil habitantes. O mapa divulgado amplamente pelo Exército brasileiro, apresenta as casas do acampamento com uma extensão de aproximadamente mil metros quadrados de comprimento por mil metros de largura. Canudos “nunca se aproximou de 25 mil habitantes, possuindo no máximo 20 mil pessoas”, afirma Marco Vila. Ibidem, p. 220.

114

o que um médium é para o organizador ou o que os compadres são para os mágicos

ambulantes”.281

Na estruturação da comunidade, levou-se em conta a aptidão de seus moradores,

estabelecendo-se uma ética fundada nos Dez Mandamentos, no temor ao Deus Amor, no

seguimento a Jesus Cristo, na vivência dos sacramentos (especialmente Batismo, Reconciliação e

Eucaristia) e na vida fraterna, inspirada na experiência dos primeiros cristãos, alicerçados nos

cinco primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, etc. Trabalhavam febrilmente, dentro do

lugarejo e nas cercanias. Rapidamente foram levantadas cerca de duas mil casas de pau-a-pique,

cobertas de telha. A construção da Igreja ocupou o ponto central da comunidade.

Vilanova, um dos moradores, sobrevivente da Guerra de Canudos, deixou suas impressões

sobre a vida no Arraial: “Era um formigueiro de gente, zelosa e ordeira nos seus bons costumes,

onde não havia uma só mulher prostituta”.282 E ainda, o Peregrino respeitava a profissão e as

aptidões de cada membro da nova comunidade:

Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino.283

Havia uma forte presença do Conselheiro. Vilanova confirmou sua saudável liderança:

“Reinava o Peregrino. A sua palavra era ouro de lei. A sua mão, suave. O bastão era apenas para

apoiar o corpo moído de tantos sacrifícios e rezas. Isto. Mais nada”.284 Não se tem notícia de

abuso de autoridade por parte do Peregrino. Houve casos de pequenos proprietários rurais que

venderam bens e as entregaram ao Conselheiro. Alguns grandes proprietários fizeram o mesmo.

De todos os lados chegavam ajuda. E assim, a comunidade se fortalecia.

281 BENÍCIO, Manoel, O Rei dos jagunços, crônicas históricas e de costumes..., p. 47. 282 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova, 2. ed., Rio de Janeiro: Renis; INL, 1983, p. 67. 283 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 67. 284 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 67.

115

Canudos era um campo experimental. E tudo corria bem sem que ninguém usasse da esperteza para usufruir proveitos individuais. Antônio Conselheiro agia com rigoroso critério e exercia constante vigilância por meio de seus colaboradores.285

Aos poucos, os visitantes iam recebendo as orientações do seu líder maior. A oração

alimentava diariamente os moradores da Nova Canaã.

Ao fim da tarde, quando soavam os sinos da Ave-Maria, no santuário onde se via uma pequena mesa de pinho, coberta por uma toalha de linho branco, ele (Antônio Conselheiro), de túnica azul, aparecia diante dos fiéis e pregava durante uma hora ou mais, às vezes duas ou três, conforme a importância do assunto, examinando os fatos ocorridos, ditando um bom comportamento cristão baseado no amor ao próximo e na prática do bem, assinalando a santa obrigação de defender Canudos em caso de agressão. Todos o ouviam silenciosos, magnetizados pelas suas palavras convincentes. Não ousavam desviar-se do caminho que o Conselheiro traçava.286

O povo via em Canudos o que J. B. Libanio afirmou a respeito dos movimentos

religiosos, especialmente de caráter messiânico:

Por sua vez, a religião cristã lhes fala da dignidade dos filhos de Deus. Promete-lhes aquilo para que foram chamados. Há, portanto, no capital religioso das camadas populares esse elemento riquíssimo de um chamado de Deus, de um projeto divino para os pobres, onde poderão realizar-se como pessoas dignas. [...] O contraste entre as promessas de Deus e a realidade vivida pelo povo, vivido pela pregação de um líder religioso, desencadeia facilmente movimento de reivindicação.287

Caminhar conforme o ritmo da comunidade era uma questão de vida ou morte. Canudos

tornou-se a única alternativa possível para enfrentar a crise.288 Para os que chegavam, Belo

Monte era um oásis no sertão. Antônio Conselheiro “impunha espontaneamente um respeito

religioso. Sua autoridade sustentava-se não só na razão e na fé, mas também na força de vontade.

[...] sabia ouvir as sugestões dos companheiros de confiança”.289 As principais reuniões com as

lideranças mais influentes realizavam-se no santuário.

285 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 121. 286 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 121. 287 LIBANIO, João Batista e BINGEMER, Maria Clara, L., Escatologia cristã, Petrópolis: Vozes, 1985, p. 45. 288 Cf. OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 362-367. 289 MONIZ, Edmundo, A guerra social de Canudos..., p. 122.

116

2.6- Por que a comunidade de Canudos constituiu-se um perigo para a República?

As elites políticas e agrárias logo perceberam que não poderiam subestimar o movimento

de Belo Monte. Para a burguesia rural e as elites urbanas, Canudos passou a ser uma espécie de

movimento separatista, um cisto instalado no coração da República. Procurava-se um motivo

para justificar a destruição de um foco crescente, cada vez mais referencial para os injustiçados

da região. Essa forma de organização social não interessava aos proprietários de terra e lideranças

políticas. Acabar com o séquito de Antônio Conselheiro era indispensável para a “paz social”. A

migração para o arraial não parava. O acampamento virou um formigueiro humano. Os

proprietários temem a perda da mão-de-obra barata nas fazendas. A preocupação era real. O povo

não queria saber do trabalho nas grandes fazendas. “Assim foi escasseando o trabalho agrícola, e

é atualmente com suma dificuldade que uma ou outra propriedade funciona. O povo em massa

abandona suas casas e afazeres para acompanhá-lo”.290 Os donos de latifúndios organizaram as

primeiras reações, somadas às lideranças políticas da Bahia e do Brasil.

Fazia-se urgente desqualificar os membros da comunidade ali instalada, como também

seu principal comandante, Antônio Conselheiro. Os raivosos necessitavam da opinião pública a

seu favor. O recuo das forças militares durante o confronto de Masseté, em maio de 2893, após a

queima dos editais de cobrança de imposto, ficou entalado na garganta do alto comando da

Polícia Militar da Bahia e, mais ainda, no Juiz da Comarca de Bom Conselho, Dr. Arlindo Leoni.

Mesmo de longe, Antônio Conselheiro vinha sendo acompanhado pelas autoridades regionais e

federais. Os adjetivos usados, para desqualificar o Beato e as principais lideranças, foram os

piores. O tenente de infantaria, Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, com seu testemunho

voraz, sob o ponto de vista militar, desqualificou os integrantes de Canudos, começando pelo

Conselheiro: Assim, “ a forma dos milagres do Conselheiro, sempre crescente, a vida patriarcal e

290 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 153.

117

preguiçosa que levavam seus asseclas [...] fora da ação das leis, atraíram para Canudos,

inúmeras famílias de pontos mais ou menos remotos”.291 Antônio Conselheiro foi acusado de

vida patriarcal e de agitador, de ser acompanhado pelos mais famigerados valentões, os mais

truculentos bandidos com armas e munições.292 E mais: aleijados, doentes, cegos e macróbios,

também para lá convergiam. “Em pouco tempo se viam seis mil e quinhentas habitações, e trinta

mil seres nelas se agitavam promiscuamente”.293O policial procurou, ainda, desqualificar os

líderes dos principais comandos de Belo Monte, especialmente os comerciantes, encarregados de

regular a oferta de alimentos. “Antônio Vilanova, João Abade, Joaquim Macambira, Senhorinho

e outros, locupletavam-se com o produto do trabalho daqueles desventurados e sobre eles

exerciam decidida influência”.294 Aos poucos, os jornais iniciavam uma campanha para destruir

Canudos.

O início da guerra deu-se em 21 de novembro de 1896, a partir de um fútil pretexto. A

comunidade iniciara a construção de uma igreja maior no arraial. O Conselheiro precisava de

madeira para a cobertura da igreja nova. A compra foi feita ao Coronel João Evangelista Pereira

Melo, na cidade vizinha de Juazeiro, com pagamento antecipado. Na data combinada para o

envio da madeira, o coronel alegou falta de homens para o transporte. Com pressa para terminar a

construção, Conselheiro sugeriu que sua gente poderia ajudar no transporte. Nesse período, Dr.

Leoni havia sido transferido para a Comarca de Juazeiro. Com ressentimento do ocorrido no Bom

Conselho, o Juiz espalhou a notícia de que a gente de Antônio Conselheiro poderia invadir a

cidade, saquear o comércio e se vingar do Juiz, com quem o Beato teve desavença em Bom

Conselho. Ele solicitou ao governador Luiz Viana tropas policiais, para garantirem a ordem da

291 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 35. Grifei. 292 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 35. 293 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 37. Grifei. O autor reconheceu, em seguida , uma virtude no aglomerado: “Contudo, raríssimos eram os crimes e as disputas, que o Conselheiro castigava inexoravelmente com a expulsão dos seus autores”. 294 SOARES, Duque-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos..., p. 37.

118

cidade. O governador cumpriu o pedido. Enviou a chamada Primeira Expedição, com um efetivo

de 113 soldados, 3 oficiais, 1 médico e 2 guias, chefiados pelo Tenente Pires Ferreira. Em um

único confronto em Uauá, o saldo foi de 10 mortos (1 oficial, 7 soldados, 2guias) e 17 feridos. A

expedição logo se retirou para Juazeiro.

A Segunda Expedição chegou a Monte Santo em 29 de dezembro, com um combinado de

forças federais e da polícia do estado: 609 soldados, 10 oficiais, 1 médico, 1 farmacêutico, 1

enfermeiro, 2 canhões Krupp e três metralhadoras Nordefelt. Houve violentos combates na Serra

do Cambaio e na Lagoa do Sangue. As tropas foram recebidas a bala e obrigadas a recuar. O

saldo: 10 soldados mortos e 70 feridos.

A Terceira Expedição partiu de Salvador e desembarcou em Queimadas, 7 de fevereiro de

1897, com reforço de 6 canhões Krupp e 1 300 soldados, conduzindo 15 milhões de cartuchos,

sob o comando do coronel Moreira César. Dia 13 de março, a expedição estava próxima a

Canudos. Logo no início do confronto, o Coronel Moreira César morreu, atingido por tiros. O

Coronel Tamarindo assumiu o comando e, logo em seguida, também foi assassinado. Com as

tropas em pânico, o Major Cunha Matos tomou a direção. Houve debandadas pelas estradas entre

os soldados. Ficou um triste saldo: 116 mortos, inclusive 13 oficiais e 120 feridos. As notícias

incendiavam o País. Diante da ousadia do sertanejo, destruir Canudos passou a ser uma questão

de honra para o Exército e as autoridades da República. O governo não poupou esforços para

consegui-lo.

Em 5 de abril, foi enviada a Quarta Expedição, agora com mobilização de tropas

envolvendo 14 estados: Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Maranhão, Pará, Espírito

Santo, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e um reforço posterior do

Amazonas, do Ceará e de Pernambuco. O comando organizou o ataque. Um composto de 6

brigadas, em 2 colunas por direções opostas, entrou em ação. O general Artur Oscar assumiu o

119

comando geral da expedição. A primeira coluna, comandada pelo General Silva Barbosa, partiu

de Queimadas, passando por Monte Santo, com disposição de enfrentar os canudenses: 3 415

homens, 180 mulheres; 12 canhões Kruppp e um canhão Withorth 32, apelidado pelos

canudenses de matadeira. O 5º corpo de Polícia da Bahia conduzia 750 mil quilos de

mantimentos e munições, com 388 jagunços contratados no interior do Estado. A segunda coluna

comandada pelo General Cláudio Savaget, saiu de Aracaju, passando por Jeremoabo (BA), pelo

Raso da Catarina, em direção a Canudos. Eram 2 340 homens, 512 mulheres e 72 crianças (duas

nascidas na viagem). A ordem do presidente da República, Prudente de Morais, “é de não ficar

pedra sobre pedra”. Tem que ser a Expedição vingadora das três derrotas. De fato, os ataques

foram tão intensos que no final da guerra, em 5 de outubro de 1897, Canudos estava

completamente destruída.

Uma legião de corpos carbonizados misturava-se com as cinzas das casas de taipas e

palhas. Estima-se que cerca de 25 mil vidas trucidadas durante os ataques sangrentos das 4

expedições militares, em um ano de lutas intermitentes. As três primeiras expedições foram

fragorosamente derrotadas. Os defensores da comunidade de Canudos desafiavam as forças do

governo. Bem-humorados, diziam: “- Avança, fraqueza do governo!” Era o seu grito de guerra.

“Durante um ano inteiro Canudos resistiu a quatro expedições regulares de forças do exército e

da polícia militar, incluindo tropas de infantaria, cavalaria e artilharia, num total de 12 mil

homens”.295 Uma verdadeira carnificina! Cerca 5 000 soldados, oficiais e generais das tropas

governistas morreram.296

Um banho de sangue coroou a companhia em que o Brasil se confrontou com o Brasil; a

civilização contra o atraso, a ciência positiva contra a sub-raça; o zelo e a dedicação dos

295 FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos..., p. 121. 296 Cf. FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos..., p. 121.

120

republicanos, contra o fanatismo irracional! Uma guerra entre brasileiros, o Estado contra o povo.

Muitos guerreiros sobreviventes foram degolados, jovens e crianças, estupradas, outras divididas

entre membros das altas patentes do exército. Muitas meninas foram entregues aos prostíbulos

em Salvador, algumas com até 9 anos de idade. A opinião pública reprovou o acontecido no pós-

guerra.

E o paradeiro de Antônio Conselheiro? Mesmo sendo o alvo principal da guerra,

possivelmente o exército não o tenha atingido. Existem pelo menos três versões sobre a morte do

Peregrino. Segundo a tradição oral, o Conselheiro morreu de uma disenteria. A segunda

possibilidade é que diante do massacre de seu povo, ele ficou muito triste e, abalado, morreu de

desgosto. A terceira versão é a dos vencedores. Para a elite do exército, o Conselheiro teria sido

atingido por estilhaços de uma granada, durante o bombardeio da igreja, proporcionando-lhe a

morte em 22 de setembro de 1897. No dia seguinte ao término da guerra, 6 de outubro, seu corpo,

sepultado na casa onde morava perto da igreja, foi exumado. A cabeça levada para Salvador para

estudos pelo médico legista, Nina Rodrigues. Para surpresa dos que sempre afirmavam que o

Peregrino era um louco e débil mental, a conclusão dos exames foi a de um cérebro normal.297 O

que se questiona até hoje são os motivos pelos quais Nina Rodrigues não se tenha pronunciado

oficialmente sobre a causa da morte do examinado. Oficialmente não se sabe se Antônio

Conselheiro morrera de morte natural ou se fora, conforme a versão militar, atingido por

estilhaços de balas. Talvez, a verdade não fosse de interesse das forças militares e da opinião

pública. Poder-se-ia pensar: uma guerra tão brutal e não se conseguiu chegar ao principal alvo!

Isso deixou margem para as elites descaracterizarem a figura histórica de Antônio Vicente

Mendes Maciel, ao longo dos tempos.

297 Cf. RODRIGUES, Nina, As coletividades anormais, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939, p. 50-77.

121 121

Ainda hoje, boa parte do povo sertanejo, como também alguns segmentos da Igreja

Católica, acreditam na versão oficial sobre Conselheiro. Em 1993, por ocasião do centenário da

chegada de Antônio Conselheiro a Canudos, o professor Fernando Pinto, psiquiatra e psicanalista

da Universidade Federal da Bahia, explicitou esse pensamento, num polêmico artigo e recuperou

afirmações historicamente superadas pela historiografia sobre o Conselheiro. Antônio “entrou na

história pelas portas sangrentas de Canudos. [...] foi Messias justamente por causa da patologia

psiquiátrica e, apesar dela, conquista o respeito dos fiéis, e a admiração dos historiadores”.298 Ao

descrever sobre o núcleo patogênico da personalidade do líder em questão, afirma ser isso

decorrente dos traumas não resolvidos na infância, “em virtude da abrangência e patologia dos

elementos constitutivos de seu complexo de Édipo mal resolvido”.299 Essa concepção, montada

pelos que defendem a versão para justificar o massacre, sempre apela para uma fundamentação

positivista. Os argumentos mais usados são oriundos de Euclides da Cunha, mesmo sabendo-se

que a historiografia evoluiu e incorporou novos dados históricos sobre Canudos, superando o

paradigma euclidiano. Para eles, Euclides continua sendo quase a última palavra sobre a Guerra

de Canudos. Baseado em afirmações do autor de Os Sertões, o referido psiquiatra entende que a

patologia do Conselheiro decorre da estruturação da personalidade. E elenca, no seu diagnóstico,

elementos, no mínimo curiosos, do ponto de vista psiquiátrico, com o objetivo de descaracterizar

o Beato: orfandade precoce de mãe, madrasta castradora e psicótica, rejeição afetiva pela

madrasta, maus tratos e humilhações na infância, pai alcoólatra (irritável, agressivo, perdulário,

narcisista e desejoso de triunfo social, economicamente fracassado após ter desfrutado de boa

situação financeira), psicótico (portador de uma demência intermitente, hoje diagnosticada como

298 PINTO, Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos psicanalíticos, in: Centenário de Belo Monte, REVISTA DA FAEB/Universidade Estadual da Bahia, ano II, esp., Salvador (janeiro/junho), 1993, p. 44-45. 299 PINTO, Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos psicanalíticos..., p. 34.

122

psicose “maníaco-depressiva”), ambiente familiar desajustado e desagregado, carência afetiva.300

É uma visão da pessoa humana do Conselheiro bastante reducionista, que desconsidera o legado

do Beato e seu equilíbrio na condução da comunidade.

No momento, essa forma de analisar a personalidade de Antônio Conselheiro e seu

movimento, não tem encontrado respaldo no meio científico entre historiadores, cientistas

sociais, nem tão pouco, no meio psiquiátrico. Ao contrário, Canudos não é visto mais como um

acontecimento marginal, nem pode ser descaracterizado, como se tentou fazer no decorrer do

século passado entre os que afirmaram que o Peregrino foi um louco, débil mental e de

personalidade doentia. Uma pergunta vem orientando os estudos dos que documentam a história

de Antônio Conselheiro e Canudos: por que comparar um líder como o Conselheiro altamente

reconhecido, objeto de veneração coletiva e de sábios estudiosos, a um louco ou débil mental?

Antônio Conselheiro foi um místico internado, segundo as normas da época, com a etiqueta do

delírio. Para sempre, ele permanecerá fichado na série “doentes”. Faz-se necessário tirá-lo desse

fichário e restituí-lo à história dos místicos, a qual não o retém entre os seus preferidos, tampouco

nas bibliotecas o encontraremos no índice dos santos.

Para melhor entender a personalidade carismática do líder principal de Canudos, faz-se

necessário retomar a via mística, como elemento constitutivo da personalidade do Beato

Conselheiro. “Dos muitos caminhos de transformação interior conhecidos pelo homem, a via

mística é talvez uma das mais antigas, universais e altamente consideradas, mesmo que seus

praticantes muitas vezes tenham vivido uma paz difícil”. 301 Sigmund Freud fala em “modelos

energéticos”. Os cristãos sentem uma “força interior”, emanada da espiritualidade cristã: “há

realmente neste tipo de pessoas místicas uma espécie de energia, um poder de atração que emana

300 PINTO, Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos psicanalíticos..., p. 34. 301 KAKAR, Sudhir, Ramakrishna e a experiência mística, in: CLEMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o Santo, Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1997, p. 103.

123

delas. Chamamos ou não de poder carismático, trata-se da manifestação corporal de uma energia

interior”,302 afirma Sudhir Kakar. O objetivo de um místico não pode ser mensurado pelos

ciências positivas, não é de ordem sólida nem objetiva. Antônio Conselheiro superou suas

deficiências e seus problemas familiares pela mística cristã. O que o fez líder, ser ousada para o

seu tempo foi a capacidade de auto superação, a mística da justiça, o desejo de um mundo melhor

para todos, o sonho de uma sociedade mais humana, mais justa e solidária. Ele sublimou as

deficiências pessoais, aprendeu do Cristo, sentiu o apoio dos irmãos, viu seu sonho se

concretizando, alimentou a utopia de uma sociedade igualitário. A suposta loucura, os traumas

mal resolvidos ou, na expressão do psiquiatra Luiz Fernando Pinto, a “patologia dos elementos

constitutivos de seu complexo de Édipo mal resolvido”, foram sublimados nas atividades

altruístas, pela utopia de tornar Canudos a Jerusalém Celeste.

A dimensão espiritual, aliada à vontade de viver em um momento no qual não havia

alternativas econômicas viáveis, fez o povo perseverar na luta. Foi uma questão de vida ou morte.

A comunidade percebeu a presença do Deus da vida, iluminando os irmãos de caminhada. A

força da perseverança vinha do alto. Conselheiro sobe captá-la.

2.7- A participação da Igreja Católica na destruição de Canudos

A hierarquia católica não teve um posicionamento honroso na Guerra de Canudos. O

Arcebispo da Bahia sempre se colocou contrário à ação desenvolvida por Antônio Conselheiro.

Diversas cartas foram expedidas, proibindo as pregações do Peregrino e o apoio que lhe davam

os vigários das paróquias do sertão. O Peregrino sempre respeitou as orientações da Igreja,

porém, sem concordar com certas posturas da hierarquia, em fogo cruzado com o Estado, que se

proclamava laico. Ao ser proibido, nunca desrespeitava. Não invadia paróquias, nem usurpava

302 CLÉMENT, Catherine, Conversação entre Sudhir Kakar, psicanalista e Catherine Clément, filósofo in: CLÉMENT, Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o Santo, Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1997, p. 161.

124

serviços sacerdotais. Tinha bem claro o caráter leigo de seu ministério. Se a comunidade do

Conselheiro crescia, despertando simpatia de seus moradores, atraindo as populações vizinhas,

não era por acaso. Já em 1886, Conselheiro causava preocupação a uma parte do clero. Padre

Paranhos recorreu ao vigário capitular em Salvador, pedindo providências para impedir o

crescimento do séquito do Conselheiro: “A V. Exa. Recorro para que tome providência enérgica,

e quanto antes, de acordo com o Dr. Chefe de polícia, a fim de ser retirado desta freguesia um

homem que se inculca penitente, e que acompanhado de três mulheres e um ou dois adeptos,

percorre este centro da Província da Bahia, sem que em lugar nenhum declare seu fim”.303

Desde 1894, o deputado José Justiniano sugeriu ao parlamento baiano o diálogo, como

forma de impedir a proliferação de Canudos. O deputado não acreditava em motivos políticos do

Beato. Logo, se os interesses de Antônio Conselheiro e sua gente eram mais religiosos que

políticos, “se ele em todo caso é um homem virtuoso, um verdadeiro asceta, não um hipócrita,

mas um fanático, incontestavelmente, devem-se empregar outros recursos antes dos meios

violentos”.304 Se houvesse um acordo entre o Arcebispo Dom Jerônimo Tomé da Silva e o

governador Rodrigues Lima, poder-se-ia “combater” Canudos por meios diplomáticos e

religiosos, acreditava José Justiniano. Mesmo sabendo das dificuldades diplomáticas entre Igreja

e Estado, o arcebispo encaminharia uma missão religiosa, com missionários “que tenham

influência sobre o povo e que, empregando as mesmas doutrinas de paz e de ordem, pudessem

dissolver aquele grupo por meios suasórios”.305 Poderia ser uma oportunidade para o poder civil

reatar os laços com a Igreja. O que acabou acontecendo.

Em abril de 2895, a Arquidiocese da Bahia enviou a Canudos, por solicitação do

governador, os frades capuchinhos, freis João Evangelista de Monte Marciano e Caetano de S.

303 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 145. 304 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 180. 305 Cit. in: ibid, p. 180-182.

125

Léo,306 em companhia do Pe. Sabino, vigário de Cumbe, com o objetivo de dissolver a

comunidade do Conselheiro. A missão só chegou ao Arraial a 23 de maio, em razão das imensas

dificuldades de estradas, transporte, hospedagem e guias - conhecedores da região - conforme

relato minucioso apresentado após a visita ao Arcebispo da capital baiana.307 O texto do frei

capuchinho provocou diversas reações e depunha contra a Igreja, pela visão negativa que teve do

acampamento. De fato, sua visita não foi para admirar ou contemplar a experiência dos

sertanejos. Nem para identificar os “sinais do Reino” na experiência daquele povo. Sua ida a

Canudos tinha um único objetivo: dispersar as pessoas, aconselhando-as o caminho de volta para

suas casas. Ao referir-se ao povo de Canudos, o religioso, com pouca diplomacia, usou

expressões, no mínimo, curiosas, sobre os moradores do Belo Monte: “gente estranha” aos olhos

do missionário, “povo simples e ignorante” dos nossos sertões, “acampamento de beduínos”,

“perturbadores da ordem pública”, “turba desorientada”, “desvairados”, “seita político-religiosa”,

“milícia fanática”, “infeliz localidade”, etc.”308 Durante uma de suas homilias dirigidas aos

canudenses, frei J. Evangelista foi direto ao alvo: “Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar pelos

bispos até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis

sujeitar? É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa”.309

A gente de Antônio Conselheiro sentiu-se ofendida com palavras tão duras do

representante da Arquidiocese. Diante da reação da multidão, frei João lamentou ter sido

interrompido por “um dos da turba, gritando com arrogância: V. revm. é que tem uma doutrina

306 Frei João Evangelista, como ficou conhecido, natural da Itália, nasceu em 1843. Chegou a Salvador como missionário capuchinho, em 1871, onde viveu 49 anos. Morreu em 12 de abril de 1921. Frei Caetano chegou à Bahia em 1894, participou de 212 missões. Faleceu em Salvador a 4 de novembro de 1923. 307 Cf. MARCIANO, Frei João Evangelista de Monte, Relatório apresentado pelo Revê. Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispo da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu séqüito no Arraial de Canudos, 1895, (apresentação de José Calazans), Salvador: Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1987, p. 3. Citado por: Relatório do Frei João Evangelista, seguido do número de página. Atualizo o português. 308 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4, 6, 7, 8. 309 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.

126

falsa, e não o nosso Conselheiro”.310 Antônio Conselheiro pediu silêncio. O frei baixou o tom e

não insistiu no assunto. Percebeu um ambiente hostil à sua pregação e resolveu desistir da

missão. O seu relatório desqualifica o Beato. “Antônio Conselheiro, inculcando zelo religioso,

disciplina e ortodoxia católica, não tem nada disso; pois contesta o ensino, transgride as leis e

desconhece as autoridades eclesiásticas”.311 Nesta pequena frase do relatório se encontram os

dois principais argumentos do capuchinho, para impedir a continuidade da comunidade de

Antônio Conselheiro: contesta o ensino da Igreja, não aceita as autoridades eclesiásticas e

transgride as leis.

Os manuscritos do Peregrino, analisados anteriormente, não corroboram os argumentos do

frei Evangelista. Ao contrário, como já foi demonstrado, os textos usados na catequese do Arraial

eram a Bíblia Sagrada, A Missão Abreviada e as Horas Marianas. Em todas as prédicas, o

Peregrino transcrevia ou parafraseava as obras deixadas pelos missionários, no final das semanas

missionárias, em nome da Igreja. Quando não o fazia, inspirava-se nelas. Os textos da Patrística,

citações de papas e diversos autores cristãos confirma a ortodoxia da mensagem do Peregrino.

O frei João Evangelista, externou sua visão de ortodoxia e obediência muito comuns na

Igreja. De certa maneira, ele foi incapaz de lidar com o dissenso e a alternativa. A “hierarquia

(em sua quase totalidade) via no arraial conselheirista uma grave ameaça a seus interesses”.312

Por essas razões, o seu relatório recomendava providências das autoridades eclesiástica e civil. Se

Canudos era uma seita religiosa, um Estado dentro do Estado, então ele recomendava uma ação

enérgica das autoridades: “O desagravo da religião, o bem social e a dignidade do poder civil

pedem uma providência que restabeleça no povoado de Canudos o prestígio da lei, as garantias

310 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. Grifo do autor. 311 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 312 VASCONCELLOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre o Belo Monte..., p. 181.

127

do culto católico e os nossos foros de povo civilizado”.313 Todo o texto do relatório estava eivado

de um certo ódio do frei, revelando uma missão fracassada.

No seu relatório, mesmo que de forma secundária, o missionário capuchinho deixou

escapar informações que depunham a favor da comunidade do Belo Monte e revelam o apreço do

Peregrino pelos representantes de Cristo, agindo em nome da Igreja. O Conselheiro não permitiu

alguém do meio da turba, conforme expressão do missionário, interromper a pregação do frei

capuchinho.314 Este não percebeu confusão nas atribuições leigas do líder de Canudos,

respeitando o ministério ordenado: “Quanto a deveres e práticas religiosas, Antônio Conselheiro

não se arroga nenhuma função sacerdotal”.315Cita a reação do Peregrino: “Esta vez ainda o velho

impôs silêncio”.316 E tranqüilizou o frei João Evangelista, abalado por sentir reação ao seu

sermão: “mas também não estorvo a santa missão”.317

Nas entrelinhas do relatório, fica patente o desvio de finalidade da missão. O frei

capuchinho não foi capaz de dissolver o povo. Ao contrário. O aspecto de fracasso da missão não

apareceu claramente no relatório. Segundo relata, houve um incidente. João Abade organizou um

protesto geral contra os frades. Frei J. Evangelista, responsável pela missão, batizou o protesto de

estripitoso do grupo arregimentado. [...], erguendo vivas ao Bom Jesus, ao Divino Espírito Santo e a Antônio Conselheiro, e de lá vieram até nossa casa, dando foras aos republicanos, maçons e protestantes, e gritando que não precisavam de padres para se salvar, porque tinham seu Conselheiro.318

O frei João ficou ofendido: “mostrei que tinha sido aquilo um desacato sacrilégio à

religião e ao sagrado caráter sacerdotal e que, portanto, ponho termo à santa missão”.319 A missão

capuchinha foi interpretada pela gente de Canudos como uma enaltecimento da República, que

313 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 8. 314 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 315 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 316 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 317 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5. 318 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 6. Grifo do autor. 319 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 6.

128

em nada colaborava para melhorar a vida do sertanejo, há tanto tempo abandonado à “própria

sorte”. O frei não se deu por vencido e tentou encontrar popularidade na decisão:

A suspensão repentina da santa missão produziu nos circunstantes o efeito de um raio, deixando-os atônitos e impressionados; os que ainda não haviam se alistado na companhia do Bom Jesus, que não recebiam do Conselheiro a comida e a roupa, e não dependiam dele, portanto, deram-me plena razão, e, reprovando formalmente os desvarios de tal gente, começaram a sair do povoado, já queixosos e completamente desiludidos das virtudes do Antônio Conselheiro.320

Não há registro histórico comprovando desistências de canudenses ou aplausos às atitudes

do missionário. Após a apresentação do relatório do frei João Evangelista, houve forte reação no

parlamento federal, pelo deputado Érico Coelho. Qualquer parlamentar, tendo acesso ao relatório

do frade, ficaria “surpreso com as expressões amorosas que ele prodigaliza à República [...] pois

ao pretexto de defender a ordem pública e as instituições republicanas, a intenção do clero foi

mover a guerra religiosa”.321

Por outro lado, uma parte do clero do interior sempre apoiou Antônio Conselheiro,

mesmo com orientações contrárias do Arcebispo Dom Jerônimo. Isso revela que Antônio

Conselheiro e seu povo não eram o que as elites pintavam, não causava unanimidade contra, nem

a favor. O vigário de Aporá, Pe. João Barbosa propôs ao Conselheiro a reza do terço, mas proibiu

as prédicas. Ele se retirou para os limites distantes da Paróquia e pregava nos sítios e povoados.

“Aí nenhum pároco lhe impede a prédica. Onde há povo, ele fala”.322 O Cônego Agripino da

Silva Borges, vigário de Cumbe, tinha grande apreço pelo Conselheiro. Era um dos maiores

amigos dele. “Pe. Agripino deixou o Conselheiro agir como quisesse, até o defendeu na Câmara

dos Deputados”.323 Pela boa conduta do Peregrino, ficava até difícil o padre falar abertamente

contra o Conselheiro. “Uns não se opuseram, até pediram a sua vinda à freguesia para

320 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 7. grifo do autor. 321 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 85 (apud MONTENEGRO, Abelardo, Antônio Conselheiro, Fortaleza, s. ed., 1954, p. 37). 322 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 145. 323 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 156.

129

construções e missões. Em Iambupe, Pe. Ramos lhe prepara uma acolhida calorosa, com incenso

e repique de sinos”.324 O povo distante da sede paroquial estava sedento da mensagem cristã e

vivia na mais absoluta ignorância religiosa, tornando-se “presa fácil” para o Conselheiro. Só que

muitos párocos aproveitavam-se da capacidade de o Conselheiro arrebanhar fiéis e o convidavam

para missões. O desabafo parte do Pe. Passos, ao Monsenhor Santos Pereira: “Quase todos os

párocos vizinhos o têm chamado instantemente para as suas freguesias”.325

O que mais incomodava a muitos padres era o exercício do direito de Antônio

Conselheiro predicar. Aliás, direito adquirido pelo batismo, que incorpora os fiéis ao múnus de

Cristo e à Igreja: “Estes fiéis pelo batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de

Deus e a seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que

exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo”.326 Com muita

habilidade, respeitando os limites das lideranças da Igreja de seu tempo, Antônio Conselheiro não

fazia nada além do que é facultado ao cristão leigo. Algumas autoridades eclesiásticas tiveram

dificuldades para o entender.

Conclusão

As prédicas de Antônio Conselheiro são fontes escritas de seu próprio punho e provas de

sua fidelidade aos ensinamentos da Igreja. Foi possível demonstrar interesses religiosos

prevalecentes aos sociopolíticos, tão propalados por sociólogos e historiadores de interpretação

marxista, na organização da comunidade solidária dos canudenses.

Partindo de sua formação religiosa, do envolvimento com lideranças da Igreja, dos

documentos usados por Antônio Conselheiro, foi possível esclarecer dúvidas levantadas por

afirmações não demonstráveis ao longo da historiografia brasileira. Os escritos de Antônio 324 OTTEN, Alexandre, Só deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 157. 325 Cit in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 158. 326 Gaudium et Spes, 3,1.

130

Conselheiro partem de fontes religiosas, deixadas por missionários, com o objetivo de continuar

as missões, especialmente por lideranças leigas. O líder maior de Canudos não teve acesso a

documentos de natureza estritamente política, que pudessem provar que ele tivesse usado o

religioso para colher objetivos políticos, como foi acusado. A tese de que ele usou a Utopia de T.

More não tem sustentação histórica. Também não se sustenta a tese de que Antônio Conselheiro

era um monarquista e tinha por objetivo organizar um movimento para derrubar o regime

republicano. Ao chegar a Canudos, teve uma vida eminentemente ligada ao seu povo.

Acompanhou a chegada, a instalação e o desenvolvimento do arraial, até a sua destruição.

A análise das prédicas desmentem também acusações de heterodoxia católica do Beato ou

desconhecimento dos principais ensinamentos da fé cristã e desconsideração, frente às

autoridades eclesiásticas. Foi possível demonstrar, através de cada ponto dos manuscritos, de uma

leitura sistemática do pensamento dele, a escolha de certos temas que garantiram solidez nos

fundamentos bíblicos e teológicos de seu pensamento, ao longo da vida de Canudos. O contato

individual com os adeptos do arraial, os encontros diários durante as orações comunitárias através

das prédicas, animavam os que chegavam a Canudos na esperança de dias melhores. Antônio

Conselheiro preencheu lacunas deixadas por deficiências da presença da Igreja e do Estado, nos

recônditos mais isolados do interior do Nordeste.

O Beato soube se integrar, de maneira bastante singular, aos aspectos religiosos, aos

sociopolíticos, garantindo à fé cristã um compromisso concreto na comunidade. Isso assegurou o

crescimento tão acelerado da população do Belo Monte. O pensamento e a prática de vida,

desenvolvidos ao longo da experiência do povo de Canudos, foram expressão da deficiência do

Estado e da impotência da Igreja, diante da extensão do Nordeste e da escassez de sacerdotes à

disposição das comunidades e lugarejos mais distantes das sedes paroquiais.

131

Portanto, o projeto religioso e a organização social de Canudos compatibilizaram-se com

os anseios dos pobres excluídos por uma sociedade justa e fraterna. A Bíblia, textos como A

Missão Abreviada, Horas Marianas, e outros ensinamentos da Igreja acompanharam Antônio

Conselheiro, dando base de sustentação à Comunidade de Canudos. O massacre de Canudos

envergonhou o Estado brasileiro. Canudos tornou-se uma desculpa para justificar a disputa

política no início da cambaleante República, instituída sem legitimidade e capacidade de

encontrar respostas políticas para resolver os problemas sociais e econômicos. Da mesma forma,

os argumentos do arcebispo da Bahia, especialmente o Relatório do frei João Evangelista de

Monte Marciano, sobre Antônio Conselheiro, não justificam a atitude da Igreja naquela

conjuntura. Finalmente, Canudos foi vítima de um setor da Igreja e de um Estado sem

compromissos com os sertanejos deserdados e excluídos do “progresso”, trazido pelo novo

regime republicano.

Analisando-se os manuscritos de Antônio Conselheiro, não restam dúvidas do valor

literário, histórico e teológico de um líder que continua sendo um enigma para a historiografia

brasileira e um convite para os protagonistas da Igreja dos pobres nele se inspirarem. Impedindo

o crescimento da comunidade de Canudos as autoridades republicanas e eclesiásticas cometeram

um erro histórico. Tanto no ponto de vista do poder republicano, quanto por parte da Igreja,

faltou uma autocrítica diante da conjuntura política e eclesial do final do século XIX. Antônio

Conselheiro não foi um herege, nem um fanático. Foi, sim, um cristão leigo que procurava

responder ao chamado de Deus para uma missão junto aos nordestinos, vítimas do desacerto

político da República e da ineficiência e falta de diálogo de setores da Igreja.O legado da

experiência de Canudos inspira atitudes novas, diante da ação legítima de leigos conscientes,

desejosos de cumprir sua missão de batizados. Na vivência do povo de Canudos, haurimos

132

elementos sólidos que estimulam uma Igreja a qual valoriza a ação dos leigos, acolhe os pobres e

reconhece seus limites históricos. Aspectos que serão analisados na terceira parte desta pesquisa.

133

CAPÍTULO III

ELEMENTOS ECLESIOLÓGICOS DA COMUNIDADE DE CANUDOS

Após uma apresentação histórica sobre a vida de Antônio Conselheiro e seus seguidores, a

descrição do universo religioso do líder maior de Canudos, a partir de seus manuscritos, o

objetivo deste capítulo é pontuar os elementos eclesiológicos propriamente ditos da comunidade

de Canudos. Antônio Conselheiro ensaiou uma experiência diferente e mais engajada da Igreja

Católica no final do século XIX. Sobre Canudos, muita coisa já foi dita. Antônio Conselheiro tem

sido objeto de estudo por antropólogos, sociólogos, poetas e, mais recentemente por teólogos.

A prática de Antônio Conselheiro repercutiu na Igreja do século XIX. Antônio

Conselheiro fez sua experiência de fé dentro e não fora da Igreja católica, mesmo não sendo

compreendido por setores significativos dela. Por isso, neste capítulo serão analisados seus

manuscritos, visando encontrar características da eclesiologia subjacente na Igreja de Canudos.

Qual a novidade na experiência religiosa de Antônio Conselheiro? Por que o representante do

Arcebispo da Bahia, frei João Evangelista, teve ação tão enérgica com o Conselheiro e seu povo?

O que havia de “novo” na Igreja de Canudos? Canudos foi uma realidade eclesiológica nova? Em

que sentido podemos falar em nova eclesiologia no Belo Monte? Qual a relação do Peregrino

com as autoridades religiosas? Antônio Conselheiro teria antecipado uma Igreja comprometida

com os pobres, integrando fé e compromisso social? O que ele pensava sobre temas fundamentais

da teologia: Santíssima Trindade, Jesus – sua morte na cruz, ressurreição – os sacramentos,

salvação, os Dez Mandamentos, Igreja, sucessão apostólica? Canudos oferece várias lições para

firmarmos o compromisso com a opção pelos pobres, tema tão caro a Jesus de Nazaré e colocado

hoje como secundário pela teologia oficial. Procuramos responder, ao longo deste terceiro

capítulo, a todas essas indagações.

3. 1- Natureza eclesial do movimento de Canudos

Uma das deficiências da abordagem sociológica de Canudos foi não se analisar à exaustão

os manuscritos de Antônio Conselheiro e a literatura religiosa por ele usada. Caracterizar

Canudos como um movimento eclesial é levar em consideração sua experiência de vida religiosa,

os contatos diretos com Padre Ibiapina e Padre Cícero e o compromisso com as lutas dos

sertanejos, especialmente a partir da primeira metade do século XIX. Em Canudos, se

concretizou uma experiência eclesial eminentemente leiga, sacramental, engajada, comprometida,

capaz de harmonizar a vivência da fé e a transformação social entre os pobres. Essa Igreja

animou a experiência do povo pobre. Antônio Conselheiro reuniu “um projeto onde são

satisfeitos interesses divinos e humanos, necessidades sobrenaturais e naturais. Não conhece a

dicotomia entre Deus e homem, salvação eterna e bem-estar na terra, indivíduo e comunidade”.1

Em Canudos, estabeleceu-se uma simbiose entre fé e vida, doutrina e prática, amor a Deus e

amor ao próximo (cf. Mt 22,37 e 22,39). A Igreja carecia dessa síntese. No momento de conflito

com o Estado, suas energias eram colocadas na busca de superação da agitação. O Conselheiro

preencheu um vazio deixado pela Igreja oficial. Em Canudos, nas palavras de Otten, “O Projeto

(de Deus) toma a sério a realidade evangélica de que o Reino de Deus começa neste mundo, mas

1 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 380.

135

não é deste mundo. Desiludidos com o governo do homem sobre a terra, os cristãos pobres

procuram um lugar onde possam viver sob a ‘Lei de Deus’”.2

Antônio Conselheiro parece não encontrar respostas para os volumosos problemas sociais

na classe política; nem percebeu na forma como a Igreja Católica estava organizada, a

possibilidade para atender à demanda religiosa das populações sertanejas espalhadas pelo interior

do Nordeste. Procurou organizar uma comunidade para criar alternativas para que seus

integrantes pudessem viver dignamente como filhos de Deus e encontrar meios para vivenciar o

batismo cristão na qualidade de leigos, conhecedores de suas atribuições batismais. As atitudes

do Conselheiro emergiram do batismo cristão, mesmo que as autoridades eclesiásticas não o

tenham percebido. O exemplo de vida dos primeiros cristãos inspirou a nova comunidade do

Conselheiro. Historiadores, sociólogos e, até mesmo teólogos, são unânimes na defesa da

semelhança de Canudos com as comunidades primitivas. A força da experiência de Canudos

vinha das comunidades primitivas, do carisma profético do Conselheiro, da leitura atenta da

palavra de Deus, dos sacramentos da Igreja, especialmente da Eucaristia, das orações diárias na

comunidade, da observância exigente dos Dez Mandamentos e da ajudas fraternas. Em sintonia

com as aspirações do catolicismo popular, a comunidade de Canudos sonhava por melhor

convivência humana neste mundo, nos moldes como viviam as comunidades cristãs primitivas.

Ademais, como ficou demonstrado por A. Otten: “Que este projeto está longe de ser suspeito de

sobrenaturalismo desencarnado fica comprovado pelo entusiasmo com que os idealistas

socialistas recorrem a ele como modelo de uma sociedade ideal”.3 As necessidades religiosas

eram satisfeitas pela prática acentuada do catolicismo popular, de caráter leigo e devocional. É

uma Igreja leiga, que não rejeita o clero nem suas orientações, mesmo aparecendo eventualmente

2 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 379. 3 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 381.

136

para as desobrigas ou semanas missionárias. O dia-a-dia de Canudos era cuidado pelas lideranças

religiosas locais, especialmente pelo Conselheiro. A Igreja instituição estava distante das

necessidades materiais e espirituais do povo de Canudos, que procurava respostas para suprir às

necessidades por iniciativas e criatividade próprias. Cansado da ineficiência das instituições, o

povo foi se organizando como podia; vai criando um modelo social e eclesial diferentes das

existentes no século XIX. Não havia outro caminho. A decisão de viver do povo de Canudos, que

ia além das organizações políticas, das instituições do Estado republicano e da própria Igreja

oficial merece algumas interrogações. Organizar uma comunidade totalmente independente da

organização política e eclesiástica não deixa de ser um sonho e uma ilusão.

Um sonho, porque o Estado, manipulado e apropriado pelas oligarquias não inspirava

confiança. Fazia-se urgente a busca de alternativas para manter a peleja pela vida. Aliás, o povo

sertanejo vivia, por muito tempo, à revelia do Estado e a Igreja não conseguia atender às

necessidades do povo nas comunidades e lugarejos, nos rincões sertanejos. Uma alternativa ao

político e ao religioso vigentes era inevitável.

Uma ilusão, porque seria possível sustentar a comunidade de Canudos, completamente

desvinculada ou independente da organização do Estado republicano? A fé cristã pode ter a

pretensão de ser a única resposta para os problemas sociais e políticos? O cristianismo pode ter a

pretensão de açambarcar a estruturação política e partidária de uma sociedade humana e se

apresentar como única via? O religioso pode se reduzir ao sociopolítico? Mesmo constatando o

crescimento de Canudos, sua organização interna, a estruturação do atendimento religioso

dispensado pelo Conselheiro, a presença esporádica do sacerdote na região, era possível sustentar

por muito tempo aquela experiência? Ou ainda, a organização de Canudos teria encontrado o

ponto de equilíbrio entre fé e o compromisso com a prática social do cristianismo, descobrindo o

segredo da vivência da fé em comunidade?

137

A Igreja, historicamente, vem tendo dificuldade para harmonizar, de forma duradoura, a

fé e o compromisso com as transformações políticas. Historicamente, ou ela fica indiferente ao

aspecto político transformador da fé, ou confunde o religioso com o sociopolítico. J. Comblin

acredita que a “Igreja tem um papel limitado nas transformações do mundo. Esse papel, no

entanto, pode ser eficaz e significativo. Pode servir eficazmente ao advento do reino de Deus.

Pode também passar ao lado dele e perder chances históricas”.4 Canudos, talvez, não tenha ficado

imune a esse dilema. Não se pode prever qual teria sido o desfecho de Canudos, se não tivesse

havido a violência do Estado brasileiro e, portanto, sua destruição. Também não devemos

minimizar a experiência dos sertanejos, nem no aspecto político, nem no militar e nem no

eclesiológico. Não há dúvidas. Canudos deixou-nos um legado, mas não é um tema esgotado.

Que a experiência popular da Igreja em Canudos não foi bem aceita pela Arcebispo da

Bahia, é um fato. O relatório de frei Evangelista comprova a intenção oficial: mandar dispersar os

moradores do acampamento. O modelo de Igreja mais circular e participativo do Belo Monte,

apontava para uma situação nova na qual os modelos anteriores já não serviam para a conjuntura

de então. As lideranças eclesiásticas demoraram a entender o apelo para uma nova conjuntura.

Em Canudos, além de alternativa ao modelo político, nascia um novo modelo de Igreja,

claramente percebido pelo frei João Evangelista, pelo relatório apresentado ao Arcebispo da

Bahia. Antônio Conselheiro não tinha a intenção de contrariar a ordem vigente e tampouco as

instituições republicanas, aliás, por muito tempo distantes do homem do campo. 5 Ele não possuía

tal conhecimento, nem capacidade teórica para implantar um novo modelo eclesiológico, que

pudesse se contrapor ao oficial. Não constituía sua intenção. Sua vida foi dedicada aos problemas

4 COMBLIN, José, Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação, São Paulo: Paulus, 1996, p. 17. 5 A intenção do Frei João encontra-se logo no primeiro parágrafo de seu relatório: “[...] a fim de procurar pela pregação da verdade evangélica, e, apelando para os sentimentos da fé católica que esse indivíduo (Conselheiro) diz professar, chamá-lo e a seus infelizes asseclas aos deveres de católicos e de cidadãos, que de todo esqueceram e violam habitualmente com as práticas e as mais extravagantes e condenáveis, ofendendo a religião e perturbando a ordem pública”. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 3.

138

da comunidade, aliás, não poucos. O frei teve um conceito a respeito da fé cristã e a ordem

estabelecida bastante diferente dos membros da comunidade de Canudos. O Conselheiro foi

acusado por setores significativos da sociedade de desrespeitar a religião e a ordem pública. Na

realidade, Antônio Conselheiro contrariava fortes interesses. Canudos foi constituído de um povo

ordeiro, sempre guiado pelos ensinamentos da fé cristã. Muito mais que Antônio Conselheiro,

ficaram preocupadas as autoridades religiosas, políticas e as oligarquias rurais da região. O

acampamento de Canudos teve um papel decisivo na subsistência do povo. Foi o que

demonstrou-se em todo o capítulo anterior.

3.2- A Eclesiologia subjacente em Canudos

Antes de um aprofundamento maior sobre o modelo eclesiológico presente em Canudos,

fazem-se necessárias algumas considerações sobre eclesiologia, a fim de melhor se entender que

tipo de experiência de Igreja aconteceu em Canudos. A Igreja nunca foi uma realidade

monolítica. Desde o seu início, já no mundo do Primeiro Testamento, entre os Padres Apostólicos

e os Padres da Igreja, haviam experiências eclesiais bastante diversas. Sempre houve um veio da

Igreja dos pobres, ao longo da vivência da fé. A tensão na Igreja entre carisma e poder,

comunhão e participação, fé e vida, concentração de poder e abertura para investimento em

lideranças leigas vem desde as suas origens. A Igreja Católica vem tentando harmonizar carisma

e poder, comunhão e participação, dimensão hierárquica e ministério leigo, quase sempre

pressionada pelo desejo de os leigos vivenciarem o batismo, no exercício da cidadania dentro da

própria instituição. O povo vem procurando de forma criativa conviver com o clero, cuja

autoridade muitas vezes afugenta iniciativas de uma vivência mais ministerial e circular na

139

comunidade eclesial.6 Não poucas são as tensões. Mesmo assim, há possibilidade de o povo

resistir na caminhada.

No início do cristianismo, onde o Conselheiro buscou inspiração, o carisma prevalecia aos

aspectos mais institucionais. Ele procurava envolver os leigos na organização e decisões de sua

comunidade, contrariando, de certa maneira, o modelo eclesiológico do seu tempo. Em Canudos,

a participação era regra. Conselheiro se defronta com um modelo eclesial centrado no papa, em

Roma, no arcebispo, na capital da Bahia, e no pároco, na cidade do interior. A dinâmica da Igreja

de Canudos não foi uma invenção de seu líder. Encontra respaldo na Bíblia Sagrada e na

Tradição eclesial, conforme veremos a seguir.

Na concepção do teólogo Comblin, a Igreja quer dar a impressão, pela literatura “oficial”

(documentos magisteriais, Direito Canônico, história da Igreja e interpretação teológica oficial)

“de que a eclesiologia vertical, que se chama também hierarcologia, cresceu harmoniosamente

com os aplausos do povo católico e sempre prevaleceu, vencendo todas as heresias que a

ameaçavam”.7 Ao tomar os documentos magisteriais, a primeira impressão é que existe uma

única eclesiologia ortodoxa possível. “Fora dela somente havia as heresias. Não foi bem assim.

Não se pode dizer que a hierarcologia tenha sido sempre doutrina unanimemente aceita”.8 A

“Igreja mais popular”, ministerial e leiga sempre sobreviveu ao longo da história, em muitos

momentos à revelia da hierarquia ou com apoio de parte dela:

Durante 10 séculos tivemos, por conseguinte, uma Igreja clerical apoiada pelas forças dominantes da cristandade, o império, as monarquias, o feudalismo, e, por outro lado, uma Igreja mais popular, da base, sem apoios. Esta não era necessariamente anticlerical. [...] O momento culminante no antagonismo ocorreu no século XIX – e esse antagonismo diminuiu no século XX não porque aja mais paz, mas é porque a Igreja está muito enfraquecida, estando na defensiva, tratando de salvar o que ainda pode salvar.9

6 Uma análise bastante crítica da Igreja, a partir dos pobres foi feita por Leonardo Boff, que lhe custou um processo na Sagrada Congregação para a doutrina da Fé. Cf. BOFF, Leonardo, Igreja: carisma e poder: ensaio de eclesiologia militante, Rio de Janeiro: Record, 2005. Os documentos do processo sobre o referido livro aparecem num apêndice, sob o título: O processo doutrinário a Igreja: Carisma e poder, p. 331-446. 7 COMBLIN, José, O povo de Deus, São Paulo: Paulus, 2002, p. 58. 8 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 58. 9 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 59.

140

Conselheiro viveu no auge da hierarcologia da Igreja, desencadeada no Brasil pelo

processo de romanização, da “moralização” do clero e da centralização dos “bens” religiosos em

detrimento da pulverização das experiências religiosas ligadas ao catolicismo popular de tradição

portuguesa e caráter leigo, etc.10 Antônio Conselheiro viveu sob o pontificado de Leão XIII (papa

de 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903). Considerado o primeiro dos papas modernos a

estimular o diálogo da Igreja com o mundo moderno, Leão XIII criou uma verdadeira revolução

na área social ao publicar a Rerum novarum (em 1901), após a destruição de Canudos. O povo de

Canudos não se beneficiou das idéias novas de Leão XIII. Passaram décadas para que chegassem

ao Brasil as idéias papais ou conciliares. Prevalecia o esforço da autoridade eclesiástica para

controlar as manifestações do catolicismo popular no sertão nordestino. Apesar do esforço, o

povo, orientado por seus líderes leigos (beatos e conselheiros) continuava com inércia própria,

com uma prática eclesial batizada por Comblin de “Igreja mais popular”.11

Esta “Igreja mais popular” prevaleceu em Canudos. Não era uma Igreja paralela, mas a

possível na atual conjuntura eclesial. Foi naquela que o povo encontrou orientação segura para

enfrentar às intempéries da época. Pelo fato de usar intensamente a Bíblia, conhecer textos dos

Santos Padres e outras literaturas religiosas, Antônio Conselheiro percebeu que era possível, pela

tradição eclesial, organizar uma Igreja mais popular, leiga, comprometida com os pobres, com

10 A religiosidade popular e a romanização foram amplamente abordadas no capítulo I. Porém, para um maior aprofundamento, cf.: SUESS, Paulo Guenter, O catolicismo popular no Brasil: tipologia de uma religiosidade vivida , São Paulo: Loyola, 1979. O Instituto Nacional de Pastoral, a pedido da CNBB, publicou em Cadernos de Teologia e Pastoral, o resultado da reflexão de um grupo de teólogos e outros especialistas sobre Evangelização e comportamento religioso. Cf. Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: 1978, n. 8. No artigo de Pedro Ribeiro (O catolicismo do povo), o autor apresenta um ensaio de interpretação sociológica do catolicismo popular. Cf. p. 10-40. O texto de Edênio Valle (Psicologia e religiosidade popular: pistas para uma reflexão pastoral) aborda o mesmo tema, a partir do viés psicológico, conforme sugere o título do artigo. Cf. p. 41-70. E, finalmente, o artigo de Alberto Antoniazzi (Evangelização e cultura), introduz-nos no estudo teológico das relações entre Evangelização e cultura. Cf. p. 71-102. Uma outra publicação aborda exclusivamente os aspectos históricos do catolicismo popular no Brasil. Dividido em oito partes: I- Cruzes e cruzeiros; II- Oratórios; III- Ermidas e capelinhas; IV- Santuários; V- Romarias; VI- Confrarias; VII- Festas; VIII Procissões. O texto documenta a riqueza simbólica no mundo popular do povo simples. Cf. AZZI, Riolando, O Catolicismo popular no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1987. 11 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 59.

141

força para combater os males causados pela República, “ludíbrio da tirania dos fiéis.”12 A Bíblia,

portanto, foi seu primeiro manual de inspiração.

Importa vasculhar na Bíblia e na tradição eclesial os “vestígios” dessa “Igreja mais

popular” no dizer de Comblin, abraçada por Antônio Conselheiro e sua gente, não menos

importante na vivência eclesial que a Igreja clerical.

A palavra grega ekklesia designa a assembléia do povo como força política. Paulo usou o

termo ekklesia no Segundo Testamento, que, embora assinalasse uma continuidade entre Israel e

o povo cristão, era muito apropriado para receber um conteúdo novo. Reunidos em assembléia

(ou Igreja), os primeiros cristãos já experimentavam divisões (cf. 1Cor 11,18). A nova

comunidade de Jesus, denominada também de Comunidade Escatológica de Deus ou Igreja, cujo

alicerce é Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18), foi

traduzida pela Septuaginta como ekklesia. Em João, a Igreja aparece com a finalidade de “reunir

na unidade os filhos de Deus que estão dispersos” (Jo 11,52). Nos Atos dos Apóstolos, a Igreja é

a comunidade dos que louvam a Deus e se beneficiam da salvação em Jesus Cristo (cf. At 2,47).

Paulo a chama de “nós, os alvos” (1Cor 1,18) e preparada por Deus “antes da fundação do mundo

para sermos santos e irrepreensíveis sob o seu olhar, no amor”(Ef 1,4). Embora os textos do

Primeiro Testamento não tragam um tratado exaustivo sobre eclesiologia, fica claro que a Igreja

nasce na Páscoa de Cristo, ao passar deste mundo ao Pai (cf. Jo 13,1), cujo corpo eclesial só se

torna visível a partir da efusão do Espírito Santo, em Pentecostes (cf. At 2,1-13). São aceitos na

Igreja, os que acolhem a palavra dos Apóstolos e recebem o batismo. Nos Atos dos Apóstolos já

aparece uma certa regra de vida entre os membros da Igreja. Os que aderiam à fé, “eram assíduos

ao ensinamento dos Apóstolos e à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42).

12 MAC , p. 562.

142

Nos Atos dos Apóstolos, o destaque recai sobre o número de fiéis que aumentava a cada

dia, permanecendo em comunhão. “Todos unidos, unânimes, eram assíduos à oração, com

algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus” (At 1, 14).

Logo em seguida, foram apresentados José e Matias. “Fez-se o sorteio e a sorte caiu sobre

Matias, que foi desde então incluído entre os onze apóstolos (cf. At 1, 16). A Igreja de Jerusalém

já reunia “um grupo de mais ou menos cento e vinte pessoas” (At 1, 15), chegando a 3 000 (cf. At

2,41). Após a explosão de Pentecostes (cf. At 2,1-13), o número dos fiéis crescia repentinamente:

“Os que acolheram a palavra de Pedro receberam o batismo. E neste dia uniram-se a eles cerca de

três mil pessoas” (At 2,42) e, mais ainda: “muitos haviam abraçado a fé; o número deles se

elevava a cerca de cinco mil pessoas”(At 4,4). A prática de vida na comunidade cristã

proporcionava novas adesões: “E a cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas

que iam aceitando a salvação” (At 2, 47).

O termo mais importante e freqüente no Segundo Testamento para designar Igreja é

ekklesia, sempre com dimensões comunitária e participativa. Nesse contexto, Álvaro Barreiro

defende pelo menos três níveis de significados em ekklesia: “É usada para designar ora a

assembléia cultual, ora a comunidade local ou comunidades locais, ora a Igreja universal”.13

A reflexão eclesiológica aparece embrionariamente nos Padres Apostólicos, sempre com a

presença da “Igreja mais popular”. Referindo-se à Igreja, Inácio de Antioquia destaca o aspecto

cósmico, que abrange o céu e a terra;14 Hipólito de Roma preconiza uma comunidade santa, que

aponta para uma realidade escatológica;15 Irineu de Lião fala da Igreja fundada pelo Espírito

Santo, do qual derivam suas marcas;16 Cipriano de Cartago justifica a existência da Igreja em

função da salvação, com forte acento na autoridade do bispo diocesano, legítimo sucessor dos

13 BARREIRO, Álvaro, Igreja, povo santo e pecador, São Paulo: Loyola, 2001, p. 53. 14 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Efésios, 9,1; Carta aos Esmirniotas, 7,2. 15 Cf. HIPÒLITO DE ROMA, Comentário de Daniel, 1,14-18. 16 Cf. IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, III, 24.

143

apóstolos.17 Somente com Santo Agostinho aparece a distinção entre Igreja visível e Igreja

invisível.18

Essa época foi marcada por diversas eclesiologias, revelando estruturas eclesiais variadas.

Nem mesmo os concílios dos primeiros séculos, fixaram definitivamente uma ou outra

eclesiologia. No Símbolo de Constantinopla, no ano de 382, os Padres Conciliares procuravam

uma forma de contribuir para chegar à unidade da Igreja, ao reconhecerem a diversidade das

experiências. Professaram a fé na Igreja una, santa, católica e apostólica, como propriedades

essenciais da verdadeira Igreja de Cristo.19 O reconhecimento do pluralismo eclesial não

dificultou a riqueza dos diversos elementos específicos em cada Igreja particular. Ao contrário,

trouxe riqueza de experiências e desejo de se construir permanentemente a comunhão. O

fundamental para todos sempre foi viver a apostolicidade, a comunhão com as outras Igrejas e

celebrar os sacramentos, especialmente a eucaristia.

No Oriente, a reflexão eclesiológica mais sistemática surgiu com a unificação do Direito

Canônico por Graciano, século XII, quando apareceram os primeiros tratados teológicos

completos consagrados à eclesiologia. João de Torquemada, dominicano espanhol, se destacou

com a publicação da Suma de ecclesia, em 1450. Posteriormente, as eclesiologias desenvolvidas

pela Reforma trazem um viés mais dogmático e catequético, polarizada com os reformadores.

Até Santo Tomás, só havia fragmentos ou pequenas reflexões sobre a Igreja, num viés

mais apologético. A eclesiologia só aparece mesmo como um tratado autônomo na Teologia, a

partir do século XVI. Até então, prevaleciam os aspectos de sociedade perfeita e infalível. Aos

poucos, a eclesiologia foi ocupando seu espaço no conjunto maior da teologia dogmática. São

17 Cf. CIPRIANO DE CARTAGO, De ecclesie catholicae unitate, 6 e 17. 18 Cf. AGOSTINHO DE IPONA, De civitate Dei, 11-22. 19 Cf. Denzinger-Schönmetzer (=DS), 86; DS, 150.

144

Francisco de Assis e Santo Anselmo representaram o veio da “Igreja mais popular” e próxima ao

povo, na Idade Média.

Depois do século XVII, foi-se desenvolvendo uma visão eclesiológica, apontando para

uma Igreja como instrumento de transmissão da revelação divina. Os temas em destaque foram a

origem da Igreja, “sua natureza, suas estruturas e sua organização, suas tarefas e sua missão, suas

mediações, seus sacramentos e seus ministérios, seu culto, sua liturgia, sua pregação sua piedade

e seu futuro (escatologia)”.20

Ao longo da história da Igreja, não faltaram os que arriscassem definições apressadas

sobre ela. Belarmino, num contexto de combate ao protestantismo, motivado pelo clima de

polêmica, marcou época com sua clássica definição: “A Igreja é uma sociedade composta de

homens unidos entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã e pela comunhão aos

mesmos sacramentos, sob a jurisdição de pastores legítimos, sobretudo do Pontífice romano”.21

Ressaltando, ainda, o aspecto jurídico e a da presença marcante da autoridade, Pio XII não mede

as palavras: “Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro

da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separam voluntariamente do organismo do

corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpa gravíssima”.22 Essa

visão juridicista da Igreja, presente nos conceitos de Belarmino e Pio XII, marcou profundamente

os estudos eclesiológicos.

O Concílio Vaticano I teve a intenção de apresentar uma eclesiologia única e global. Em

meio às polêmicas, foi possível aprovar o capítulo IX de seu Shema de Ecclesia. A constituição

20 ECLESIOLOGIA, in: LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico de teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 590. 21 Cit in: MONDIN, Batista, As novas eclesiologias: uma imagem atual da Igreja, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 15. 22 PIO XII, Papa, Mystici Corporis , n. 21. Um excelente comentário sobre esse conceito de Pio XII, foi feito amplamente por Libanio, no contexto de uma análise dos critérios para se conhecer a autenticidade do catolicismo popular ou oficial. Cf. LIBANIO, João Batista, Critérios de autenticidade do catolicismo, in: Catolicismo popular, Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis: Vozes, v. XXXVI, 1976, p. 43-81.

145

dogmática Pastor Aeternus recebeu aprovação em 1870.23 Juntamente com os movimentos

litúrgico e bíblico, duas encíclicas marcaram o debate eclesiológico no alvorecer do Concílio

Vaticano II: Satis cognitum de Leão XIII (1896)24 e a Mystici Corporis, de Pio XII (1943).

Estava feito o caminho para o Vaticano II apresentar suas constituições, decretos e

declarações. Esse Concílio propôs o caminho para a elaboração do primeiro tratado, no campo da

teologia católica sobre eclesiologia, autorizado pelo magistério: a constituição dogmática sobre a

Igreja, Lumen Gentium.25 Na tentativa de melhor esclarecer o papel da Igreja como mistério e

sinal de salvação, os Padres Conciliares recorreram a imagens muito concretas da Igreja, tiradas

da palavra de Deus e trabalhadas pelos Santos Padres. A Igreja aparece como “o povo de Deus na

unidade do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”,26 é redil, sendo Cristo a única e necessária porta

(Jo 10,1-10)”; a grei da qual Deus é o próprio pastor (cf. Is 40,11; Ez 34,11); a lavoura ou o

campo de Deus (1Cor 3,9); construção de Deus (1Cor 3,9); casa de Deus na qual mora sua

família, templo santo; Jerusalém celeste e nossa Mãe (Gal 4,26; cf. Apoc 12,17); esposa

imaculada do Cordeiro imaculado (Apoc 19,7; 21,2,9; 22,17).27 e “Corpo Místico de Cristo”.28

No primeiro capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium,29 o Concílio apresentou

a Igreja, por um lado, como um mistério que não pode ser esgotado por conceito algum. Mas, por

outro, diante das indagações e cobranças do mundo moderno, os Padres Conciliares retomaram

noções eclesiológicas da primitiva Igreja, apresentadas como comunhão e sacramento: “a Igreja é

em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da

unidade de todo o gênero humano”.30 Para superar a abordagem excessivamente jurídica, o

23 DS, 3.050. 24Cf. DS, p. 3.300. 25 Cf. ECLESIOLOGIA, LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário crítico de teologia..., p. 590. 26 LG , 4. 27 Cf. LG , 6. 28 LG , 7. 29Cf. Cf. LG, 1-8. 30 LG , 1.

146

Concílio apresentou dois princípios norteadores no contexto da construção da Igreja comunhão:

a) O cristocentrismo e as dimensões sacramental e missionária da Igreja; b) A relação da Igreja

com o mistério trinitário, com uma reflexão da Igreja enquanto mistério, segundo a vontade

salvífica de Deus.31Com essa atitude do Concílio, a

eclesiologia supera o âmbito imediato do direito para situar-se no âmbito da teologia. No horizonte mais amplo do mistério trinitário, fora das relações imediatas de poder, explicitadas justamente pelo direito, é que se pode ver sob luz nova a relação da Igreja com o mundo, a relação entre hierarquia e fiéis e a relação entre a dimensão universal da Igreja e sua realização local.32

Há um deslocamento da Igreja centrada na hierarquia, no jurídico e no poder para acentuar

uma Igreja Povo de Deus, mais circular, onde os ministérios ocupam lugar, não de poder, mas de

serviço a toda a comunidade. O Concílio Vaticano II, especialmente a Lumen Gentium,33 abriu

um enorme leque na compreensão da Igreja, na missão dos leigos e no papel dos ministérios de

serviço, no interior da comunidade eclesial. De uma eclesiologia “hieracológica” passou-se a uma

Igreja Povo de Deus. Era uma eclesiologia da parte pelo todo (pars pro toto).

O que nos interessa nesta discussão sobre a Lumen Gentium é a inversão de ordem dos

seus capítulos II e III. Os Padres Conciliares, pela influência de assessores hábeis, optaram pelo

deslocamento do Povo de Deus do III para o II capítulo e a Hierarquia para o lugar do Povo de

Deus. Com isso, a categoria teológica “povo de Deus” tornou-se chave eclesiológica de leitura do

31 Cf. LG , 1. Cf. também: CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II e a Igreja do Brasil, in: GONÇALVES, Paulo Sergio Lopes e BOMBONATTO, Vera Ivanise (orgs.), Concílio Vaticano II: análise e prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 229-248. O autor comenta os principais deslocamentos eclesiológicos do Concílio Vaticano II. 32 CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Vaticano II..., p. 230-231. 33 Uma Comissão Teológica foi designada para elaborar um anteprojeto de Constituição sobre a Igreja. O primeiro texto chegou ao Concílio, intitulado De Eclésia; apresentava a seguinte ordem dos capítulos: I- Igreja como mistério; II- A Constituição hierárquica da Igreja; III- Igreja Povo de Deus; IV- Chamado à santidade. A Comissão teológica que elaborou o esquema viu o texto ser duramente criticado na Aula Conciliar, em sua estrutura, método, argumentação, conteúdo e espírito. Sugeriu-se a elaboração de um outro texto, incorporando as sugestões dos Padres Conciliares. O novo texto voltou ao plenário com quatro capítulos, faltando os atuais capítulos sobre o Povo de Deus, os Religiosos, a índole escatológica da Igreja e sobre Nossa Senhora. Novamente as críticas não se amenizaram. A mudança mais importante, pelo incidência na eclesiologia foi a inversão dos capítulos II e III. Após receber diversas emendas, o texto definitivo, agora com oito capítulos, foi apresentado ao plenário, presidido pelo Papa Paulo VI e, em 21-11-1964, aprovado por 2.151 votos, contra apenas 5 Padres Conciliares.

147

Concílio e o “Povo de Deus” ocupou seu devido lugar na Igreja. A Igreja passou de “Sociedade

desigual”, cujo acento recaía sobre a hierarquia e coloca os leigos, agora, em igualdade radical,

pela graça do batismo. Quem opera a diferenciação não é o cargo, mas “a ação do Espírito Santo

que convoca cada batizado a ser sujeito na Igreja conforme a diversidade de vocações, carismas,

e ministérios. Assim, todos são chamados a serem sujeitos no grande sujeito que é a Igreja, Povo

de Deus peregrino”.34 O Concílio assumiu uma prática muito antiga na caminhada do povo de

Deus.

A categoria Povo de Deus na Igreja, na concepção de Congar, é a forma mais feliz de

expressar a continuidade entre o antigo Povo de Deus, o Israel histórico, e o Povo de Deus hoje, a

Igreja.35 Modificou-se completamente o conceito de Igreja. De certa maneira, Antônio

Conselheiro antecipou na prática eclesial no Brasil essa realidade de Igreja, Povo de Deus, que

desaguou na Lumen Gentium.36 Ele deixou um legado para os que se convertem à Igreja, nascida

da vontade do Criador, cuja pertença se dá pelo batismo. Não se pode pensar que a mentalidade

hierárquica tenha desaparecido com o Concílio. Na prática eclesial, as duas realidades: Igreja,

Povo de Deus e hierarquia, convivem de forma dialética, dinâmica e, quase sempre, conflitiva.

Ainda mais diante da onda conservadora e da volta à grande disciplina, que invadiram a Igreja, a

partir dos anos oitenta, e a transportam para o conservadorismo, enfraquecendo muitos avanços

trazidos pelo Vaticano II e tão presentes nas comunidades eclesiais, como aconteceu em

Canudos. É um retrocesso para o Povo de Deus.

34 CALIMAN, Cleto, A eclesiologia do Concílio Vaticano II e a Igreja do Brasil..., p. 234. 35 Cf. CONGAR, Yves, A Igreja como Povo de Deus, in: Concílium, n.1, 1965, p. 13. 36 Cf. LG , 24-43.

148

3.3- A relação de Antônio Conselheiro com as autoridades eclesiásticas

Não se tem dados de conflitos provocados pelo Conselheiro com as autoridades

eclesiásticas. Ele era semelhante ao Padre Cícero, obedecia às orientações superiores, menos

abdicar do direito batismal de participar da comunidade ajudar organizá-la e cumprir sua missão

nascida do batismo, para a qual julgava ter sido chamado, de pregar o Evangelho e aconselhar

para o bem seus seguidores. Pelo acesso à literatura sobre esse assunto, o problema parece ser

mais da parte da hierarquia católica que de Antônio Conselheiro. Pelas circulares emitidas pelo

Arcebispo da Bahia, proibindo o Conselheiro pregar nas igrejas e por muitas cartas de párocos,

dirigidas ao Arcebispo da Bahia, relatando preocupações em relação à passagem do Peregrino em

determinadas paróquias, pode-se perceber o quanto a missão do Peregrino incomodava à

instituição eclesiástica em crise. O Conselheiro preferia mudar de freguesia a reagir publicamente

às proibições das autoridades religiosas. Em muitos casos, respeitou a reação dos vigários e

evitou o confronto direto, migrando para outros lugares. O Padre Agripino Borges, vigário de

Itapicuru, não teve dificuldades em perceber valores evangélicos na missão do Conselheiro.

Mesmo assim, uma análise mais apurada das cartas de alguns vigários enviadas às autoridades

(religiosas e do Estado) mostra a natureza do conflito. A preocupação de muitos padres era a

perda de espaço. Antônio Conselheiro os ameaçava: “O que gerou, pelas cartas dos vigários, o

confronto entre Igreja e Conselheiro era o fato de que o Conselheiro reclamava para si o direito

da prédica”.37 Padre Leopoldo Antônio Guia reconhece valores no Peregrino, mas demonstra

preocupação, ao dirigir-se à Arquidiocese, com os conselhos sem ciência, a um povo ignorante:

“Este homem que se diz penitente, conquanto tenha alguma utilidade para levantar paredes de

capelas e de cemitérios, tudo desfaz com os tais conselhos que, falta de toda ciência, prega ao

37 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 157.

149

povo [...]”.38 Tornava-se até mesmo impossível combater as heresias. Muitos padres, não somente

aceitavam a presença do Peregrino, como o convidavam para predicar nas Paróquias, divulgando

ainda mais as superstições. E lamenta: “como não haverá esta superstição se há sacerdotes que

consentiram ao mesmo Antônio pregar dentro da própria Matriz, de maneira que quando

convencidos do papel ridículo que representam, querem reagir, é sempre tarde [...]”.39

Visitando as Prédicas do Conselheiro, não aparece qualquer resposta a essas reações. Ao

contrário, quando alguns de seu grupo reagiram durante a homilia do frei João Evangelista,

emissário do Arcebispo da Bahia, o missionário reconheceu o respeito do Peregrino: “Este os fez

calar“.40 E, em outro momento: “Desta vez ainda o velho impôs silêncio”.41 Pelas prédicas, nota-

se um certo equilíbrio e amor de Antônio pela Igreja. Evitou responder às acusações que lhe

foram imputadas, de “inculto”, “ herege”, “ supersticioso”, “ desobediente”, “sem ciência” e “débil

mental”. Tomara a mesma atitude de Padre Cícero de respeito às normas do Arcebispo. Não as

criticava publicamente mesmo não sendo possível praticá-las. Ele não se perdia no que julgava

secundário. Cuidar da comunidade, procurar superar as dificuldades internas e conversar com os

que estavam chegando lhe era mais importante que qualquer discussão com autoridades

religiosas, quase sempre distantes do povo de Canudos. Muitos problemas surgiam no

aglomerado do Belo Monte, exigindo maturidade e capacidade de coordenação dos líderes.

Percebe-se, portanto, que o problema não estava nas atitudes do Conselheiro, e sim na

conjuntura eclesial nebulosa da Igreja. Mesmo sendo acusado pelo frei João Evangelista de

desrespeito à República e à doutrina cristã,42 seus manuscritos mostram sintonia com os

38 Cit. in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 156. 39 Cit, in: OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 157. 40 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4. 41 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5 42 Cf. Relatório do Frei João Evangelista..., p. 5.

150

ensinamentos da Igreja.43 A questão era outra. A resposta da crise da Igreja não deveria ser

encontrada na repressão a Canudos. O povo do Conselheiro foi vítima de um sistema de

Padroado causador das verdadeiras mudanças da Igreja, no início da República. Nesse caso

concreto, o que fazer quando as autoridades eclesiásticas não percebem ou não estão atentas ao

sopro do Espírito que indica novos ventos na Igreja? As autoridades religiosas não percebiam as

mudanças que indicavam abertura para maior participação do leigo na Igreja, um compromisso

maior com os pobres e não um enrijecimento e hostilidade.

O Peregrino, mesmo sabendo que a participação do leigo na Igreja era restrita, aprendeu

com o Mestre Ibiapina o segredo da participação criativa no ministério profético, sacerdotal e

régio de Cristo, herança do batismo. Pela consciência do batismo, estimulado pela Missão

Abreviada44 (obra aprovada pelo Cardeal de Lisboa, pelo Arcebispo primaz de Braga, pelo

Cardeal do Porto e pelo Bispo Conde de Coimbra) e interpelado pela carência de seu povo,

Antônio Conselheiro “Estava bem amparado, num tempo em que o apostolado dos leigos não

havia cobrado a extensão que tem hoje”.45 Não basta acusar o Conselheiro de herege: “Para se

aquilatar da genuinidade da doutrina de suas prédicas, o melhor é lê-las uma a uma.

Absolutamente ortodoxas. São elas instrutivas e persuasivas”46, analisa Ataliba Nogueira. Em

Canudos, estava em gestação o desejo de maior participação do leigo na Igreja. Decerto,

observando atentamente suas prédicas, “não hão de encontrar nenhuma das tolices ou crendices

ou infantilidades que se lhe atribuem, baseadas em simples ‘papeluchos de algum ouvinte

ignorante’”.47 A atenção do Peregrino frente ao magistério da Igreja na Bahia encontra

43 Os fundamentos da catequese ensinada pelo Conselheiro estavam na Bíblia Sagrada, nas Horas Marianas, na Missão Abreviada e outros manuais circulantes entre os vigários e cristãos leigos. 44 A Missão Abreviada, por ser um livro de continuidade da missão e direcionado às lideranças leigas, foi uma obra basilar na prática missionária de Conselheiro. 45 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76. 46 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76. 47 NOGUEIRA, Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica..., p. 76.

151

semelhança na atitude tomada pelo Padre Cícero: respeito sem confronto direto e público. O

mesmo não foi feito por parte de muitas autoridades religiosas que preferiram seguir os ditames

do projeto de romanização,48 a respeitar as iniciativas de leigos dedicados. Antônio Conselheiro

percebeu o chamado de Deus e, orientado pela sua palavra, procurou reunir o povo para antecipar

os sinais do Reino dos céus aqui na terra. Sempre o fez na qualidade de leigo comprometido, não

ousando apropriar-se de funções exclusivas do clero.

O movimento de Canudos foi eminentemente transformador, não teve interesse de

manutenção do status quo. Seu principal líder agiu impulsionado pela missão (estritamente) de

competência de qualquer leigo. Aprendeu na escola do Padre Ibiapina, acompanhou o Mestre da

Caridade, participou de diversas missões, usou manuais de devoções oferecidos pela sua Igreja,

divulgados pelos missionários no final das missões populares. Diante das atitudes de vários

líderes da Igreja, Antônio Conselheiro demonstrou consciência na missão, respeito pelas

autoridades religiosas, mesmo não sendo possível aceitar certas proibições, a seu juízo,

incompatíveis com a vontade de Deus.

3.4- Canudos: Igreja pobre acolhendo os pobres

Os estudiosos de Canudos, historiadores, sociólogos e religiosos concordam a respeito dos

moradores de Canudos: fugitivos das secas, ex-escravos, mendigos, desempregados, sem-terras,

índios, pequenos proprietários e trabalhadores vindos de fazendas nos arredores de Belo Monte.

Na missa do centenário da chegada de Antônio Conselheiro a Canudos, em 1993, durante a

homilia, Dom Pedro Casaldáliga , bispo Emérito de São Félix do Araguaia, afirmou: “Canudos

foi o primeiro acampamento de sem-terra do Brasil”. Então, que modelo de Igreja existiu em

Canudos? Qual o papel da Igreja Católica na gestação da experiência eclesial do povo de Belo

48 Assunto desenvolvido amplamente no Capítulo I, 1.6.

152

Monte? Por que a instituição mandou emissário a Canudos com o objetivo de dispersar os que lá

viviam, se a motivação maior era de ordem religiosa? Na pós-missão ela mesma não estimulava

as lideranças leigas, por meio de manuais religiosos para continuar o avivamento religioso no

sertão? A Igreja não poderia ter assumido uma atitude de diálogo ao invés de confronto? São

questões chaves para se entender o “novo jeito de ser Igreja pobre”, no meio dos pobres de

Canudos.

O surgimento de um novo jeito de ser Igreja em Canudos decorre, inicialmente, pelo

distanciamento da instituição eclesiástica do pobre, mas presente que era entre os ricos e classe

média; também da crise do Padroado, da separação entre Igreja e Estado e do processo de

romanização. A Igreja não conseguia ser presença e, portanto, satisfazer às reais necessidades

religiosas do sertanejo. O povo tinha sede de Deus. A Igreja dos pobres em Canudos, não foi uma

“outra Igreja” paralela. Foi a Igreja reinventada no meio dos pobres de Canudos. Antônio

Conselheiro fez com que os pobres em Canudos se apropriassem da Bíblia, dos valores

evangélicos, da doutrina cristã, da ética dos Dez Mandamentos, das orações diárias, dos manuais

de espiritualidade, do respeito pelas autoridades eclesiásticas e trouxe a Igreja, refém de uma

cúpula e desencontrada no fogo cruzado com o Estado, para o meio dos pobres.

Pablo Richard ensaiou algumas definições sobre a Igreja dos pobres que podem ser

aplicadas no caso Canudos: “é um movimento de renovação eclesial dentro da Igreja instituição

existente e em comunhão com ela”.49 Sendo um movimento dentro da própria Igreja, a Igreja dos

pobres é uma reação à inércia e ao distanciamento da instituição, com relação aos pobres e à falta

de opção evangélica por eles. Não é um movimento de ruptura com a instituição, como pensava

frei Evangelista. Antônio Conselheiro e sua gente aceitavam a Igreja, sua doutrina, seus

ensinamentos e seus líderes. Procuravam trazê-la para seu meio. Daí a necessidade de reinventar

49 RICHARD, Pablo, A espiritualidade da Igreja dos pobres, Petrópolis: Vozes, 1989, p. 28. Grifo do autor.

153

a Igreja, renovar suas práticas e refazê-la em seu modelo de Padroado ultrapassado, sem

compromisso com os pobres. O povo sentia a ausência da Igreja no acampamento e reagia ao

atendimento superficial, sem solidariedade com suas lutas. Sua presença era meramente

sacramentalista. Jesus“ foi tomado de compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor, e pôs-

se a ensinar-lhes muitas coisas" (Mc 6,34).

A compaixão de Jesus é motivada pela carência do povo. O Mestre não admite seu povo

abandonado. A imagem bíblica do rebanho sem pastor estigmatiza a incúria dos líderes políticos

e religiosos no seu tempo (cf. Mt 9,36). Na perspectiva de Mateus, Jesus equivale ao enviado de

Deus para as ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15,26; 10,6; Lc 19,10). Para a

comunidade de Mateus, Jesus procede como o pastor messiânico (cf. Ez 34,23; 37,24). No

Primeiro Testamento Deus pronuncia uma sentença para os pastores infiéis: “Ai dos pastores de

Israel que apascentam a si mesmos! Não é o rebanho que eles devem apascentar? Não

fortalecestes os animais fracos, não curastes o doente, não tratastes o que quebrou a pata, não

reconduzistes o que se perdeu, mas exercestes a vossa autoridade pela violência e a opressão”(Ez

34, 2.4). Deus reclama para Si o pastoreio de suas ovelhas: “Eu mesmo vou buscar meu rebanho

para cuidar dele. Eu mesmo farei meu rebanho pastar, eu mesmo o levarei ao repouso. A ovelha

perdida, eu a buscarei; a que quebrou a pata, eu a tratarei; a enferma, eu a fortalecerei” (Ez

34,11.15.16.).

Por deficiência da Igreja e pela insuficiência do clero da época, o povo de Canudos sentia-

se “ovelhas sem pastor”(Mc 6,34). A Igreja não conseguia chegar até Canudos. O Conselheiro,

então, trouxe a Igreja dos pobres para Belo Monte, sem desprezar ou fazer oposição à instituição

eclesiástica. Para Pablo, “a Igreja dos pobres desencadeia contradições, mas são justamente as

contradições próprias da renovação e da conversão que a Igreja dos pobres provoca na Igreja

154

atualmente existente”.50 De fato, a experiência de Canudos questionou o distanciamento da Igreja

no meio dos pobres. Ao falar do caráter escatológico dos movimentos populares, entre eles está

Canudos, João B. Libanio não deixou dúvidas:

E como pano de fundo está o modelo da Igreja primitiva, como relatam os Atos, onde os homens todos eram considerados iguais, sem distinções de fortuna. Repartiam-se os bens, colocando-os em comum. Aspirava-se a um retorno a tal comunidade carismática. As reivindicações religiosas e sociais misturavam-se.51

A estruturação da Igreja em Canudos era muito simples e pragmática. Havia uma divisão

social das atividades. Gente para cuidar da roça, os que plantavam e colhiam, os comerciantes da

comunidade, os que estabeleciam relações comerciais com cidades vizinhas, pessoas para

selecionar e exportar o coro do bode para a Alemanha. Tudo acontecia em nome da Igreja, sob a

coordenação do Peregrino, chamado por Deus para esse serviço.

3.5- Os colaboradores diretos na Igreja dos pobres em Belo Monte

Em Canudos, o poder era partilhado, as lideranças naturais. Antônio Conselheiro logo

percebia o dom de cada um. Com sensibilidade ia identificando líderes e confiando tarefas. Tudo

muito rápido, pois a comunidade crescia vertiginosamente. Nas conversas individuais, o Beato

procurava saber o que cada pessoa gostava de fazer. Diversos ministérios foram delegados pelo

Conselheiro e reconhecidos pela comunidade de Belo Monte. Havia espaço para todos. Euclides

da Cunha identificou diversas dessas lideranças. Muitos colocavam os dons a serviço de todos.

José Calazans classifica os ministérios de serviço em: beatos, combatentes, negociantes,

proprietários e outras figuras das redondezas.52 Cada líder tinha função definida e corroborada

pelos moradores, com anuência do Beato. A triagem era feita na chegada ao arraial, na entrevista

com Antônio Conselheiro.

50 RICHARD, Pablo, A força espiritual da Igreja dos pobres..., p. 28. 51 LIBANIO, João B., BINGEMER, Maria Clara L., Escatologia cristã..., p. 45. 52 Cf. CALAZANS, José, Quase biografia de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 11-87.

155

O autor de Os Sertões nomeou diversas pessoas, com funções específicas e lideranças

consagradas.53 A povoação de Canudos deixou Euclides surpreso, pois recebia pessoas de

“Todas as idades, todos os tipos, todas as cores”.54 Não havia restrição de qualquer ordem. Ali

havia velhos penitentes, beatas cravadas de pecados, mulheres solteiras, fisionomias ingênuas de

raparigas crédulas, formando uma estranha comunidade ou uma população multiforme:

constituída dos mais díspares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se faz a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela justaposição mecânica de levas sucessivas, à maneira de um polipeiro humano.55

Toda essa gente estava imersa no sonho religioso. “Os jagunços errantes ali armavam pela

derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus. [...] Não cogitava de instituições

garantidoras de um destino na terra. Eram-lhes inúteis. Canudos era o cosmos”.56 Mesmo no meio

dessa massa humana, “inconsciente” e “a crítica”, Euclides identificava uma série de lideranças

capazes de ocupar cargos de direção na comunidade. Um aluvião de líderes estava ao lado de

Antônio Conselheiro, proporcionando a direção partilhada das atividades comunitárias, sem a

qual não seria possível o crescimento ordenado da Canudos do povo. José Calazans afirma que

estavam subordinados ao Conselheiro “alguns beatos, como o beato Paulo, José Beatinho,

Antônio Beatinho, além de outros que não foi possível identificar”.57 Uns cuidavam das

atividades religiosas (orações, benditos, terços, ofício de Nossa Senhora, procissões, Trezenas de

Santo Antônio), outros do plantio no campo (milho, feijão, mandioca, gergelim, arroz, abóbora,

etc.). Não faltava quem cuidasse do criatório (bodes, carneiros, vacas, porcos), articuladores do

53 Cf. CUNHA, Euclides, Os Sertões..., p. 262-267. 54 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 262. 55 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 250-251. O português de Os Sertões soa um tanto arcaico. Porém, conservamos o original do texto de Euclides da Cunha. 56 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 251. 57 CALAZANS, José, Quase biografias de Jagunços: o séqüito de Antônio Conselheiro..., p. 13.

156

comércio (exportação do couro do bode, comercialização de cereais com cidades vizinhas,

compra de outros produtos não produzidos no arraial) e da agricultura familiar.

Um personagem que ficou na história foi Antônio Beato, mais conhecido por Antônio

Beatinho. No final do massacre, quando o Arraial estava dominado, dia 2 de outubro de 1897, ele

apareceu agitando uma bandeira branca, em sinal de paz. Antônio Beatinho foi “zelador de

imagens, encarregado de tomar conta das coisas da igreja, com o direito de morar no Santuário,

perto do Santo Conselheiro”,58 afirma o historiador José Calazans. E continua: “Antônio

Beatinho, cujo nome de família não se guardou, foi o mais comentado dos grandes jagunços. O

único que ficou para a história na hora crepuscular da sua gente”.59 Euclides traça, com detalhes,

o perfil de Antônio Beato:

mulato espigado, magríssimo, adelgaçado, pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadriando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes.60

José Félix, apelidado Taramela, foi companheiro de Antônio Beatinho, com função

semelhante na comunidade: “quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e

mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de

linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras

para as rezas”.61 Diversas informações dão conta ainda, de um certo Leão de Natuba, compadre

do Conselheiro, que o acompanhava como secretário, a quem o Conselheiro ditava ou mandava

copiar trechos de caráter religioso. Homem muito devoto de bela caligrafia. Morreu durante a

guerra, quando também pereceram quatro irmãos seus: Roseno, José, Manuel e Saturnino.

58 CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 16. 59 CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 17. 60 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 265. Grifo do autor. 61 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 265.

157

Manuel Quadrado recebeu a função de curandeiro, agindo na comunidade de Canudos

como um verdadeiro médico. Ocupava o dia-a-dia, “vivendo num investigar perene pelas

drogarias primitivas das matas”.62 Durante o final da década de 1890, circulou em larga escala o

Lunário Perpétuo, manual de medicina popular, possivelmente usado por Manoel Quadrado, na

preparação dos remédios caseiros. O povo não tinha acesso a qualquer benefício da saúde

especializada. As ervas eram as drogarias do povo e Manoel Quadrado prestava esse serviço na

grei conselheirista.

Timóteo Bispo de Oliveira, apelidado por Timotinho, também compadre de Antônio

Conselheiro, tinha a tarefa de tocar o sino, para lembrar os horários das orações e encontros

comuns. Durante a guerra, duas crianças de Timotinho foram recolhidas pelos soldados do

batalhão paulistano e levadas para São Paulo, conforme denúncia do Comitê Patriótico. Nunca

mais se teve notícia das criancinhas! Timotinho também foi “morto heroicamente no desempenho

de sua tarefa cotidiana, é uma das mais famosas figuras da guerra sertaneja de 1897. [...] atingido

por uma bala de canhão, na torre da igreja, que liquidou o sineiro e jogou longe o sino”.63

Tornou-se um dos mártires de Canudos. Francisco Cardoso de Macedo lamentou o sumiço do

sino, no final de tudo: “Nos últimos dias, eu estava no reduto, vi o grande sino se arrebentar

debaixo das balas, batendo no chão entre as pedras. Hoje ninguém sabe ao certo o destino do

sino, que se ouvia a uma légua por todas estas redondezas”.64 Percebe-se uma reação de lamento

pelo sumiço do sino, revestido de simbolismo na vida do sertanejo. Quantas vezes o repique

sinalizava o início das orações e encontros do Peregrinos com a comunidade eclesial! O sino

desapareceu!

62 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 265. 63 CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 19-20. 64 Cit. in: CALAZANS, José, Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro..., p. 20 (apud: TAVARES, Odorico, Bahia: imagem da terra e do povo, Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1952, p. 273).

158

José Félix, conhecido na grei por Taramela, oriundo de Nova Soure, encontrava-se no

séqüito desde o início da façanha, em 1893. Homem de toda confiança de Antônio Conselheiro,

Taramela gostava de relatar para as pessoas os “milagres” do Peregrino. De imaginação fértil,

passava horas contando estórias, à modo sertaneja. Não era capaz de inventar. Porém, tinha

capacidade de aumentar os “casos” do Arraial, proporcionando momentos agradáveis a todos. Há

várias informações sobre ele. Para Euclides, foi uma espécie de sacristão, chaveiro da Igreja e

guardião do Santo Conselheiro.65 Para Agostinho, sobrevivente ao massacre, o apelido Taramela

vinha do fato de lhe caber a responsabilidade de abrir as portas para a passagem de Antônio

Conselheiro.66 A informação de Calazans é divergente: “Taramela ou tramela quer dizer falador,

contador de estórias. A alcunha caía bem”.67 É a versão mais próxima do regionalismo

nordestino. Taramelar significa tagarelar, falar sem parar. Taramela vem de tramela de prender

porta sem fechadura. A tramela se movimenta rapidamente, à semelhança dos faladores ou com

“tramela na língua”.

Com poucos detalhes, Euclides lembra outros líderes com serviços especificados,

fundamentais na vida funcional do arraial: “Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que

alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável

aliciador de prosélitos (Animava os momentos festivos, soltando foguetes). José Gamo; Fabrício

de Cocobocó”.68 O depoimento de Vilanova confirma a força de lideranças no acampamento:

“Compadre Antônio, tanto quanto João Abade, ou Quinquim de Coiqui, o Major Sariema ou

Joaquim Tranca-Pés, foi um autêntico ‘chefe do povo’, um comandante de rua, um guerrilheiro

famoso de Canudos”.69

65 Cf. CUNHS, Euclides, Os Sertões..., p. 265. 66 Cf. CUNHA, Euclides da, Canudos: diário de uma expedição, Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1939. 67 CALAZANS, José, Quase biografias de Jagunços: o séqüito de Antônio Conselheiro..., p. 23. 68 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 264. 69 MACEDO, Nertan, Memorial de Vilanova..., p. 22.

159

E como a vida gravitava em torno da religião, dividiam-se os afazeres; uns cuidavam das

orações em comunidade pela manhã, ao meio dia e ao cair da tarde – momento no qual o

Conselheiro dirigia a palavra a todos; outros encarregavam-se do toque do sino nos momentos

festivos, de entusiasmo e os que puxavam as excelências.i Tudo no Arraial podia ser visto a partir

de uma inspiração puramente sagrada da existência, orientando os seguidores numa direção de vida na linha de santificá-la com ritos religiosos, com predominância de valores religiosos, buscava-se instaurar na terra o reino de Deus, reino de paz e harmonia, com melhores condições de vida para o povo.70

Euclides descreve um gesto de profunda religiosidade envolvendo Antônio Beatinho,

diante da imagem do Cristo crucificado, seguido pelos fiéis, comprimidos no Santuário, durante a

celebração da comunidade:

Antônio Beatinho, o altaneiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variante, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes inúmeros e, num crescente, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas à meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas e reprimidas ainda, para que não se perturbasse a solenidade.71

Com a colaboração de diversas lideranças, a guia do Conselheiro, a Igreja em Canudos se

concretizava e se fortalecia a cada dia, no meio dos pobres e com os pobres.72 Porém, sem faltar o

respeito para com lideranças eclesiais que investiam para desfazer a experiência de uma Igreja de

pobre no meio dos pobres.

A forma de organização dos ministérios de serviços na comunidade de Canudos encontra

fundamentos teológicos nas Igrejas do Segundo Testamento e no batismo cristão. O batismo

incorpora o fiel a Cristo. O batizado, como membro da comunidade eclesial, faz parte do Corpo

70 LIBANIO, João B., e BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã..., p. 52. 71 CUNHA, Euclides da, Os Sertões..., p. 266. 72 No centro de Belo Monte, havia duas igrejas e um cemitério. A pequena igreja velha e a igreja nova. Esta não chegou ao término por causa da guerra.

160

Místico de Cristo que é a Igreja. Como membros desse corpo, participantes do múnus profético,

sacerdotal e real do Filho de Deus encarnado. Os líderes em Canudos puseram em prática o que é

“específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções

temporais e ordenando-as segundo Deus.”73 Cabe aos leigos, afirma a Lumen Gentium, “de

maneira especial iluminar e ordenar de tal modo todas as coisas temporais, às quais estão

intimamente unidos, que elas continuamente se façam e cresçam segundo Cristo, para louvor do

Criador e Redentor”.74 Sem a diversidade dos serviços em Canudos, sem o empenho das

lideranças, não seria possível organizar uma comunidade com tanta gente. A missão de Antônio

Conselheiro sempre foi em nome da Igreja e, segundo o Vaticano II, “O apostolado dos leigos é

participação na própria missão salvífica da Igreja”,75mesmo que uma parte dos representantes da

Igreja não tenha sido capaz de interpretar a ação do Espírito de Deus na comunidade solidária de

Canudos.

Na Igreja de Canudos foi formando o que Alberto Parra chamou de ministerialidade “de

baixo” ou “de base”. “Essa ministerialidade “de baixo” e “de base” é claramente eclesial porque

o batismo e a vocação cristã estão gerando uma irrefreável potencialidade ativa no seguimento

histórico de Jesus para a transformação da Igreja e da sociedade”.76 Isso foi quantificado em Belo

Monte. A distância do Arcebispo da Bahia testemunhava um desequilíbrio próprio numa

arquitetura piramidal de Igreja, com a cúpula obviamente em cima e a base em baixo. A Igreja da

época de Antônio Conselheiro, “fraca no interior de suas próprias quadras, navegava entre crise e

reforma. Fechada no seu transcendentalismo estava muito distante do povo. Ignorava as

73 LG , 32. 74 LG , 32. 75 LG , 33. 76 PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres..., p. 64.

161

necessidades dele como também a sua fé, até demonstrava – como as elites secularizadas – pudor

e horror às formas religiosas populares”.77

Na perspectiva da teologia do laicato, a ministerialidade emergente do povo de Canudos

“é profundamente eclesial e radicalmente sacerdotal porque as comunidades de pobres e de

crentes são os batizados e consagrado pelo Espírito do Crucificado Ressuscitado”.78 Em Canudos

havia a prática do batismo cristão. Lá os ministérios da “base”, isto é, a Igreja que acontece em

plenitude no acampamento, eram eclesiais porque os pobres e crentes recuperaram sua dignidade

sacerdotal e leiga. Toda a ação pastoral do Conselheiro foi realizada em nome da Igreja, mesmo

sem ser reconhecida em determinados momentos por alguns de seus setores condicionados por

fatores políticos e conjunturais republicanos. O que caracterizava a Igreja “da base” em Canudos

era o fato de ter sido privada de um futuro próprio, pois o poder “de cima” não lhe permitia criar

sua própria história mas, ao contrário, a mantinha em condição de objeto ou subjugada. Não

obstante certa incompreensão, a Igreja em Canudos esteve unida com profunda convicção de fé

do Conselheiro à grande Tradição eclesial. Como obra do amor de Deus à humanidade, tem sua

origem na vida e obra de Jesus Cristo, animada por seu Espírito.79 Ela nasceu uma vez por todas

do ministério e do destino histórico de Jesus de Nazaré, da cruz, do sepulcro aberto do

Ressuscitado, da obra da graça de Pentecostes e continua nascendo onde as pessoas estiveram

reunidas em Seu nome. A Igreja é uma comunidade continuamente criada por Jesus, recriada pelo

Ressuscitado e acompanhada pelo Espírito Santo. Não é algo estático. É o povo de Deus em

marcha, agindo em cada momento histórico, dinamizado pelo Ressuscitado.

A Igreja de Canudos deparou-se, de certo modo, com o que Comblin caracteriza de

“modelo hierárquico (de Igreja) que era o modelo dominante no segundo milênio – pelo menos

77 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 374. 78 PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres..., p. 62. 79 Cf. DP, 237; 250.

162

na Igreja do Ocidente, e quase unanimemente aceito até 1940”.80 Frei João Evangelista, pelo

relatório apresentado ao Arcebispo da Bahia, Dom Jerônimo Tomé, em visita a Canudos, revelou

uma visão de Igreja do poder, distante do serviço aos pobres. Mesmo assim, a reação do

Conselheiro foi prudente e respeitosa.

Para Comblin, “diante da recusa da hierarquia e do clero, a consciência de povo

emancipou-se, secularizou-se e, no final, declarou-se contra uma Igreja hierárquica que lhe fazia

oposição”.81 E é enfático: “Essa Igreja hierárquica sentiu-se rejeitada. Condenou, condenou e

condenou, até que João XXIII veio dizer que o caminho das condenações não leva a nada”.82 É

sempre importante que os membros da hierarquia eclesiástica estejam atentos à ação do Espírito

de Deus que sopra na sua Igreja, apesar da nossa presença de clérigos. A

Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora fora de sua visível estrutura se encontrem vários elementos de santificação e verdade. Estes elementos, como dons próprios à Igreja de Cristo, impelem à unidade católica. 83

Não foi esse fenômeno, reconhecido pelo Concílio, que se deu em Canudos: “fora de sua

visível estrutura se encontram vários elementos de santificação e verdade”. Acolher os leigos

proporcionar-lhes espaço na missão não é uma concessão da parte da hierarquia, mas direito e

dever batismais. O Concílio Vaticano II esclareceu o papel dos leigos na Igreja e reconheceu que

eles “são especialmente chamados para tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e

circunstâncias onde apenas através deles ela pode chegar como sal da terra”.84 Quando os Padres

Conciliares expuseram a teologia do povo de Deus destacaram a missão dos leigos derivada

diretamente do Salvador. Os leigos participam diretamente do sacerdócio de Cristo,85 do seu

80 COMBLIN, José, O povo de Deus, São Paulo: Paulus, 2002, p. 52. 81 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 64. 82 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 64. 83 LG , 8. 84 LG , 33. 85 Cf. LG , 34.

163

múnus profético,86 e do múnus de reger sua Igreja.87 Por isso, os pastores da Igreja “reconheçam

e promovam a dignidade e a responsabilidade dos leigos na Igreja. De boa vontade utilizem-se do

seu prudente Conselho. Com confiança, entreguem-lhes ofícios no serviço da Igreja. E deixem-

lhes liberdade e raio de ação”.88

Mesmo quase um século antes, Antônio Conselheiro tinha clareza desse compromisso na

edificação da Igreja, de sua participação e co-responsabilidade na missão. O problema é que ele

não dispunha de instrumentos garantidores desses direitos na comunidade de Canudos. A visita

do frei João Evangelista teve como objetivo oficializar a posição do arcebispo da Bahia contrária

ao movimento sertanejo e por fim ao entusiasmo catequético das lideranças de Canudos. Antônio

Conselheiro assumiu uma postura de silêncio e contemplação diante do comportamento do

capuchinho. Diante da impotência dos leigos frente a autoridade dos “sagrados pastores”.

Comblin lança uma pergunta: “o que acontece se os “sagrados pastores” não seguem essas boas

recomendações (do Concílio)? Vê-se aí que os leigos estão totalmente impotentes. Não há meios

de obrigar o “sagrado pastor” a cumprir o seu dever. Isso não foi previsto pelo Concílio”.89 O

caminho mais sensato de Antônio Conselheiro diante do representante do Arcebispo da Bahia foi

o “silêncio obsequioso”.

Movimentos eclesiais como Canudos, a Ação Católica, as Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs) e outros movimentos no interior da Igreja ajudam na convivência familiar e colaboração

no crescimento da Igreja, entre leigos e pastores. A partir dessa convivência fraterna e de

cooperação mútua, “se reforça o senso da própria responsabilidade, é favorecido seu entusiasmo e

mais facilmente, os talentos dos leigos se unirão aos esforços dos Pastores. Estes, por sua vez,

ajudados pela experiência dos leigos, podem decidir-se mais clara e competentemente tanto nas

86 Cf. LG , 35. 87 Cf. LG , 36. 88 LG , 37. 89 COMBLIN, José, O povo de Deus..., p. 47.

164

coisas espirituais como nas temporais”.90 Se isso tivesse ocorrido em Canudos, evidentemente,

haveria outro desdobramento. Um posicionamento da Igreja em defesa de Canudos certamente

teria inviabilizado a guerra.

3.6- Outras manifestações religiosas em Canudos

A comunidade conselheirista reuniu pessoas de religiões diferentes. Lá conviveram

brancos católicos, afro-descendentes e índios. Ainda não se desenvolveram estudos, por exemplo,

sobre a presença dos índios Kaimbé de Massacoará, Kiriri de Mirandela, Tuxá de Rodelas e um

grupo significativo de caboclos de Natuba (Nova Soure), em Canudos. Há uma lacuna no

aprofundamento sistemático sobre à etinicidade específica dos índios do Nordeste. É uma página

a ser escrita. Não se tem notícia de conflitos religiosos no acampamento belo-montense, mesmo

vivendo na mesma comunidade brancos, negros e índios. Os motivos dessa paz religiosa são

desconhecidos. Talvez a ausência de protestantes justifique a convivência tão harmônica entre os

conselheiristas. Não havia dúvidas da predominância quase absoluta do catolicismo. Supõe-se

que os negros e índios, como na época da colonização, manifestavam sua religiosidade, cultuando

seus deuses e exercendo suas práticas religiosas. Nesse tempo, o protestantismo não tinha

chegado ao sertão. Segundo Francisco Cartaxo Rolim, as duas primeiras comunidades

protestantes só chegaram ao Brasil no início do século XX. A Assembléia de Deus chegou ao

Pará, em 1920. A Congregação Cristã no Brasil instalou-se no País em 1922 no Bairro do Bexiga,

em São Paulo. O missionário italiano Luís Francescon tornou-se o primeiro protagonista com o

objetivo de “transmitir aos imigrantes italianos a experiência pentecostal trazida dos Estados

Unidos”.91 Dados estatísticos da passagem do século XIX paro o XX revelam pouca influência

90 LG , 37. 91 ROLIM, Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina..., p. 49.

165

dos protestantes no País, conforme levantamento do censo da época, apresentado por Rolim, em

1890: “os evangélicos perfaziam 1% da população total; em 1900, 1,1%.”92

Essa influência protestante foi ainda menor no alto e médio São Francisco. Surge uma

interrogação. Se a protestantismo não teve tanta influência nos meios sertanejos, por que Antônio

Conselheiro os elegeu entre seus inimigos? Ele os equiparou aos maçons e aos republicanos,

como inimigos de Deus, que confundiam o povo. Eles “também só acreditam na Lei de Moisés,

espalhando doutrinas falsas e errôneas aos ignorantes, arrastando assim tantas almas para o

inferno, além das perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus; nunca eles vão triunfar,

porque Deus protege a sua obra”,93 que é a Igreja verdadeira.

Seguramente essa ojeriza aos protestantes vem da doutrina católica, propugnada pelo

Concílio de Trento e reafirmada pelo Concílio Vaticano I e bastante divulgada na Europa. O

Conselheiro seguiu, à risca, as doutrinas conciliares. Não existe outra explicação. Aliás, ele se

referiu poucas vezes com hostilidade aos protestantes.94 Rolim afirma que muitos protestantes

não declaravam sua igreja “como estratégia para se pouparem às perseguições, claras ou veladas,

movidas pelo catolicismo clerical”.95 Antônio Conselheiro não se sentiu incomodado pelos

protestantes. Combatê-los interessava ao clero e missionários pregadores de missão. Isso não

fazia parte do conteúdo dos ensinamentos do Peregrino. Não há informações sobre a existência de

evangélicos no acampamento conselheirista que pudessem se contrapor ao pensamento do

Conselheiro; nem se encontram relatos que comprovem conflitos entre católicos, afro-

descendentes e índios. Significa que havia tolerância religiosa no interior da comunidade. No

acampamento de Canudos, existiu um número significativo de índios e negros, sem maiores

problemas de convivência entre eles.

93 MAC , p. 548. 94 Cf. MAC , p. 548. 95 ROLIM, Francisco, Cartoxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina..., p. 32.

166

3.7- Características fundamentais da Igreja de Canudos

3.7.2- Uma Igreja fundada pelo Bom Jesus

A Igreja de Canudos não deve ser entendida como antitética à Igreja Católica, Apostólica

Romana, como se fosse uma outra “igreja paralela” ou um movimento à revelia da verdadeira

Igreja. Antônio Conselheiro sempre agiu em nome da Igreja fundada por Jesus Cristo, “obra de

Aquele que diz não ter vindo destruir a lei, mas aperfeiçoá-la”.96 Na sua concepção a Igreja é

obra do Bom Jesus, é protegida por Deus Pai.97 Como a comunidade do povo de Deus do Belo

Monte, a Igreja sempre foi protegida pelo Bom Jesus, provando “os tesouros da sua infinita

bondade e misericórdia”.98 Para os membros da Igreja de Jesus Cristo, presente plenamente na

comunidade de Canudos, o Bom Jesus não falta aos que recorrem à sua graça, agindo na Igreja

militante. Diante do crescimento da Igreja, comunidade de Canudos, Antônio Conselheiro

assumiu uma atitude contemplativa, de agradecimento e louvor ao seu fundador: “Cabe-me ainda

o prazer de declarar-vos que já rendi as devidas graças ao Bom Jesus por me ter prestado o seu

poderoso auxílio a fim de eu levar a efeito a obra do seu servo, que a não ser tão belíssima

pessoa, certamente não conseguiria realizá-la”.99 É pela graça de Cristo que a comunidade

prosperava. Se a Igreja Católica, Apostólica Romana é a única fundada por Jesus Cristo, então,

“nela não há erro, porque o seu fundador é a fonte de toda sabedoria, santidade e perfeição”.100

O Peregrino de Canudos trouxe para seus manuscritos a citação de Mt 16, 18, que confere

a Pedro uma posição especial no círculo dos doze, precedida por um reclame aos inimigos da

Igreja: “Não tendes paciência para esperar a promessa que o adorável Jesus fez a São Pedro,

dizendo: tu és Pedro e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não

96 MAC , p. 542. Português diferente do atual. 97 Cf. MAC , p. 550. 98 Cf. MAC , p. 553. 99 MAC , p. 552-553. 100 MAC , p. 550.

167

prevalecerão contra ela”.101 Jesus, ao fundar sua Igreja, deu autoridade para seus seguidores

agirem em seu nome. Ele “é a única esperança da nossa salvação; fora dele não há salvação em

parte alguma. [...] Eu sou a porta e se alguém por mim entrar será salvo. Acreditem pois, fiéis, na

lei da graça, que é a verdadeira lei que devem observar irrepreensivelmente para vossa

salvação”.102 A construção da Igreja de Santo Antônio de Canudos foi da vontade de Deus e para

o bem dos moradores do Belo Monte.

3.7.2- Uma Igreja alicerçada na sucessão apostólica

O ideário do Beato foi ortodoxo, atribuiu a origem divina da Igreja,103 reconheceu a

liderança de Pedro na qualidade de sucessor dos Apóstolos, coordenador da comunidade

apostólica, na qualidade de Pedra, sobre a qual a verdadeira Igreja de Cristo estaria alicerçada.104

Nos Textos extraídos da Sagrada Escritura105 o Beato fundamentou a autoridade doutrinal da

comunidade apostólica, que age em nome de Cristo, articulando seu pensamento com Mt 18,18:

“tudo o que vós ligardes sobre a terra será ligado também na céu; e tudo que vós desatardes sobre

a terra será desatado também no céu”.106

Motivava suas prédicas com os argumentos das escrituras, apelava para a autoridade dos

apóstolos e a confirmação dos evangelistas. Um dos exemplos é quando fala da ressurreição

gloriosa de Jesus:

foi Nosso Senhor Jesus Cristo morto e sepultado: e ao terceiro dia ressuscitou com brilhante resplendor e majestade e glória, e foi visto, por muitas vezes, de sua santíssima mãe e depois apareceu a seus discípulos e às santas mulheres. E tudo isto que vos tenho dito o confirmaram vários autores; e os santos evangelistas o confirmam como testemunhas de vista (Mat. 28, Mar. 15, Luc. 24, J0. 21).107

101 MAC , p. 614. 102 MAC , p. 549. 103 Cf. MAC , 550 104 Cf. MAC , p, 614. 105 Cf. MAC , 427-485. 106 MAC , p. 454-455. 107 MAC , p. 468-469.

168

Nos mesmos Textos extraídos da Sagrada Escritura, trabalhou com citações dos quatro

evangelhos, das cartas de Paulo, Pedro, Apocalipse de São João, etc., e articulou citações do

profeta Isaías, para não deixar dúvidas a respeito da messianidade de Jesus.108 Além disso, usa

citações dos Salmos, Eclesiástico e de Jó. Podemos dizer, ainda, que a comunidade de Canudos

foi uma Igreja da Palavra ou centrada na Palavra de Deus revelada. Antônio Conselheiro venerou

os Apóstolos como sucessores legítimos da continuidade da missão de Jesus; os Santos Padres,

como “colunas da Igreja Católica, Apostólica Romana e luz do cristianismo”109; os bispos e

lideranças comunitárias eram continuadores da missão apostólica, entregue por Jesus. O

Peregrino de Canudos demonstrou, pelos manuscritos, a sucessão apostólica da Igreja, o

embasamento evangélico de suas pregações, a utilização relativamente bem articulada de autores

cristãos, corroborando, por um lado, o domínio da linguagem teológica e religiosa e, por outro,

contradizendo os que o acusavam de ignorante, sem autoridade religiosa. E, o mais importante: à

semelhança do Mestre de Nazaré, “Antônio Conselheiro demonstrava uma invejável segurança

em se comunicar com os pobres do campo, de sorte que as multidões o seguiam como quem

segue um líder, pois o povo percebia que estava diante de alguém que trazia uma novidade para

os “mal-aventurados””,110 e pouco letrados do sertão, ponto fraco da linguagem teológica do

clero.

Antônio Conselheiro teve um profundo senso de unidade na Igreja. Não promovia

divisões; suas convicções revelavam preocupação com a unidade da única Igreja de Jesus Cristo.

Não há outra. Por isso, sofria com os que caluniavam a Igreja. Eles são inimigos do Bom Jesus.111

108 Cf. MAC . 471-472. Pela importância do sentido de esperança que estas citações do profeta representam para o contexto de sofrimento do povo de Canudos, transcrevo a íntegra dos citações, da própria Bíblia. 471: Is 25,9: “Dir-se-á nesse dia: É ele o nosso Deus. Nós esperamos nele e ele nos liberta. É o Senhor em quem pusemos nossa esperança. Exultemos, jubilosos, pois ele nos salva”. Is 35,4: Dizei àqueles que estão conturbados: Sede fortes, não tenhais medo. Eis o vosso Deus: é a vingança que vem, a retribuição de Deus. Ele mesmo vem salvar-nos”. Is 45,15: Seguramente, tu és um Deus que se mantém escondido, o Deus de Israel, aquele que salva”. 109 MAC , 474-475. 110 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo..., p. 67. 111 Cf. MAC , p. 560-563.

169

Portanto, partindo dos manuscritos de Antônio Conselheiro, de sua prática eclesial e

coerência de vida, fica claro, não se pode acusá-lo de despreparado, sem conhecimento doutrinal

e contra a unidade da Igreja. De fato, segundo Congar, a unidade da Igreja é apostólica. A

catolicidade está ligada à unidade, à apostolicidade ligada à obra de Jesus Cristo. Assim, “existe

uma espécie de presença e de interioridade mútua, de “circuminsessão” das notas entre si, um

pouco como as diversas funções de Cristo não são mais do que as emanações de sua unção pelo

Espírito Santo e de sua plenitude de graça, de maneira que sua realeza é profética e sacerdotal;

seu sacerdócio, profético e real; seu profetismo, real e sacerdotal”.112

Para Antônio Conselheiro, a única Igreja verdadeira é a Católica, que nasceu do Bom

Jesus, entregue à direção dos Apóstolos, que passa pelos Santos Padres e continua pelos bispos e

cristãos crentes que professam, com palavras e obras: Jesus Cristo é a luz da verdade, o

verdadeiro Redentor e Salvador do gênero humano.113 Apesar de ser acusado pelo frei João

Evangelista de falta de ortodoxia católica e ser contra as autoridade civis e religiosas,114 Antônio

Conselheiro reconheceu a legitimidade da hierarquia católica e sua ação pastoral em nome da

Igreja. Os ministros ordenados da Igreja do Bom Jesus abençoaram o povo:

Estas bênçãos se vêm lançar os papas, cardeais, bispos e todas mais pessoas constituídas em dignidade eclesiástica, no fim da missa e mais cerimônias da Igreja, quando abençoa o povo cristão, invocando nela as três Pessoas da Santíssima Trindade, que as formou e dirigiu para nosso bem. Na vara do sumo pontífice se vêem expressamente estas três cruzes, símbolo do supremo poder daquele supremo ministro de Deus. Esta cruz se vê levarem todos os arcebispos e bispos diante de si nos seus arcebispados: aos primazes por todo o reino onde o são.115

112 CONGAR, Yves, Propriedades essenciais da Igreja, in: Mysterium Salutis, IV/3, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 9. 113Cf. MAC , p. 474-475. 114 Relatório do Frei João Evangelista...,p. 5. 115 MAC , p. 500-501 .

170

3.7.3- Uma Igreja de pobre e para os pobres

Os pobres foram protagonistas na Igreja de Canudos. As alegrias e as esperanças, as

tristezas e as angústias do povo sofredor foram assumidas pela Igreja dos pobres no Belo Monte.

Em Canudos, os pobres sentiram-se acolhidos. Os leigos foram protagonistas em uma Igreja que

assumiu as dores e as alegrias, as esperanças e as tristezas, as angústias e os sonhos dos

sertanejos. A Igreja identificou-se com as causas do sertanejo e o sertanejo sentiu-se acolhido

pela Igreja.

Um desafio que sempre acompanhou a Igreja tem sido harmonizar o binômio fé e vida, fé

e compromisso social, amor a Deus e ao próximo, por em prática a proposta do evangelho de

implantar o reino de Deus aqui na terra. Jesus advertiu seus seguidores da incoerência: “Não

basta dizer: ‘Senhor, Senhor!’ para entrar no Reino dos céus; é preciso fazer a vontade do Pai que

está nos céus” (Mt 7,21). O cristianismo é a religião da alteridade, do coletivo, da

responsabilidade pelo “outro”, do “amor a Deus “de todo o teu coração , com toda a tua alma e

com todo o teu pensamento” Mt, 22, 37; cf. Dt 65; Js 22,5) e do amor ao “teu próximo como a ti

mesmo” (Mt 22, 39; cf. Lv 19,18; Mt 5, 43; 19,9).

Seguindo a linha da construção do Reino de Deus, Reino que não é deste mundo, mas

começa aqui, não é só comida, bebida o Concílio ampliou o conceito de Igreja; destacou o papel

do coletivo, da comunidade humana, do povo de Deus, ao introduzir novos conceitos sobre a

Igreja. Foi da vontade do Pai “santificar e salvar os homens não singularmente, sem nenhuma

conexão uns com os outros, mas constituí-los num povo, que O conhecesse na verdade e

santamente O servisse”.116 A nova eclesiologia emergente do Vaticano II estimulou a reflexão

teológica, a partir do viés eclesiológico laical, de comunhão, repensando as estruturas da Igreja, o

116 LG , 9.

171

compromisso com os pobres, missão e inserção no mundo. A Igreja, Corpo Místico de Cristo,117

povo santo, reunido em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,118 povo de Deus,119 é

sacramento universal de salvação.120

A Igreja em Canudos se organizou a partir dos leigos, numa simbiose entre fé e vida, sem

que uma ou outra fosse subestimada. Em Belo Monte os cristãos leigos, sob a guia do Peregrino,

harmonizaram as atividades terrenas e a construção do Reino de Deus, conforme preconiza a

Lumen Gentium. Conciliar “ambas harmoniosamente entre si, lembrados de que em qualquer

situação temporal devem conduzir-se pela consciência cristã, uma vez que nenhuma atividade

humana, nem mesmo nas coisas temporais, pode ser subtraída ao domínio de Deus”.121 A prática

de vida em Canudos foi orientada pela mística do amor a Deus e ao próximo(cf. Mt 22,37-39). O

amor ao próximo se concretizou na comunidade pela acolhida aos pobres e mal-aventurados que

lá chegavam. Ao mesmo tempo em que o Beato condenava a escravidão, acolhia os ex-escravos

vindos das senzalas; criticava a República, porém, acolhia os empobrecidos por ela na

comunidade solidária; orientava a todos para o trabalho e ensinava a virtude da partilha com os

necessitados; sabia conciliar oração e trabalho, seguindo à fileira da tradição nordestina e Padre

Ibiapina: orar e trabalhar. A ordem estabelecida pela República não correspondia à vontade de

Deus. “Neste caso, para manter-se fiel a Deus era necessário dedicar-se a orações, mas também à

prática social de contestações no sentido de abrir e criar novos espaços onde reine a comunhão de

bens e a vivência fraterna”.122 Foi implacável com os que se apropriavam dos bens alheios. O

homem, por mais pobre que fosse, não podia justificar o roubo. O Peregrino aplicou o

pensamento de São João Crisóstomo para os que enriqueciam ilicitamente. Os “que furtam os

117Cf. LG , 7. 118 LG , 4. 119 Cf. LG , 24-43. 120 Cf. Ad Gentes, 5. Citado por AD . 121 LG , 36. 122 PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo…, p. 61.

172

bens alheios são piores que as feras e que os demônios; e como tais os deviam riscar do catálogo

dos homens. Porque as feras, quando acometem aos outros animais, estando satisfeitos os

deixam; porém os que furtam, de nenhum roubo ficam satisfeitos, porque ficam com fome para

fazerem outro: e quanto mais roubam mais sede têm de furtar”.123

A Igreja de Canudos foi samaritana com os caídos, misericordiosa com os necessitados e

exigente com os que insistiam na acumulação desonesta de riquezas, em detrimento dos

necessitados. Nos textos seletos, extraídos das escrituras, aplicava a sentença de Jesus aos

aproveitadores da República: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que

um rico se salvar”124 (cf. Mt 19,24). E mais na frente: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua

justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo”125 (Mt 3,33). Também ensinava: “Amai a

vossos inimigos, fazei o bem a quem vos tem ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam”126

(cf. Mt 5,44). Esse espírito cristão tornou-se o fio que costurou as relações humanas na

comunidade canudense.

A conferência de Puebla advertiu a Igreja da necessidade de conhecer as causas da miséria

na América Latina. “A situação interna de nossos países encontram, em muitos casos, sua origem

e apoio em mecanismos que, por estarem impregnados não de autêntico humanismo, mas de

materialismo, produzem, em nível internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres

cada vez mais pobres”.127 Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro procuravam combater a miséria;

aquele, no início do século XIX; este, no final. A prática libertadora da comunidade de Canudos,

vista com desconfiança por setores da Igreja, foi reconhecida em Puebla. A Igreja “deve fazer

123 MAC , p, 368. 124 MAC , p. 442-443. 125 MAC , p. 443. 126 MAC , p. 444. 127 Cit. in: DP, 30.

173

ouvir a sua voz, denunciando e condenando estas situações, sobretudo quando os governos ou

responsáveis se confessam cristãos”.128

Canudos preconizou o novo jeito de ser Igreja, praticado pelas Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs), a partir de 2960, no Brasil e na América Latina. As CEBs só foram reconhecidas

por um documento pontifício na Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, falando “destas “pequenas

comunidades” ou “comunidades de Base””.129 As CEBs “brotam e desenvolvem-se, salvo

algumas exceções, no interior da Igreja, e são solidárias com a vida da mesma Igreja e

alimentadas pela sua doutrina e conservam-se unidas aos seus pastores”.130 São comunidades

semelhantes à experiência de Canudos: “reúnem os cristãos daqueles lugares em que a escassez

de sacerdotes não favorece a vida ordinária de uma comunidade paroquial”.131 Para Leonardo

Boff, assessor das CEBs, elas “são mais que extensões das tradicionais instituições da Igreja,

como as paróquias e associações pias. Elas significam a presença de toda a Igreja na base, quer

dizer, a Igreja dentro do povo pobre e humilde”.132 O povo de Canudos tinha amor à Igreja,

sentia-se responsável, não somente pela construção das igrejas velha e nova, como também pelas

diversas outras capelas nas cercanias do arraial belo-montense. No Belo Monte, o povo pobre

apropriou-se da liturgia, coordenava as liturgias da Palavra, participava das missas, fazia

procissões, cantava os benditos, animava pela oração a vida machucada.

3.8- Fundamentos bíblicos e teológicos da eclesiologia da comunidade de Canudos

Antônio Conselheiro destacou os pontos fundamentais da fundação da Igreja: origem

divina, sucessão apostólica, Tradição eclesial, referência aos Santos Padres, bispos, sacerdotes e

128 Puebla, 42. 129 Evangelii Nuntiandi, 58. Cit. por EN. 130 EN, 58. 131 EM , 58. 132 BOFF, Leonardo, Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho, Campinas (SP): Verus Editora, 2004, p. 66-67.

174

diversas outra lideranças cristãs. Essa é a conclusão dos que têm acesso aos seus manuscritos.

Eles revelam um autêntico católico orientado pelos ensinamentos da fé cristã. Eduardo Hoornaert

não deixa dúvidas ao falar dos manuscritos do Conselheiro, utilizados na sua catequese. As

“prédicas do Beato apresentavam uma doutrina católica perfeitamente ortodoxa”.133 Não deixou

dúvidas de que a Igreja é de instituição divina: “Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, fiéis, que fundou

a sua Igreja”.134 Sentiu-se indigno de ser encarregado de construir a igreja de Santo Antônio de

Canudos.135 A Igreja é obra de Jesus, que veio aperfeiçoar a lei antiga e apresentar as novidades

do Reino de Deus.136 Trabalhou com textos bíblicos, defendeu a sucessão apostólica, estimulou a

prática dos sacramentos do batismo. Não escapou ao fundamento evangélico da regeneração

batismal: “para fazê-lo mais patente vejam o que diz Nosso Senhor Jesus Cristo [...] O que crer e

for batizado será salvo, o que porém não crer será condenado”.137 Procurava instruir os membros

da comunidade ao sacramento da penitência.138 Transmitia aos fiéis: “O apóstolo diz aos

romanos: não foi tão grande o pecado como o benefício. Onde o pecado abundou, superabundou

a graça”.139 A confissão só seria incontestavelmente necessária para a salvação140 se houvesse

arrependimento e reconciliação. Os pecadores “devem penetrar-se de viva dor de haver cometido

tantas misérias, e daí por diante fazerem firme propósito de emenda, assim como satisfizeram a

penitência que for imposta pelo confessor”.141

O Beato usou o texto evangélico da sucessão de Pedro (cf. Mt 16,18);142 apresentou os

Santos Padres como colunas da Igreja, na continuidade da sucessão apostólica; ensinou a seus

133 DOORNAERT, Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica..., p. 115. 134 MAC , p. 550. 135 Cf. MAC , p. 537. 136 Cf. MAC , p. 542. 137 Cf. MAC , p. 565. Os textos tirados da Bíblia não aparecem entre aspas. Porém, acompanha sempre a citação antes e depois do texto. 138 MAC , 565. 139 MAC , 432. 140 Cf. MAC , p. 525. 141 MAC , p. 527-528. 142 Cf. MAC , 435.

175

fiéis que quando a Igreja, por meio de seus ministros legitimamente ordenados, abençoa o povo

de Deus, invocando a Trindade Santíssima, essa bênção chega até Deus.1 Antônio Conselheiro

cultivou a Igreja em Canudos sem desconsiderar suas notas fundamentais: Igreja Una, Santa

Católica e Apostólica. Admitiu a hierarquia, instruiu o povo para os sacramentos, especialmente

eucaristia, Batismo e Penitência. Para ele, participar da eucaristia era a melhor obra do cristão. A

missa é carregada de significações e mistérios.2 Era uma Igreja, portanto, alimentada pelos

sacramentos. Não faltaram os elementos essenciais da Igreja de Cristo. Foi uma Igreja

samaritana, acolhia os pobres; uma Igreja misericordiosa, tolerante com os fracos; uma Igreja

pobre, organizada pelos pobres, alimentada pelos sacramentos e pela mística dos Dez

Mandamentos. Canudos continua sendo uma luz para iluminar a experiência da Igreja dos pobres

hoje. É cantado hoje pelo povo nas romarias do Nordeste, nas missas e celebrações populares,

conforme Roberto Malveze (Gogó), ao compor o hino da Romaria do centenário do massacre de

Canudos, em 1997:3

Levantei cedo Eu também peguei a estrada. Hoje eu não perco por nada. A romaria de Canudos. Fiz a oração. Pedi bênção, pedi luz. Vou à grande romaria. Do arraial do bom Jesus. Vou, vou a Canudos. Do Conselheiro. E de tantos meus irmãos. Vou, vou celebrar. Esses cem anos de paixão e ressurreição. Cheguei a Canudos. E fiquei emocionado. É gente de todo lado. Que se achega no sertão. Lembrei da guerra. E de Antônio Conselheiro. E de tantos sertanejos. Que morreram neste chão. Já faz cem anos. E o sertão não mudou nada. Continua abandonado. Na miséria e solidão. Já faz cem anos. Eu tô na mesma caminhada. Tô na luta pela terra.. Pelo pão e pela água. Do nosso povo. Roubam tudo o que ele tem. Roubam terra, roubam sonhos. Roubam a vida também. E é movido. Por tanta necessidade que o povo segue em frente. Atrás de FELICIDADE.

1 Cf. MAC , 500-501. 2 Cf. MAC , 509-512. 3 COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, 100 anos do massacre no sertão: Cantos, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997, p.1

176

Conclusão

A formação religiosa de Antônio Conselheiro, sua experiência nas andanças com Padre

Ibiapina e Padre Cícero, garantiram-lhe um legado útil ao trabalho desenvolvido no Belo Monte,

especialmente nos três anos de vida comunitária. Percebemos a natureza eclesial da experiência

desenvolvida em Canudos: a intensa vida comunitária, a vivência dos sacramentos, o amor à

Igreja, admissão da hierarquia eclesiástica e o entusiasmo dos integrantes do movimento.

Este terceiro capítulo nos possibilitou um aprofundamento maior do pensamento de

Antônio Conselheiro. Ele escreveu e desenvolveu, nas prédicas ao povo, temas como os

sacramentos (batismo, penitência e eucaristia), a Bíblia, a Igreja, a sucessão apostólica, os Santos

Padres. Teceu duras críticas ao sistema republicano, reagiu ao latifúndio, não aceitou estabelecer

relações com parte do clero omisso diante das injustiças e subserviente às oligarquias rurais.

Canudos se aproximou da harmonização entre carisma e poder, fé e vida, conhecimento

doutrinal e vivência da fé. Antônio Conselheiro adotou como regra reagir às formas de poder que

não estivessem a serviço dos moradores de Canudos: desvalidos, fracos, pobres e excluídos. Ele

adotou como regra em sua prática pastoral, a primazia do carisma sobre o poder, a prática sobre a

teoria, a ortopráxis da fé sobre a ortodoxia doutrinal – mesmo sabendo que a doutrina da Igreja

ensinada pelo Beato não se diferenciava da adotada pelos padres do sertão. Com um diferencial:

havia exigências e proibições na comunidade.

Eram proibidos: uso de bebidas alcoólicas, prostituição, viver por conta própria sem se

preocupar com os pobres. Essa novidade aconteceu sem que o Conselheiro adotasse uma postura

polêmica. Seu envolvimento com a comunidade, o cuidado com os ministérios, a luta para

plantar, comercializar, prover as necessidades básicas da população e superar os problemas

internos não permitiam margem para disputas ideológicas. A vida do Conselheiro foi ocupada

com as atividades no acampamento. As reações partiram das autoridades da República, da

177

imprensa oficial, de coronéis da região, de setores da Igreja e do Juiz de Juazeiro. O último ano

de vida em Canudos foi de luta intensa para se defender da ação do governo republicano, do

governador da Bahia, dos coronéis do sertão e dos que se sentiam ameaçados pelo que acontecia

em Canudos.

178

CONCLUSÃO GERAL

Não é preciso enfatizar a importância de se “revisitar” Canudos. Cada estudo sobre o Belo

Monte e Antônio Conselheiro contribui para demitologizar e desmistificar o caráter incruento e as

tensões que fizeram com que Canudos ressurgisse, não obstante a ação violenta do Estado. Do

ponto de vista objetivo, a Guerra de Canudos foi uma perversidade humana. Mesmo com os

argumentos usados pelos patrocinadores da carnificina, realizada há mais de cem anos

(“justificativas injustificáveis”), Canudos desafia às ciências criminalista, sociais, políticas e a

própria ciência teológica.

O massacre ocorrido na comunidade de Antônio Conselheiro precisa continuar passando

por uma adequada reavaliação histórica. “Revisitar Canudos” é aprimorar a verdade histórica do

ponto de vista dos “vencidos” e elucidar o que podemos aprender desse episódio que provocou

uma mancha nas páginas da historiografia brasileira. O pluralismo nessa abordagem revela a

importância que Canudos deixou para os religiosos, acadêmicos, pesquisadores e escritores. Um

grande passo foi dado.

Somente a partir das últimas décadas, as ciências sociais estão conseguindo ultrapassar o

preconceito dos chamados movimentos “messiânicos”.1 Essa “demora” pode ser atribuída às

dificuldades dos acadêmicos em despertar o interesse pela religião ou o fenômeno religioso,

1 Cf. Rossi, Luis Alexandre S, Messianismo e modernidade: repensando o messianismo..., p. 17-61.

como objeto de estudos pelas universidades. A preocupação com a religião na academia quase

sempre ficou “esquecida” ou relegada a plano secundário.

O positivismo francês, o marxismo ortodoxo e seus continuadores no Brasil quase sempre

tiveram um olhar “atravessado” para o fenômeno religioso e a religiosidade popular. A história da

positivismo nasceu com o empirista inglês D. de Hume, mas teve como seu principal

representante o francês Augusto Conte, de quem nossos intelectuais brasileiros são herdeiros. A

idéia da religião como “ópio do povo” ou a ser superada pela “ciência positiva”, marcou o

pensamento acadêmico no Brasil e atrasou a compreensão do papel da religião na história

humana.

Para o professor de ciências da religião, no curso de Pós-Graduação na Universidade

Metodista (SP), Dr. Antônio G. Mendonça, a “pesquisa científica da religião no Brasil, segundo a

concepção mais ou menos generalizada, ganha corpo com os trabalhos de Emílio Willems (1967),

Beatriz Muniz de Souza Camargo (1969), Cândido Procópio F. de Camargo (1973) e Valdo

César (1973) antes dos anos 80”.2 Surgiram muitas dúvidas quanto à necessidade de ocupar a

Universidade com a Ciência da Religião, enquanto objeto científico. Como a Ciência da Religião

vem se afirmando como área de conhecimento, ainda há uma certa busca de identidade. Em 1981,

Donald Wiebe lança um livro, traduzido no Brasil em 1998, fazendo diferenciação entre ciências

da religião e ciência da religião. Donald Wiebe trabalha com a distinção semântica:

Por via de regra, em discussões metodológicas antigas e recentes, distingue-se de maneira bastante clara a expressão “ciência da religião” das expressões “as ciências da religião e “o estudo científico da religião”. Entende-se, em geral, que as últimas referem-se à aplicação aos fenômenos religiosos das metodologias e técnicas das várias ciências sociais (por exemplo, psicologia, antropologia, sociologia etc.), juntamente com suas presunções e pressupostas concomitantes. Por outro lado, entende-se que a expressão “ciência da religião” indica uma disciplina totalmente diferente, que é, em termos metodológicos,

2 MENDONÇA, Antônio Gouvêa, Dois pioneiros e um passeur de frontières, in: TEIXEIRA, Faustino (org.), A(s) Ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica, São Paulo: Paulinas, 2002, p. 235.

180

distinta das outras ciências e que, por conseguinte, é completamente autônoma ainda que se utilize “resultados” obtidos pelas ciências sociais.3

O mesmo acontece com os movimentos messiânicos e milenaristas. É do início da década

de 2960 que surgem as primeiras obras, a exemplo de O Messianismo no Brasil e no mundo, de

Maria Isaura de Queiroz, com primeira edição em 1963 e o livro de Douglas Teixeira Monteiro,

de 1974.4 Esses dois autores abriram uma discussão profícua sobre os movimentos messiânicos e

milenaristas, na universidade.

Um outro fator foram os estudos a respeito do catolicismo popular no campo teológico,

sua tipologia e relação com o catolicismo oficial. Nesse contexto eclodiram também as pesquisas

sobre o movimento de Canudos, a valorização da religiosidade popular e a força revolucionária

da mística cristã.

Aos poucos a religião vai deixando de ser objeto de alienação e dando lugar à força

revolucionária. A Teologia da Libertação, as CEBs – com seus encontros Intereclesiais – o

Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), os encontros de Conjuntura Nacional, a fundação do Partido

dos Trabalhadores, etc., tiveram uma função preponderante na compreensão do papel da

religiosidade popular na transformação social. A teologia da Libertação estabeleceu uma conexão

com as CEBs e suas implicações mútuas. As reflexões de Leonardo Boff sobre Teologia da

Libertação e CEBs são reveladoras: “as comunidades eclesiais representam a prática da libertação

popular e a teologia da libertação, a teoria desta prática”.5

O estudo sobre Canudos, na perspectiva dos vencidos, beneficiou-se desse movimento na

área das ciência humanas, sociais e teológica, dentro e fora da Igreja. No tocante ao

acontecimento da guerra contra o povo do Conselheiro, o início das Romarias, a partir de 1983,

3 DREHER, Luís Henrique, Ciência(s) da religião: teoria e Pós-Graduação no Brasil, in: TEIXEIRA, Faustino (org.), A(s) Ciências da religião no Brasil..., p. 272-272. 4 Cf. Bibliografia no final. 5 BOFF, Leonardo, Novas Fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho, Campinas (SP): Verus Editora, 2004, p. 145.

181

deu um novo impulso à versão da história ao reverso e a popularização das causas do massacre. A

história das romarias iniciou em 1983, com o envolvimento de dioceses do sertão da Bahia:

Senhor do Bonfim, Rui Barbosa, Juazeiro e Paulo Afonso. A partir de 1993, ano do centenário da

chegada de Antônio Conselheiro em Canudos, a Comissão da Romaria ampliou abriu-se, para

outras entidades. Foram convidadas para fazer parte da coordenação ampliada da Romaria

Centenária diversas entidades: a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Sub-regionais 6 e 7 da

CNBB, Conselho Indigenista Missionário (CIME), Igreja Batista Nazarth (Salvador), Instituto

Regional da Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e

Grupo de Peregrinos do Nordeste. Nesse mesmo ano do centenário, a Comissão Ampliada da

Romaria criou o Instituto Popular Memorial de Canudos, com o objetivo de estimular a reflexão

sobre o exemplo histórico de Canudos, revelar a viabilidade de modelos sociais e da luta nos dias

atuais e preservar o acervo histórico que vier a ser adquirido sobre Canudos.

Alexandre Otten reconheceu o valor das ciências sociais e humanas na reflexão sobre

Canudos. As “ciências humanas e sociais, em suas pesquisas sobre os movimentos por elas

chamados “messiânicos”, desfizeram o preconceito social que pesava sobre os integrantes desses

movimentos”.6 Com isso a pesquisa sobre Canudos ganhou o impulso merecido. Esta dissertação

vem na esteira desse movimento e procurou contribuir para a história dos “vencidos”, mas,

principais protagonistas, mesmo sendo vítimas na história.

Será que este trabalho abriu pistas novas na discussão sobre a experiência religiosa e

sociopolítica de Canudos? Canudos foi mais que um acontecimento qualquer. Foi um fato

histórico ainda não esgotado no meio científico. Prevaleceu nele a experiência de um povo

indefeso e vítima do jogo das elites daquele tempo.

6 OTTEN, Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro..., p. 357.

182

Fizemos um caminho. No primeiro capítulo, apresentamos a figura histórica de Antônio

Conselheiro, sua família, vida, formação, conversão, influências dos padres Ibiapina e Cícero de

Juazeiro. Mostramos a relação entre Antônio Conselheiro e os dois padres: semelhanças e

especificidades. O Beato deu um passo além. Enquanto os padres Ibiapina e Cícero cuidavam dos

pobres, criavam estruturas (Casas de Caridade, etc.), não “incomodavam” às elites políticas e ao

latifúndio. A prática de Antônio Conselheiro e a forma de organização social incomodaram as

estruturas políticas e eclesiais. Antônio Conselheiro antecipou a opção preferencial pelos pobres,

protagonizada por Medelín (1968), aprofundada em Puebla (1979) e explicitada pela Teologia da

Libertação. Conclui-se o primeiro capítulo com uma reflexão crítica sobre a contextualização do

Nordeste brasileiro no tempo de Antônio Conselheiro: a problemática política, a queda da

Monarquia, a crise econômica, a separação entre a Igreja e o Estado, a questão religiosa, o

processo de romanização e o catolicismo popular de tradição portuguesa.

No segundo capítulo, através dos Manuscritos deixados pelo Conselheiro, fez-se uma

leitura do universo religioso do Beato. Fontes como a Bíblia Sagrada, a Missão Abreviada, As

Horas Marianas ajudaram na compreensão da formação de Antônio Conselheiro e a solidez de

seu projeto pastoral. A partir dessas fontes e do aprendizado nos conflitos de terra, pobreza e

crise econômica no Nordeste, desenvolvemos uma leitura sistemática do pensamento teológico de

Antônio Conselheiro.

No terceiro capítulo, aprofundamos a eclesiologia propriamente dita. Partindo dos

Manuscritos do Peregrino muitos mitos podem ser superados. O primeiro foi a acusação feita

pelo Frei João Evangelista, emissário do Arcebispo da Bahia: “É meu pesar esse, é uma doutrina

errada a vossa”7, afirma o capuchinho. Tanto as fontes usadas por ele (Bíblia, Missão Abreviada,

etc.), quanto os Manuscritos revelam o contrário. A doutrina ensinada por Antônio Conselheiro à

7 Relatório do Frei João Evangelista..., p. 4.

183

sua gente, não se diferenciava da que a Igreja doutrinava seus fiéis. Os manuscritos revelaram

uma doutrina sistemática (sobre Deus, Jesus Cristo, Espírito Santo, sacramentos, mandamentos,

fé, etc.), ortodoxa, coerente e clara.

A Pergunta fundamental que foi trabalhada nesta pesquisa foi: se Antônio Conselheiro

apropriou-se da doutrina oficial da Igreja, qual a novidade na sua experiência eclesial? Eis a

questão fundamental. O Peregrino trabalhou em sua comunidade eclesial um gargalo que sempre

desafiou à Igreja: a doutrina cristã e sua prática. Ao visitar as Prédicas do Conselheiro foi

possível perceber que não há dois tipos de discurso – um religioso e o outro político – que se

justaponham. Mesmo sem querer fundir os discursos – semanticamente são diferentes – o

discurso de Antônio Conselheiro foi religioso. Neste estava embutida uma proposta política. Frei

Beto esclarece:

não é tanto pelo objeto ou pela temática que aborda que o discurso religioso se distingue do discurso político. É a estrutura de um e outro discurso que difere. As regras que comandam o discurso religiosos não são as mesmas regras que comandam o discurso político. O primeiro se dá a partir da esfera do sagrado, supõe a adesão da fé a uma revelação sobrenatural, fala sobretudo do deve ser. O segundo se dá a partir da esfera do real, dentro da racionalidade científica, fala sobretudo do que é e visa a transformação da realidade.8

O viés do Conselheiro sempre foi o sagrado. Fiorim também faz uma distinção entre o

discurso religioso e o discurso político. “No primeiro aparecem os semas /universalidade/,

transcendência/, eternidade/; no outro estão presentes /contingencialidade/, /imanência/,

temporalidade/, com todas as marcas-morfo-sintáticas que isso implica”.9 O discurso religioso e o

discurso político procura, ao seu modo, dá uma resposta ao mistério da vida. O discurso religioso

do Conselheiro era militante e, portanto, prático e transformador. Ele acreditava que a Igreja tinha

8 BETO, (Frei), Da prática da pastoral popular: encontros com a civilização brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 99. 9 FIORIN, José Luis, A ilusão da liberdade discursiva..., p. 260. Segundo o dicionarista Aurélio, sema vem do grego (sêma, atos) e significa “Traço semântico mínimo não possível de ocorrência independente”. In: Sema, FERREIRA, Aurélio, Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1832.

184

um papel determinante na construção da liberdade e da libertação do povo. Canudos foi uma

resposta religiosa a um problema que extrapolava o âmbito meramente religioso. O discurso

religioso em Canudos tinha como objetivo:

oferecer ao homem parâmetros para a compreensão da História, por meio de um sentido meta-histórico. O meio de o ser humano suportar a história, numa sociedade de classes, é proclamar o seu fim, projetando numa utopia a realização do ideal cristão de igualdade, liberdade e fraternidade, que é intrínseco à doutrina do cristianismo, uma vez que todos são filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo.10

A Igreja em Canudos uniu os sertanejos, abriu espaço para os ministérios de serviços,

alimentou a utopia e trouxe sentido para a vida de quem chegava. Em Canudos, o povo encontrou

esperança. A projeção da resolução dos problemas em Deus, não levava o povo ao comodismo.

Ao contrário, cada pessoa tinha uma função na comunidade. Antônio Conselheiro, à semelhança

dos santos, intuiu a vontade de Deus e o desejo de libertação do sertanejo. Boff afirma:

Não é sem razão que os grandes movimentos renovadores, as novas formas de piedade, os grandes profetas, santos e místicos irromperam do meio popular, onde a experiência de Deus e de Jesus Cristo, livre do superegos da doutrina oficial, podia ensaiar uma nova mediação. Sem o catolicismo popular não vive o catolicismo oficial, sem o catolicismo oficial não se legitima em seu caráter católico o catolicismo popular.11

A Igreja em Canudos favoreceu criatividade ao povo, deu vazão para a experiência

religiosa e alimentou o sonho de uma Igreja comprometida com as causas do povo. O silêncio de

Antônio Conselheiro frente às autoridades eclesiásticas revelou um homem consciente de sua

missão, crente que estava vivendo o Batismo cristão e continuador da missão aprendida com o

Padre Ibiapina. Ao tentar proibir a ação missionário de Antônio Conselheiro, a Igreja Católica no

Brasil perdeu a oportunidade de apoiar uma iniciativa genuinamente leiga, de fortalecer o laicato

e encontrar um caminho novo, diante do imobilismo eclesial do final do século XIX, trazido pela

10 FIORIN, José Luis, A ilusão da liberdade discursiva..., p. 290. 11 BOFF, Leonardo, Igreja, Carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante, Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 181.

185

separação entre Igreja e Estado e aprofundado pela romanização. A experiência de Canudos era

uma luz que ia se ascendendo, no coração da Igreja.

Mesmo que a experiência de Antônio Conselheiro tenha sido de pouca duração, Canudos

deixou alguns exemplos para nossa história. Diante dos conflitos devemos ter prudência. Por falta

de cautela, a Igreja comemorou em vários lugares a massacre de Canudos. Além de o Relatório

do capuchinho ter sido favorável aos militares, a hierarquia católica apoiou o alto comando da

guerra e comemorou a vitória do Exército sobre os brasileiros de Canudos, em vários estados:

O general Savaget, quando voltou ferido de Canudos, ficou hospedado no palácio do arcebispo, em Salvador. Em agosto ordenou a realização de preces públicas em todo o Estado da Bahia apoiando a ação do Exército. No Pará, antes do embarque da milícia paraense para a Bahia, houve uma missa campal, com o arcebispo dando as bênçãos da Igreja aos soldados. Quando do retorno das tropas foi rezada uma missa campal em Salvador, na Praça Duque de Caxias, ao lado do monumento aos heróis de 2 de julho de 1823. Também em São Paulo, o batalhão policial paulista foi recebido com uma missa na igreja da Sé. 12

Essa marca na Igreja poderá servir para alimentar nosso discernimento diante da

voracidade das forças do Estado ao destruir o povo do próprio País. Faltou um pouco mais de

percepção diante das causas da guerra. Canudos foi vítima de um sistema político em decadência.

A bravura, os trabalhos de mutirão, a mística da luta, a experiência da Igreja de pobre para

pobres, são exemplos deixados pelo povo de Antônio Conselheiro. Finalmente, Canudos continua

contado na alegria dos romeiros durante cada ano na Romaria de Canudos:13

ALEGRIA POVO MEU, POIS CANUDOS NÃO MORREU ESTÁ VIVO NA UNIÃO, TÁ NA FÉ NO CORAÇÃO, NO CORAÇÃO.

12 VILLA, Marco Antônio, Canudos: o povo da terra..., p. 222-223. 13 COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, Canudos, 100 anos do massacre no sertão: cantos..., p. 5.

186

Tá no homem na mulher, tá na flor da minha fé. Tá na terra na alegria no amor, na rebeldia. Pois Canudos é uma paixão, uma luta um sonho bom. Um caminho, um sacrifício pra vencer o Precipício. Tá na dor, tá no tormento, tá na vida que irradia, tá na coragem e amamenta a criança que se cria. Tá na terra repartida, tá na fé que vai crescer tá na vida tão sofrida tá na dor que vai morrer.

187

BIBLIOGRAFIA 1

I- Fontes BENÍCIO , Manoel, O rei dos jagunços: crônicas históricas e de costumes sertanejos sobre

os acontecimentos de Canudos, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2. ed. [2 ed. 1899],

1997.

MACIEL , Antônio Vicente Mendes (Antônio Conselheiro), Tempestades que se levantam no

Coração de Maria por ocasião do mistério da Anunciação: a presente obra mandou

subscrever o Peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel no povoado do Belo Monte,

Província da Bahia em 12 de janeiro de 1887 (manuscrito publicado por Ataliba Nogueira).

MARCIANO , Frei João Evangelista de Monte, Relatório apresentado pelo Reve. Frei João

Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispo da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu

séquito no Arraial de Canudos, 1895, [apresentação de José Calazans], Salvador: Centro de

Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1987.

MACEDO , Nertan, Memorial de Vilanova, 2.ed., Rio de Janeiro: Renes [Brasília]: INL, 1983.

SAMPAIO , Consuelo Novais (org.), Canudos: cartas para o Barão, 2.ed., São Paulo: USP,

2001.

1 A divisão que se segue é principalmente de ordem prática, visto que tantos títulos poderiam ocupar outro lugar que aquele que aqui se segue. Ela indica principalmente a perspectiva com que foram usados no decorrer deste trabalho.

II. História de Canudos e Antônio Conselheiro

BLOCH , Didier (org.), Canudos, 100 anos de produção: vida cotidiana e economia dos

tempos do Conselheiro até os dias atuais, Paulo Afonso [BA]: Fonte Viva, 1997.

BOAVENTURA , Edvaldo, O Parque Estadual de Canudos, Salvador: Secretaria de Cultura e

Turismo, 1997.

CALAZANS , José, Antônio Conselheiro: construtor de igrejas e cemitérios, in: Revista

Brasileira de Cultura, n. 16, 1973.

__________,As mulheres de Os Sertões, in: RINALDO , de Fernandes, O Clarim e a oração:

cem anos de Os Sertões, São Paulo: Geração Editorial, 2002.

__________,O Ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo da

companhia de Canudos, Salvador: Tipografia Beneditina, 1950.

__________, Quase Biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro, Salvador:

UFBA, Centro de Estudos Baianos, n. 122, 1986.

CALAZANS , José e NÓBREGA, José Dionísio, Solidariedade, sim; igualdade, não: aspectos

controvertidos do episódio de Canudos, in: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE

CANUDOS, BLOCH , Didier (org.), Canudos, 100 anos de produção: vida cotidiana e

economia dos tempos do Conselheiro até os dias atuais, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva,

1997.

CUNHA , Euclides, Os sertões; [introdução M. Cavalcanti Proença; col. Prestígio], São Paulo:

Ediouro, 2003.

DOBRORUKA , Vicente, História e milenarismo: ensaios sobre tempo, história e milênio,

Brasília: Universidade de Brasília, 2004.

FACÓ, Rui, Cangaceiros e fanáticos; 2ª ed., [1.ed. 1959], Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1965.

FIORIN , José Luis, A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas de Antônio

Conselheiro. Dissertação de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo, 1999.

HOORNAERTE , Eduardo, Os anjos de Canudos: uma revisão histórica, Petrópolis: Vozes,

1998.

189

INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS , Canudos: uma história de luta e

resistência, 2. ed., Paulo Afonso [BA]: 1993.

__________, Almanaque de Canudos 2002, Juazeiro [BA]: Gráfica Franciscana, 2002.

LLOSA , Mario Vargas, A Guerra do fim do Mundo: a saga de Antônio Conselheiro na

maior aventura literária do nosso tempo, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

MONIZ , Edmundo, A Guerra social de Canudos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

_________, Canudos: a luta pela terra, São Paulo: Centro Editorial latino-americano, 1981.

MONTENEGRO , Abelardo F., Fanáticos e cangaceiros, Fortaleza: Henrique Galeno, 1973.

NOGUEIRA , Ataliba, Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica, São Paulo:

Nacional [Brasiliana, v. 355], 1974.

OTTEN , Alexandre, Só Deus é grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro, São

Paulo: Loyola, 1990.

PEREGRINO, Artur, Canudos: um ritual de passagem para um final de mundo, in: Estudos

Bíblicos, n. 59, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 53-73.

PINHEIRO , José Francisco, Dependência e marginalidade: Conselheiro e Ibiapina no contexto

da história econômica do Nordeste, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-

AMERICANOS (CEHILA) , Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.

PINTO , Luiz Fernando, A personalidade carismática de Antônio Conselheiro: aspectos

psicanalíticos, in: Centenário de Belo Monte, revista da FAEBA/Universidade Estadual da

Bahia, ano II, esp., Salvador (janeiro/junho), 1993.

QUEIROZ , Maria Isaura de, O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo: Alfa-Omega,

1977.

RODRIGUES, Nina, As coletividades anormais, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939.

SOARES, Henrique-Estrada de Macedo, A Guerra de Canudos, Rio de Janeiro: Altina, 1 ed.

1902 [?], 1903.

VASCONCELOS, Pedro Lima, Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas

sobre Belo Monte (Canudos), 2004. Tese de doutorado apresentada na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, 2004.

190

VILLA , Marco Antônio, Canudos, o povo da terra, São Paulo: Ática, 1995.

III- Religiosidade popular

ANTONIAZZI , Alberto, Evangelização e cultura, in: INSTITUTO NACIONAL DE

PASTORAL , Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: Vozes, 1978, p.

71-102.

AZZI , Riolando, O catolicismo popular no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1987.

__________, O episcopado brasileiro frente ao catolicismo popular, Petrópolis: 1977.

BARRETO , Francisco Murilo de Sá, Padre Cícero, São Paulo: Loyola, 2002.

BETO, (Frei), Da prática da pastoral popular, encontros com a civilização brasileira, Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

CABRAL , Joaquim, “Missão Abreviada”: da pobreza de uma teologia... ao estigma funesto

de uma moral. Dissertação de licenciatura em teologia moral na Academia Afonsiana, Pontifícia

Universidade Lateranense, Roma: 1986.

CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS (CEH ILA), Padre

Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.

CLEMENT , Catherine e KAKAR, Sudhir, A louca e o santo, Rio de Janeiro: Relume-Dumaré,

1997.

COMBLIN , José, Ibiapina, o missionário, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS

ATINO-AMERICANOS (CEHLA) , Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo:

Paulinas, 1984, p. 119-126.

__________, Padre Cícero de Juazeiro, São Paulo: Paulinas, 1991.

COSTA E SILVA , Cândido da, Roteiro de vida e morte: um estudo do catolicismo da Bahia,

São Paulo: Ática, 1882.

COUTO, Padre José Gonçalves, Missão Abreviada para despertar os descuidados, converter

os pecadores e sustentar o fruto das missões, Porto: (11º ed.), 1878. – 25ª ed. 1900.

FRAGOSO, Hugo, Cadernos de restauração, I, Salvador, EPSSAL, 1993.

191

__________, As Beatas do Pe. Ibiapina: uma forma de vida religiosa para os sertões do Nordeste,

in: HOONAERT , Eduardo e GEORGETTE , Derochers (orgs.), O Padre Ibiapina e a Igreja

dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.

HOORNEART , Eduardo, Crônicas das Casas de Caridade de Padre Ibiapina, São Paulo:

Loyola, 1981.

__________, O Cristianismo moreno no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1990.

__________, Ibiapina e os desclassificados: à procura de uma chave interpretativa da crônica das

Casas de Caridade, in: CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS ,

Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 69-84.

__________, Verdadeira e falsa religião no Nordeste, Salvador: Beneditina, 1973. – (col.

E.P.N).

LIBANIO , João Batista, Critérios de autenticidade do catolicismo, in: Catolicismo popular,

Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis: v. XXXVI, 1976

OLIVEIRA , Pedro A. Ribeiro de, O catolicismo do povo, in: INSTITUTO NACIONAL DE

PASTORAL , Evangelização e comportamento religioso popular, Petrópolis: Vozes, 1978, p.

11-40.

PARRA, Alberto, Os ministérios na Igreja dos pobres, São Paulo: Vozes, 1991.

RICHARD , Pablo, A espiritualidade da Igreja dos pobres, Petrópolis: Vozes, 1989.

ROLIM , Francisco Cartaxo, Pentecostalismo: Brasil e América Latina, Petrópolis: Vozes [col.

Teologia e Libertação, n.6], 1994.

SITE DO GOOGLE , Bibliografia do Padre Cícero, 9 de agosto, 2005.

SUESS, Paulo Güenter, Catolicismo popular no Brasil: tipologia de uma religiosidade vivida,

São Paulo: Loyola, 1979.

VALLE , Edênio, Psicologia e religiosidade popular: pistas para uma reflexão pastoral, in:

INSTITUTO NACIONAL DE PASTORAL , Evangelização e comportamento religioso

popular, Petrópolis: Vozes, 1978, p. 41-67.

192

IV- Documentos do Magistério

KLOPENBURG , Boaventura e VIER , Frederico (org.), Constituição Dogmática “Lumen

Gentium”, in: Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações, 15 ed.,

Petrópolis: Vozes, 1983.

__________, Decreto “Ad Gentes”, in: Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos,

declarações, 15. ed., Petrópolis: Vozes, 1983.

COSENSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO , A evangelização no presente e no

futuro da América-Latina, Conclusões da III Conferência Geral do Episcopado Latino-

Americano, Puebla, São Paulo: Paulinas, 1986.

IV- Outros escritos

AGOSTINHO DE IPONA , De civitate Dei, 11-22.

ALVES , Rubens, O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas, 1992.

__________, A volta do sagrado, in: O suspiro dos oprimidos, São Paulo: Paulinas, 1992.

AZEVEDO , Thales, A guerra aos párocos, Salvador: EGBA, 1992.

AZZI , Riolando, A Sé primacial de Salvador: Igreja católica na Bahia: Período imperial e

republicano, Petrópolis: Vozes/Universidade Católica de Salvador, 2001.

BARREIRO , Álvaro, Igreja, povo santo e pecador, São Paulo: Loyola, 2001.

BOFF, Leonardo, A Trindade, a sociedade e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986.

__________Igreja: Carisma e poder, ed. rev., Rio de Janeiro: Record, 2005.

__________, Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho, Campinas (SP):

Verus Editora, 2004.

BRUGER, Walter, Dicionário de Filosofia, São Paulo: EPU, 1977.

BRASIL , Tomás Pompeu de Sousa, O Ceará no cenário da independência, v. I, Fortaleza:

1922.

CALIMAN , Cleto, A eclesiologia do Vaticano II e a Igreja do Brasil, in: GONÇALVES , Paulo

Sergio Lopes e BOMBONATTO , Vera Ivanise (orgs.), A eclesiologia do Vaticano II: análise e

prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 229-248.

193

CASALECCHI , José Enio, A proclamação da República, São Paulo: Brasiliense, 1982.

CIPRIANO DE CARTAGO , De ecclesia catholicae unitate, 6,17.

CONGAR, Yves, A Igreja como povo de Deus, in: Concílium, n. 1, 1965.

__________, Propriedades essenciais da Igreja, in: Mysterium Salutis, IV/3, Petrópolis: Vozes,

1976,

COMBLIN , José, Cristãos rumo ao século XXI, São Paulo: Paulus, 1996.

__________, O povo de Deus, São Paulo: Paulus, 2002. – (col. Temas da atualidade).

COMISSÃO DA ROMARIA E INSTITUTO POPULAR MEMORIAL D E CANUDOS,

Canudos, 200 anos do massacre no sertão: Cantos, Paulo Afonso (BA): Fonte Viva, 1997.

FALAS DO TRONO , Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.

ELLACUEÍA , I., El Pueblo crucificado: ensaio de soteriologia histórica, México:RLT, n.18,

1984, p. 303-333.

FAUSTINO , Teixeira (org.), A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área

acadêmica, São Paulo: Paulinas, 2001.

FURTADO , Celso, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Nacional, 1974.

GUTIERREZ , Gustavo, Teologia della liberazione: perspectivas, Brescia: Queriniana, 1971.

HOORNAERT , Eduardo e DESROCHERS, Georgette (org.), Padre Ibiapina e a Igreja dos

pobres, São Paulo: Paulinas, 1984.

INÁCIO DE ANTIOQUIA , Carta aos Efésios, 9,1.

IRINEU DE LIÃO , Contra as heresias, III, 24.

IPÓLITO DE ROMA, Comentário de Daniel, 1,14-28.

JORNAL DE NOTÍCIAS , Salvador, 16/6/1893.

LACOSTE , Jean-Yves, Dicionário crítico de teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

LIBANIO, João Batista, Gustavo Gutierrez, São Paulo: Loyola, 2004. – (col. Teologia do

século XX, n.1).

LIBANIO , João Batista e BINGEMER , Maria Clara L., Escatologia cristã, Petrópolis: Vozes,

1985.

194

MARTINA , Giocomo, História da Igreja, de Lutero aos nossos dias: III – a era do

liberalismo, São Paulo: Loyola, 1996.

METZ , Johann Baptista, Sulla teologia Del mundo, Brescia: Queriniana, 1969.

__________, Já “teologia política” in discussione, in: Debatito sulla sulla “teologia política”,

Brescia: Queriniana, 1972, p. 232-176.

MOLTMANN , Jürgen, Teologia de la esperanza, Salamanca: 1969.

__________, Il Dio crocifisso: la Croce di Cristo, fundamento e critica della teologia

cistiana, Brescia: Quiriniana, 1973.

MONDIN , Batista, As novas eclesiologias: uma imagem atual da Igreja, São Paulo: Paulinas,

1984.

MONTEIRO , Douglas Teixeira, Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado, in:

FAUSTO, Bores (org.), História geral da civilização brasileira Rio de Janeiro: Bertrand Brasil

[t. 3, v. 1], 1990.

MONTEIRO , Hamilton de Matos, Nordeste insurgente (1850-1890), São Paulo: Brasiliense,

1981.

MORE , Thomas, Utopia, São Paulo: Nova Cultural, 2004.

PIO XII , Papa, Mystici corporis, in: Documentos de Pio XII (doc. Igreja, n. 5, trad. Poliglota

Vaticana), São Paulo: Paulus, 1998.

PINTO , Luís Araújo Junior, O Padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do

Brasil, in: Perspectiva Teológica, Belo Horizonte: O lutador, n. 93, maio/agosto, 2002, p. 197-

222.

RABELO , Sílvio, Euclides da Cunha, Rio de Janeiro: C.E.B., 1948.

PAULO VI , Papa, Evangelii Nuntiandi.

ROSSI, Luiz Alexandre S, Messianismo e modernidade: repensando o messianismo a partir

das vítimas, São Paulo: Paulus, 2002.

RUBENS, Pedro, Discerner la foi dans des contextes relieux ambigues: enjeux d’ une théologie

du croire, Paris: Cerf, 2004.SOBRINO, Jon, Jesus, O Libertador: I. A história de Jesus de Nazaré,

São Paulo: Vozes, 1994.

VIANA , Hélio, História do Brasil: Monarquia e República, São Paulo: 1974.

195

ZUURMOND , Rochus, Procurais o Jesus histórico? (tradução de Fredericus A. Stein,

apresentação Johon Konings), São Paulo: Loyola, 1998 (col. Bíblica Loyola).

196