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INFLUÊNCIAS, REFERÊNCIAS E INTERTEXTOS POÉTICOS: APARIÇÕES DE ELIZABETH BISHOP EM ANA CRISTINA CESAR E ANGÉLICA FREITAS INFLUENCES, REFERENCES AND POETICAL INTERTEXTS: APPEARANCES OF ELIZABETH BISHOP IN ANA CRISTINA CESAR AND ANGELICA FREITAS Raquel Machado Galvão (PG UEFS) RESUMO: Este ensaio propõe uma abordagem acerca das influências, referências e relações inter- textuais da poeta americana Elizabeth Bishop presentes nas poesias de Ana Cristina Cesar e Angéli- ca Freitas. A história de cada uma das escritoras aparece enlaçada nas suas construções poéticas, assim como a presença direta e indireta de diversos escritores em um texto poético. As ideias apre- sentadas se baseiam em estudos e pesquisas realizados por Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Bar- thes, Leonor Arfuch, Carlos Alberto Messeder Pereira, Maria Lucia de Barros Camargo, entre ou- tros. A interpretação aqui exposta desemboca em uma discussão sobre a importância de Elizabeth Bishop como inspiração para poetas que a sucederam e como ela compõe e se perpetua nas poesias através de alusões e citações. Palavras-chave: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; intertexto; poesia. ABSTRACT: This paper proposes an approach about influences, references and intertextual rela- tions of the work of the American poet Elizabeth Bishop present in the poetics of Ana Cristina Ce- sar and Angélica Freitas. The history of the writers appears in their poetic constructions, as well as direct and indirect presence of canonic writers in a poetic text. The ideas presented are based on studies and researches conducted by Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Barthes, Leonor Arfuch, Car- los Alberto Pereira Messeder, Maria Lucia de Barros Camargo, and others. The interpretation out- lined leads into a discussion about the importance of Elizabeth Bishop as inspiration for poets who succeeded her and how she composes and is perpetuated in poetry through allusions and quotations. Keywords: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; intertext; poetry. Cada texto poético está entremeado com outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem fim. É o que a gente chama de intertextualidade. (CESAR, 1999, p. 267). 1. Introdução Seja por incorporação, admiração ou simples influência, um poeta traz no seu labor de construção e pulsão lírica, palavras, expressões, citações e informações que remetem direta ou indi- retamente a outros escritores. Essas referências podem se apresentar em diversos formatos. Às vezes, como uma ho- menagem assumida, outras como cópia indireta. Mas em todas elas está presente o que nos estudos literários se chama de intertexto. Julia Kristeva, uma das estudiosas que propôs a noção de intertextualidade para os estu-

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INFLUÊNCIAS, REFERÊNCIAS E INTERTEXTOS POÉTICOS: APARIÇÕES DE ELIZABETH BISHOP EM ANA CRISTINA CESAR E

ANGÉLICA FREITAS

INFLUENCES, REFERENCES AND POETICAL INTERTEXTS: APPEARANCES OF ELIZABETH BISHOP IN ANA CRISTINA CESAR AND

ANGELICA FREITAS

Raquel Machado Galvão (PG UEFS) RESUMO: Este ensaio propõe uma abordagem acerca das influências, referências e relações inter-textuais da poeta americana Elizabeth Bishop presentes nas poesias de Ana Cristina Cesar e Angéli-ca Freitas. A história de cada uma das escritoras aparece enlaçada nas suas construções poéticas, assim como a presença direta e indireta de diversos escritores em um texto poético. As ideias apre-sentadas se baseiam em estudos e pesquisas realizados por Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Bar-thes, Leonor Arfuch, Carlos Alberto Messeder Pereira, Maria Lucia de Barros Camargo, entre ou-tros. A interpretação aqui exposta desemboca em uma discussão sobre a importância de Elizabeth Bishop como inspiração para poetas que a sucederam e como ela compõe e se perpetua nas poesias através de alusões e citações. Palavras-chave: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; intertexto; poesia. ABSTRACT: This paper proposes an approach about influences, references and intertextual rela-tions of the work of the American poet Elizabeth Bishop present in the poetics of Ana Cristina Ce-sar and Angélica Freitas. The history of the writers appears in their poetic constructions, as well as direct and indirect presence of canonic writers in a poetic text. The ideas presented are based on studies and researches conducted by Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Barthes, Leonor Arfuch, Car-los Alberto Pereira Messeder, Maria Lucia de Barros Camargo, and others. The interpretation out-lined leads into a discussion about the importance of Elizabeth Bishop as inspiration for poets who succeeded her and how she composes and is perpetuated in poetry through allusions and quotations. Keywords: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; intertext; poetry.

Cada texto poético está entremeado com outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem fim. É o que a gente chama de intertextualidade. (CESAR, 1999, p. 267).

1. Introdução

Seja por incorporação, admiração ou simples influência, um poeta traz no seu labor de

construção e pulsão lírica, palavras, expressões, citações e informações que remetem direta ou indi-

retamente a outros escritores.

Essas referências podem se apresentar em diversos formatos. Às vezes, como uma ho-

menagem assumida, outras como cópia indireta. Mas em todas elas está presente o que nos estudos

literários se chama de intertexto.

Julia Kristeva, uma das estudiosas que propôs a noção de intertextualidade para os estu-

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dos literários, influenciada por Mikhail Bakhtin, trouxe o pensamento que a escrita literária traz

textos anteriores ao seu, implícita ou explicitamente. Para ela,

. (KRISTEVA, 1979, p. 68).

Para T.S. Eliot, o poeta utiliza emoções e influências para trabalhá-las em um nível poé-

tico elevado: A mente do poeta é de fato um receptáculo destinado a capturar e armazenar um sem-número de sentimentos, frases, imagens, que ali permanecem até que todas as partículas ca-pazes de se unir para formar um novo composto estejam presentes juntas. (ELIOT, 1989, p. 44).

Entre percursos, leituras, referências e influências alusões e citações - e diante do tex-

to e do contexto do ensaio três poetas (por ironia e coincidência, mulheres): Elizabeth Bishop, Ana

Cristina Cesar e Angélica Freitas. Cada uma delas poetizando seu tempo e a sua geração, sem per-

der o elo com os seus locus vivendi e com os seus percussores de escrita. Também apresentaram,

nos seus poemas, os limites de produção característicos da vida moderna labirintos, incertezas,

perdas e fragmentos.

O auge produtivo das três poetas encontra-se em épocas diferentes. A primeira, Elizabe-

th Bishop, produziu de forma constante entre as décadas de 40 e 70 do século XX. Ana Cristina

Cesar, por sua vez, teve o seu auge literário no final da década de 70 e início da década de 80, um

pouco antes do salto inesperado que a levou ao suicídio em 1983. Angélica Freitas já é uma poeta

do século XXI: publicou o seu primeiro livro de poesias no ano de 2007. A partir da produção de Elizabeth Bishop é possível perceber como ela influenciou, foi re-

nos textos das duas outras autoras que sucederam a sua obra. Fe-nômeno que Roland Barthes indica e descreve em O Rumor da Língua: A leitura é condutora do Desejo de escrever (estamos certos agora de que há um gozo da escritura, se bem que ainda nos seja muito enigmático). Não é que desejemos escrever co-mo o autor cuja leitura nos agrada; o que desejamos é apenas o desejo que o escritor teve de escrever, ou ainda: desejamos o desejo que o autor teve do leitor enquanto escrevia, dese-jamos o ame-me que está em toda escritura. (BARTHES, 2004, p. 39).

O que torna-se impossível é uma dissociação da história de vida com a história literária

de cada uma delas, para assim, linkar as suas vivências sociais e suas influências com os indícios de

experiência que aparecem nas suas poesias. Como Leonor Arfuch traz nas suas reflexões sobre o

espaço biográfico na literatura: Não há texto possível fora de um contexto, inclusive, é esse último que permite e autoriza a legibilidade, no sentido que refere Derrida; e também não há um contexto possível que sa-ture o texto e clausure a sua potencialidade de deslizamento para outras instâncias da signi-ficação. (ARFUCH, 2010, p. 132).

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2. Indícios de Bishop em Bishop

Elizabeth Bishop (1911-1979) foi uma escritora americana que nasceu em Worcester-

EUA. Estudou literatura inglesa em Vassar e viajou por vários países como Canadá, França, Ingla-

terra, Marrocos e Espanha. Recebeu diversos prêmios por sua produção poética, entre eles, o Poet

Laureate of the United States (1949-1950), o Pulitzer (1956), o National Book (1970) e o Neustadt

International Prize for Literature (1976). Lecionou em várias universidades americanas, como a

Universidade de Washington, em Harvard, na Universidade de Nova York e no Instituto de Tecno-

logia de Massachussetts.

Em 1951, empreendeu uma viagem pela América do Sul, com uma parada no Brasil,

onde, por ironia do destino, permaneceu até 1966 (por conta de uma alergia a Cajus perdeu o em-

barque no navio em Santos). Passou a viver na Fazenda Samambaia, perto de Petrópolis, proprieda-

de da arquiteta Lota de Macedo Soares, com quem foi casada durante o tempo que permaneceu no

país. Nesse período, teve passagens esporádicas pelo Rio de Janeiro e Ouro Preto, e excursionou por

outras regiões, tendo passado pela Amazônia e navegado o São Francisco. Tanto o Brasil, quanto a

sua relação com Lota, estão presentes na sua vasta produção poética. É o que verifica Paulo Henri-

ques Britto, principal tradutor de Bishop para o português e organizador do livro Poemas Escolhi-

dos de Elizabeth Bishop: O que Bishop deixa claro, tanto nos poemas de amor como nas cartas escritas nos anos 1950, é que sua paixão pelo Brasil é sempre mediada pela paixão por Lota. Ou seja, é só na medida em que lhe é possível identificar a terra com a mulher amada que Bishop pode amar o Brasil. (BISHOP, 2012, p. 37).

Suas principais referências literárias foram Marianne Moore - com quem se correspon-

dia com frequência e que a ajudou a publicar seu primeiro livro, T. S. Eliot, Ezra Pound e Wallace

Stevens. Foi também influenciada por poetas da América do Sul e Central, como o mexicano Octá-

vio Paz, e os brasileiros João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, os quais tradu-

ziu para o inglês.

Na sua produção poética destacam-se as seguintes publicações: North & South (1946),

A Cold Spring (1955), Questions of Travel (1965), Uncollected Work (1969) e Geography III

(1976)1. Nesse último, está presente um dos mais celebrados poemas de Bishop, One Art ou A Arte

de Perder (tradução). O texto traz algumas referências autobiográficas e reflete sobre o sentido da

arte, da vida e das perdas:

1 Norte & Sul (1946), Uma Primavera Fria (1955), Questões de Viagem (1965), Obras Dispersas (1969) e Geografia III (1979).

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A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. tenho saudade deles. Mas não é nada sério. - Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. (BISHOP, 2012, p. 363)

Ao tratar com leveza as problemáticas encontradas nos interstícios da vida, e já dotada

nas quais se dividia no Brasil (Rio de Janeiro, Ouro Preto e Petrópolis).

3. Ana Cristina Cesar e Bishop em Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar (1953-1983) foi uma escritora nascida no Rio de Janeiro em uma

família de classe média alta e envolvida com a área de literatura. Demonstrou, desde muito nova,

habilidade com as palavras. Em depoimento para Carlos Alberto Messeder Pereira, em Retrato de

Época: poesia marginal anos 70, lançado pela Funarte em 1981, ela fala um pouco desse back-

ground familiar:

papai e mamãe acham ótimo... na escola, as professoras achavam um sucesso. Então litera-tura assim pra mim começou... mamãe era professora de literatura, aqui (em casa) era sem-pre (local de) encontro de intelectuais, papai transava na Civilização Brasileira, não sei o que. Então tem esse lance assim de família de intelectual que você... estimulava e publicava nas revistinhas de igreja, ou alguém conhecia alguém na Tribuna da Imprensa... botava no mural da escola... Aí quando eu cresci, essa coisa me incomodou 1981, p.190-191)

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Quando cresceu, foi literalmente e na área literária. A menina que ditava poemas para a

mãe, se transformou em uma jovem com agitada vida acadêmica, cursou Letras na PUC-RJ (1971-

1975), obteve o título de mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,

com o estudo da representação da literatura no cinema - (1978-

1979), financiado pela Funarte, e em Master of Arts pela Universidade de Essex (1979-1981), com

uma tradução comentada do conto Bliss, de Katherine Mansfield. No que tange à produção literária,

esteve fortemente envolvida na produção literária dos anos 70.

Publicou três livros de forma alternativa: Cenas de Abril (1979), Correspondência

Completa (1979) e Luvas de Pelica (1980). Eles, contudo, se diferenciavam um pouco do restante

da produção marginal por alguns sinais de requinte e capricho, típicos da escritora, assim como pe-

los recursos de construção poética utilizados. Participou, ainda na década de 70, da coletânea 26

Poetas Hoje (1976) organizada por Heloísa Buarque de Holanda. Em 1982, publicou por uma edito-

ra comercial, a Brasiliense, o livro A teus pés, que incluiu os três livros anteriores, além do inédito A

teus pés. A partir daí, apenas livros póstumos, a maioria organizada pela família Cesar e pelo escri-

tor Armando Freitas Filho, a quem Ana Cristina deixou a responsabilidade de cuidar do seu material

pós-morte: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos na Inglaterra (1988), Escritos no Rio (1993) e

Correspondência Incompleta (1999). Pelo Instituto Moreira Sales, Antigos e Soltos (2008), organi-

zado por Viviana Bosi, uma das principais pesquisadoras de Ana Cristina Cesar no Brasil.

Essa sobrevida da obra de Ana Cristina Cesar deve-se a inúmeros fatores, principalmen-

te à originalidade, ao que ela traz de novo. Da mesma forma que produziu uma literatura de com-

preensão menos direta, e, consequentemente, mais difícil, ela traz textos com montagens de coisas

reais, cotidianas, brinca com correspondências, biografias, diários e documentos. É uma literatura

também marcada pela influência de outros autores. Somado ao trabalho de tradução de poetas como

Sylvia Plath, Mariane Moore, Anthony Barnet, Emily Dickinson e William Carlos Williams, ela

apresenta na sua produção poética um estilo que é próprio, mas também dos outros.

No livro A teus pés apresenta, ao final, um Índice Onomástico, no qual traz 23 nomes,

entre escritores consagrados ou amigos, que estão diretamente ligados à sua produção ou influencia-

ram a sua escrita2. Elizabeth Bishop está incluída entre esses nomes citados. Em uma das poesias

presentes no livro aparece uma alusão e referencia direta a Bishop, no poema Travelling: Tarde da noite recoloco a casa toda em seu

2 Índice Onomástico de A teus pés: Francisco Alvim, Eudoro Augusto, Manuel Bandeira, Elizabeth Bishop, Heloísa Buarque, Angela Carneiro, Emily Dickinson, Grazyna Drabik, Carlos Drummond, Armando Freitas, Billie Holliday, James Joyce, Mary Kleinman, Katherine Mansfield, Cecília Meireles, Angela Melim, Murilo Mendes, Katia Muricy, Octávio Paz, Vera Pedrosa, Jean Rhys, Gertrude Stein, Walt Whitman.

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lugar.

Guardo os papéis todos que sobraram.

Confirmo para mim a solidez dos cadeados.

Nunca mais te disse uma palavra.

Do alto da serra de Petrópolis,

com um chapéu de ponta e um regador,

Rasgo os papéis todos que sobraram. [...]

(CESAR, 1993, p. 44)

Imerso no próprio limite de armadilhas intertextuais que Ana Cristina propõe, a poesia

começa em um tom confessional, que se encontra a uma referência direta à vida de Elizabeth Bi-

shop em Petrópolis, algo bem biográfico no trecho: Do alto da serra de Petrópolis, com um cha-

péu de ponta e um regador, Elizabeth reconfirmava Em seguida, uma referência direta ao poema

One Art, com o trecho Perder é mais fácil que se pensa de encontro à tradução A arte de perder

não é nenhum mistério

Maria Lúcia de Barros Camargo, na tese de doutorado sobre Ana Cristina Cesar, publi-

cada no livro Atrás dos Olhos Pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, diz que: É evidente que toda obra literária tem relação com a tradição que a antecede, seja por influ-ências, seja por adesão, por mimese, por negação, por resistência, por releitura ou recupera-ção [...] Mas em Ana Cristina a relação com a tradição literária não vai se limitar a influên-cias, nem será apenas prática epigonal da modernidade. É processo construtivo da obra, conscientemente planejado e elaborado: paródias, pastiches, apropriação de versos, alusões e referências diretas a autores amados, a amigos e outras artes. (CAMARGO, 2003, p. 119).

Ana Cesar aprimorava, assim, seu método poético com a aproximação a outros autores,

observando traços, esquemas da escrita e imagens presentes nos textos.

4. Angélica Freitas, liz e lota

Angélica Freitas (1973-) é uma escritora em atividade que exerce o papel de poeta e tra-

dutora, semelhante ao das já citadas autoras. Nasceu em Pelotas-RS, tendo cursado Comunicação

Social da UFRGS e atuado como repórter dos jornais O Estado de São Paulo e Revista Informática

Hoje. Já morou em países como Holanda, Bolívia e Argentina.

Em 2007, publicou seu primeiro livro, Rilke Shake, já traduzido para inglês, francês, es-

panhol e alemão. Fez parte de outras coletâneas nacionais e internacionais, até lançar o seu segundo

livro em 2012, chamado O Útero é do Tamanho de um Punho.

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A escritora participa de uma geração que ainda não foi batizada pela crítica literária.

Contudo, assim como Ana Cristina Cesar, mistura referências pop com nome de escritores consa-

grados. Em Rilke Shake referencia Gertrude Stein, Djuna Barnes, Mariane Moore, Ezra Pound, Ril-

ke, Mallarmé, Shakespeare, John Keats, entre outros.

Elizabeth Bishop aparece em Angélica Freitas no poema liz e lota, também presente em

Rilke Shake: liz e lota imagino a bishop entre cajus toda inchada e jururu da janela o rio a seu lado a lota, com um conta-gotas.

ao que bishop riu, olho esquerdo sumiu, afundou na pálpebra. a americana dormiu em alfa. e no seu sono, tão geográfica sonhou com a carioca rica e com a vastidão da américa. (FREITAS, 2007, p. 29)

Angélica Freitas traz referências à vida pessoal de Elizabeth Bishop, fazendo alusão a

uma forte alergia que a manteve no Brasil e possibilitou a sua aproximação com Lota Macedo. Tra-

ta com humor a situação de liz e lota, o início da paixão e o sonho da escritora uma tranquilidade

financeira para escrever. Quando diz , Freitas remete ao livro Geo-

grafic III, e ao poema One Art

Segundo Hilary Kaplan, tradutora de Rilke Shake para o inglês, a poesia de Angélica

shake de linguagens e palavras com a tradição canônica e um toque de pra-

zer, batidas no liquidificador irônico da pós- 3.

Lota Macedo, volta a aparecer de forma en passant, em outra poesia de Angélica Freitas

presente em Rilke Shake. Um pequeno trecho traz informações indiretas sobre o fato da frequente

conduta da arquiteta de andar armada. [...] olhei praquele espelho o suficiente pra sem relógio caro fazer pose de lota

3

. Translating Poems. Em: <http://www.digitalartifactmagazine.com/issue2/Translating_Poems_from_Angelica_Freitas_Rilke_shake>. Acesso em 22 de agosto de 2013.

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e sem pistola automática pose do anjo do charlie

rápida peguei as chaves

(FREITAS, 2007, p. 58)

Embora Angélica Freitas não cite Ana Cristina Cesar diretamente, ela também tem nes-

sa poeta uma inspiração para a sua escrita, como colocou em uma recente entrevista concedida para

a jornalista Raquel Cozer da Folha de São Paulo: Esse estilo inspirou mais de uma geração de poetas. Um dos nomes mais conhecidos no gê-nero hoje, a gaúcha Angélica Freitas, 40, credita a leitura de Ana C. seu interesse por escre-ver poesia: eu a li aos 15 anos. Até então, tinha escrito uns versinhos. Os poemas me causaram grande

estranhamento. Muita coisa ali era um mistério. Mas um mistério que mostrou que poesia também (COSER, 2013, online)

5. Aparições do outro no outro

Mais que influência, Elizabeth Bishop foi, para as duas poetas que a sucederam, uma re-

ferência de escrita e de trabalho árduo com a linguagem. Em comum, as três trouxeram fragmentos

e temáticas características de seus tempos. Romperam e impregnaram a sua escrita com o suor do

outro, onde encontram Barthes: A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos, na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. (BARTHES, 1981, p. 64).

O que também aparece de similaridade entre as poetas é o desprendimento ao trazer te-

máticas como a sexualidade, tratando as relações humanas com naturalidade. Destemidas, mesclam

vida e obra com o trabalho literário árduo e constante. Independente de serem mulheres, figuram

de forma consagrada ou não entre os grandes escritores. Reconhecidas, reconhecem o poder e a

delicadeza do poeta diante do desafio de tratar sobre temáticas universais. Poeta esse que estuda,

cria, recria, se espelha e . Afinal de contas, .

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução: Pa-loma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.

________. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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BISHOP, Elisabeth. Poemas escolhidos. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henri-ques Britto. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristi-na Cesar. Chapecó: Argos, 2003.

CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 8ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

________. Crítica e Tradução. 1ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1999.

________. [et al.]. Poesia Marginal. São Paulo: Ática, 2006.

COSER, Raquel. Falso tom confessional de Ana Cristina Cesar influenciou gerações. São Paulo: Folha de São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/08/1324204-falso-tom-confessional-de-ana-cristina-cesar-influenciou-geracoes.shtml> . Acesso em: 17 de ago. 2013

ELIOT, Thomas Stearns, Tradição e Talento Individual. Em: Ensaios. Tradução e Introdução: Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.

FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo: CosacNaify; Rio de Janeiro: 7 letras, 2007.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). 26 Poetas Hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Edito-ra, 2007.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960-1970. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Poesia Jovem anos 70. São Paulo, Abril Educação, 1982.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.

MORICONI, Italo. Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de Época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.

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