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sumário editorial ..................................................................................... ................ 02 Rubens Antônio da Silva ponto de vista ........................................................................................... 03 NÚCLEO DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA – NIT Maria Lúcia Gross Siqueira Cunha FATOS, FEITOS E CONTRADIÇÕES DO CONTROLE DE ENDEMIAS Horácio Manoel Santana Teles painel...................................................................................................................... 09 INSTITUIÇÕES DE PESQUISA E OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI Maria Beatriz Machado Bonacelli, Sérgio Salles-Filho, Rosana Corazza e Carolina Rio ESTRATÉGIAS PARA O ENFRENTAMENTO DA TRANSMISSÃO DA DENGUE – VERÃO 2010/2011 Irma T. R. Neves Ferreira PARTICIPAÇÃO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DE LEISHMANIOSE VISCERAL AMERICANA NO COMITE DE LEISHMANIOSE VISCERAL AMERICANA DA SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE Ricardo Mario Ciaravolo NOTÍCIAS ACAROLÓGICAS Adriano Pinto publicações científicas ............................................................................................ 14 fatos e fotos ............................................................................................................. 15 A CASA AMARELA Maria Ester de Carvalho seção cult................................................................................................................ 21 O VINHO – DA PALAVRA AOS PENSAMENTOS Eduardo Fonseca Neto TRANSITORIEDADE E PERMENÊNCIA Luís S. Krauz CONVERSAR Octavio Paz SUCEN-SES-SP outubro/2010 número 7 Informativo Técnico e Científico Superintendente: Affonso Viviani Junior Responsável: Virgília Luna Castor de Lima Grupo Editorial: Cristina Sabbo da Costa, Lúcia de Fátima Henriques Ferreira, Luis Filipe Mucci, Rosa Maria Tubaki, Rubens Antonio da Silva Projeto gráfico e editoração: Liana Cardoso Soares Revisão: Liana Cardoso Soares e Rubens Antonio da Silva

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sumário editorial ..................................................................................................... 02 Rubens Antônio da Silva ponto de vista ........................................................................................... 03 NÚCLEO DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA – NIT Maria Lúcia Gross Siqueira Cunha FATOS, FEITOS E CONTRADIÇÕES DO CONTROLE DE ENDEMIAS Horácio Manoel Santana Teles ppainel...................................................................................................................... 09 INSTITUIÇÕES DE PESQUISA E OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI Maria Beatriz Machado Bonacelli, Sérgio Salles-Filho, Rosana Corazza e Carolina Rio ESTRATÉGIAS PARA O ENFRENTAMENTO DA TRANSMISSÃO DA DENGUE – VERÃO 2010/2011 Irma T. R. Neves Ferreira PARTICIPAÇÃO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DE LEISHMANIOSE VISCERAL AMERICANA NO COMITE DE LEISHMANIOSE VISCERAL AMERICANA DA SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE Ricardo Mario Ciaravolo NOTÍCIAS ACAROLÓGICAS Adriano Pinto ppuubblliiccaaççõõeess cciieennttííffiiccaass ............................................................................................14 ffaattooss ee ffoottooss.............................................................................................................15 A CASA AMARELA Maria Ester de Carvalho sseeççããoo ccuulltt................................................................................................................ 21 O VINHO – DA PALAVRA AOS PENSAMENTOS Eduardo Fonseca Neto TRANSITORIEDADE E PERMENÊNCIA Luís S. Krauz CONVERSAR

Octavio Paz

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outubro/ 2010 número 7

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Superintendente: Affonso Viviani Junior Responsável: Virgília Luna Castor de Lima Grupo Editorial: Cristina Sabbo da Costa, Lúcia de Fátima Henriques Ferreira, Luis Filipe Mucci, Rosa Maria Tubaki, Rubens Antonio da Silva Projeto gráfico e editoração: Liana Cardoso Soares Revisão: Liana Cardoso Soares e Rubens Antonio da Silva

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eeddiittoorriiaall Ruben Antonio da Silva

Pesquisador Científico - SUCEN

Chegamos ao Vector de número 7. Este número mantém o mesmo núcleo temático dos anteriores, trazendo à tona discussões relevantes no âmbito da Sucen. A seção Ponto de Vista está organizada com a contribuição da Procuradora Chefe da Instituição que traz perspectivas analíticas sobre a criação dos Núcleos de Inovação Tecnológica nas instituições de pesquisa, e do colega Pesquisador Científico Drº Horácio Manuel Santana Teles com uma reflexão sobre as contradições do controle de endemias. O Brasil apresenta uma complexa situação no que tange ao controle de doenças transmitidas por vetores. Compreensões distintas se contrapõem e estão imbricadas por dentro do aparelho de Estado na execução de políticas públicas. Isto confere a necessidade do desenvolvimento de instrumental que permita enxergar as múltiplas dimensões de análise do processo e realizar uma avaliação institucional na perspectiva de possibilitar a melhor condução das ações por parte do poder público, tornando-as adequadas às necessidades sociais em saúde. Nos dias atuais é crescente a produção de conhecimento científico disponibilizado para utilização pelas políticas públicas, particularmente no que se refere ao controle de endemias transmitidas por vetores. Entretanto, a tradução desse conhecimento em ação nem sempre é possível e a interação entre esses dois campos quase sempre é conflituosa. Os Núcleos de Estudos trazem notícias sobre o International Congresso of Acarology e de projeto temático sobre LVA coordenado pela Secretaria de Estado da Saúde. A associação entre os interesses da pesquisa com os dos serviços pode gerar projetos de investigação integrados, mais baratos, todavia conduzidos com rigor e disciplina metodológicos. Desse modo, amplia-se o diálogo entre técnicos de saúde e pesquisadores, qualificando a revisão de protocolos, facilitando a experiência de novas soluções e tecnologias apropriadas aos problemas nacionais. Não que a pesquisa resolva todos os problemas, mas pode orientar mais claramente a busca e a implementação de soluções, em curto, médio e longo prazo. O importante é que as pesquisas deixem de ser mero diletantismo e passem a constituir caminhos para a melhoria de vida das populações. Complementando a seção Painel, o GEOPI/Unicamp vem com uma explanação sobre as instituições de pesquisa e os desafios para o século XXI - “não basta hoje deter competência científica e tecnológica na sua área do conhecimento...” e a colega Assistente Técnica de Saúde Irma Teresinha Rodrigues Neves Ferreira com informações sobre as oficinas de capacitações para enfrentamento do Dengue. Nesta vertente, a Sucen busca não apenas reafirmar sua posição como também dá um passo além buscando reposicionamento de sua imagem institucional. Na seção Fatos e Fotos a Drª Maria Esther de Carvalho traz a história da sede da Sucen à Rua Tamandaré “É necessário que se diga - que memórias trazem sempre um vício incorporado: a de que levamos para onde vamos o que somos. E como é difícil desprender-se desse vício, na tentativa de se recordar os tempos do casarão - de trabalho no casarão da Rua Tamandaré”. A seção Cult está formada com a colaboração do Procurador Eduardo Fonseca Neto, para nós um sommelier e da colega Liana Soares com informações sobre sua quarta exposição - Quase Crônicas – um trabalho que, segundo especialista, põe em evidência o caráter diacrônico de uma pintura que é busca e reflexão, desnudando o processo artístico que lhe deu origem. Esperamos que a diversidade de temas abordados, as reflexões e discussões teóricas, assim como o relato de experiências aqui apresentados contribuam para um debate que estimule a reflexão dos trabalhadores em saúde sobre seu próprio processo de trabalho e inserção no Sistema Único de Saúde. Ao conjunto de autores, a equipe editorial agradece pela contribuição que seus textos aportam ao debate contemporâneo acerca dos desafios colocados, reafirmando o compromisso com a qualidade e com o pluralismo de idéias e perspectivas teóricas.

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NÚCLEO DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA - NIT

Maria Lúcia Gross Siqueira Cunha Procuradora de Autarquia Chefe

A ciência, o desenvolvimento e a inovação são assuntos que têm despertado grande interesse, não só da comunidade acadêmica, como das instituições de pesquisa, do mercado e até do governo. Estes têm sido discutidos nas Conferências de Ciência e Tecnologia, cuja Conferência Nacional se encontra em sua IVª edição, precedida por uma série de encontros regionais. A Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004, estabeleceu medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação e ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do país. Tanto que o artigo 6º da citada lei faculta aos órgãos ou entidades da administração pública, que tenham por missão, dentre outras, executarem pesquisa básica ou aplicada de caráter científico e tecnológico (ICT), a possibilidade de celebração de contratos de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direitos de uso e de exploração de criação por elas desenvolvidas. Além disso, conforme artigo 9º é facultado à ICT a celebração de acordos de parceria para a realização de atividades conjuntas de pesquisa científica e tecnológica e desenvolvimento de tecnologia, produto ou processo, com instituições públicas e privadas. Com a finalidade de gerir sua política de inovação, a ICT deverá dispor de um núcleo de inovação. A criação de núcleos de inovação tecnológica nas instituições de pesquisa está em pauta nas reuniões do Conselho das Instituições de Pesquisa do Estado de São Paulo – CONCIP e o assunto tem tido diversas interpretações entre os participantes. LEGISLAÇÃO

• Lei federal nº 10.973/04. A Lei federal nº 10.973, de 02/12/2004, que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, estabelece as atribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e suas agências de fomento com o objetivo de incentivar a geração de produtos e processos inovadores. Assim sendo, poderão estimular a constituição de alianças estratégicas e de desenvolvimento de projetos de cooperação envolvendo empresas nacionais, ICTs e organizações de direito privado sem fins lucrativos voltadas para atividades de pesquisa e desenvolvimento.

• Lei Complementar estadual nº 1049/08.

Com base na Lei federal nº 10.973/04, o Estado de São Paulo editou a Lei Complementar nº 1.049, de 19/06/2008, regulamentada pelo Decreto nº 54.690, de 18 de agosto de 2009.

• Instituição Científica e Tecnológica do Estado de São Paulo – ICTESP. Conforme a LC (art. 2º) e o Decreto (art. 6º), as instituições públicas da administração direta ou indireta de pesquisa (ICTESP), são os órgãos ou entidades “que tenham como

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missão executar atividades ligadas à inovação tecnológica, ao desenvolvimento tecnológico, à engenharia não rotineira e à extensão tecnológica em ambiente produtivo, atuando ou não na formação de recursos humanos”. As pesquisas realizadas pela SUCEN, no cumprimento de sua missão institucional, para o avanço dos conhecimentos científicos e tecnológicos, fazem dela uma instituição de pesquisa, nos termos da LC nº 1.049/08, caracterizada como ICTESP.

• Núcleo de Inovação Tecnológica – NIT Estando caracterizada como ICTESP, a SUCEN deverá ser integrada por um Núcleo de Inovação Tecnológica – NIT – próprio, caracterizado como órgão técnico incumbido de realizar as atribuições previstas na legislação. O Parágrafo Único, do artigo 6º, do Decreto acima citado, estabelece as seguintes atribuições ao NIT:

Parágrafo Único – O Núcleo de Inovação Tecnológica possui as seguintes atribuições, sem prejuízo das competências já contempladas na Lei Complementar nº 1.049, de junho de 2008: 1. promover o desenvolvimento e a implementação das políticas institucionais de inovação da ICTESP; 2. fomentar a pesquisa aplicada e a inovação na ICTESP, servindo de elo com os setores produtivos; 3. zelar pela manutenção e observação da política institucional de estímulo à proteção de criações, licenciamento, inovação e outras formas de transferência de tecnologia; 4. avaliar e classificar os resultados decorrentes de atividades e projetos de pesquisa para o atendimento das disposições da Lei federal nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004; 5. avaliar a solicitação apresentada por inventor independente para adoção de criação, na forma do artigo 15da Lei Complementar nº 1.049, de 19 de junho de 2008; 6. opinar quanto à conveniência e promover a proteção das criações desenvolvidas na instituição; 7. opinar quanto à conveniência de divulgação das criações desenvolvidas na instituição, passíveis de proteção intelectual; 8. acompanhar o processamento dos pedidos e a manutenção dos títulos de propriedade intelectual da instituição.

Conforme a citação acima, o NIT é uma instância de apoio à pesquisa institucional e de assessoria à administração superior e não uma unidade decisória. É a Comissão Científica que detém a função estratégica na área da pesquisa, que define as pesquisas de interesse institucional, organiza os projetos que devem ser desenvolvidos prioritariamente e estimula a geração de produtos e processos inovadores Por outro lado, o NIT tem a função tática e operacional de apoio à pesquisa, tais como alavancagem de financiamentos (FINEP, FAPESP, CNPq e outras), busca de parceiros públicos ou privados para o desenvolvimento de projetos de interesse comum, rastreamento e editais de pesquisa. Entra aqui outra atribuição do NIT que é um papel burocrático – entre outros, o de avaliar se um produto desenvolvido pela instituição representa inovação para ser patenteado, se este produto pode ser licenciado para empresa interessada na sua fabricação, verificar se há patente anterior e manter relação de patentes registradas e realizar renovação de marcas. O objetivo do poder público ao criar a legislação é incentivar a pesquisa científica e tecnológica e estimular a geração de produtos e processos inovadores. Para isto, é necessário que exista uma unidade – NIT – que estruture este novo papel nas instituições públicas. A inovação tecnológica, conforme considerada no artigo 2º da LC 1.049/08 é assim definida:

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Inovação tecnológica – introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e/ou social que resulte em novos processos, produtos e serviços, bem como em ganho de qualidade ou produtividade em processos produtos ou serviços já existentes, visando ampliar a competitividade no mercado, bem como a melhoria das condições de vida da maioria da população, e a sustentabilidade socioambiental.

Alcançado o objetivo proposto pela legislação de desenvolvimento do conhecimento

e de atividades voltadas para a geração de novos processos, produtos e serviços e que devem ser organizadas e geridas pelo NIT, surge outro problema: quem tem competência para a proposição de patentes, quem vai ser o proprietário do direito intelectual, quem pode assinar convênios, etc. A proposta é que o Decreto que crie o NIT na ICTSP defina estas questões. Em tese, a propriedade intelectual, a patente, o licenciamento da fabricação dos produtos com inovação desenvolvida na ICTSP são bens de propriedade do Estado e do autor do projeto. A legislação atual diz, por exemplo, que, dependendo do seu valor, é competência do governador a assinatura de convênios. Pode esta competência ser delegada para os diretores dos institutos de pesquisa ou para o secretario à qual a ICTSP está ligada? Os recursos auferidos com a licença de fabricação do produto podem ficar vinculados à ICTSP que desenvolveu o projeto, como receita própria? São estas algumas das questões que deverão ser resolvidas para que o NIT possa desenvolver suas atribuições de gestão de projetos de inovação tecnológica. Estas as questões deverão ser levadas pela Secretaria de Desenvolvimento, à PGE e ao próprio governo. A edição do decreto de criação do NIT é a parte mais fácil do problema, mas se as outras questões não estiverem devidamente equacionadas, o êxito da atuação do NIT será muito pequeno, para não dizer inócuo.

FATOS, FEITOS E CONTRADIÇÕES DO CONTROLE DE ENDEMIAS

Horacio Manoel Santana Teles Pesquisador Científico - SUCEN

Os limitantes do controle das endemias são sobejamente conhecidos e, afora motivos dos biológicos e ambientais, integram questões de ordem financeira e operacional. Além da superação das dificuldades resultantes das interações naturais presentes nos ciclos dos agentes patogênicos e da organização e execução dos programas, de uma maneira geral, o sucesso do controle das doenças não degenerativas depende da disponibilidade de técnicas eficientes para a descoberta e tratamento dos casos, de instrumentos para a prevenção, como as vacinas e de biocidas, cujas aplicações ambientais, causem algum tipo de dificuldade reprodutiva ou de sobrevivência das espécies dos vetores. Na prática, o controle também solicita a manutenção da continuidade e da regularidade de ações e atividades por espaços de tempo variáveis, conforme as características e as realidades epidemiológicas dos diferentes cenários onde se dá a transmissão da doença. Em particular, nos casos do controle das doenças que exigem aplicações de inseticidas, a simplicidade de manejo, transporte e manutenção dos equipamentos, e a disponibilidade de um conjunto de substâncias que possibilite a rotatividade das aplicações, dada a possibilidade do desenvolvimento de resistência, são questões estratégicas.

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Colocadas essas premissas, a questão financeira será propositadamente ignorada porque historicamente a insuficiência de dinheiro para execução plena dos programas de controle é um condicionante presente em todos os tempos. No que tange à transmissão dos agentes patogênicos as causas são múltiplas, ou seja, a disseminação é dependente da interação de um leque variado de determinantes biológicos, ambientais, sociais e econômicos. Entre os determinantes sociais e econômicos, o rol de argumentos começa com críticas ao modelo de colonização e de ocupação dos espaços desde os tempos coloniais, em função do desenvolvimento de políticas que privilegiaram o extrativismo em ciclos exploratórios até o esgotamento dos recursos naturais, que resultou no desmatamento, na produção de intensos fluxos migratórios em busca de trabalho, de melhoria da qualidade de vida e, que de fato, resultou na formação de uma legião de desvalidos. Na outra vertente, não são menos numerosos os trabalhos que atribuem valor aos determinantes biológicos e ambientais, com o predomínio do discurso sobre a necessidade da recomposição do equilíbrio ambiental, sobretudo, com a promoção do saneamento e recuperação dos ambientes degradados. Em síntese, a defesa da influência dos determinantes biológicos e ambientais é que a manutenção da saúde e da vida exige o balanceamento adequado das interações entre as espécies. No mais, quando se trata da tentativa de entendimento dos fenômenos que possibilitam a transmissão das doenças nos ambientes urbanos, o assunto atinge o nível máximo de complexidade. O conjunto de fatores sugeridos nos estudos e pesquisas se mostra ainda mais amplo e diversificado, variando de uma para outra cidade, e cuja sustentação tem bases biológicas e ambientais ou sociais e econômicas. A par da complexidade das interações nos ambientes urbanos, foi no âmbito das cidades que aconteceram alguns fatos, feitos e contradições do controle das doenças. A propósito, um exemplo dos mais emblemáticos trata-se da erradicação do Aedes aegypti da cidade do Rio de Janeiro no século passado, feito de Oswaldo Cruz. Os desdobramentos decorrentes do acontecimento merecem reflexão, sobretudo porque o sanitarista, conquanto admitisse a importância, não cogitou a mudança imediata das condições sociais, econômicas, sanitárias ou ambientais para a eliminação do vetor da febre amarela urbana. As bases do sanitarista foram a obrigatoriedade da vacinação e a destruição dos criadouros dos mosquitos. Na época a população do Rio de Janeiro beirava 250 mil habitantes, então a repetição do feito não seria factível na atualidade, pelo menos nas cidades com esse porte? Se, na atualidade, é inegável a melhoria dos conhecimentos, dos equipamentos e, sobretudo, da capacidade de divulgação e de mobilização da sociedade, que razões inviabilizam a reprodutibilidade do feito? Teriam mudado as relações biológicas, ambientais, sociais e econômicas que possibilitam a dispersão e permanência dos mosquitos nas cidades? Será que o resultado da empreitada se deu por conta da organização estilo militarista, da determinação governamental, pela fé e dedicação? Com juízo de valor e, portanto, com sinceridade, o entendimento pessoal é que o sucesso do sanitarista se deveu à convergência de múltiplos fatores, dentre os quais a mudança das condições sociais e econômicas não são mais vistosas. Além da clareza semântica dos objetivos, o feito foi o resultado de um planejamento minucioso, do estabelecimento de metas e de roteiros, mas principalmente, da determinação governamental e da confiança no pressuposto que a coisa era possível. Na época, poucos entendiam o contrário; a famosa revolta contra a vacinação aconteceu mais por razões políticas que por discussões que sugerissem a ineficácia do procedimento. Seguindo com as dúvidas, seria válido o argumento simples e linear da maior disponibilidade de criadouros da atualidade razão suficiente da impossibilidade da erradicação nos dias de hoje? A pergunta é pertinente porque, unicamente, as condições dos âmbitos sociais ou econômicas da atualidade, não seriam suficientes para o desenvolvimento e incorporação de novas estratégias de sobrevivência dos mosquitos. Neste ponto, o assunto remete para a reflexão sobre o comportamento humano frente a situações que solicitam a ultrapassagem das fronteiras do conhecimento. Dotado de raciocínio lógico, quando defrontado com o desconhecido, tem como alternativas comportamentais o enfrentamento, a

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imobilidade ou a fuga, simplesmente. No caso do Rio, a preferência foi pelo enfrentamento do desafio, com motivação e de desprendimento. Ainda como opinião pessoal, a suposição é que a adesão governamental às propostas de Oswaldo Cruz se deu pela inexistência de argumentos consistentes que motivassem o antagonismo absoluto e quase dogmático, como se vê com relativa freqüência nos dias de hoje, quando se trata da viabilidade ou não da erradicação de problemas. Passando a outro exemplo: o de Emílio Ribas. Ainda no início do século passado, quando envolvido no estudo das causas da transmissão do vírus agente patogênico da febre amarela, época em predominava a idéia que a transmissão da doença acontecia através da água contaminada, com o propósito da confirmação da tese da participação do Ae. aegypti na transmissão da doença, Emílio Ribas pegou larvas procedentes de área indene e levou até São Simão, onde grassava um surto epidêmico da doença. Lá, colocou os mosquitos em contato com doentes, retornou a capital e, em seguida, submeteu-se à picada dos insetos, juntamente com Adolfo Lutz, um assistente e três imigrantes que jamais passaram ou viveram em áreas endêmicas. Por uma dessas ironias do destino, os três imigrantes contraíram a doença, o que foi decisivo para o esclarecimento da transmissão vetorial da febre amarela e, de certa forma, jogou por terra, a defesa do saneamento básico como a medida eficiente ao controle da doença, como pretendiam os que defendiam a transmissão através da água. Em que pese o risco do procedimento, que certamente eram de conhecimento do cientista, é indiscutível que o experimento foi possível porque predominaram algumas peculiaridades que vão além da vocação e motivação científica, tais como, o desprendimento e a coragem (e quem sabe certa dose de vaidade?). Aqui, procede outra pergunta: os produtos vocação e motivação estarão em falta? A discussão a propósito da necessidade de vocação e de motivação suscita o registro de outro exemplo, o de Gregor Mendel. Tido como precursor do ramo da ciência conhecida como genética, na falta de recursos financeiros suficientes para o custeio dos estudos, se encerrou em um convento. Graças a isso, e ao acaso (ou não) da escolha da ervilha (planta cujo número cromossômico é 2n=14, onde 7 gametas, distribuídos por cromossomos distintos, propiciam variações de igual número de características), os resultados do desprendimento e dos experimentos de Mendel, entre outras coisas, abriram as portas para o melhoramento genético e, conseqüente melhoria da qualidade e da quantidade de alimentos. Mais um exemplo, o de Louis Pasteur, que no afã da comprovação dos efeitos protetores da vacina contra a varíola inoculou o vírus em si e na filha. Os resultados nesse caso não merecem maiores comentários. Com a suposição, a busca de resultados para a resolução de problemas aparentemente indissolúveis exige coragem e ousadia, os exemplos param por aqui. Para a continuidade, aqui não se trata da defesa do autoritarismo, da reclusão ou da necessidade da adoção de posturas de risco para a realização de tentativas de melhoria da resolutividade dos programas de controle das endemias, ou de quaisquer outros, como os de combate à criminalidade ou ao analfabetismo, por exemplo. No ensaio, o eixo da discussão passa tão somente pela conveniência da realização de análises que possibilitem a geração de convicções embasadas em conhecimentos que resultem do esgotamento de todas as possibilidades. Esse é o ponto, pois o conjunto de recomendações destinadas ao controle das endemias, do passado até o presente, salvo alguns pequenos detalhes aqui e ali, na essência permanece idêntico e, portanto, isento de inovações de monta. Cá e lá aparecem notícias de descobertas isoladas, mais úteis às especulações midiáticas que às práticas solicitadas nos programas e, ainda que aparentemente defensáveis, depois da análise pouco mais aprofundada, quanto aos aspectos logísticos e mesmos científicos, acabam rapidamente no esquecimento. Aqui os exemplos também são diversos. Quem já não viu ou ouviu o anúncio da descoberta de uma substância que revolucionará certo tratamento do câncer, com prazo e tudo (geralmente em 5 anos)? Esse prazo já serviu para o desenvolvimento de uma vacina eficiente contra a dengue, contra a malária. É claro que os estudos e pesquisas são imprescindíveis para a melhoria das expectativas do controle das doenças tidas como endêmicas, porém são poucas as dúvidas da necessidade da concentração de esforços para o desenvolvimento de fármacos de fácil administração, poucas restrições e

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efeitos colaterais, de técnicas de diagnóstico simples, eficazes e, no que diz respeito às ações programáveis, da realização de estudos que indiquem os momentos onde as intervenções são mais aconselháveis. Ainda assim, a superação definitiva dos problemas, em função das variações epidemiológicas, exige flexibilidade, em contraste com a linearidade cartesiana usual dos programas, talvez a barreira mais importante para o aproveitamento da criatividade. A par do reconhecimento da importância dos pontos levantados anteriormente, a melhoria das condições de vida e de moradia, do destino adequado do lixo e dos resíduos são avanços desejáveis, sobretudo considerando que a redução dos contrastes sociais e econômicos é um estágio do desenvolvimento humano também caracterizado por populações que apresentam bons níveis nutricionais e educacionais. Admitindo o nivelamento por cima, ou seja, que a redução das desigualdades seja no sentido da universalização das boas condições de vida, é previsível a diminuição dos riscos do desenvolvimento de doenças. Entretanto, sob esse aspecto, o Brasil ainda parece o país do futuro, porque a riqueza nacional permanece concentrada nas mãos de poucos, cuja maior preocupação corresponde às doenças degenerativas, naturalmente mais prevalentes na velhice. A beleza do discurso não está livre de paradoxos. Um dos melhores exemplos é o caso da poliomielite, já praticamente erradicada desde 1994. No caso dessa doença as melhorias graduais do saneamento, sem a devida cobertura vacinal, em determinado momento, foram motivo do crescimento das formas paralíticas devido à perda de efetividade da resposta imune. Esse fato, na visão da saúde de acordo com a lógica economicista, em princípio é bastante apropriado para a defesa da intensificação de uma medida profilática única na insuficiência de recursos financeiros suficientes para o fornecimento do saneamento básico a toda a população. Trata-se de uma colocação radical, é claro, mas muitas vezes as tomadas de decisões parecem tomadas dessa maneira. Um exemplo mais atual é o crescimento das formas agudas e atípicas da esquistossomose em áreas de baixa prevalência, onde o controle da transmissão foi eficiente e as condições do saneamento básico tornaram-se satisfatórias. Certamente não foram decisões lineares e unicistas que permitiram a quase extinção do sarampo, da raiva humana transmitida por animais domésticos, da rubéola, do tétano neonatal e acidental, da difteria, da rubéola, da coqueluche e do tétano acidental, doenças cujo controle dispõe de ferramentas como as vacinas e outros produtos imunogênicos. Portanto o enfrentamento dos problemas de saúde, como as endemias, solicita a atenção com variáveis biológicas, ambientais e, também, a adoção de políticas mais humanistas, do contrário nada feito. A disponibilidade de um ou outro instrumento profilático, por mais eficaz que seja, não é suficiente para o sucesso de um programa de controle. Praticamente encerrada a primeira década do terceiro milênio, com as comemorações dos centenários da descoberta do Trypanosoma cruzi por Carlos Chagas e da contribuição dada por Pirajá da Silva para a validação de Schistosoma mansoni como espécie, fato é que os registros da ocorrência de casos das leishmanioses ou da dengue e da febre amarela, da malária e muitas outras doenças, ainda continuam acima do desejável por deficiências do conhecimento científico e tecnológico, mas principalmente por um modelo político que privilegia principalmente os resultados econômicos da produção de bens e serviços. As incertezas causadas por esse modelo não são pouco emblemáticas. Como será a distribuição das endemias nos ambientes citadinos? A universalização do atendimento à saúde permitirá a incorporação de novas tecnologias? Quais serão os efeitos da globalização na distribuição mundial das doenças? A ressurgência de certas doenças do passado é indicativa da evolução mais rápida dos agentes infecciosos? O que acontecerá a partir do aumento da expectativa de vida da população, da mudança do formato da ocupação dos espaços e dos hábitos alimentares? Quais os parâmetros mais adequados para mensuração da qualidade de vida? Se de um lado seguem melhorando os conhecimentos científicos, propiciando a disposição de certos níveis de conforto e segurança, o impasse, considerando que o planeta não dispõe de recursos e espaços infinitos, na continuidade do tratamento dos problemas com o predomínio de posições unicistas, as endemias comporão um painel de futuro nada alvissareiro.

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Enquanto isso, na ausência de maiores novidades para o controle das endemias, permanece a espera de algum milagre tecnológico, e, nesse espaço, volta e meia, surgirão propostas do uso de substâncias e ingredientes mais adequados a realização de mágicas e alquimias. No presente estágio dos conhecimentos, é certo que a pesquisa não apontará nenhuma alternativa única para o rompimento de quaisquer dos elos das cadeias ecológicas dos agentes infecciosos, assim, o caminho mais seguro para o tratamento adequado do assunto é a adoção de um modelo de controle que permita a consideração das distintas realidades, o que exige a análise permanente dos resultados, dos determinantes e das circunstâncias da transmissão, sem sectarismos ou respostas prontas.

ppaaiinneell INSTITUIÇÕES DE PESQUISA E OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI -

MUITO ALÉM DA EXCELÊNCIA CRÍTICA

Maria Beatriz Machado Bonacelli Sergio Salles-Filho

Rosana Corazza Carolina Rio

GEOPI/DPCT/IG/Unicamp

A pesquisa conduzida em organizações públicas, que muito vem contribuindo para o desenvolvimento econômico e social do país desde o final do século XIX, entrou numa nova era há cerca de pouco mais de uma década. Na verdade, as mudanças vêm ocorrendo de forma bem diferente entre o conjunto das instituições, mas a direção tem sido muito semelhante – a valorização das atividades de pesquisa por meio do desenvolvimento e incorporação de novas competências em planejamento e gestão da pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I). Muito já se apontou e discutiu sobre os condicionantes que vêm impactando a forma e o conteúdo das pesquisas no país. Quando o governo brasileiro assina um acordo internacional, por exemplo (o que tem sido cada vez mais freqüente no cenário mundial), há reflexos internamente, muito dos quais sobre o sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Vejam-se os casos de acordos de controle de emissão de gás efeito estufa e CO2 para diminuir o aquecimento global (com rebatimento nas pesquisas agrícolas), o Acordo Brasil-Argentina nas áreas nuclear e de construção e lançamento de satélite - neste último caso também com a China, via CBERS (com forte impacto nas pesquisas nessas áreas e nas instituições envolvidas), entre vários outros exemplos e vários outros condicionantes (mais rápida mudança da fronteira do conhecimento e do estado-da-arte da pesquisa, novas áreas do conhecimento, outras formas de organização da pesquisa - como as redes de cooperação e o open innovation - ampliação das fontes de financiamento e das formas de financiamento para as atividades de pesquisa,para citar alguns). Nos países mais desenvolvidos, especialmente na Europa, as instituições de pesquisa (IPs) são um dos pilares centrais do sistema de inovação (SI) e um meio para os Estados Nacionais efetivarem grande parte da política de CT&I (e também econômica, social, ambiental, ...). Ou seja, a importância das IPs (públicas ou privadas) para a riqueza científica, econômica e social da Europa é explícita e elas têm entre suas missões o apoio às atividades estratégicas das dos países e das empresas, reduzindo custos de produção e de transação (custos do funcionamento da economia), abrindo oportunidades e novos campos de atuação para os países e auxiliando a EU atingir a meta de investimento de 3% do PIB em CT&I em 2010.

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Muitas vezes, a atuação de IPs converge com a atuação de outro importante ator do SI – a universidade. Mas o papel de cada um é diferente e não devem ser confundidos nem se acreditar que são substitutos - um não oferece os mesmos conhecimentos e serviços que o outro; são atores complementares e não substitutos. Se não, veja-se; a missão central das universidades é formar recursos humanos de alto nível e contribuir para o avanço do conhecimento, enquanto que as IPs trabalham, em geral, com conhecimento mais aplicado. Isso porque, enquanto a universidade é uma instituição pluridisciplinar e goza de grande autonomia para executar suas funções e missão, as IPs públicas (IPPs) são mission oriented, ou seja, têm missões específicas e dirigidas para realizar determinadas tarefas e cumprir determinadas funções. As IPPs são braços executivos de ministérios e secretarias e um meio para estes efetivarem grande parte de suas políticas de CT&I, agrícola, de saúde, de meio ambiente, de seguir de perto a fronteira tecnológica etc. e são avaliadas por isso, pelo cumprimento de suas missões. Entretanto, não basta hoje a essas instituições deter competência científica e tecnológica na sua área do conhecimento. As práticas de planejamento e gestão deixaram de ser vistas como uma mera atividade-meio e passaram a ser percebidas como atividades de cunho estratégico e que exigem profissionais com conhecimento sobre diversos assuntos, justamente para dar permitir que a competência em C&T se realize. Em estudos e projetos realizados pelo GEOPI (do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp) ao longo de mais de 15 anos, foram levantados vários elementos críticos para a atuação das IPs (públicas e privadas), procurando apontar todos os possíveis entraves a um maior desenvolvimento das atividades de pesquisa nestas organizações. Tomando como exemplo o trabalho mais recente, de 2009, realizado para o CGEE Modelos Institucionais dos Institutos de Pesquisa, 30 elementos críticos foram levantados, dentre os quais, a influência do modelo jurídico-institucional para o desenvolvimento das atividades da IP, o relacionamento e o desenvolvimento de clientes e fornecedores, a capacidade de identificação de demandas, o planejamento de atividades-fim, a priorização de atividades e o marketing institucional, o uso dos instrumentos de propriedade intelectual, a gestão de qualidade, de processos e de pessoas, programas de treinamento e qualificação, a eficiência na utilização dos recursos financeiros e a diversificação de fontes de financiamento. Algo semelhante havia sido levantado e analisado para um projeto junto à Finep (Novas Trajetórias de Gestão de Institutos e Centros de Pesquisa - ATED/Modernit, 2005) há alguns anos. As dificuldades e limitações, de diferentes ordens e aspectos, ainda persistem, mas, muito já se avançou sobre esse objeto e há instituições que vêm adquirindo e consolidando fortemente conhecimentos em gestão da PD&I. Entretanto, um fato chamou muito a atenção quando da realização destes trabalhos – quando se questiona as IPs sobre os fatores limitantes às suas atividades, não importa o tamanho, a localização, a área do conhecimento, o modelo jurídico-institucional destas, se públicas ou privadas; o elemento que mais aflige as IPs é a execução daquilo que foi planejado. A cultura institucional e a inércia cultural, a falta de materiais adequados (de várias ordens, desde tangíveis até os intangíveis), a descontinuidade política e gerencial, entre outros, são os aspectos que mais contribuem para isso. Mas, só há uma saída para se superar essas barreiras – dar início ao processo de planejamento e gestão, aperfeiçoá-lo e institucionalizá-lo junto à organização, obtendo o compromisso institucional de seus servidores e dirigentes e fazer saber as instâncias superiores, os pares, os interessados e a sociedade em geral que a instituição se preocupa com o que faz e entrega à sociedade, não sendo indiferente aos procedimentos que possam ajudá-la a promover, valorizar e cumprir seu trabalho e missão.

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ESTRATÉGIAS PARA O ENFRENTAMENTO DA TRANSMISSÃO DE DENGUE:

VERÃO 2010/2011

Irma T R Neves Ferreira Assistente Técnico de Saúde

“O combate a dengue não pode parar... temos que fazer nossa parte... o combate a dengue tem que ser todo dia... não deixe água parada..." Estas e outras mensagens estão sendo divulgadas, do norte ao sul do país, em cidades que pressentem a ameaça de novas epidemias de dengue.

Quem já teve dengue conhece seus sintomas e sinais e sentiu no próprio corpo suas dores. Da mesma forma o município que sofreu uma epidemia de dengue vivenciou os problemas no atendimento adequado dos pacientes,transtornos no sistema de saúde e pressões da mídia, para falar apenas de alguns desdobramentos.

Não sem razão as instituições de saúde pública se organizam, planejam ações, articulam integração, convocam suas equipes para se dedicarem ao estudo da situação que, sem dúvida, é envolvente e tem como objetivo evitar a doença e suas conseqüências.

A SUCEN tem a missão de realizar o controle de vetores transmissores de doenças, em conjunto com os municípios, com as atribuições de assessoria, avaliação e acompanhamento das atividades desenvolvidas.

Os municípios desenvolvem ações de controle do vetor, de acordo com a Norma Técnica do Programa de Controle da Dengue, realizando as atividades rotineiras em imóveis residenciais, não residenciais, parques, praças e outros além das atividades específicas nos períodos de transmissão.

Em períodos não epidêmicos são elaborados planos de intensificação com o objetivo de reduzir a infestação do vetor e ao mesmo tempo mobilizar a população para a continuidade da execução de medidas preventivas, visto que, nesses períodos ocorre uma despreocupação com as ações de controle e queda na inserção do tema na mídia, em decorrência da redução de casos da doença. Desde o ano de 2007, estes planos são elaborados para o segundo semestre, levando em consideração a sazonalidade do vetor e a necessidade de reduzir as condições que favorecem sua proliferação com a chegada das chuvas e aumento de temperaturas. Em 2010, o estado de São Paulo vivenciou sua mais alta transmissão de dengue desde o inicio da década de 90, além do aumento do número de municípios com casos e das formas

graves da doença. A SUCEN, em conjunto com as

equipes de Vigilância em Saúde da Secretaria de Estado, elaborou um plano de intensificação que envolveu participação de cerca de 300 municípios. Destes, sessenta e cinco são de regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas e Baixada Santista e os demais são municípios prioritários do Programa Nacional de Controle de Dengue – PNCD e são sedes administrativas de regiões do estado, conforme mapa ao lado, com abrangência de 60% da população paulista

e contribuíram, neste ano, com 80% dos casos de dengue no estado.

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Para este grupo de municípios foram realizadas cinco oficinas macro-regionais, no mês de agosto do corrente ano, com objetivo de analisar os indicadores entomológicos e com base nesta análise, propor um plano de intervenção nos meses seguintes, com objetivo de eliminar possíveis criadouros do mosquito Aedes aegypti. Estas oficinas permitiram que as equipes municipais do controle de vetor e da vigilância sanitária lançassem um olhar analítico sobre os indicadores entomológicos de cada localidade, no que se refere aos imóveis de maior risco, os pontos estratégicos e imóveis especiais. A partir desta reflexão municipal, os participantes propuseram ações de intervenção para os meses de setembro a dezembro de 2010. Participaram destas oficinas cerca de 290 profissionais de saúde dentre os municípios, vigilâncias epidemiológica e sanitária e SUCEN. Nos meses de setembro e outubro estão previstas realização de oficinas regionais com objetivos semelhantes aos descritos anteriormente, acrescido de avaliação pós-capacitação para atividade de bloqueio nebulização em 216 municípios que foram capacitados em 2009, com a participação de 1490 servidores para enfrentamento da epidemia de dengue.

A avaliação do Plano de 2009 mostrou que esta estratégia é necessária e oportuna,

pois estes municípios tiveram casos de dengue e, na sua maioria, puderam entrar em campo para realizar o bloqueio da transmissão.

No mês de novembro estão previstas capacitações em mais 50 municípios, menores de 10 mil habitantes, indicados no mapa abaixo, e que tiveram casos de dengue em 2010, observando que a intenção é propiciar autonomia ao município para o controle da doença nestas localidades. Deverão ser capacitados cerca de 250 profissionais de saúde para que possam atuar no bloqueio de transmissão de dengue, quando da ocorrência de casos em seus municípios.

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A expectativa é que estas ações integradas, desencadeadas a partir da visão conjunta dos órgãos da saúde responsáveis pelo controle da dengue no estado, tenham um impacto positivo e atinja o objetivo maior, qual seja o de fortalecer a gestão municipal para enfrentamento de epidemias de dengue nos municípios paulistas. Para tanto uma soma de esforços é necessária para o controle da dengue, desde o comprometimento dos gestores municipais, o envolvimento de suas equipes nas ações propostas, a importância das articulações intersetoriais, uma vez que não se controla dengue somente a partir de ações individuais sem o envolvimento da sociedade civil e da população e, por fim, uma ação oportuna e eficiente para reduzir a infestação do mosquito em cada município, minimizando o risco da transmissão da dengue, com a redução da presença e densidade do inseto transmissor da doença no estado de São Paulo.

PARTICIPAÇÃO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DE LEISHMANIOSE VISCERAL AMERICANA NO COMITÊ DE LEISHMANIOSE

VISCERAL AMERICANA DA SECRETARIA ESTADUAL DA SAÚDE

Ricardo Ciaravolo Pesquisador Científico

Coordenador O Núcleo de Estudos de Leishmaniose Visceral Americana/SUCEN está participando de um importante projeto de pesquisa coordenado pelo Comitê de Leishmaniose Visceral Americana da Secretaria de Estado da Saúde, à medida que 5 de seus membros estão integrados a 2 subprojetos deste plano de trabalho, nas áreas de entomologia e educação em saúde.

O referido projeto, já encaminhado às Comissões Científicas e de Ética dos órgãos participantes do Comitê/LVA-SES, deverá ser desenvolvido nos dez municípios pertencentes ao Colegiado de Gestão Regional (CGR) de Adamantina, prevendo aplicação de forma isolada ou combinada de novas estratégias para o controle da leishmaniose visceral americana, com início previsto ainda em outubro de 2010 e com prazo de realização de 24 meses. Além das ações preconizadas no Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral Americana, é previsto para os dez municípios do citado CGR ampla divulgação, conscientização e estímulo à participação comunitária, identificação individual da população canina (implantação de “microchip”), controle da reprodução canina por meio da esterilização cirúrgica e apenas no município de Adamantina aplicação de coleira impregnada com deltametrina 4%, nos cães existentes.

Com relação às questões relativas ao vetor Lutzomyia longipalpis, a SUCEN irá desenvolver estudos nos municípios de Adamantina e Oswaldo Cruz, visando analisar o hábito alimentar e verificar a taxa de infecção natural pelo parasito Leishmania chagasi nas fêmeas capturadas, além de monitorar a flutuação da população do vetor na região, através de capturas entomológicas no município de Flórida Paulista.

NOTÍCIAS ACAROLÓGICAS

Adriano Pinter

Pesquisador Científico

Entre os dias 22 e 27 de agosto de 2010 aconteceu em Recife/PE o XIII International Congress of Acarology. Diversos pesquisadores do Brasil e do Mundo estiveram presentes apresentando estudos em acarologia. Dentre os vários temas e campos de concentração da

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acarologia, a ixodologia (estudo dos carrapatos) teve espaço importante durante o congresso, com cinco mesas redondas, cada uma com quatro palestrantes. Os temas contemplaram: biologia, fisiologia, taxonomia, ecologia e transmissão de doenças por carrapatos. A Sucen esteve presente na apresentação de trabalhos na forma de pôster e oralmente, além de participar de uma das mesas redondas. Com grande repercussão, a pesquisadora do Institute of Arthropodology and Georgia Southern University, EUA, Dra. Lorenza Beati apresentou um estudo de filogenia com diversas populações do carrapato Amblyomma cajennense amostradas em países de toda a América Latina. A pesquisa mostrou que hoje é conhecida como uma única espécie que ocorre em todo o neotrópico − o A. cajennense − na verdade é um complexo de seis diferentes espécies. O espécime tipo foi descrito a partir de um carrapato colhido na cidade de Cayenne na Guiana Francesa. Assim, a população de carrapatos encontrada nas savanas ao norte da Floresta Amazônica é o verdadeiro A. cajennense e, portanto, uma vez que a comunidade científica aceite o trabalho, o carrapato transmissor da febre maculosa brasileira no estado de São Paulo deixará de ser nomeado A. cajennense e passará a ser um novo táxon, ainda por ter o nome definido. A publicação do estudo deve ser realizada nos próximos meses e estará assim aberta a discussão sobre o uso do novo táxon.

publicações científicas

ARTIGOS

Maio a agosto de 2010 Barbosa AAC, Favaro EA, Mondini A, Dibo MR, Chiaravalloti-Neto F. Evaluation of oviposition traps as an entomological surveillance method for Aedes aegypti (Diptera, Culicidae). Revista Brasileira de Entomologia, 2010; 54:328-331. Silva RA, Scandar SAS, Rodrigues VLCC, Cardoso-Jr RP, Sei IA, Wanderley DMV. Cuidados do domicílio pela população em área infestada por Triatoma sordida. Revista Baiana de Saúde Pública, 2010; 34(2):128-133. Ohlweiler FP, Guimarães MCA,Takahashi FY, Eduardo JM. Current distribution of Achatina fulica, in the state of São Paulo including records of Aelurostrongylus abstrusus (Nematoda) larvainfestation. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, 2010; 52(4):211-214. Sallum MAM, Foster PG, Santos CLS, Flores DC, Motoki MT, Bergo ES. Resurrection of two species from synonymy of Anopheles (Nyssorhynchus) strodei root, and characterization of a distinct morphological form from the Strodei Complex (Diptera, Culicidae), Journal of Medical Entomology, 2010; 47(4):504-526.

Bourke BP, Foster PG, Bergo ES, Calado DC, Sallum MAM. Phylogenetic relationships among species of Anopheles (Nyssorhynchus) (Diptera, Culicidae) based on nuclear and mitochondrial gene sequences. Acta Tropica, 2010; 114(2):88-96.

Wanderley DMV, Rodrigues VLCC, Moreira R, Diaz SY, Carvalho ME, Santos SO, Tatto E, Carli MS, Coelho IR, Silva PR, Túlio AS, Silva IR, Shikanai-Yasuda MA. On an acute case of Chagas Disease in a region under vector control in the state of São Paulo. Revista do Instituto de Medicina Tropical São Paulo, 2010; 52(3):151-156.

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RESUMOS DE CONGRESSOS janeiro a agosto de 2010

Wanderley DMV, Silva RA, Barbosa GL, Gomes AH, Rodrigues VLCC. Vigilância entomológica de triatomíneos pela população como estratégia de controle de vetores no Estado de São Paulo, Brasil. XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 2010. Silva RA, Mercado VTC. Notificações de triatomíneos em municípios em gestão plena do sistema municipal de saúde no Estado de São Paulo. XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 2010. Scandar SAS, Cardoso-Jr RP, Silva RA, Oliveira FH. Ocorrência de Leishmaniose Visceral Americana na Região de São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, Brasil. XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 2010. Takahashi FY, Eduardo JM, Kawano T, Kato JM, Ohlweiler FP. Efeitos de extratos de Piperaceae em Biomphalaria glabrata (Mollusca: Planorbidae). V Congresso da Sociedade Paulista de Parasitologia. Universidade de Guarulhos, 2010. Eduardo JM, Takahashi FY, Lagos CBY, Ohlweiler FP. Inventário da malacofauna e da helmintofauna associada aos moluscos no município de Santo André, SP. V Congresso da Sociedade Paulista de Parasitologia. Universidade de Guarulhos, 2010.

Bergo ES. Problemas com a identificação de espécies do gênero Anopheles e recomendações para o desenvolvimento de estudos taxonômicos como ferramenta básica de investigação. XXXVII Congresso de la Sociedad Colombiana de Entomologia. Bogotá DC, 2010.

fatos e fotos

A CASA AMARELA Maria Esther de Carvalho

Pesquisador Científico - SUCEN

Donato Saviano, o proprietário, só alugou o casarão, com a condição, de que, por questões afetivas, a cor e a fachada permanecessem as mesmas.

Rua Tamandaré, 649: era o endereço da SUCEN, entre fins dos anos 1960 e meados dos anos 1980. Até meados de 1970 era Superintendência de Saneamento Ambiental - SUSAM. Pedaço controle de vetores e pedaço controle de poluição do ar. Edi, a bibliotecária,

Foto quadruplicada de parte de uma das portas da casa amarela.

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fornecia o boletim da poluição do ar pelo telefone à Rádio Bandeirantes. A biblioteca ficava no andar térreo do casarão, pintado daquele amarelo quase-mostarda, cor das viaturas oficiais, das viaturas que, de longe, eram reconhecidas, no campo, como as do nosso serviço. Jardim na frente, com canteiro de flores bem cuidado, quintal transformado em estacionamento, onde deixávamos nossos veículos. Uma vez um paciente de malária quis comprar meu carro – um Corcel II – muito elegante, pagando em ouro em pó. Coisas das minerações. Naquela época havia a Serra Pelada e tantas outras explorações de ouro que geravam uma demanda intensa no Laboratório de Malária, para onde os pacientes vinham em busca de diagnóstico e tratamento. Conheci outra SUSAM na Venezuela, com o mesmo esquema de trabalho. O de campanha. Se bem que tivesse acompanhado mais o programa para o controle da doença de Chagas, do que o de malária. Igualmente, a esquistossomose era importante lá, tanto quanto aqui. E a nossa instituição ainda não recebera a CACESQ (Campanha de Combate à Esquistossomose), que mais tarde viria a compor parte dela. A organização da campanha era impecável! Muito trabalho! Muita malária! Somente dois laboratórios: Entomologia e Protozoologia. Era a DOT-2. Muitos pacientes vinham em busca de diagnóstico e tratamento para a malária, chegando principalmente de Mato Grosso (ainda não havia a divisão desse estado) e Rondônia. O casarão abrigava a DCV, a DOT, desenho, biblioteca, copa. No que havia sido a dependência de empregados e garagem localizavam-se os Laboratórios, incluindo o de Fotografia, comandado por Seu Nuno e a oficina: tínhamos uma marcenaria, com verdadeiros artistas nos trabalhos de torno, não só em madeira como também em metais, até objetiva e ocular de microscópio saíram de lá. Também um almoxarifado fazia parte desse patrimônio. A chefia da DOT-2 estava localizada no andar térreo da edícula, juntamente com o Laboratório de Malária. Muitos treinamentos eram fornecidos nesse laboratório. Os funcionários eram o que havia de mais conhecedor do assunto que se podia ter no Brasil, treinados que foram por pessoal de alto gabarito da OPS/OMS, repassavam com muita competência tudo que sabiam. Respirava-se a malária. Dona Alzira reconhecia o doente pelo

Laboratório de Malária – casa amarela (7-11-1974) Da esquerda para a direita sentados: Dr. Renato Corrêa e Dr . Odilon Ferreira Guarita em pé: Dona Conceição, Angelina De Salvo, Tonico Cavalcante, Maria Esther de Carvalho, Dona Maria José Matheus, Dona Alzira Fiori Emmerich, Ari Caio da Fonseca, Seu Januario (dia de sua aposentadoria), Seu Nardelli, Seu Nuno, Ditinho

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jeito e já antecipava para nós o diagnóstico: “esse tem a malária vivax, aquele tem a malária falciparum...”. E formava pessoal de todo o Brasil e de outros países das Américas.

No andar de cima ficavam três outros Laboratórios (Entomologia, Imunofluorescência e Fotografia). O de Entomologia era muito freqüentado pelo Dr. Renato Corrêa, cujo nome era reverenciado pelos acadêmicos da época, não só em São Paulo, como também no Brasil e em outros países. De formação médica, chamava a atenção no trato com as pessoas, um misto de humildade e elegância, sempre elogiando os trabalhos – menores que fossem – incentivando as pessoas em seu envolvimento com as pesquisas e rotinas da época. O chefe da DOT-2 era sempre um médico, por causa do atendimento de pacientes. Médicos e engenheiros – essa era a composição do “staff” do serviço. Lembro-me que esse aspecto, digamos, cultural, era tão forte que me influenciou na formação de meu enteado na hora de ele ter que escolher sua futura profissão “– você vai fazer medicina ou engenharia, é o que é mais considerado no Brasil!”. E o jovem, no verdume dos seus dezessete anos, que queria tanto fazer um curso na área de humanas, lá foi fazer medicina. Mas aqui, agora, eu lhes digo que ele não só saiu-se muito bem no curso médico, como também logo prestou outro vestibular e cursou, simultaneamente, história e medicina, ambos na USP. E, naturalmente, um curso acrescentou muito valor ao outro. Porque naquela época, ter outra formação acadêmica era considerar-se inferior, exigia a coragem de assumir outra escolha, considerada de pouco valor. Lembro-me até em uma viagem que fiz a serviço, na América Latina, que meu preceptor, por assim dizer, sugeriu-me dizer às pessoas que era bioquímica e não farmacêutica, por causa da pouca valorização atribuída ao farmacêutico (eu era farmacêutica-bioquímica, na verdade). Coisas de países de “terceiro mundo”, a nós impostas, para que pudéssemos nelas acreditar, aceitando uma condição de inferioridade intelectual. Aspectos curiosos no casarão – Havia um único telefone para atender os Laboratórios, de modo que o médico-chefe determinou o número de toques em uma campainha para cada laboratório, para cada funcionário. O banheiro do andar térreo da edícula era um verdadeiro trono! “Vai para o trono ou não vai?” Construído em um pedestal, havia que subir seus três degraus e ficar com a cabeça quase encostada ao teto. Coisas de adaptação do imóvel. Muito divertido! Fico pensando no que se transformou o casarão depois que de lá saímos! Casa de repouso para idosos. Pintada de azul e branco. Será que usavam as dependências da edícula? Já em outros tempos, o entrar em um jipe Toyota no estacionamento, causava estranheza: “É a dona Coisa, é a dona Coisa!“ Seu Ítalo, do SR-2, sem tempo para recordar-se de meu nome, comentava com um colega, espantado ao ver-me na direção daquela máquina a diesel, barulhenta como quê! Não era muito comum ver uma mulher pilotando um jipe a diesel. Uma coisa é verdade: quando houve a separação do DEPAR e da DCV, entrou no comando da DCV uma pessoa que nos marcou muito, o Dr. Fonseca. Já na época, eu havia sido contratada para por em funcionamento um laboratório que desenvolveria o diagnóstico

Despedida do casarão (1986)

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para doença de Chagas, por uma técnica recentemente introduzida no meio acadêmico, a da reação de imunofluorescência indireta. Tamanha foi a importância dessa técnica, que o próprio Laboratório recém-criado recebeu a denominação de “Imunofluorescência”. Como recém-formada, o desafio de implantar esse novo laboratório veio ao encontro da aplicação das teorias de organização, de alto rendimento e custo mínimo de processos, que acabara de estudar na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, dentro de especialização que fizera nas disciplinas industriais dedicadas: farmacêuticas, alimentos, cosméticas e químicas. Enorme era a vantagem da conceituação técnico-científica vigente na época e adotada pelos dirigentes. E não é que o Dr. Fonseca, que levava sobre seus ombros todo o peso de ter sido um digníssimo gerente da campanha contra a malária no Brasil e nas Américas, que passou ao lado das tropas de Mussolini quando verificava o programa de malária na Itália, nos idos da Segunda Guerra, que viveu nos vagões de trem atendendo a um sem-número de doentes de malária por nosso interior semi-desbravado e outras coisas honrosas mais, dignou-se a acompanhar, durante o tempo que foi necessário, toda a execução dessa nova técnica, que ele conhecia apenas teoricamente? Ele tinha disso. Incentivar os trabalhos. E logo que a rotina dos trabalhos de doença de Chagas permitiu, lá veio ele com um projeto de sorologia de malária residual em Santa Catarina, junto com a extinta SUCAM, que foi muito ousado, pois implicaria adotar outra metodologia que não a tradicionalmente usada para o controle da malária, levando em conta o diagnóstico sorológico, em uma região em que muitos casos passavam despercebidos à técnica do exame direto com o uso da gota espessa de sangue.

Uma historinha precede esta fase. Íamos Geraldo Buralli (que era o biólogo do Laboratório de Entomologia) e eu fazer um curso na Venezuela sobre Malariologia. E por alguma coisa burocrática nossos papéis não chegaram a tempo das inscrições. Dr. Fonseca ficou muito chateado. Por algum desencontro das chefias, apareceu no Laboratório um senhor em mangas de camisa, de língua castelhana, para ver as nossas atividades. Até então eu não estranhei nada, pois isso era muito comum acontecer. O Laboratório era uma espécie de vitrine do serviço. Técnica nova, programa de doença de Chagas aplicada aos escolares nascidos após a grande campanha de erradicação dos triatomíneos transmissores, muitos resultados interessantes, comprovando a eficácia do controle que vinha sendo utilizado, muita improvisação e flexibilidade na solução de problemas técnicos. Até ofereci, lá pelas tantas,

Casa amarela Da esquerda para a direita: Nicanor, Dr. Fonseca, Daniel, Benê, Silvio Marchetti (de costas), Henrique, Zezinho pé de samba

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suco de maracujá, que costuma ser do agrado de estrangeiros, ao visitante. Ele ficou bastante entusiasmado com o que viu (da parte técnica, naturalmente). E para encurtar a conversa, ofereceu-me um estágio no CDC de Atlanta, que recusei – mais porque eram tempos da ditadura militar, e a idéia de ir aos Estados Unidos não me agradava muito, por razões ideológicas. Mas aceitei uma viagem à Costa Rica, para aprender a técnica de imunofluorescência aplicada ao diagnóstico da malária, com um consultor da OPAS, a ele subordinado. Ele era nada menos do que o Diretor do Programa de Malária para as Américas – depois veio a ser o Diretor de Malária na OMS, em Genebra – cuja vinda era aguardada ansiosamente pelos chefes, que não o haviam identificado como tal e que por isso perderam a oportunidade de lhe falar. Assim, lá fui eu prá Costa Rica; do avião dava para avistar o quão verde era aquele país, de chuva na hora certa, durante nove meses do ano!

Geraldo foi aos Estados Unidos para um curso de Entomologia na Flórida. E teve oportunidade de trabalhar duramente no surto de encefalite que ocorreu no Litoral Sul do nosso Estado nos anos 70. Mas é necessário que se diga - que memórias trazem sempre um vício incorporado: o de levarmos para onde vamos o que somos. E como é difícil desprender-se desse vício, na tentativa de se recordar dos tempos do casarão, de uma maneira desvinculada da visão própria influenciada pela formação pessoal, com todos os aspectos vivenciados, além dos culturais e temporais inerentes a ela! Mas algo que seguramente não se pode confundir com os sentimentos da época, é que o ambiente era muito familiar e muito aconchegante. Reuniões técnicas mensais aconteciam sistematicamente - as reuniões de diretores, das quais participava, acompanhando as avaliações dos programas de malária e de doença de Chagas e, eventualmente, levando alguma notícia científica recente, de artigos científicos traduzidos a pedido da direção.

Festividades de fim-de-ano eram sagradas: até funcionário vestido de Papai Noel ajudava na hora de presentear os filhos dos funcionários. Para a criançada era uma alegria só. Brinquedos de acordo com idade e sexo. E muita comilança no almoço, que às vezes acontecia no sub-solo do prédio onde funcionava a parte administrativa e, em outras, no próprio quintal do casarão.

1975 – Treinamento na Costa Rica para Imunofluorescência de Malária

Natal na casa amarela (1981) Marcos de Papai Noel junto com os filhos de funcionários

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Avaliações do programa de malária eram feitas por Comissões Internacionais – o

programa tinha moldes internacionais – era o mesmo nas Américas – o que mudava eram detalhes regionais. Do ponto de vista estratégico podia-se ter a estratégia única, modus operandi único. Metas de programa, metas anuais, aos moldes do que se vê hoje em planejamento estratégico seguiam diretrizes elaboradas, eficientes e muitas vezes flexíveis, adaptando-se às condições vigentes.

Havia um sentimento de orgulho de participar da equipe de trabalho. Após treinamentos seguiam-se as práticas supervisionadas, com constante retro-alimentação no sistema, para corrigirem-se eventuais falhas. A ditadura seguia seu curso. De vez em quando se tinha alguma notícia de colegas que haviam sido obrigados a migrar para o exterior. Tempos de profunda tristeza, que suportamos durante todo o curso universitário, sem poder nos manifestar abertamente, sabendo dos riscos imensos impostos pela censura política vigente. Nos anos 80, a criação de mais um Serviço Regional, o de Taubaté, trouxe uma equipe grande de trabalho para a SUCEN, conformando o serviço em uma fase de transição político-administrativa. No movimento das “diretas já”, os funcionários iam em peso ao centro da cidade, aos locais onde eram realizados alguns comícios.

Para surpresa geral, o fim da ditadura militar significou a saída inglória de funcionários reconhecidamente valorosos do “staff” da SUCEN. Fiquei sem entender o ocorrido. Teria sido o “crime” por eles cometido o simples fato de existirem nessa época terrível? E tudo o que fizeram pelo serviço, pode ser jogado fora, como um produto inútil? Sem dúvida, Nietzsche tinha razão quando dizia a seus discípulos, personificando Zaratustra “Cuidado para que na luta contra o monstro não te tornes igual a ele”.

Pois a postura de Dr. Fonseca, manifestada em ofício circular que passou para seus funcionários no final de 1981, e que tomo a liberdade de aqui reproduzir, dizia: “... No ocaso de mais um ano que se passa, cheio de lutas, alegrias e desilusões, antevejo na aurora do novo amanhecer, um raio de esperança que justifica todo o trabalho e o esforço de cada um, visando o bem do nosso próximo. Acredito que nessa etapa vencida, todos os companheiros de serviço, procuraram dar o máximo de seu esforço para bem cumprir a tarefa pela qual cada um é responsável. Que no novo ano que vai se iniciar, essa mesma mística seja mantida bem alta, para que a nossa Organização e da qual tanto nos orgulhamos, continue a florescer e a dar frutos, sempre em benefício da nossa comunidade. Esses são os votos que a Diretoria de Combate a Vetores dirige a todos os companheiros, que no anonimato de seu trabalho diuturno ajudam a carregar esse estandarte que é orgulho de todos nós.”.

Em junho de 1986 nos mudamos para o local onde até hoje estamos. Aqui construímos novas amizades, mantendo em nossas memórias o que foi aprendido e apreendido naqueles tempos, passando para os novos funcionários e estagiários muito do espírito adquirido no velho casarão.

seção cult

O VINHO DA PALAVRA AOS PENSAMENTOS

Eduardo Fonseca Neto

Procurador de Autarquia - SUCEN Nada é mais universal, talvez o futebol e a política cheguem perto, do que essa bebida, responsável por movimentar gigantescas cifras financeiras como a da Côte d’Or, na Borgonha, celebrar acontecimentos históricos como o Má Partilha- excepcional merlot

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português bebido durante a assinatura do Tratado de Tordesilhas, o fantástico Chateneuf du Pape, elaborado com as uvas grenache e syrah, nas terras do novo papado, Avignon, quando do cisma da Igreja Católica, ou, até mesmo, relatar utopias e metáforas fantásticas como o bordalês Petrus Pomerol o vinho que toda merlot sem cabernet gostaria de ser. Desde a Antiguidade, está presente nos poemas de Gilgamesh, o primeiro texto escrito da história da humanidade, O Antigo Império egípcio já bebia esse líquido precioso e suas jarras mencionavam o ano, o vinhedo e o nome do vinhateiro - os primeiros rótulos da história. As imagens das ânforas gregas carregando o vinho para os banquetes e a divinização de Dioniso e Baco nas antigas Atenas e Roma ilustram a importância dessa bebida que marca, também, as primeiras reações químicas descobertas pelo homem: a fermentação e a oxidação.

Como prova física, as primeiras sementes de vinha plantadas a cerca de sete mil anos foram descobertas no Cáucaso, a leste do Mar Negro. Assim o primeiro vinhedo foi plantado em algum lugar que hoje poderia ser a Turquia, Geórgia ou Armênia. Com o passar dos séculos e a diminuição das guerras e do nomadismo, o que se notou é que as primeiras vinhas estavam plantadas próximas aos antigos mosteiros, locais que abrigavam as colônias sedentárias de monges, que desta forma foram os primeiros bebedores habituais do vinho, usado ainda nos rituais religiosos. E que vinho era esse. Rudimentar, primário, quase sempre oxidado, fermentado sem equilíbrio, feito artesanalmente. Como registro de curiosidade histórica vale saber, por exemplo, que no passado, o vinho, por ser líquido anti séptico, era necessidade e não luxo por que as comunidades urbanas ofereciam água impura e danosa à saúde e que, apesar de sua rudimentaridade, no século XIV, Bordeaux vendia tanto vinho para a Inglaterra, que aquela média anual de exportação só foi batida em 1971. Comentários históricos e introdutórios à parte, o que temos hoje: uma consistente indústria vinícola existente em quase todos os continentes, um mercado em expansão e produtos de melhor qualidade resultado de um avanço tecnológico disponível para o setor. Uma bebida que encanta pelo charme e que mexe com os três principais sentidos do corpo humano: a visão, o olfato e o paladar. O Vinho se rende ao império dos sentidos E já que falamos nos sentidos promovamos o encontro deles com o vinho. O primeiro grande encontro é com a visão, o aspecto do vinho: sua cor, brilho, clareza. E aqui a primeira dica. Com a enorme oferta e disponibilidade de vinhos no mercado recuse, onde estiver − use o código do consumidor se precisar − vinhos de tonalidade amarronzada, turvos, opacos e sem nenhum brilho. Quase sempre estão

Baco por Caravaggio

Nascimento de Dionisio

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passados, oxidados; são problemáticos. O brilho e a limpidez são aspectos importantes, ainda que o vinho seja bem escuro. Mesmo os de guarda, os que envelhecem bem e são menos brilhantes, não devem se apresentar opacos e turvos. Quanto ao olfato é muito fácil reconhecer um vinho intragável. Seu nariz o alertará para odores avinagrados (acido ascético), enxofrados (enxofre usado na vinificação) e os bouchonnês, ou embolorados (pano molhado). Nem pense em beber isso. A ressaca será pesada. O alerta advindo do terceiro sentido, o paladar é mais sutil e requer um pouco mais de treino. Mas evite vinhos de sabor tânico os amargos que amarram a boca. A síntese desses encontros dos sentidos com o vinho: primeiro observe, depois cheire e por último, depois das eliminatórias anteriores, se não é opaco, turvo, amarronzado, não cheira vinagre, nem ovo ou pano molhado, experimente seu sabor. O terroir, a síntese dessa bebida Depois dessas noções básicas, vamos passear um pouco pelas vinhas, suas origens, seu terroir, como dizem os franceses, palavra que sintetiza a relação das cepas com os aspectos ambientais que as envolvem. E a primeira informação é a que a maioria delas, as de prestígio pelo menos, são originárias da França, muito embora tenham se espalhado pelo mundo depois de se consagrarem no território gaulês. A Cabernet Sauvignon é a cepa mais difundida no mundo inteiro. Original de Bordeux participa do corte meio a meio com a Merlot, do famoso vinho bordalês grand cru, o Chateado Latour ou Margaux, por exemplo. É uva e bagos pequenos, escuros, pouca polpa e muita casca.

A Merlot de sabor macio e frutado além de mesclar-se à Cabernet para montar os Bordeaux, tem carreira solo nos grandes vinhos de Saint Emillion e de Pomerol, como o Petrus, o filho mais ilustre dessa cepa. Viajou pelo mundo todo e é produzida em larga escala na Califórnia, no Chile e no leste europeu. A Pinot Noir, exasperante de cultivar, dizem os produtores, fascinante

para degustar, respondem os somelliers é a cepa dos inigualáveis Borgonha, como os Romanée Conti – vinhos brilhantes, macios, elegantes da Côte-d’Or. Atua na região de Champagne com a Chardonay, para fazer o mais célebre dos espumantes, a bebida das grandes celebrações, como a Don Perignon, a Veuve Clicqout. A Syrah, cepa de difícil vinificação, pois exige muito cuidado e envelhecimento em barris de carvalho, faz, com a vizinha Grenache, o genial Chateneuf de Pape e os famosos Côtes du Rhône. É muito usada para cortes com outras cepas, pela sua instigante

personalidade, pois é tânica com notas picantes. Gamay é a uva dos Beaujolais, um dos vinhos mais famosos do mundo, lançados, anualmente, no final do outono europeu. Rica em aromas primários e em sabores de frutas maduras é cepa que não se mistura e produz vinho novo que não se guarda. Malbec, da França para a Argentina, notadamente para Mendoza no pé dos Andes, esta cepa viajou bem e produz um vinho denso, robusto, encorpado que evoca especiarias, sempre

presente nas parrillas de los hermanos. Carmenére: o pulgão, filoxerre, devastou esta cepa dos vinhedos de Pauillac e do Medóc. Um generoso viajante francês trouxe mudas para o Chile e hoje inúmeras vinícolas andinas, depois de realizarem a separação das Merlot, pois são parecidas, produzem um premiado tinto de tânicos suaves, lembrando cacau, couro, e frutas vermelhas. Os do vale do Maipo são os

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meus favoritos. Não faltam Carmenéres na minha modesta adega, pois combinam com tudo, exceto peixes, é claro! Chardonay é a cepa branca mais apreciada no pequeno grupo das uvas clássicas,

produz vinhos que podem até envelhecer se desenvolvidos em tonéis de carvalho. Natural da Borgonha e de Champagne, viajou para o Novo Mundo e se deu bem. É quase uma ditadora dos brancos, com uma imensa variedade de produtos. Sauvignon Blanc produz vinhos frescos, estilosos, vivos, apreciados no mundo inteiro. As vinhas dessa uva são originarias do Vale do Loire, mas também são plantadas no vale do Gironda próximo a Bordeux. Semillon saiu da França onde seu consumo decaia e foi para o Chile e Argentina onde é estrela. Não agrada

sozinha, mas participa de cortes com outras brancas para compor um extraordinário vinho de sobremesa, como os que são vinificados em Sauternes. Fora da França existem outras cepas que também se tornaram lendas. É o caso da Tempranillo da Espanha, usada em todos os Rioja, como o majestoso Veja Sicilia de Valladolid e os Ribera Del Dueroe da Sangiovese da Toscana que produzem o Brunello de Montalcino. A Itália também é o berço da Nebbiolo, cepa piemontesa responsável pela produção dos Barollo e dos Barbaresco, sem esquecer, no sul da bota, da Nero Davola siciliana. A Alemanha, no Reno e no Mosel abriga duas cepas brancas únicas e incomparáveis pelo estilo e paladar. São a Riesling e a Gewustraminer, resistentes ao frio e às geadas das encostas daqueles rios. Há muito mais. A natureza, graças aos céus, é pródiga na diversidade com que oferece essa fruta. A tecnologia evoluiu muito para ajudar no processo de vinificação e o ser humano tem aprendido muito, tanto na produção, como na comercialização e, principalmente, no consumo da bebida. Hoje o vinho é quase uma unanimidade no que se refere a qualificar uma solenidade, um evento, ou uma simples refeição. E há garrafas, safras e varietais para todos os pratos e ocasiões. Fala-se muito, nos tempos atuais, em harmonização, ou seja, o melhor vinho para acompanhar determinado prato. Isso é um exercício muito complexo. Podemos até voltar ao tema, neste mesmo espaço, se houver interesse. Por ora, o que podemos afirmar é que tintos, sem exceção não combinam com peixes e brancos, além de acompanhar os pescados, são mais adequados para festas, cocktais, cerimônias rápidas do que ancorar as refeições. Massas, queijos, risotos, aves vão bem com os Pinot Noir, Sirah, no máximo Merlots mais leves. Carnes vermelhas, os churrascos, filés, etc. pedem Cabernets ou os Malbecs. Bacalhau, o vinho verde português. Mais detalhes: há sites especializados como o www.academiadovinho.com.br. Para comprar: lembre-se da equação custo benefício. Não existe unanimidade. Vinho é vida, cada garrafa é uma história e cada um de nós tem seu gosto próprio. Escrevi mais do que pretendia, mas, como dizia Voltaire, o vinho da palavra aos pensamentos. Ponto final. Antes, porém parodiemos Fernando Pessoa: beber é preciso, ler a respeito, nem tanto. Mas beba com moderação.

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TRANSITORIEDADE E PERMANÊNCIA

Luis S. Krauz Crítico de Arte e Literatura - USP

Do ateliê paulistano de Liana Cardoso Soares avistam-se várias faces da cidade. Há os edifícios ambiciosos da Avenida Paulista; o casario modesto do bairro de Pinheiros; a monumental Faculdade de Medicina da USP; os novos prédios que estão transformando as feições do bairro; resquícios de vistas da Serra da Cantareira. São emblemas de momentos e de estados de espírito diferentes de São Paulo, que se amontoam ao acaso do progresso e que, em sua totalidade, são a cara de uma cidade em que tudo é transitório e mutável. Embora a pintura de Liana não se pretenda como figuração ou representação da metrópole, as analogias parecem inevitáveis. As obras que ela apresenta nesta mostra são, também, compostas de camadas que se sobrepõem, que se ocultam parcialmente, que se obliteram, e fazem das superfícies visíveis sedimentos que o tempo depositou sobre outras, anteriores, num jogo infinito – um jogo que é, também, um tipo de registro cronológico. A vista de uma cidade dominada pelo movimento obstinado de destruição e de reconstrução se torna um amontoado de ruínas, num trajeto irreal que visa o infinito. E as obras de Liana parecem conter esta mesma instabilidade, como se estivessem sempre prontas a receber novas camadas que, por sua vez, darão novos significados às camadas anteriores.

Se há um caráter aleatório nas diferentes configurações que a cidade assume com a passagem do tempo, as obras de Liana buscam o delicado equilíbrio entre a perfeição da forma e preservação de um caráter impermanente. Cada um dos trabalhos apresentados testemunha diferentes momentos de trajetórias extensas, nas quais o arcaico dialoga com o contemporâneo; o ingênuo com o sofisticado; o presente com o passado. São registros de conversas muitas vezes inacabadas, mas cristalizadas num estado de totalidade, que expressa, simultaneamente, seu estado atual e uma multiplicidade de sinais de todos seus estágios anteriores. Trata-se, portanto, de um trabalho que põe em evidência o caráter diacrônico de uma pintura que é busca e reflexão, isto é, de um trabalho cujo resultado nos mostra uma forma consumada ao mesmo tempo em que desnuda o processo artístico que lhe deu origem. Sua eloqüência está na capacidade de conter a oposição de gestos, representar o conflito e os diferentes graus de tensão, para tornar-se uma síntese dos muitos tempos próprios da criatividade. Seu presente contém uma infinidade de passados, cuja contemplação é também uma possibilidade de passagem para outras paisagens do imaginário. Metáfora e cristalização do próprio percurso que lhe dá origem, a pintura de Liana é também símbolo da vida e da condição humana.

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CONVITE

LIANA SOARES

QUASE CRÔNICAS - PINTURAS

Abertura : 7 de novembro das 10:00 às 17:00 horas De 8 a 20 de novembro de 2010

De segunda a sábado das 12:00 às 15 horas

YAM Rua Deputado Lac erda Franc o, 478 - Vila Mada lena

Tel.: (11) 3031-3543

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CONVERSAR Em um poema leio: Conversar é divino. Mas os deuses não falam: fazem, desfazem mundos enquanto os homens falam. Os deuses, sem palavras, jogam jogos terríveis. O espírito baixa e desata as línguas mas não diz palavra: diz luz. A linguagem pelo deus acesa é uma profecia de chamas e um desplume de sílabas queimadas: cinza sem sentido. A palavra do homem é filha da morte. Falamos porque somos mortais: as palavras não são signos, são anos. Ao dizer o que dizem os nomes que dizemos dizem tempo: nos dizem, somos nomes do tempo. Conversar é humano. (Trad. Antônio Moura)

Octavio Paz