Índios, escravos e libertos: as “raÇas … · decreto de 3 de junho de 1822, ... outubro dia de...

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5754 ÍNDIOS, ESCRAVOS E LIBERTOS: AS “RAÇAS FORMADORAS DO POVO BRASILEIRO ” E A PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE NA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DE 1823 INDIANS, SLAVES AND RELEASED SLAVES: THE "RACES THAT FORMED BRAZILIAN PEOPLE" AND THE PROCESS OF BRAZILIAN NATIONALITY FORMATION IN THE CONSTITUENT ASSEMBLY OF 1823 Celso Rodrigues RESUMO O artigo discute o processo de construção da nacionalidade brasileira na conjuntura histórica de elaboração dos ordenamentos jurídicos e instituições estatais que envolvem a primeira metade do século XIX. Nesse sentido problematiza as relações entre o pensamento político brasileiro, calcado no “pensamento do século” e a heterogeneidade racial brasileira, destacando as contradições e paradoxos entre o esforço de construção da idéia de nação e a presença estruturante da escravidão no Brasil dos oitocentos. Enfatiza, por fim, a necessidade de compreender a confecção de modelos calcados na harmonia racial das “três raças” a partir das imbricações entre uma modernidade jurídica e política, geradora do ideal de unidade nacional e a realidade social brasileira marcada pela ordem escravocrata. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS –CHAVE IDÉIAS POLÍTICAS PENSAMENTO MODERNO – CIDADANIA - ESCRAVIDÃO ABSTRACT The article discuss the process of brazilian nationality formation in the conjuncture of juridical systems’ and state institutions’ elaboration which took place during nineteenth century’s first half. In this sense, the paper problematizes the relationships between brazilian political thought, supported by “the century’s thought”, and brazilian racial heterogeneity, highlighting contradictions and paradoxes between the efforts of constructing the idea of nation and the structuring presence of slavery in Brazil during the nineteenth century. Finally, the article emphasizes the need of understanding the confection of models shaped by the “three races” harmony starting from the implications between juridical and political modernity, which created the ideal of national unity, and brazilian social reality, which is marked by slavery’s order. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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ÍNDIOS, ESCRAVOS E LIBERTOS: AS “RAÇAS FORMADORAS DO POVO BRASILEIRO ” E A PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE

NA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DE 1823

INDIANS, SLAVES AND RELEASED SLAVES: THE "RACES THAT FORMED BRAZILIAN PEOPLE" AND THE PROCESS OF BRAZILIAN

NATIONALITY FORMATION IN THE CONSTITUENT ASSEMBLY OF 1823

Celso Rodrigues

RESUMO

O artigo discute o processo de construção da nacionalidade brasileira na conjuntura histórica de elaboração dos ordenamentos jurídicos e instituições estatais que envolvem a primeira metade do século XIX. Nesse sentido problematiza as relações entre o pensamento político brasileiro, calcado no “pensamento do século” e a heterogeneidade racial brasileira, destacando as contradições e paradoxos entre o esforço de construção da idéia de nação e a presença estruturante da escravidão no Brasil dos oitocentos. Enfatiza, por fim, a necessidade de compreender a confecção de modelos calcados na harmonia racial das “três raças” a partir das imbricações entre uma modernidade jurídica e política, geradora do ideal de unidade nacional e a realidade social brasileira marcada pela ordem escravocrata.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS –CHAVE IDÉIAS POLÍTICAS – PENSAMENTO MODERNO – CIDADANIA - ESCRAVIDÃO

ABSTRACT

The article discuss the process of brazilian nationality formation in the conjuncture of juridical systems’ and state institutions’ elaboration which took place during nineteenth century’s first half. In this sense, the paper problematizes the relationships between brazilian political thought, supported by “the century’s thought”, and brazilian racial heterogeneity, highlighting contradictions and paradoxes between the efforts of constructing the idea of nation and the structuring presence of slavery in Brazil during the nineteenth century. Finally, the article emphasizes the need of understanding the confection of models shaped by the “three races” harmony starting from the implications between juridical and political modernity, which created the ideal of national unity, and brazilian social reality, which is marked by slavery’s order.

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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KEYWORDS: KEY-WORDS POLITICAL IDEAS – MODERN THOUGHT – CITIZENSHIP - SLAVERY

Introdução

A aclamação e coroação de D. Pedro I completaram o processo inicial de entronização da monarquia constitucional nos trópicos. Não obstante a prevalência da corrente política vinculada ao constitucionalismo monárquico a estabilidade da instituição monárquica e a consolidação da emancipação política dependeriam, ainda, do cumprimento de uma extensa agenda política. De imediato urgia a eliminação de focos dissidentes lusos nas províncias, o reconhecimento externo, o encerramento da devassa iniciada pelo ministro José Bonifácio e a elaboração da nova constituição. Segundo as principais lideranças políticas envolvidas, o momento de júbilo e regozijo, que os “sucessos” de 1822 encarnaram, deveria agora ser substituído por um tempo de reflexão e circunspecção, próprio da criação e consolidação de novas instituições políticas e jurídicas.

A ampla mobilização política que compôs o processo de independência, na qual estão incluídos os pronunciamentos civis e militares e as festividades de aclamação e coroação, entre outros eventos emblemáticos, colocaram em movimento o universo social da antiga colônia. Constituía-se um espaço público no qual o amplo vocabulário do pensamento político moderno entronizou-se às práticas mobilizadoras e reivindicatórias, forjando as primeiras expressões da nacionalidade. Evidentemente o processo revelava-se pedagógico a partir da incorporação dessa sintaxe pública que articulava o passado e o presente a partir de elementos políticos e religiosos que integravam tradições e inovações. Em outras palavras, a atmosfera política envolvia um amplo espectro de rupturas, continuidades e redefinições de hierarquias sociais e políticas que se projetava na contemporaneidade.

A convocação da Assembléia Constituinte de 1823

O movimento pela convocação de uma constituinte insere-se no cenário que delineamos anteriormente. Manifestações capitaneadas pelo Senado da Câmara e pelo ativismo jornalístico de Gonçalves Ledo mobilizaram a opinião pública em torno do tema. O decreto de 3 de junho de 1822, informava que o corpo de representantes estaria “investido daquela porção de soberania que essencialmente reside no povo”[1] para realizar sua tarefa constitucional. A representação apresentada por Ledo e o decreto do príncipe regente preservavam, ainda, uma retórica unionista, o que, naquela conjuntura, era mais uma estratégia discursiva, sugerida pela prudência. De qualquer forma, a

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proposta da constituinte alargou os espaços para as ações de mobilização, dinamizando o debate a partir de articulações oriundas da sociedade. Até aquele momento, as iniciativas estiveram concentradas em procedimentos ministeriais combinadas a ações personalistas de cunho tipicamente patrimonial que angariaram apoio da população ao Príncipe Regente[2]. Esboçava-se agora, a possibilidade do processo político adquirir maior ventilação e dinamismo.

Na sessão de 10 de junho do Conselho de Estado Gonçalves Ledo[3] defendeu tenazmente a tese das eleições diretas para a Assembléia Constituinte:

“Quando o povo tem uma vez pronunciado seu juízo é uma necessidade do governo conformar-se com ele. Ousarei dizer a V. A. R. que é uma verdade quase dogmática no regime constitucional, assim como o é também: “Quem governa com o povo governa com a força. O povo tem já no objeto de que se trata expendido seus sentimentos – nomeação direta – é meu dever aconselhar a V. A. R. que não se oponha a torrente impetuosa da opinião pública, não se irritem os ânimos, que começam a acalmar-se”.

Obviamente, Ledo tentava inverter a lógica da hierarquia política até então reinante, impelindo o príncipe a aceitar a soberania do eleitorado, nos marcos de uma leitura diferenciada do constitucionalismo. Nesse sentido, o autor apregoava uma submissão total dos governantes à vontade geral, fundando a nacionalidade sob inspiração de Rousseau[4]: “A vontade do maior número deve ser a lei de todos. O maior número pede eleições diretas, a lei as deve sancionar: só por elas é que se pode dizer que o povo nomeou seus representantes”.

As instruções eleitorais divulgadas em 18 de junho de 1822 contemplaram as eleições indiretas, as quais estavam acompanhadas sintomaticamente de um decreto acerca da liberdade de imprensa. A lei informava que a convocação da Assembléia Constituinte implicava,

“pela suprema lei da salvação pública, evitar que, ou pela imprensa, ou verbalmente, ou de outra qualquer maneira propaguem e publiquem os inimigos da ordem e da tranqüilidade e da união, doutrinas incendiárias e subversivas, princípios desorganizadores e dissociáveis; que promovendo a anarquia e a licença, ataquem e destruam o sistema, que os povos deste grande riquíssimo reino por sua própria vontade escolheram, abraçaram e me requereram a que eu anuí e proclamei, e a cuja defesa e mantença já agora eles e eu estamos indefectivelmente obrigados”[5].

Do ato legislativo era possível depreender que considerava-se o Estado institucionalizado a partir da monarquia, para a qual formulava-se uma doutrina legitimadora que estipulava um consenso social a priori. Tratava-se, portanto, de uma perspectiva organicista que integrava a sociedade e o Estado, com preponderância desse último, enquanto substância política dotada de anterioridade e de instrumentos reparadores. Além disso, pretendia-se apoiar o decreto numa legitimação de natureza diversa do modelo rousseauniano: a necessidade de combater um mal maior, representado por princípios desorganizadores.

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Muitos mais do que a expressão de arcaísmos políticos ou da “esquizofrenia da intelectualidade”, nas palavras de Morse[6], o que a tese vitoriosa expressava era justamente um deslocamento dos fundamentos da legitimidade política. Os rascunhos da nacionalidade eram elaborados sob outras premissas: não apontavam tão somente na direção da temporalidade moderna, mas também dos interditos que por ventura pudessem medrar do cenário político: a desordem social, a fragmentação territorial. Como bem definiu o ministro e conselheiro Martim Francisco, a “salvação pública é a suprema lei do Estado”[7].

A Assembléia Constituinte de 1823: os debates sobre a nacionalidade

A Assembléia Constituinte, foi solenemente instalada no dia 3 de maio de 1823. Dos 107 deputados eleitos, 90 tomaram posse, sendo que as bancadas mais representativas foram, por ordem de representantes, Minas Gerais, Pernambuco, São Paulo, Bahia, Ceará, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Sul. A Assembléia Constituinte reunia, em seu conjunto, vários segmentos sociais: lideranças políticas temperadas na participação em movimentos conspiratórios anteriores, funcionários públicos, profissionais liberais, proprietários rurais, padres, entre outros[8].

A escolha do dia 3 de maio para a instalação da Assembléia Constituinte deveu-se “por ser já distinto na História do Brasil”[9], pois a data era associada ao descobrimento do Brasil. A construção da nacionalidade, a partir da elaboração de um calendário, foi uma preocupação que norteou os trabalhos dos constituintes desde cedo. O deputado Costa Barros[10] requereu, em 6 de setembro, o seguinte:

“Proponho que a Assembléia declare o dia 7 do corrente aniversário da independência brasileira, dia de festa nacional e que se nomeie uma deputação a fim de cumprimentar S. M. Imperial e agradecer-lhe, em nome do Império, o primeiro grito de sua independência, solto por ele nas margens do Piranga”.

Na mesma perspectiva, propunha a Assembléia Constituinte[11] declarar o dia 12 de Outubro dia de festa nacional “não só por ser o da feliz aclamação de sua majestade e grandiosa elevação do Brasil à categoria de Império, mas também pelo faustíssimo motivo de ser o aniversário natalício do mesmo augusto senhor”. Pela fala do deputado é possível perceber os conteúdos patrimonialistas que acompanhavam o processo de construção da nacionalidade: o nascimento da nação em simbiose com o aniversário do imperante.

Os exemplos ilustram o processo de construção da nacionalidade brasileira a partir da elaboração de operações discursivas, isto é, daquilo que Hall[12] denominou narrativa da nação: “estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que representam ou simbolizam experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação”. Desde o primeiro momento, os constituintes esforçaram-se em construir uma comunidade nacional: a escolha da data

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do descobrimento do Brasil visava a unir, num sistema comum de representação, passado e presente, isto é, a continuidade histórica: descobrimento e redescobrimento, nascimento e emancipação do Brasil. Os exemplos enfatizavam a criação de um marco-zero para a história brasileira a partir do qual a nacionalidade seria erigida.

Inevitável, entretanto é anotar o paradoxo inerente de um resgate e/ou negação do passado que o esforço de constituição da nacionalidade engendrava. A independência constituía uma ruptura com o passado colonial, que em parte, não poderia ser levado em conta na construção do sentido da nacionalidade. Ao mesmo tempo, a opção monárquica vinha impregnada de um compromisso com o passado, na figura de um descendente bragantino. Essas contradições tornavam a construção da nacionalidade um fenômeno complexo, garantindo um lugar proeminente ao herói fundacional, encarnado por D. Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil a que aludem os exemplos referidos anteriormente. Dessa forma há um deslocamento da nação, que é simultaneamente admitida e negada em favor da figura do imperante, fundador da nacionalidade[13].

Como anotou Gauer[14], “a construção da nacionalidade é um processo de dupla natureza, que indica, ao mesmo tempo, o pressuposto real e construído pelos homens nas suas relações e a direção da transformação”. Portanto, esse processo decorre das ações que os homens se vêem obrigados a construir coletivamente, a partir da desigualdade da sociedade. Em outras palavras, as escolhas políticas que foram lentamente sendo definidas pelos grupos sociais envolvidos e implicitamente, os objetivos a serem alcançados, forneceram os elementos constitutivos do processo de construção da nacionalidade brasileira, que, como já foi assinalado, assumiu feições muito específicas.

Em 29 de julho de 1823, por ocasião dos debates em torno da forma de promulgação das leis da Assembléia Constituinte, o deputado baiano Ferreira França[15] afirmava:

“Nós não somos uma nação nova – isto também necessita ser esclarecido. Se por nação nova se entende aquela que se compõe de hordas de homens selvagens, que saídos dos bosques se unem para formar uma única família ou sociedade política, de certo não somos nós uma nação nova nesse sentido; mas se acaso entende isso, como cumpre entender, de uma nação que, quebrando todos os vínculos sociais do direito público que a ligavam, enceta a carreira de uma nova convenção de um novo sistema de governo, então digo que não só somos uma nação nova, senão muito nova”.

Como observou Ferreira França, na melhor tradição do pensamento político moderno, a nação brasileira constituía sua identidade a partir do momento em que se autodeterminava, isto é, tomava para si seu próprio destino, desencadeando uma nova temporalidade[16].

Entretanto, o pronunciamento do constituinte enceta outras indagações. Quais as concepções de nacionalidade presentes nos debates constituintes?Quem deveriam ser os cidadãos brasileiros na concepção dos deputados?Que nação era essa que, segundo o deputado Ferreira França, possuía toda a soberania? Essas questões e outras concernentes estavam desenhadas no horizonte dos debates constituintes desde as

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primeiras sessões. No entanto, foi por ocasião da discussão do artigo 5 do projeto de Constituição, iniciada em 23 de setembro, que o tema monopolizou amplamente os deputados.

O projeto de Constituição[17] que fora elaborado por Antonio Carlos e servia de base para os debates definia, em seu artigo 5, que eram brasileiros todos os homens livres habitantes no Brasil e nele nascidos, os portugueses residentes no Brasil antes de 12 de Outubro de 1822, os escravos alforriados e os estrangeiros sob determinadas condições.

O deputado França, que alertava para a necessidade de preservar-se a distinção entre brasileiros e cidadãos brasileiros, neste sentido observou[18]: “Brasileiro é o que nasce no Brasil, e cidadão brasileiro é aquele que tem direitos cívicos. Os índios que vivem nos bosques são brasileiros, contudo, não são cidadãos brasileiros enquanto não abraçam nossa civilização”. O constituinte baiano Montezuma considerava que, assim como os índios, os negros cativos não eram brasileiros e, portanto, não eram súditos do Império; todavia, seu pronunciamento sugeria a necessidade de atrair os silvícolas à civilização. Percebe-se que a discussão sobre quem eram os cidadãos na sociedade brasileira não incluía, evidentemente, os índios e os escravos. Os primeiros, segundo o deputado baiano, “não entram conosco na família que constitui o Império, podem entrar e devem entrar (...). Estabeleça-se um capítulo que contenha os meios de os chamar e convidar ao nosso grêmio”[19]. Caberia aos legisladores a tarefa de integrar os índios à comunidade nacional.

O deputado Maciel da Costa definiu a concepção de cidadania nos seguintes termos[20]:

“Todos os indivíduos que compõem a grande família brasileira, dos quais se trata neste capítulo, têm direito a serem protegidos pela lei no exercício e gozo daqueles direitos para cuja conservação e segurança os homens se uniram em sociedade: liberdade individual, segurança pessoal, direito ou segurança de propriedade (...), mas nem todos os indivíduos podem ter o gozo e exercício dos direitos chamados políticos, entre os quais tem primeiro lugar o direito de eleição e de elegibilidade para terem parte na legislatura do país, porque esses direitos são de convenção social, e dependem de certas condições, que não se encontram em todos os indivíduos”.

Essa diferenciação que encontra suas lições na Revolução Francesa, especialmente na Constituição de 1791, seria apoiada por diversos deputados. Reforçando o exposto afirmou Araujo Lima[21], “É verdade que nem todos têm igual habilidade para desempenharem os ofícios da sociedade, porque a natureza não deu a todos iguais talentos. Isso, porém, prova que nem todos podem exercer os mesmos direitos”.

Os argumentos acima estavam inspirados em John Locke[22], que via nos proprietários justamente aqueles capazes de uma existência plenamente racional, base fundamental para o exercício de todos os direitos na sociedade civil. Em outras palavras, “a propriedade, para John Locke, simbolizava direitos em sua forma concreta, ou, antes, proporcionava a parte tangível dos poderes e atitudes dos indivíduos (...), seu relacionamento com o mundo concreto da liberdade política garantida por acordos políticos”[23]. Essa percepção é explicitada no pronunciamento de Maciel Costa[24]:

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“Mas quando há indivíduos, os quais, pelo seu estado, como os criados de servir, não têm a livre disposição de sua pessoa ou do seu tempo, como os jornaleiros, podem eles acusar de injusta a sociedade que não os admite a funções incompatíveis com a sua situação?”.

Aqui o jusnaturalismo moderno revela sua paradoxalidade na medida em que os argumentos da igualdade são vertidos na explicitação das diferenças entre os membros da sociedade.

Os debates no plenário demonstravam que a construção da nacionalidade foi uma das questões mais problemáticas tratadas pelo corpo de representantes da nação. Estes, em sua maioria, representavam o pensamento do século diante das contradições expostas de uma sociedade escravocrata e multirracial, recém-saída do jugo colonial. O pensamento político moderno, representado pelos deputados constituintes, deparava-se com questões de extrema complexidade como a dos escravos libertos, dos índios e da imensa população de mestiços e pobres. Sem dúvida, não eram os mesmos impasses dos constituintes norte-americanos e franceses do final do século XVIII. A complexidade das questões, sua especificidade e originalidade impunham a necessidade de um esforço de acomodação legislativa de difícil consecução.

O deputado Almeida Albuquerque fez um longo discurso, no qual considerava a impossibilidade de pretender-se estender a todos os membros da sociedade a prerrogativa de cidadão[25]: “Indivíduos que não têm certa aptidão para o bem geral da sociedade e que não têm qualidades morais, devem gozar das mesmas prerrogativas que aqueles em quem elas concorrem?”. O caráter evidentemente discriminatório do discurso de Almeida Albuquerque e sua preocupação em conter a extensão da cidadania, longe de ocultar, trazia à luz as dificuldades que a temática apresentou para os deputados. Em outro momento de seus discurso ao estabelecer analogias entre o Estado e a família, na qual “nem todos os seus membros gozam das mesmas prerrogativas”, o constituinte exprimia concepções familistas, apanágio de formas de pensamento típicas do patriarcalismo que não diferenciavam o público do privado. Neste caso a clivagem social emergia de argumentos de natureza distinta, ou seja, as tradições patriarcais marcantes na estrutura social brasileira que se faziam representar no plenário.

O problema dos portugueses residentes no Brasil era mais um elemento dentro da complexa discussão que se realizava. O segundo parágrafo do artigo 5 estabelecia que seriam brasileiros os portugueses residentes no Brasil antes de 12 de outubro de 1822. A questão assumiu contornos problemáticos à medida que se desenrolava, ainda, o conflito militar nas províncias do norte. O antilusitanismo exaltado do deputado Montezuma exigia que os portugueses jurassem a futura Constituição como forma de garantir sua adesão ao Brasil, e o deputado Pereira Cunha conclamava os constituintes a uma postura de tolerância e concórdia que, por fim, sagrou-se vitoriosa. O quadro de referências da elaboração da nacionalidade não incluía ainda, a estigmatização do “outro”, este processo que se desencadeará com virulência somente nos anos finais do I Reinado, quando o antilusitanismo se exacerbará

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A data constante do segundo parágrafo do artigo 5, 12 de outubro, foi escolhida por ser aquela a da aclamação do Imperador do Brasil, “pela qual mostrou a nação que, tendo colocado no trono o legítimo sucessor da Monarquia como seu soberano, pronunciava sua emancipação pela declaração de sua independência”[26]. A comissão que elaborou o projeto preteriu a sugestão de adotar-se a data de promulgação da futura constituição como marco referencial. Essa discussão demonstra como o processo de construção da nacionalidade brasileira estava indelevelmente marcado pela força do herói fundacional, representado no Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasil. Percebe-se que mesmo o corpo de representantes da nação preferiu abrir mão de concentrar as prerrogativas da nacionalidade, representadas na promulgação da constituição.

O sexto parágrafo do artigo 5, considerando brasileiros os escravos libertos, eletrizou o plenário, gerando uma série de pronunciamentos que nos permitem compreender as diversas concepções de nação presentes entre os constituintes. A tentativa de estabelecer os marcos da nacionalidade numa sociedade caracterizada pela multiplicidade racial implicava redefinir hierarquias sociais, o que trazia à tona contradições da própria sociedade capazes, inclusive, de provocar manifestações das galerias durante os debates do dia 30 de setembro de 1823[27]. Da mesma forma, a ambigüidade no tratamento diferenciado entre o negro (tratado como mercadoria) e o índio era outro aspecto que os legisladores deveriam harmonizar. Assim sendo, a adesão ao pensamento do século, manifestada por inúmeros deputados, era testada em todos as suas variáveis, limites e antinomias por uma realidade social multirracial que extrapolava os parâmetros teóricos da racionalidade moderna.

Para o deputado Costa Barros[28], os escravos libertos só poderiam ser aceitos como brasileiros se possuíssem um ofício ou emprego: “Negros boçais, sem ofício, nem benefício, não são, no meu entender, dignos dessa honrosa prerrogativa; eu os encaro antes como membros danosos à sociedade a qual vêm servir de peso quando lhe não causam males”. Ferreira França admitia apenas os libertos nascidos no Brasil, enquanto Almeida Albuquerque[29] renovou sua retórica discriminatória com a questão religiosa[30]:

“Se os europeus, nascidos em países civilizados, tendo costumes, boa educação e virtudes, não podem, sem obter carta de naturalização, entrar no gozo dos direitos dos cidadãos brasileiros e lhes é míster que professem a religião cristã, como o escravo africano, destituído de todas as qualidades, pode ser de melhor condição?”

O padre cearense José Martiniano de Alencar[31] chamou a atenção de seus pares para a diferenciação de tratamento entre índios e escravos libertos, sendo que os primeiros não sofreriam nenhum óbice para ingressar na sociedade, bastando integrarem-se à civilização enquanto contra os alforriados erguiam-se inúmeras barreiras. Além disso, considerava que a integração dos escravos libertos era o melhor caminho para combater o comércio de escravos, embora admitisse a necessidade de preservação da escravidão, caso contrário “amorteceríamos a agricultura, um dos principais mananciais de riqueza da nação e abriríamos um foco de desordens na sociedade, introduzindo nela, de repente

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um bando de homens que, saídos do cativeiro mal poderiam guiar-se pelos princípios da bem entendida liberdade”. Não obstante, a argumentação utilitarista e racionalizada, o deputado cearense trouxe à luz o feixe de problemas que o tema em debate continha. Peremptório, Alencar indagou o que seriam dos escravos libertos se lhe negassem a cidadania: “Estrangeiros certamente não; não têm outra pátria que não seja nossa, nem outra religião se não a que professamos; e, portanto, não sei o que hão de ser”. A dúvida do constituinte revelava uma perspectiva aberta que se depreende das relações complexas entre a heterogeneidade social brasileira e os esforços de preenchimento inerentes a constituição da nacionalidade.

Outro aspecto relevante do debate se refere à temeridade explícita de vários deputados que viam a ordem social ameaçada pelas discussões no plenário. Muniz Tavares[32], padre pernambucano remanescente do movimento de 1817, explicitou seus temores: “Eu julgo conveniente que este artigo passe sem discussão. Lembro-me de que alguns discursos dos célebres oradores da Assembléia Constituinte da França produziram os desgraçados sucessos da ilha de São Domingos”. Maciel da Costa[33] conclamou os colegas a deixar de lado a filantropia e priorizar a segurança política e a defesa do Estado, uma vez que os escravos libertos, uma vez equiparados, “aspirarão a avançar mais adiante na escala dos direitos sociais”.

Não foi apenas nas discussões sobre o artigo 5 que muitos constituintes expressaram seu temor diante das possibilidades de sublevação popular. As camadas de baixa renda, os negros alforriados e os escravos pairavam temerariamente fora do recinto da Assembléia Constituinte, multiplicando as preocupações de vários deputados. Costa Barros foi quem exigiu medidas do governo contra o quilombo de Catumbi, embora tenha sido lembrado por outros deputados que a questão não era de sua competência[34], extrapolando o papel dos poderes constituídos. Outros exemplos ilustram as contraditórias relações entre a Assembléia Constituinte e o povo, que, muitas vezes, lotava as galerias para assistir aos debates. Na sessão de vinte de junho de 1823, o deputado Alencar[35], em defesa do povo que se manifestou nas galerias, afirmou: “Eu creio que é bem claro que não houve de parte do povo nenhuma má intenção, ordenou-se-lhe que se calasse, e ele obedeceu. O povo do Rio de Janeiro sempre aqui tem estado com muita atenção”.

Incontornável nessa questão é observar como no processo de construção da nacionalidade vão sendo forjados atributos da nacionalidade que carecem de qualquer fundamento que não seja a elaboração de dispositivos discursivos de nítida intenção estratégica. Neste caso, o atributo pretende servir de moldura e engessamento da sociedade, mas deparava-se com uma heterogeneidade social dinâmica e híbrida. Escravos, libertos, portugueses, índios, mulatos, brancos, cidadãos “ativos” e “passivos”, normalmente expulsos ou abrigados nas palavras “Povo” e “povo”, eram lembrados para, em seguida, serem esquecidos, chamados às praças para aclamações e pronunciamentos e dispersos pelas armas, tão logo reivindicassem algum protagonismo. Ainda, assim, segundo informava o deputado Ferreira da Veiga[36], em 1828, o povo era incorruptível e “os sentimentos da justiça, da decência e da moralidade existiam gravados, nos corações desse povo”.

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Como anotou Leal[37], a grande quantidade de requerimentos e petições sobre os mais diversos assuntos, encaminhados pela população evidenciava o alto grau de legitimidade que a Assembléia Constituinte gozava junto à população. Esse aspecto não escapou aos deputados: já nos primeiros dias de funcionamento da Assembléia Constituinte, foi criada uma comissão com a finalidade de preservar o direito de petição, pois, como afirmou Araújo Lima, “é um direito que todo o governo livre deve proteger com desvelo como um dos mais preciosos de que se pode gozar na sociedade civil e, portanto, não devemos dificultá-lo ao cidadão”[38].

Paradoxalmente, o corpo de representantes da nação, encarregado de estabelecer as normas jurídicas do pacto social, admitia e, simultaneamente, negava a nação. A idéia de que a escravidão deveria ser eliminada gradualmente era defendida por vários deputados, como Antonio Carlos e Silva Lisboa. Entretanto, a inclusão dos escravos libertos nas prerrogativas da cidadania encontrou forte resistência no plenário. Razões de toda ordem foram levantadas: a defesa do Estado, a preservação da “bem entendida liberdade”, os prejuízos à agroexportação, o desejo de que libertos queiram “avançar mais adiante na escala dos direitos sociais” como afirmou Maciel da Costa. Afirmar quem são os cidadãos brasileiros consistiu numa delicada operação, num jogo labiríntico de afirmações e negações que não estavam circunscritas apenas à racionalidade formal-legal. A nacionalidade construía-se nos discursos dos constituintes, naquilo que explicitavam e ocultavam, nas contradições expostas da realidade social que as teorias liberais não conseguiam ordenar. A tensão inerente a esse campo de avoluma quando lembramos que se interpenetravam num mesmo espaço a narrativa da promoção da nacionalidade e o temor de sua apropriação por aqueles a quem se ordenou “que se calassem nas palavras de Alencar”. Em inúmeras oportunidades, constituintes foram advertidos a respeito da tremenda ameaça de subversão social que poderia advir das discussões na Assembléia Constituinte. O silêncio expressado por Maciel da Costa[39] sintetiza na ordem do discurso o paradoxo da representação nacional: ao comentar o perigo dos escravos e libertos que valerem-se de sua “superioridade numérica e consciência de sua força”, interrompeu sua exposição: “Senhores, não avançarei daqui nem só um passo”.

Os constituintes realizavam um esforço de construção da nacionalidade num percurso que, evidentemente, não era linear. Nessa trajetória, as contradições próprias do pensamento político moderno se aviltavam em contato com a especificidade político-social brasileira. Buscavam os representantes deputados construir uma particularidade, uma especificidade histórica, como pré-condição para o ingresso do Brasil no concerto das nações civilizadas. A ambivalência desse processo é evidente: a constituição de um particular como pressuposto para o reconhecimento num processo civilizatório universal. Entretanto, o particularismo era confeccionado a partir de um repertório universalizado, qual seja o pensamento político moderno. No caso brasileiro percebemos que a construção da nacionalidade envolveu uma teia de relações complexas e descontínuas entre tradições e rupturas. Esse aspecto terminava por realçar as ambigüidades inerentes ao processo de construção da nacionalidade.

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A complexidade da realidade social brasileira e os condicionamentos impostos pelo processo político, enquanto componentes de uma mesma configuração impunham, portanto, um direcionamento específico à construção da idéia de nação. A tradição inventada e reinventada como sustentáculo das opções políticas e a heterogeneidade da estrutura social condicionaram sobremaneira o processo e a edificação da comunidade nacional, extrapolando os parâmetros dos conceitos consagrados de Estado e nação.

Uma breve análise da idéia de nação, em seus elementos constitutivos, revela-nos uma problemática fluida na qual a mobilidade do conceito é apenas um dos seus aspectos constitutivos. Para Weber[40], o termo nação significa que “podemos arrancar de certos grupos de homens um sentimento específico de solidariedade frente a outros grupos”. Nação refere-se, portanto, a uma condição de pertencimento, na qual seus membros agregam-se em torno de uma particular identidade cultural, que todos compartilham. O desenvolvimento do moderno Estado Nacional introduziu um novo elemento à idéia de nação: a identificação dos grupos sociais como membros de um Estado-nação e a confecção de uma fidelidade política decorrente.

Entretanto, ao encontro do conceito de nação concorrem inúmeros elementos: idioma, estrutura social, origens históricas, sentimento religioso, etc. O que os atravessa é a pretensão de construção de uma unidade, da qual emana uma espécie de “sujeito coletivo”, com o qual todos os membros se identificam. A comunhão entre esses elementos forjaria um “componente étnico” que, articulado às demais unidades, históricas, lingüísticas e sociais, comporia a idéia de nação. O que parece evidente é o fato de que nenhum desses elementos é indispensável nem suficiente em si mesmo para, isoladamente, responder pelo conceito. A nação, concebida como uma comunidade envolve a idéia de que seus membros acreditam em sua civilização, isto é, em seus usos, sua indústria, em sua arte, seu folclore, ou seja, em sua cultura. Conforme afirmava Marcel Mauss[41],

“una nacíón cre en su civilización, en sus usos, sus artes industriales y en sus bellas artes. Riene el fetichismo de su literatura, de su plástica, de su ciencia, de su técnica, de su moral, de su tradición, en su palabra, de su caráter (...) En suma, una nación completa es una sociedad integrada suficientemente, com un poder central democrático en algún grado, y poseyendo en todos los casos la nación de soberania nacional y cuyas fronteiras, en general, son las de una raza, de una civilización, de una lengua, de una moral, en una palabra, las fronteras de un caráter nacional”.

Todo o esforço no sentido de construir um conceito de nação implica a necessidade de recorrer-se a todas as noções possíveis, daí o caráter indeterminado que o compõe. Como anotou Weber[42],

“As razões para que um grupo acredite representar uma nação variam muito, tal como a conduta empírica que na realidade resulta da filiação ou da falta de filiação a uma nação. (...) o sentimento nacional relaciona-se de forma variada com as associações políticas e a “idéia” de nação pode tornar-se antagônica no âmbito empírico de certas associações políticas”.

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Diante desse indeterminismo, a tentativa de conceituação de nação é, portanto, o esforço de erigir um dispositivo discursivo, vazado pelo princípio da unidade. Essa unidade vale-se de três conceitos primordiais “a posse comum de um rico legado de memórias, o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisa, a herança que se recebeu”[43].

A idéia de nação e, portanto, a construção da nacionalidade equivale à busca incessante de uma homogeneidade essencial, que está associada à superioridade e à exclusividade dos valores culturais da comunidade a que se destina. A filiação dos membros de um grupo social representa, igualmente, sua mobilização na preservação de um espólio cultural, confeccionando uma linha de continuidade entre passado e presente. Essas considerações reforçam a dimensão coletiva e o componente de fidelidade contido na idéia de nação, explicitando seu conteúdo político.

Em busca de um conceito, Weber[44] assim definiu nação: “nação é uma comunidade de sentimento que se manifesta adequadamente num Estado próprio; daí, uma nação é uma comunidade que, normalmente, tende a produzir um Estado próprio”. Essa organização estatal, por sua vez, assume o papel de mantenedor da unidade, superando o conjunto de lealdades e identidades locais e regionais em favor de uma referência superior à nação. A razão de Estado, ao forjar a noção de filiação nacional, fundiu à esfera político-institucional valores culturais que engendravam uma identidade comum, transcendendo-os. O sentimento de fidelidade, que a idéia de nação suscitava, foi instrumentalizado pelo Estado que passa a ser identificado com a nação.

O processo de transformação da idéia de nação está integrado àquilo que Maltez[45] denominou “sementes da estadualidade”. A primeira seria a separação entre público e privado, a distinção entre espaço doméstico e espaço político, sendo que este último incorpora totalmente a soberania. A segunda semente de estadualidade “está na emergência da abstração política, no fato de as pessoas orientarem a sua atividade conforme a representação mental que fazem sobre aquilo que o político deve ser. Nesse caso, admite-se que os homens, em vez de obedecerem a outros homens, devem obedecer, todos, governantes e governados, a uma abstração, entendida como transcendente. Eis que surge o Estado-razão”. Por conseguinte, a noção de um sentimento nacional comum foi absorvida pela emergência da estadualidade que perseguia a construção de uma unidade insuperável.

Todavia, o processo de “politização” da nação não é exclusivamente estatal. Cabe ressaltar que a noção de pertencimento, contida na idéia de nação, impõe a crença na insubstituibilidade dos valores culturais, o que termina por fornecer um impulso unificatório ao sentimento nacional. Entretanto, como anotou Hall[46], a idéia de uma nação como uma identidade cultural unificada não corresponde à realidade: “As identidades culturais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres dos jogos de poder, das contradições e divisões internas, de lealdades e diferenças sobrepostas”. A nacionalidade representa, portanto, um esforço permanente e constante

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dos membros de uma sociedade para construir uma unidade capaz de suplantar tensões e transcender diferenças. O repertório de argumentos vibrados nos debates constituintes exprimia justamente esse esforço de inclusão/exclusão que participava na construção da unidade nacional.

III

Nos parágrafos precedentes, buscamos discutir os conceitos de nação e nacionalidade e suas contradições intrínsecas. Os debates acerca do artigo 5, no plenário da Assembléia Constituinte, representaram o momento privilegiado em que os deputados exercitaram suas concepções de nação e nacionalidade. Em seus pronunciamentos, forneceram um ideário diversificado, não-consensual, eivado das idéias do seu tempo e da compreensão que tinham da sociedade brasileira e do processo político. Evidentemente, o processo que agrega, tenciona e gerencia elementos que venham a compor uma idéia de nação não se restringe exclusivamente, ao campo da política institucional[47]. As discussões travadas pelos constituintes representavam um momento específico, no qual se moldavam alguns desses elementos no processo de confecção da nacionalidade brasileira.

Observamos que, para os deputados Ferreira França e Montezuma, o índio não era um cidadão, embora, mediante a criação de uma legislação apropriada, os silvícolas pudessem, perfeitamente, ser integrados à civilização. Essa estratégia está perfeitamente adequada à cosmovisão de muitos constituintes que, consoante o pensamento do século, enxergavam poderes exógenos nas leis, qual seja, a capacidade de dirimir diferenças sociais. Partilhavam de uma espécie de “otimismo jurídico”, no qual o legislador manejava as ferramentas legais num movimento de positivação. Como observou De Cicco[48], neste contexto, “o legislador deve criar por si fundamentos da própria decisão, deve realizar sua própria legitimação em uma situação que é aberta e indeterminada, seja em vista das possibilidades de consenso, seja em vista dos resultados buscados”. Essa concepção era compartilhada por Montezuma[49], que não admitia o desprezo aos índios, mas via na legislação “os necessários meios de chamá-los à civilização”, concluindo: “Legislemos para eles, porém nesse sentido: ponhamos um capítulo especial para isso em nossa constituição”.

Foi o mesmo Montezuma, mulato e baiano que observou outro aspecto importante da questão da nacionalidade: os índios deveriam ser integrados no seio da sociedade pelo “fato de nascerem conosco” e partilharem a mesma “moral universal”. Montezuma elaborava uma “lógica do pertencimento”, na qual os índios seriam integrados e para a qual invocava fundamentos gerais de justiça e moral próprios do pensamento do século. Ao mesmo tempo, lançava o princípio do mito fundacional na figura do índio, fornecendo ao processo de construção da nacionalidade alguns atributos essenciais: a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na atemporalidade.

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O pensamento político brasileiro, inserido no amplo movimento civilizatório da modernidade comungava da nova etapa de humanização da natureza que a razão moderna engendrara. A idéia de nação começou a formar-se a partir do conceito de “povo” (ou “Povo”, como se grafava à época) e, mais precisamente, quando se acentuou neste conceito, a importância dos fatores naturais e tradicionais em detrimento de princípios de adesão voluntários. A nação seria constituída por vínculos naturais que estariam situados para além das vontades individuais: origens históricas, raça, religião, língua, etc. e tantos outros elementos que poderiam ser agrupados sob o nome de tradição. O núcleo semântico fundamental da nação estava, portanto, atrelado à suposta existência de laços naturais profundos entre as comunidades capazes de justificar um arcabouço de tradições comuns ou culturais. A nação se formulava como uma reivindicação dessas identificações perenes e se apresentava como “destino” que antecedia e pairava sobre os indivíduos, ao qual estes não podiam subtrair-se sem incorrer em traição.

O esforço em busca da construção de uma unidade nacional pode ser perfeitamente identificado no processo de “tupinização” de nomes, que acompanhou a independência do Brasil, quando se tornaram comuns as trocas de nomes de batismo. Francisco Gomes Brandão, futuro visconde de Jequitinhonha, formado em Filosofia e Direito pela Universidade de Coimbra, passou a chamar-se Francisco Gê Acaiaba de Montezuma. O deputado constituinte assumia-se como um paladino, genuíno edificador da nacionalidade: Gê é sinônimo de tapuia; Acaiaba vem do tupi, e Montezuma foi o infeliz imperador asteca supliciado por Cortez na conquista do México. Da mesma forma, Cipriano Barata, eleito para a Assembléia Constituinte em 1823, mas que não assumiu o cargo, primava pela indumentária nativista: só trajava roupas de genuíno algodão brasileiro e cobria-se com um chapéu de palha de palmeira de carnaúba. Uma estética nacionalista de acentos hiperbólicos atingia hábitos de consumo e até mesmo os penteados de cabelo. Percebe-se como para além das paredes da Assembléia Constituinte, o processo de construção da nacionalidade ampliava-se. Inúmeros outros exemplos de nacionalismo invadiram os hábitos sociais e a literatura da época. Como anotou Luiz Felipe de Alencastro[50]: “O nacionalismo brasileiro desenvolveu uma maneira de ser, um comportamento individual, privado que tinha um significado público de afirmação da singularidade nacional”.

Esse movimento de busca das origens autóctones e, ao mesmo tempo, de chamamento do índio à civilização representou um dos primeiros esforços no processo de individualização da cultura brasileira. Tratava-se de integrar, em termos ideais, uma sociedade altamente hierarquizada, atenuando suas hierarquias em favor de uma totalidade harmônica. Nascia a “fábula das três raças”, um sistema explicativo que, segundo Da Matta[51] “possibilita visualizar nossa sociedade como algo singular – especificidade que nos é presenteada pelo encontro harmonioso das três raças”. Além da concepção inequívoca do ideal de unidade, o mito das três raças fornece “as bases de um projeto político e social para o brasileiro por meio da tese de branqueamento como alvo a ser buscado.

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Inúmeros deputados defenderam a integração de índios e escravos libertos à condição de cidadãos: Montezuma, José Martiniano de Alencar, Henriques de Resende e Carneiro da Cunha, entre outros. Naturalmente, a referida integração dar-se-ia sob a égide da superioridade da cultura branca à qual as demais etnias se submeteriam. Para Henriques de Resende[52], a prudência impunha a necessidade de integrar os escravos libertos, eliminando a aversão destes para com os antigos senhores: “era necessário fazer com eles tivessem interesse em ligar-se a nós pelos foros de cidadão e neutralizar assim o veneno”. Da mesma forma, Carneiro da Cunha[53] via nos libertos “a presunção do bom comportamento e da atividade, porque cumpriu com suas obrigações e adquiriu com seu trabalho com que comprasse a liberdade, acho que por isso que tais homens bem merecem o foro de cidadãos”. A evidente preocupação dos constituintes em implementar um projeto unificador não era desprovida de intensas temeridades sociais o que explica a ênfase nos atributos de obediência contidos nas lições da nacionalidade constantemente recitadas em diversos contextos[54]. Era o que lecionava por exemplo, Evaristo da Veiga na aguda crise de 1831[55]: “A Constituição seja o nosso norte; com ela tudo venceremos: prudência, concidadãos, moderação, ordem, respeito a todos os nossos chefes”.

A construção da nacionalidade implicava uma busca no sentido de justificar, racionalizar e legitimar diferenças internas. Esse esforço contínuo coaduna-se com a necessidade de “conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade, sem que se crie um plano para sua transformação profunda”, como anotou Da Matta[56]. Residindo no ideal da unidade o fulcro da nacionalidade pairava sobranceiro sobre as contradições sociais celebrando uma nova temporalidade.

Anotamos, anteriormente, que a busca da nacionalidade implicava a construção de uma particularidade como forma de afirmação perante outras comunidades políticas alienígenas. O amplo período que envolve o processo de independência e a construção do Estado-nação foi, evidentemente, o momento histórico privilegiado no qual a procura pela unidade nacional foi a característica essencial da ação dos constituintes. A nação se constituía dentro de uma conjuntura política flutuante, atravessada pelo temor da fragmentação territorial e da sublevação popular. Como observou Da Matta:

“O movimento de independência provocou toda uma reorientação dos sistemas de hierarquias vigentes no Brasil, fazendo com que a estrutura de poder tivesse como ponto final a Corte do Rio de Janeiro em vez de se prolongar para além-mar, na direção de Lisboa, ponto do qual, anteriormente, partiam todas as ordens e todos os favores”.

A construção desse novo centro e sua instabilidade intrínseca não escapou à percepção dos deputados constituintes, expressando-se inúmeras num jogo dialógico de inclusão e exclusão.

Todavia esse esforço deparava-se com a pluralidade do espaço moderno, no qual a delimitação dos campos de exclusão e inclusão da nacionalidade tornavam-se

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problemáticos perante as manobras totalizadoras da nacionalidade. Nesse contexto a “comunidade de sentimento” weberiana identificava-se de forma ambivalente, na comunhão e na discriminação, uma vez que o discurso da nacionalidade implicava uma forma hesitante de “um viver no outro”. A confecção do espaço público moderno no contexto histórico da independência brasileira evidenciou essa configuração social e política.

Os posicionamentos discriminatórios de alguns deputados devem ser entendidos à luz de seu tempo. Em torno da Assembléia Constituinte vibrava, febrilmente, a maior concentração urbana de escravos do mundo, desde o final do Império Romano. A tensão racial, inerente à existência do escravismo, impregnava profundamente o cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar e os comportamentos políticos. Nesse contexto, os pronunciamentos dos constituintes revelavam, como observou Alencastro[57], um compromisso com o futuro: “O Império retoma e reconstrói a escravidão no quadro do direito moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre a contemporaneidade”. Dessa forma, ao poder público cabia a tarefa de preservar a ordem privada escravista, reacomodando os sistemas de hierarquias sociais à nova situação política, como observou, anteriormente, Da Matta.

A manifestação de um pensamento discricionário, expressado por inúmeros deputados no plenário da Assembléia Constituinte, não pode ser entendida como simples sintoma de “atraso”, ausência dos cânones do pensamento moderno ou expressão de uma “modernidade inacabada”. A exclusão dos índios e dos escravos libertos, invocada por vários deputados, representava a expressão, no plano político, da ordem privada escravista e patriarcal, característica estrutural da formação social brasileira. Não obstante o alerta de Montezuma,[58] que lembrava seus colegas que “não tratamos aqui senão dos que fazem a sociedade brasileira, falamos aqui dos súditos do Império do Brasil”, o patriarcalismo característico das relações sociais introduziu-se no plenário, expressando-se no nível das relações político- institucionais.

Apesar da introdução do pensamento moderno já nas últimas décadas do século XVIII e da modernização encetada, a partir de 1808, com a presença da família real, a família patriarcal mantinha-se, segundo Gilberto Freyre[59], como uma “dessas grandes forças permanentes. Em torno dela é que os principais acontecimentos brasileiros giraram durante quatro séculos, e não em torno dos reis ou dos bispos, de chefes de Estado”. O poder do complexo patriarcal, tutelador e privatista, marcou profundamente nossa formação social à medida que a constante familialista atuou no processo civilizador, na expansão econômica e na preservação da estabilidade. O processo de emancipação política abriu novas instâncias sociopolíticas, no qual o poder patriarcal teve oportunidade de atuar. No plenário da Assembléia Constituinte, a ordem privada encontrava-se com o pensamento político moderno.

O período histórico em estudo é considerado por Gilberto Freyre como uma transição: a urbanização do patriarcalismo, seja pela ação do Estado, que reduziu o poder dos

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latifundiários, ou pelo processo de europeização das gerações mais novas de filhos de senhores de engenho, “desertores de uma aristocracia cujo gênero de vida, cujo estilo de política, cuja moral, cujo sentido de justiça já não se conciliava com seus gostos e estilos de bacharéis, médicos e doutores europeizados...”[60]. No âmbito dessa lenta transformação, não ocorreu a total desestruturação do tradicional pelo moderno, o triunfo da modernidade sobre o arcaísmo patriarcal. O que é observável, segundo Freyre, é o equilíbrio entre as duas tendências – a coletivista e a individualista. O processo caminhou no sentido do amalgamento das tendências, e não da simples oposição, diferenciação e, por fim, da exclusão de uma delas. Esse aspecto é relevante para a compreensão da formulação do pensamento político que se elaborava no interior da dinâmica social brasileira.

O complexo patriarcal, cujas bases socioeconômicas eram o latifúndio, a monocultora, a escravidão do negro e a dependência do agregado, tinham como fundamentação jurídica o conceito de pátrio poder e de família herdados do período medieval, que dava ao pai aquilo que De Cicca[61] denominou uma “situação subjetiva” como chefe “sobre sua mulher, seus filhos, seus dependentes, e, é claro, sobre seus escravos, mas não como indivíduo isolado (no que diferia do subjetivismo moderno), e sim como expressão máxima do grupo familiar”. Na estrutura social brasileira o que ocorria, de região para região, eram apenas diferenças de intensidade, e não de qualidade em relação ao poder patriarcal que não diz respeito apenas a figura de um pátrio-potestas mas à complexidade das relações que o envolvem[62]. Como observou Gauer[63] “a sociedade brasileira movimentava-se dentro de um quadro de valores onde o relacional sobrepunha-se ao individual; a família constituía-se no centro de todas as relações; o poder patriarcal sobrepunha-se ao Estado e o clientelismo mediava o conjunto de relações sociais”

O processo de construção do Estado-nação não escaparia dessas injunções sociais. Supor o contrário significaria dicotomizar a dinâmica sociopolítica em andamento, opondo Estado e sociedade. Nesse sentido, as referências ao patriarcalismo são fundamentais. O poder patriarcal plasmou-se conforme as manifestações do pensamento do século, integrando-se ao seu repertório e fornecendo-lhe seus referenciais de legitimidade e autoridade e delimitando os parâmetros dos pactos políticos. Em outro ponto dessa configuração, o pensamento político moderno ambicionava integrar o Brasil aos paradigmas da modernidade européia. Ambas as manifestações estavam presentes no processo de construção do Estado-nação, interagindo e produzindo uma nova síntese, conciliatória e sincrética.

A heterogeneidade da sociedade brasileira estava presente nas discussões envolvendo a elevação dos índios e escravos libertos à condição de cidadãos brasileiros. Os posicionamentos dos deputados revelavam as relações complexas entre tradição e modernidade no seio da Assembléia Constituinte. O liame patriarcal revelava-se na defesa da religião, da ordem econômica escravocrata e, sobretudo no temor diante do perigo de uma sublevação popular. Nesse sentido, invocava o silêncio do plenário, o

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mesmo silêncio da “estabilidade familial, que, afirmando-se em casas-grandes rurais, culminou em sobrados rurais e urbanos, mas sempre patriarcais”, conforme anotou Freyre[64].

No mesmo espaço institucional o pensamento político moderno perseguia a racionalização das diferenças sociais dentro do processo de construção da nacionalidade. O esforço implicava o discurso, como definiu Silva Lisboa[65]: “Quando se trata de Causa Liberal não é possível guardar silêncio”. O Visconde de Cairu admitia como a maioria do plenário, a distinção entre direitos políticos (regulados pela propriedade) e cívicos. No entanto, posicionava-se pela inclusão dos escravos libertos na cidadania, isto é, no gozo dos direitos cívicos. Assim sendo, o deputado admoestava seus pares, indagando: “Sr. Presidente: em tempo de Liberalismo será a legislatura menos eqüitativa que no tempo do despotismo?”. Expressando uma cosmovisão tipicamente moderna, Silva Lisboa não partilhava o temor de muitos deputados, face à discussão de temas que poderiam subverter a ordem social. Acreditava nas capacidades superiores da racionalidade, pois “não há risco em ver a verdade combater com a falsidade, e aquela prevalecerá, sendo o duelo sem padrinhos”. A expressão usada por Silva Lisboa – “sem padrinhos” - é emblemática: oferece a força da razão moderna contra a tradição. Ainda nessa perspectiva, concebia a política como uma ação no sentido do aprimoramento social: “A política, que não pode tirar tais desigualdades, deve aproveitar os elementos que acha para nossa regeneração, mas não acrescentar novas desigualdades”.

Finalmente, após oito sessões compreendidas entre 23 de setembro e 2 de outubro, aprovou-se o artigo 5 em suas linhas fundamentais, inclusive com a inclusão dos escravos libertos que adquirissem sua liberdade por qualquer título legítimo. A aprovação dos termos do artigo representou a vitória daqueles que preconizavam a necessidade de integração dos escravos libertos como forma de atenuar diferenças sociais que poderiam comprometer a estabilidade social e política do país. Esse posicionamento foi defendido por Silva Lisboa em seu célebre pronunciamento referido anteriormente, bem como por Henriques de Rezende, Carneiro da Cunha, José Martiniano de Alencar e Antonio Carlos, entre outros. Os termos do artigo constitucional traduzem no plano da juridificação um elemento significativo da cultura brasileira: o pluralismo, a adesão às soluções conciliatórias, a capacidade de integrar sem eliminar os conflitos[66]. Segundo Gauer[67]: “Nosso sincretismo representa a incorporação do conflito, criando um modelo particular em nosso sistema relacional – cultura sincrética – que configura nossa lógica social, em outras palavras, nosso sistema de relações”. O produto híbrido daí resultante propiciou a preservação da ordem escravocrata, ordem privada captada pelo sistema jurídico do Estado, paralelamente à existência de uma significativa população de escravos libertos que se tornavam cidadãos brasileiros, embora excluídos do exercício de direitos políticos. Consubstanciava-se a persistência da tradição hierarquizante da sociedade brasileira, amalgamada no idéario do pensamento político moderno.

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Considerações Finais

A construção da nacionalidade, no âmbito da Assembléia Constituinte, deve ser compreendida como parte do processo coletivo através do qual a sociedade brasileira redefiniu as hierarquias sociais, momentaneamente abaladas pela emancipação política. Não representou uma ação exclusivamente político-institucional, definida em nível de Estado pela astúcia conservadora de uma minoria de políticos ilustrados no pensamento do século. As soluções adotadas na votação do artigo 5 foram resultantes nascidas da interação entre processos político-sociais, nos quais o tradicional e o moderno amalgamaram-se na confecção de uma síntese única e exclusiva, expressão da plasticidade social e política brasileira.

Os insistentes apelos à brandura e à docilidade do brasileiro, como vimos anteriormente, encerravam uma pretensão em erigir-se uma identidade nacional, justamente numa conjuntura marcada por sucessivos rompimentos. As idéias políticas, que se formulavam naquele período estavam, igualmente, impregnadas pela urgente elaboração dessa “essência identitária”. O caráter obsessivo dessa procura devia-se, não apenas às demandas inerentes ao quadro político, mas principalmente à heterogeneidade social brasileira, marcada pelas relações escravistas. Tratava-se, portanto, de um processo precário: a construção da unidade enfrentava o desafio de introduzir uma domesticação dessas alteridades sociais e políticas.

O recurso recorrente à violência representou o procedimento usual no processo de fixação das identidades nacionais. No entanto, o emprego de instrumentos repressivos implicava a inoculação de uma “culpa” no seio da nacionalidade, por meio do qual o “esquecido” passou a hospedar-se, desajeitadamente na identidade nacional, numa condição de alteridade cerceada e temida pelos poderes do Estado. O pensamento político brasileiro em sua vertente hegemônica, vinculada ao constitucionalismo monárquico, partilhava dessa companhia. Suas seqüelas mais evidentes eram o tabu dos objetos, expresso no exercício dos silêncios e a paradoxalidade entre a eloqüência catastrofista e a invocação constante de um consenso social.

O espetáculo de um passado recente de desdobrara naqueles debates reverberando nos pronunciamentos e silêncios dos constituintes. Em seu relato acerca do cortejo que acompanhou a aclamação de D. Pedro I, informava Sousa:

“A saída do Campo de Santana fora organizada com minúcias que devem ser notadas. Abria o cortejo a Guarda de Honra, composta de paulistas e fluminenses, no seu belo uniforme de inspiração austríaca; vinham depois dois exploradores e oito soldados da mesma guarda, com batedores; seguiam-se três moços de estribeira, “um índio, outro mulato e o terceiro negro”.

O espetáculo criado por iniciativa de José Bonifácio exercitava metaforicamente, o ideal da unidade social. Nascia a “fábula das três raças” um sistema explicativo de

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longa duração capaz de lançar as bases fundadoras de um projeto social e político nacional. Ao lado da realocação do patrimonialismo que a aclamação de D. Pedro I fornecia, pela primeira vez se apresentava no espaço público uma metáfora da nação nos marcos do pensamento do século. As três etnias, enfileiradas no cortejo, sugeriam a celebração do ideal político moderno: a união entre Estado e nação

[1] SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Obra Política. Senado Federal, 1973, V. II p. 85.

[2] Naquela conjuntura D. Pedro ostentava o título de Defensor e Protetor Perpétuo do Brasil, concedido pelo Senado da Câmara fluminense. Essa reedição de Cronwell seria concedida na data natalícia de D. João VI em 13 de maio e evidenciava uma característica do processo de independência: os primeiros atos da entronização da monarquia nos trópicos.

[3] Atas do Conselho de Estado Senado Federal, 1972. Organização José Honório Rodrigues. V. I, p. 12.

[4] Ibidem, p. 12

[5] SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit. V. I, p. 87-88.

[6] MORSE, Richard. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, p. 74

[7] RODRIGUES, José Honório. Op. cit. V. I, p. 21.

[8] A hetorogeneidade social da Assembléia Constituinte já coloca por terra teses mais tradicionais da nossa historiografia que apontam sempre para a hegemonia política absoluta dos “latifundiários” no processo de independência brasileira.

[9] Diário da Assembléia Geral e Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Brasília: Senado Federal. V. I, p. 7. A partir dessa citação usaremos a abreviatura D. A. G. C. L. I. B para nos referirmos a fonte

[10]D. A. G. C. L. I. B. v. II., p. 722.

[11]D. A. G. C. L. I. B. v. III., p. 230.

[12]HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP & A, 1997, p. 56 – 57.

[13] O juramento de D. Pedro I por ocasião da aclamação é expressivo; “Eu, Pedro I pela graça de Deus e unânime vontade do povo, feito Imperador do Brasil e seu Defensor Perpétuo, juro observar e manter a religião Católica Apostólica Romana. Juro observar e fazer observar, constitucionalmente as leis do Império. Juro defender e conservar com todas as minhas forças, a sua integridade. Assim Deus me ajude, e estes Santos Evangelhos”. RODRIGUES, José Honório. Op. cit. v. I, p. 270.

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[14]GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil. A Contribuição dos Egressos de Coimbra. Curitiba, Editora Juruá, 2001, p. 255.

[15] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. II., p. 477.

[16] Locke afirmava que “o verdadeiro ser das coisas” é sua identidade, sua inalterabilidade ao longo do tempo o que implica afirmar que existir implica a exclusão de outros desse mesmo tempo e lugar, afinal “uma coisa não pode ter dois começos de existência, nem duas coisas um único começo”. A identidade, “o mesmo consigo”, nas palavras do filósofo inglês, se individualiza a partir do seu começo no tempo e num lugar. As implicações e desdobramentos para a construção dos conceitos como identidade política são notórios.

[17] D.A.G.C.L.I.B. Op cit., v. II., p. 689.

[18] Ibid., v. III., p. 90.

[19] Ibid., v. III., p. 113.

[20] Ibid., v. III., p. 91.

[21] Ibid., v. III p. 106.

[22] LOCKE, John. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983, Cap. 5. p.

[23] LASLETT, Peter. “A Teoria Social e Política dos “Dois Tratados Sobre o Governo”. SOUZA, Maria Teresa Sadek R. de (org.). Pensamento Político Clássico. São Paulo: T.A. Queiroz Editora, 1980, p.217.

[24] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. III., p. 91.

[25] Ibid., v. III., p. 111.

[26] Ibid., v. III., p. 119.

[27] Ibid., v. III., p. 133.

[28] Ibid., v. III., p. 130.

[29] Ibid., v. III., p. 134.

[30] Sempre é oportuno lembrar que o pensamento político moderno desenvolveu-se no Brasil sem romper com a religiosidade católica, caracterizando mais uma vez, em sua dinâmica política, estratatégias de conciliação e não de exclusão. Nos debates constituintes esse tema pertencia a “ordem dos consensos” e raras vezes foi trazido à baila. O projeto de Antonio Carlos e a Carta Outorgada de 1824 consagrariam o catolicismo como religião oficial e a união entre o Estado Monárquico e a Igreja Católica.

[31] Ibid., v. III., p. 133.

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[32] Ibid., v. III., p. 133.

[33] Ibid., v. III. p. 137.

[34] Ibid., v. III. p. 58.

[35] Ibid., v. I. p. 262.- 263.

[36] RODRIGUES, José Honório. Op. cit. V. III, T. I, p. 192.

[37] LEAL, Hamilton. História das Instituições Políticas do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,1962, p. 100-101.

[38] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. I., p. 76.

[39] Ibid., v. III. p. 137.

[40] WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. H.H. Gerth e C. Wright Mills (org.). Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 202

[41] MAUSS, Marcel. Sociedad y Ciencias Sociales. Obras III. Barcelona: Barral Editores S. A., 1970, p. 300-305.

[42] WEBER. Op. cit., p. 205.

[43] HALL. Op. cit., p. 63.

[44] WEBER. Op. cit., p. 207.

[45] MALTEZ, José Adelino. Princípios de Ciência Política. Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Políticas. s/d., p. 344.

[46] HALL. Op. cit., p. 70.

[47] RODRIGUES, Celso. Razão e Subjetividade na Construção do Pensamento Político Brasileiro. Poro Alegre: Tese de Doutorado em História. Curso de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, 2002.

[48] De CICCO, Claudio. Direito: Tradição e Modernidade. São Paulo: Ícone Editora, 1993, p. 74.

[49] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. III., p. 90.

[50] ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Vida Privada e Ordem Privada no Império”. In: NOVAIS, Fernando A (Dir.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. v. II., p. 60.

[51] Da MATTA, Roberto. Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Vozes, 1984, p. 69.

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[52] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. III., p. 139.

[53] Ibid., v. III., p. 134.

[54] A crença de que escravos, notadamente aqueles oriundos do Gabão, praticassem antropofagia era amplamente disseminada no início do século XIX, segundo observou Koster. O pânico e a insegurança estimulavam, igualmente, outras crenças como o medo, entre os senhores, da possibilidade de envenemento e, até mesmo, o risco de contrair moléstias terríveis decorrentes de mordidas de escravos. Sobre o tema ver MATTOSO, Katia M. de Queiróz. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988, p. 156-157.

[55] SOUSA, Octávio Tarquínio de. Evaristo da Veiga. Belo Horizonte. Editora Itatiaia, 1988, p. 101

[56] Da MATTA. Op. cit., p. 68.

[57] ALENCASTRO. Op. cit., v. II., p. 17.

[58] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. III., p. 90.

[59] FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento Urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, T. I., p. 81.

[60] FREYRE. Op. cit., 1968, p. 18.

[61] De CICCA. Op. cit., p. 73.

[62] A problemática do patriarcalismo ajuda a compreender outras expressões do pensamento político brasileiro tais como a ênfase nas relações patrimoniais, a indeferenciação entre público e privado, a estadualidade marcada pelo personalismo e inclusive, a conciliação com a religiosidade católica, referida anteriormente.

[63] GAUER, Ruth Maria Chittó. “A Contribuição Portuguesa para a Construção da Sociedade Brasileira”. In: Revista de História das Idéias. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra: 1997, v. XIX., p. 16.

[64] FREYRE. Op. cit., 1968, p. 14.

[65] D. A. G. C. L. I. B. Op. cit., v. III., p. 134 a 136.

[66] Na elaboração do Código Criminal de 1830 observamos um processo semelhante. Ver: RODRIGUES, Celso. O Tempo do Direito: patrimonialismo e modernidade na ordem jurídica e política brasileira. Revista Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, 2007, p. 91-105.

[67] GAUER. Op. cit., v. 19., 1997, p. 19-20.