inibição do pensamento: entre demanda e desejo · qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede...
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Inibição do pensamento: entre demanda e desejo ∗
Andréia Tenório ∗∗
José1 E agora, José? [...] Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? [...] Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, pra onde? [...] Carlos Drummond
Talvez o cerne deste texto esteja no sentido da própria palavra “inibição”, a
ideia então é destrinchá-la. Se decomposta a palavra inibição, teremos: inibir + ação:
inibir uma ação, isto é, uma certa ação está/foi inibida. Aqui a ação em xeque é a do
pensar, mais precisamente, o ato de pensar/pensamento é que está inibido.
No dicionário Aulete, “inibição é a ação ou resultado de inibir-se”. É possível
ler isso da seguinte forma: ação indicando algo da ordem de uma atividade, já
resultado, uma passividade, isto é, o efeito de uma ação. É possível considerar,
∗ O presente texto se origina das discussões suscitadas pela disciplina “Reflexões sobre determinantes psíquicos da inibição intelectual”, ministrada pela profa. Dra. Audrey Setton no primeiro semestre de 2012, referente ao Programa de Pós Graduação do Instituto de Psicologia da USP. ∗∗ Mestranda do Programa de Pós em Educação da FEUSP. Orientador: Prof. Dr. Leandro de Lajonquière. 1 Os destaques em negrito são meus, não constam na versão original do poema.
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entretanto, que também na passividade existe um grau de atividade. No estado de
passividade, o sujeito não estaria executando uma ação, mas sofrendo-a, sofrendo os
efeitos dela e, nesse caso, estaria ele sendo permissivo a isso, sendo, portanto, “ativo”.
Se assim o for, seria possível considerar que a palavra inibição também carrega algo de
passividade? Um sujeito “passivo” diante de algumas ações que, aparentemente, lhe são
alheias? A palavra inibição encerraria em si um paradoxo?
A grande questão que se coloca é a de que a ação de pensar, mais
precisamente, o ato de pensar implica necessariamente uma “atividade”, um sujeito
ativo: uma tomada de partido, uma implicação por parte desse sujeito. “Pensar é ato de
liberdade duramente adquirido e fundamental para o Eu” (ROSA, 2000, p. 102). De
partida, então, é importante colocar algumas questões basculares: “O que estaria por trás
de uma inibição do pensamento?”, ou ainda, “O que faz um sujeito inibir-se?”. A
inibição é do pensamento ou do sujeito? O Outro teria parte na inibição do sujeito?
Na tentativa de esboçar algumas respostas para as questões colocadas e no
intuito de ilustrar como se caracteriza a inibição do pensamento, proponho, a seguir, um
“entrecorte discursivo” – fragmentos clínicos entrecortados por teoria e teoria
entrecortada por fragmentos clínicos.2
FLORIANE
A analista Anny Cordié (1996) apresenta Floriane da seguinte maneira:
Floriane é uma garotinha de 8 anos, loira com longos cabelos encaracolados, belos
olhos azuis, muito pequena e franzina. Os dois adultos que a acompanham, seus pais,
são grandes e morenos. A queixa dos pais é que sua pequena Floriane não faz nada em
aula, aos 8 anos não reconhece as letras, não sabe contar, nada, ela não está
aprendendo nada. É a inibição sendo apresentada como queixa. O que haveria por
detrás dela?
2 Os fragmentos clínicos utilizados neste trabalho foram retirados do livro Os atrasados não existem, de
Anny Cordié (1996). Sugiro ao leitor relançar-se a essa obra, para ler os casos na íntegra. É
especialmente interessante ver como a analista formaliza os casos que atende. Trabalharei apenas
alguns aspectos desses casos, sem me prender especificamente às interpretações da analista que esteve
à frente deles. Espero com isso poder tornar “acompanhável” a argumentação que desenvolverei ao
longo deste texto.
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Acompanhando a construção do caso clínico, é fácil entender o porquê da
escolha de Cordié por enfatizar, logo no início, os aspectos físicos da criança e dos pais.
A analista se pergunta “O que há de insólito nesses três?”. É observando os aspectos
físicos que ela pensa vagamente sobre qual seria o mistério da hereditariedade de
Floriane, pergunta-se: o que faz com que esses dois morenos altos tenham feito essa
coisa pequenina que não pode ser mais frágil e loira? A analista prontamente escuta o
cheiro de uma verdade não dita. Percebendo o mal estar provocado nos pais por sua
sondagem sobre a hereditariedade da pequena, Cordié diz a Floriane pra ir fazer um
desenho e modelagem na sala ao lado, enquanto os pais lhe contariam a história deles. A
verdade se desvela: Floriane é uma criança adotada. Somente os pais e os avós o sabem.
A analista questiona se, durante o processo de adoção, não lhes informaram
que a verdade sobre a adoção deveria ser dita à criança. Sim, claro, mas isso não é
possível, dirá o casal. A analista sente nos dois uma incapacidade absoluta para
“confessar” essa adoção. É verdade que sua história não é comum. A vida do casal foi
ritmada pelas numerosas gestações dessa senhora, seis ao todo. Cada vez, ela deu à luz
crianças mortas ou que viveram muito pouco. Traumatizados por tal sucessão de fatos,
decidiram adotar uma criança.
Insiste a analista que a verdade sobre a adoção deve ser dita a Floriane por eles
mesmos – os pais –, estes se negam terminantemente: Nunca. Ressalta, no entanto, que,
a seu ver, Floriane no fundo sabe que foi adotada, sabe sem saber, já que eles não lhe
permitiram saber. Isso não é sem consequência! Se é totalmente proibido saber, ao
saber a criança não acede; não se saberá nada então. O não-saber se estende a tudo...
Os pais vão para a sala de espera e a analista retorna com Floriane. A doce
menina lhe mostra o desenho que fez, dizendo: “São um papai e uma mamãe, eles estão
tristes, porque o lobo comeu seus seis filhinhos”. E como se transformou esse não saber
em sabido?
A analista revê a criança e o casal mais uma vez; e depois vê o casal sozinho.
Diz-lhe, nesta ocasião, da necessidade de se dizer a verdade à menina sobre sua história,
pois do contrário, seria inútil revê-la ou iniciar qualquer terapia antes que a verdade
fosse dita. Acrescenta que Floriane não aprenderia nada na escola enquanto o interdito
de saber fosse mantido.
Os pais estiveram sozinhos com a analista várias outras vezes, falando-lhe de
seu sofrimento, sua culpabilidade e seu temor em dizer a verdade à menina. Depois de
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muito tempo, os pais marcam outro encontro com a analista, decididos a revelar a
verdade à filha. Escolhem a melhor situação, durante as férias de verão, numa manhã, e
anunciam a Floriane que tinham uma coisa importante para dizer e, finalmente,
começam a contar-lhe sua história. Pronto a menina os interrompe e lhes diz: Eu sei, eu
sorri pra vocês, e vocês me escolheram.
Além de lindo o desfecho dessa história, ele também é exitoso. Floriane estava
com um atraso bem grande; ela muda de escola, por uma aposta do analista e de comum
acordo dos pais, e recupera em 2 anos o tempo que havia perdido para a inibição.
Floriane deu livre curso a seu desejo de aprender, sua curiosidade não tinha limites.
Os pais estavam radiantes!
Algumas considerações
Depois de acompanhar uma parte da história de Floriane, é possível ver que sua
inibição se justifica, então, por um não sabido. Ela não faz nada, não reconhece as
letras, não sabe contar, nada, ela não está aprendendo nada. Nada é o significante que
reverbera no discurso dos pais e que se efetiva na problemática da filha. Como os pais
nada lhe dizem sobre sua história, ela aprende nada, nada aprende. Na medida em que
os pais lhe negam um saber: o saber sobre sua própria origem, Floriane está barrada
para aceder ao campo dos saberes constituídos, está impossibilitada de pensar, de
aprender. Está no nada.
A partir da história de Floriane, depreende-se ao menos três importantes
pontos: a existência de um saber inconsciente – um saber que não se sabe, mas que se
apresenta de alguma forma; uma diferenciação entre conhecimento e saber e a intrínseca
relação entre aprendizagem – possibilidade de pensamento – e a problemática da
origem.
Apesar de a menina não ter sido informada de que fora adotada, ela, por meio
de seu desenho e sua fala, demonstra que sabe. Algo se transmitiu aí! Cordié se
pergunta, “Como Floriane sabia?”. O que se coloca aí não é uma informação
literalmente transmitida, ao contrário, é algo tácito. Melhor dizendo, o que há não é o
conhecimento consciente de algo, mas um saber tácito, algo que se apresenta sem
necessidade de palavras. Mas “sem palavras” não quer dizer sem linguagem. O que se
transmite é sempre por via da linguagem, do discurso. Prova disso é que Floriane sabia!
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Ela escutou a verdade sobre sua origem sem que alguém a tenha dito verbal ou
diretamente.
O saber que está em questão aí é o saber inconsciente, um saber que se coloca a
serviço da verdade do sujeito, uma verdade da qual o sujeito está impedido de saber.
Como há um impedimento dos pais quanto a Floriane saber sobre sua adoção, o que se
transmite a essa menina é também uma desautorização. Floriane não está autorizada a
saber, logo, ela sabe nada, nada sabe.
A inibição é uma resposta à demanda desses pais. Estes lhe pedem,
inconscientemente, que ela abdique do saber e, ela, já enredada na trama fantasmática,
pulsional e desejosa de seus pais, responde com um “nada” sabendo. Mas responder a
essa demanda integralmente custa caro, tem consequências. “Se a criança se dedica
somente a satisfazer a demanda do Outro, corre o risco de ficar enleada no seu status de
objeto”. Caso de Floriane, inerte, tal como um objeto, sem poder aprender.
Por trás da demanda, ela [a criança] deverá adivinhar aquilo que existe de desejo e de amor. É medindo as incertezas e os limites do Outro (sua castração, dizemos) que ela poderá se liberar de seu domínio e se construir como ser de desejo (CORDIE, 1996, p. 26-27).
Consequências: se, por um lado, o sintoma de Floriane – sua inibição – é uma
resposta à demanda do Outro; por outro, é também uma revelação do sujeito.
Paradoxalmente, é em função da existência desse sintoma – de seu desvelamento para o
sujeito – que Floriane pode voltar a querer saber, a desejar.
Disso se extrai que Floriane apenas pode voltar a desejar porque aqueles a
quem ela está narcisicamente enlaçada lhe dão livre acesso à sua verdade mais íntima:
sua origem. Portanto, o que se desvela ainda é que “o conhecimento só se torna
acessível quando faz laço com as premissas básicas do Eu, quando o Eu pode afirmar
tais premissas sem ameaça” (AULAGNIER, 1990 apud ROSA, 2000, p. 97).
Assim, apenas e somente quando a menina é autorizada a saber, é que ela
poderá dar livre curso ao seu desejo de saber. Conclusão: “o saber e o conhecimento não
coincidem”, embora eles se relacionem. “O Eu só toma conhecimento da parte do saber
do sujeito que não o ameaça em suas premissas básicas” (AULAGNIER, 1990 apud
ROSA, 2000, p. 101).
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Mas e a questão das origens? Pra reunirmos mais elementos pra tratar dessa
problemática, conheçamos a história de Damien Maisonneuve.
DAMIEN
Damien é um garoto de 8 anos muito pequeno para sua idade. Ele tem pele
morena, cabelos pretos, lisos, sempre despenteados, olhos escuros e vivos. Foi
encaminhado por um psiquiatra à analista – Cordié, por uma recusa total em relação à
escola; na aula, Damien é perfeitamente inerte, ausente, não responde às perguntas
feitas, não participa de forma alguma das atividades. Também há uma recusa a se
alimentar, ele come pouco, e as refeições se transformam invariavelmente em cenas de
confronto. Há um comportamento peculiar. Ao voltar da escola, Damien se fecha em
seu quarto, aconchega-se em sua cama com seus bichos de pelúcia depois de colocar
fraldas. Aí ele se embala chupando o polegar durante horas.
No primeiro encontro com Damien e a mãe, esta anuncia de antemão que o
filho é adotado e que veio de um país longínquo, particularmente pobre. Era
principalmente ela que queria um filho, seu marido já tinha vários de um primeiro
casamento. Damien chegou na França com seis meses, tendo ficado os seis primeiros
meses de vida aos cuidados de uma ama de leite em seu país de origem. Ao chegar à
França teve que passar algum tempo hospitalizado devido ao seu estado físico
problemático: desnutrição grave, atraso no crescimento. Até um ano, ele tomou leite de
mamadeira, em seguida, até dois anos, leite reforçado e, depois, mingaus; atualmente,
recusa a carne e os pratos que sua mãe lhe prepara.
Os dois primeiros sintomas de Damien podem ser definidos em um único:
recusa em se alimentar, seja pela aprendizagem, seja pela comida. Uma recusa que tem
sua fonte, logo se saberá, na existência de um Outro onipresente e sufocante – a mãe,
barrado, entretanto, pelo discurso paterno. O terceiro revela a pré-história do menino, a
dor e também uma nostalgia da primeira infância: após ter sofrido fome e abandono no
seu país de origem, é recebido na França por uma mãe calorosa, extremamente afetuosa,
que previne e satisfaz todas as suas necessidades, noite e dia. Damien, nesse
comportamento intrigante revela seu desejo de manter-se bebê, de não crescer, de não
aprender. O primeiro paradoxo: apesar da recusa em comer, tenta a todo custo manter-se
embalado, afagado, fantasiosamente, pelo corpo materno. Em ambas as ações de
Damien, o que retorna é a presença da mãe; numa, a presença avassaladora, a qual ele
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recusa; na outra, uma ausência presentificada por meio dos objetos que eles escolhe para
ser afagar: ursos de pelúcia, fraldas, polegar.
Quando a mãe de Damien lembra a adoção, ele diz: “Foi, talvez, uma avó que
me fez lá. Quando ela descreve o país de onde ele veio, ele diz “É um país onde não se
come, as pessoas têm dificuldade de crescer”. Essa reflexão remete, à sua recusa em se
alimentar. Mas também a uma identificação: não se alimentar implica ficar parecido
com o povo de seu país de origem, onde todos eram pequenos, se distinguindo assim de
sua mãe adotiva.
A mãe relata detalhadamente os infortúnios escolares de Damien. Ele começou
a falar tarde e por causa disso precisou fazer um ano e meio de ortofonia, voltando
depois à série habitual com aula de reforço e apoio pedagógico. A mãe insiste em dizer
que ela “fez o que estava ao seu alcance”, sempre o “assistiu”, fazendo-o estudar duas
horas à noite além da escola.
Cornié salienta que logo percebe um “não” imperativo, uma recusa dele a uma
mãe onipresente; recusa a se alimentar, a comer os pratos que a mãe cozinha para ele,
recusa em crescer, em aprender. Somado a isso uma posição colérica a todas as
demandas da mãe, como vestir-se, levantar-se, deitar-se, desligar o aparelho de TV.
A mãe anuncia que é acompanhada por um psiquiatra e que teve quatro
episódios delirantes seguidos de hospitalização. Alternavam-se episódios depressivos e
eufóricos. Damien é visto por essa mãe como o “menino-Deus vindo do céu”, a criança
salvadora, perfeita, uma dádiva do céu. Ele se torna muito rapidamente centro de toda
sua atenção e peça fundamental de seu delírio de perseguição. Quando o fracasso
escolar do filho se confirma, a mãe o vive como seu próprio fracasso chegando a sentir-
se perseguida na pessoa do filho. É então que ela, numa passagem ao ato, faz com que o
filho seja riscado das listas escolares, isso intensifica ainda mais sua problemática.
O menino é colocado, portanto, num lugar de satisfazer o vazio existencial e
dar corpo às ideias delirantes da mãe. Como sustentar-se neste lugar, quando se está aí
para fazer existir esse Outro? Fingindo-se de morto! Ele adormece, sem dúvida ele só
pode subsistir nesse desvanecimento que o coloca fora do alcance do Outro. O primeiro
ponto nevrálgico da inibição de Damien está na sua relação com sua mãe, com a
demanda sufocadora que esta lhe faz.
Para Cordié (1996), a razão para uma inibição “deve ser procurada do lado da
demanda esmagadora do Outro, seja o coma ou o aprenda” (p. 26). Isso é, sem dúvida,
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comprovado na história de Damien, já que ele, ao ver-se esmagado pelas demandas da
mãe, responde deixando de comer, deixando de aprender. Um sujeito que está a todo o
momento sufocado pelas demandas do Outro não tem espaço pra desejar, pra aprender.
É preciso liberdade pra desejar, pra pensar; ao mesmo tempo, é necessária uma dose de
transgressão à demanda do Outro, para o desejo advir.
É através das demandas que lhe são feitas que ela [a criança] toma consciência disso, como faça (cocô), seja bonita, limpa, gentil, trabalhadora, etc. Através dessas demandas, ela se coloca a questão do desejo do Outro: Ele me pede isto, mas o que ele quer realmente? (CORDIE, 1996, p. 27).
Mas se, por um lado, “a criança pode satisfazer, por muito tempo, a demanda
do Outro e parecer satisfazer-se, sem que isso contrarie a construção de seu ser
imaginário”; por outro, “as coisas se complicam quando a demanda muda de registro,
quando o outro (maternal, o mais frequentemente) passa do “coma, seja comportada” ao
“aprenda, seja bem-sucedida”, pois responder a esse imperativo supõe que o sujeito ao
qual ele se dirige esteja, ele mesmo, em posição ativa, que ele possa emitir um ato
autônomo” (CORDIE, 1996, p. 27). Damien não está nessa posição ativa, mas isso se
modifica com a entrada do pai...
O pai entra nessa história justamente pela via discursiva, por estar interiorizado
no discurso de Damien: “Quando minha mãe diz coisas sem ‘nexo’, meu pai a
repreende, ela chora, ela estava doente”. Ressalta Cordié que essa é a frase reveladora
da situação em que se encontra Damien. Ele sabe que sua mãe está doente da cabeça,
das palavras, seu pai lhe diz isso. Esse saber que se enuncia mostra que ele se situa
fora da problemática materna, ele entendeu o julgamento paterno e o fez seu ao ponto
de recusar atualmente todos os imperativos maternos.
O pai tem papel importante na separação de mãe e filho e será peça-chave para
a resolução da inibição de Damien. O discurso do pai – veiculando a lei – interiorizado
pelo filho, de imediato, faz a função de separar o filho de sua mãe, reconduzindo-o aos
caminhos do desejo de saber.
Depois de um tempo de análise, a analista percebe que Damien desenhava de
forma bastante precisa, sem fazer erros nem nos números nem nas letras o cheque que
o pai daria em pagamento à consulta. Ele também fazia contas na presença do pai. A
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analista pergunta a Damien se ele não gostaria que o pai o ajudasse em cálculo. O
menino fica maravilhado. Pai e filho se implicam.
A primeira surpresa do pai é constatar que o filho não compreende o que seja o
“dobro”. Daí em diante o que ocorre é uma aprendizagem por parte do pai de como
acompanhar o filho nessa empreitada do desejo. O pai retorna à analista e lhe diz:
“Agora eu leio os enunciados lentamente pra ele. Ele entende perfeitamente se sou eu
que lhe passo a mensagem, como se ele ouvisse a voz de seu pai”. Enfatizará a analista
que a voz do pai varre todas as inibições, pois é como pai simbólico que esse pai fala ao
filho. O pai não se coloca como dono da verdade, apenas lhe diz à sua maneira “Você
tem o direito de saber, você é quem deve entender, e confio em você, eu estou aqui só
pra passar a mensagem”.
Para Kupfer (2004),
Freud saúda o pai capaz de restringir o poder feminino, mas ao mesmo tempo capaz de transmitir seu direito, sua crença e sua dúvida (...). No final da operação realizada pelo Pai, é o desejo que se desenha como possibilidade para o sujeito. O que poderá advir, será um desejo próprio ao sujeito, um desejo articulado ao laço social (KUPFER, 2004, p. 84-85).
Assim, chegamos no segundo ponto nevrálgico da inibição de Damien:
justamente o significante “dobro”. A analista afirma que este significante estava
sobreterminado nele, criando um bloqueio, um ponto de partida para a inibição. Ora, na
vida de Damien várias coisas são dobradas: o pai adotivo tem o dobro da idade de sua
mãe adotiva, ele próprio tem duas mães e dois pais, tem uma dupla origem (país
longínquo e França), seu pai tem duas famílias, sua mãe, dupla personalidade... O
significante “dobro” está no centro de uma rede de significações múltiplas e é portador
de uma forte carga afetiva.
Quando o sujeito o encontra, alguma coisa se confunde em seu espírito, há uma parada do pensamento, das operações intelectuais. (...) Tomamos consciência da inanidade de qualquer explicação lógica, de qualquer intervenção pedagógica, quando a inibição toca no ponto central do ser do sujeito, quando há um encontro com uma configuração significante da qual “ele não quer nada saber” (CORDIÉ, 1996, p. 85-86).
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A analista, desde o início, colocou Damien a par das regras da análise, dizendo-
lhe que aquele seria um espaço para ele falar do que gostava e não gostava, de seus
aborrecimentos, medos; que ele poderia contar-lhe o que quisesse não importando o
modo: desenho, modelagem, sonhos, salientando que tudo se manteria em segredo.
Damien se engaja com ímpeto no processo de análise, aproveitando esse espaço de
liberdade pra pensar que lhe é oferecido e, após mais ou menos dez meses de trabalho,
sua inibição começa a se desfazer e os outros sintomas também.
Arremate
Esses dois casos clínicos possibilitam a articulação de alguns pontos centrais
quanto à temática do desejo de saber e sua inibição.
Além de se tratar de dois casos de adoção, a inibição neles descrita encerra em si
a problemática das origens. Freud (1908) dirá que uma criança inicia-se no pensar
quando começa a perguntar-se sobre sua origem. A famosa pergunta sobre a origem dos
bebês (De onde vêm os bebês?) é, para Freud, o marco do início do pensamento. O que
está em xeque nessa pergunta não é exatamente a relação sexual, mas o desejo, o
sentido do desejo: Por que eu nasci? Por que meu irmão nasceu? Quem me fez? Por que
se morre? Com estas perguntas, a criança busca saber a origem do desejo. É o enigma
do desejo do Outro que está aberto. Pelo nascimento de um irmão, pelo aparecimento de
alguém que chama a atenção da mãe, a criança começa a entender que ela só existe
porque alguém a desejou.
Em especial, no primeiro caso apresentado, foi possível ver que Floriane estava
impossibilitada de aprender porque não tinha acesso a sua origem, estava impedida de
investigar. Quando, enfim, é autorizada a saber por seus pais, sua inibição começa a se
resolver. Para Freud (1905) é justamente no investigar sobre as questões sexuais que
uma criança poderá aceder ao campo do conhecimento, poderá desejar saber.
No segundo caso, também se viu Damien, mesmo impossibilitado pela demanda
excessiva de sua mãe, tentando investigar sobre suas origens. Apesar de saber sobre sua
adoção, sua origem ainda lhe é um enigma, ele parece perguntar-se por sua origem, seja
dizendo que foi sua avó que o fez, seja identificando-se com o seu povo de origem,
aqueles que pouco comem e são fracos e pequenos. A questão das origens ronda essas
duas histórias. Floriane e Damien tentam se haver com o enigma do desejo do Outro. O
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que quer minha mãe de mim? O que quer o Outro de mim? Serei eu a tamponar seu
vazio?
Nos dois casos, o que se vê são os filhos assumindo um lugar de objeto para seus
pais, sendo sintomas do casal parental. Para que uma criança possa desejar, possa
aprender, ela deverá ocupar não o lugar de sintoma na vida de seus pais, mas o de objeto
de desejo deles. A criança deve deixar de ser objeto, mera coisa, e passar a ser objeto de
desejo, algo investido de libido, investido de desejo. Ocupando esse lugar, a criança não
está a tamponar a falta de seus pais, mas é impelida a se lançar a faltar, à castração, isto
é, a desejar. A transmissão do desejo só é possível pela via da castração. Se um adulto
se dispõe a oferecer a verdade a uma criança (ou privá-la de uma verdade que lhe diz
respeito, como sua origem), ela estará condenada a não desejar. Para que haja desejo é
necessário falta, castração.
Para que haja desejo é preciso separação. E essa separação implica trabalho. Um
trabalho de luto por parte do sujeito. Um doloroso trabalho psíquico de remanejo das
posições subjetivas. Luto dos ideais. Nos dois casos vistos, se a criança não consegue
separar-se do que lhe dizem (ou deixam de dizer) os pais, ela ficará fadada ao gozo
desse Outro, servido de objeto que o tampone. Sendo assim, ficará impedida de desejar
livremente, de pensar, estará condenada à inibição.
Vale a pena mais algumas palavras sobre a inibição. Para Freud (1926[1925]), a
inibição responde especialmente a dois senhores, ao Id e ao Supereu. A inibição seria “a
expressão de uma restrição de uma função do eu”. Suas causas seriam evitar que o eu
entre em conflito com o Id (isto é, com a pulsão), caso contrário isso geraria angústia, e
evitar que eu entre em conflito com o Supereu, caso contrário o que ocorre é
autopunição.
Como obedecer a pulsão única e exclusivamente é impossível, já que não dá
para o sujeito viver o tempo inteiro sob o comando do princípio do prazer, o sujeito fica
preso a identificações, inibindo-se. Nos dois casos analisados, Floriane e Damien ficam
aprisionados ao desejo de seus pais. Saber pra eles é ir contra os ideais que esses pais
lhes projetaram, sendo assim, para evitar isso, eles permanecem no não saber, sem
aprender. O eu fica impedido de agir e caso se satisfaça, ele será punido severamente
pelo Supereu, assim, o que lhe resta é a inibição.
Mas como se livra o sujeito da inibição? Nos dois casos vistos, com a entrada da
função simbólica, da castração. Para Floriane, a função simbólica é reivindicada pela
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analista, que interpela os pais para que digam à criança a verdade sobre sua origem.
Para Damien, a analista e o pai cumprem a função simbólica ao interditarem a mãe
separando-a do filho, dando a este outra vez a possibilidade de desejar.
Em ambos os casos, a palavra é dada às crianças e é isso que permite que elas
saiam de uma posição de objeto do gozo do Outro rumo a uma posição desejante.
Quando o sujeito tem acesso à palavra, barra-se o Outro, introduzindo-se a dimensão da
castração desse Outro.
Assim, livre da inibição, o sujeito tem a chance de voltar a desejar, a aprender.
Essa chance, no entanto, não se inscreve no campo da passividade, pois “aprender não é
[apenas] escutar, mas elaborar o saber que é proposto, a passividade já não conta mais.
Aprender implica um desejo, um projeto, uma perspectiva, não é apenas compreender”
(CORNIÉ, 1996, p. 27). Só o sujeito pode decidir: se desimplica ou se implica? E agora,
José? É agora José!
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Referências bibliográficas
CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem. Psicanálise de crianças com fracasso escolar. Trad. Sônia Flach e Marta D`Agord. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. ANDRADE, Carlos Drummond de. José. In: ANDRADE, C. D de. Carlos Drummond de Andrade poesia e prosa, em um volume. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1992, p. 88-89. FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standart Brasileira , vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______ (1908). Sobre as teorias sexuais das crianças. In: op. cit. – vol. IX. ______ (1926[1925]). Inibições, sintomas e ansiedade. In: op. cit. – vol. XX. KUFPER, Maria Cristina. A transmissão do pai e suas consequências para a psicanálise de crianças. In: BERNADINO, L. M. J. Psicanalisar crianças: que desejo é esse? (Coleção Psicanálise da Criança: Coisa de criança). Salvador: Ágalma, 2004. ROSA, Miriam Debieux. Histórias que não se contam: O não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes. Taubaté: Cabral Editora Universitária, 2000.