inclusão social da pessoa com deficiencia- medidas que fazem a diferença

310

Click here to load reader

Upload: carollinebittar

Post on 12-Nov-2015

115 views

Category:

Documents


20 download

DESCRIPTION

"Das definições, conceitos e aspectos da legislação aos ricos relatos e experiências que têm muito a ensinar, esta obra revela, com dignidade, os obstáculos que a pessoa com deficiência enfrenta face aos direitos básicos de cidadania."

TRANSCRIPT

  • 1Incluso social da pessoa com deficincia:

    medidas que fazem a diferena

    1 edio

    Rio de Janeiro - 2008

    IBDD

  • Coordenao e edio IBDD

    Reviso tcnica IBDD

    EntrevistasMarcos S Correa e Ana Cludia Monteiro

    Produo editorialCatarina dAmaral

    Design e editorao eletrnicaAntonia de ThuinAntonia Costa

    CapaCarolina Vital (RV Comunicao)

    Fotografias Cintia Paiva

    ImpressoGrfica Santa Marta

    IBDD Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficincia

    R. Artur Bernardes, 26 loja A Catete, Rio de Janeiro, RJ 22220-070 tel/ fax (21) 3235 9290 email: [email protected] www.ibdd.org.br

    Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficincia.

    Incluso social da pessoa com deficincia: medidas que fazem a diferena - Rio de Janeiro: IBDD, 2008

    312 p.; 20 cm

    1. Deficientes fsicos. 2. Mercado de trabalho. 3. Esportes. 4. Responsabilidade social. 5. Excluso social. I. Ttulo.

  • 3ndice

    PrefcioIpiranga .......................................................................................... 5IBDD .............................................................................................11

    I. Incluso social da pessoa com deficincia ......................17

    O que o IBDD ............................................................... 19

    Pequena histria da deficincia: do quase-divino ao demasiadamente humano ................ 25

    Por um novo compromisso social .................................. 33

    Entrevistas e perfis.......................................................... 57

    II. Medidas que fazem a diferena ....................................105

    Legislao .......................................................................107

    Acessibilidade ................................................................ 245

    Listas de verificao CREA ......................................... 269

    Relacionamento ............................................................. 295

    Glossrio........................................................................ 303

  • 5Ipiranga

  • 7Ao iniciar a leitura deste livro voc, leitor, estar abrindo as portas para a disseminao de informaes valiosas que vo ajudar a estabelecer um novo paradigma no entendimento sobre a questo das pessoas com deficincia.

    Das definies conceituais e aspectos da legislao aos ricos relatos e experincias de cidados que tm muito a ensinar, esta obra revela, com dignidade, os obstculos que a pessoa com deficincia enfrenta face aos direitos bsicos de cidadania.

    Este livro tem ainda a importante funo de levar o conheci-mento para alm das esferas dos especialistas, contribuindo para mostrar o quanto precisa ser feito para que se alcance uma sociedade mais justa, em que oportunidades possam ser oferecidas em igualdade de condies a todos os seus integrantes.

    As empresas tm potencial para agir em favor da sociedade.

  • E a Ipiranga, maior distribuidora privada de combustveis do Brasil, conduz seus negcios baseada no compromisso con-tnuo com a qualidade de vida atual e das geraes futuras. Empenho que se expressa por meio de seu comportamento tico, comprometido com o desenvolvimento econmico, social e ambiental das comunidades em que atua.

    Ao unir-se ao Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficincia IBDD no esforo de divulgar o conhecimento reunido na obra Incluso social da pessoa com deficincia: medidas que fazem a diferena, a Ipiranga d mais uma de-monstrao de atitude responsvel em relao sociedade.

    Com aes de divulgao e com um programa prprio de contratao de pessoas com deficincia para seus quadros funcionais, a Ipiranga fortalece sua atitude em prol da inclu-so do deficiente no mercado de trabalho. Esse conjunto de medidas, alm de contribuir para o aprimoramento profissional da pessoa com deficincia, fortalece a sua auto-estima e a confiana em seu potencial para realizar, produzir e criar.

    Com um trabalho de sociabilidade, respeito e cidadania, a Ipiranga faz florescer a troca de conhecimentos que sero adquiridos por meio da incluso social.

    Mudar uma realidade um projeto de longo prazo, mas poss-vel. E est em cada pessoa, em cada brasileiro, em cada cida-do que faz parte desse crculo, a responsabilidade de ajudar a resgatar a autoconfiana e de perpetuar, para o deficiente ou excludo, a vontade de vencer e de superar obstculos em um ambiente externo famlia. passando ao que a pessoa

  • 9com deficincia conquistar definitivamente o seu lugar na sociedade em que vive. Trata-se de um desafio que merece a ateno e a contribuio de todos.

    Este livro um passo frente. Cabe a cada um de ns contri-buir com nossos prprios passos para realizar o ideal de um mundo mais justo e igualitrio para todos os seus cidados.

    Leocadio Antunes FilhoDiretor Superintendente

  • 11

    IBDD

  • 13

    Responsabilidade social e emprego de pessoas com deficincia

    Um dos mais interessantes desafios de hoje para as empresas brasileiras na rea de gesto de pessoas desenvolver uma ao competente para a incluso das pessoas com deficincia no seu ambiente de trabalho.

    Acredito que o momento mais difcil dessa tarefa a deciso da empresa de realizar um trabalho de responsabilidade social que seja transformador e que envolva todos os aspectos que convergem para essa incluso. Tomada a deciso, inmeros conhecimentos devero ser adquiridos e diferentes atividades necessitaro ser implementadas.

    A contribuio deste livro est focada na inteno de divulgar conhecimento sobre as diversas questes que envolvem as empresas quando elas tm como alvo a empregabilidade de pessoas com deficincia. Mas ele tambm procura encaminhar a compreenso dessas aes como instrumento de uma pol-

  • tica de contratao que deve estar centrada na competncia profissional da pessoa com deficincia e em sua capacidade para ocupar seu espao no mundo do trabalho.

    Essa sem dvida a mais importante modificao que vem sendo introduzida na rea: o novo paradigma a ser perseguido por empresas e pessoas com deficincia o da competncia. Ambos, empresa e profissional, devem fazer um esforo no sentido de normalizar o processo de seleo, contratao e manuteno de pessoas com deficincia no emprego, e a chave dessa normalizao est em perseguir esse novo paradigma.

    O IBDD trabalha com a proposta de apoiar o desenvolvimento desse novo modelo de contratao onde a competncia pro-fissional do candidato e o compromisso de incluso social da empresa possam nortear o preenchimento de novas oportuni-dades para as pessoas com deficincia. Entendemos que, para isso, preciso disponibilizar um marco bsico de conhecimen-tos, indispensvel para uma atuao responsvel e amadure-cida nesse novo cenrio criado pelo desafio da incluso social e pela necessidade do cumprimento da lei de cotas.

    Compreendemos tambm que uma empresa atua na lgica do produto de que necessita, e que preciso fazer com que a relao pessoa com deficincia - empresa passe pelo aten-dimento ao interesse de ambos. E sabemos que a relao prospera quando, alm desse ponto de partida, a empresa pode encontrar respostas dadas no padro do mercado com qualidade para atender s suas demandas.

  • 15

    Na realidade de um grande nmero de empresas, o produto pode ser o profissional com deficincia, a presso exercida para o cumprimento da cota, pode tambm ser a preparao da empresa, indispensvel para efetivar a deciso de empregar, pode ser a imagem empresarial e a necessidade do selo de responsabilidade social.

    O IBDD procurou entender e se preparar para responder a essa equao. Hoje ele disponibiliza recursos humanos e ma-teriais, metodologia e produtividade para atender crescente demanda das empresas.

    Empresa parceira desde a primeira hora, a Ipiranga sempre nos presenteou com o compromisso de acreditar na nossa propos-ta e na capacidade profissional das pessoas com deficincia. Desenvolvemos juntos um trabalho ideal, tendo encontrado na empresa e em seu corpo de gestores a capacidade para entender o desafio, construir autonomia de saber, e poder ser exemplo de responsabilidade social em incluso de pessoas com deficincia no mundo do trabalho.

    O IBDD agradecer sempre Ipiranga a confiana que a levou a ser uma das primeiras empresas a responder ao desafio de entender o novo paradigma da eficincia das pessoas com deficincia, assim como agradece a publicao deste livro, certamente um indispensvel manual para uma nova forma de responsabilidade social em nosso pas.

    Teresa Costa dAmaralSuperintendente

  • 17

    I. Incluso social da pessoa com deficincia

  • 19

    O que o IBDD

  • 21

    O que o IBDD

    O IBDD - Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Defi-cincia uma organizao no governamental, sem fins lucra-tivos, criada em 1998 com uma proposta diferente. Contrrio a polticas assistencialistas, o Instituto trabalha desde o incio pela construo da cidadania das pessoas com deficincia de forma a que elas se tornem sujeitos ativos de seus direitos e lutem contra o preconceito em torno da questo. Conside-rando a situao de excluso social na qual esto inseridas, decorrente do descaso do poder pblico e da desinformao por parte de diferentes setores da sociedade, as pessoas com deficincia enfrentam diariamente problemas estruturais graves que prejudicam o exerccio de sua cidadania e mesmo sua sobrevivncia, como a inacessibilidade dos transportes coletivos, o desemprego e a discriminao.

    O Instituto tem como linha de ao o desenvolvimento de projetos exemplares de incluso social. Para a pessoa com deficincia oferece atendimentos pessoais, apoio pessoa,

  • escritrio de defesa de direitos, capacitao profissional, inclu-so no mercado de trabalho formal e promoo de atividades esportivas. Para as empresas e demais instituies, consul-torias pro bono, otimizao do emprego dos trabalhadores com deficincia e orientao com informaes qualificadas e atualizadas. Alm disso, o Instituto atua para que a questo da pessoa com deficincia seja entendida com sua real im-portncia, em funo do papel fundamental que tem para a resoluo das desigualdades sociais.

    reas de atuao do IBDD:

    Apoio PessoaContribuir para que as pessoas com deficincia conheam e exeram seus direitos a principal responsabilidade do Apoio Pessoa, que atende a quem procura o IBDD. Sua equipe es-pecializada recebe a pessoa e, junto com ela, define o melhor caminho para a efetivao dos seus direitos.

    Defesa de DireitosO escritrio de advocacia do IBDD o primeiro do Brasil es-pecializado em direito da pessoa com deficincia, trabalhando na aplicao da Lei 7.853/89 e demais legislaes especficas. Quando necessrio, prope novas leis. Tambm colabora com outras instituies na organizao de documentos necessrios atuao na rea.

    Mercado de TrabalhoO IBDD procura colocar a pessoa com deficincia no mercado de trabalho ajudando a superar as dificuldades que ela encontra na conquista do emprego. Para as empresas, oferece servios

  • 23

    e consultorias especializadas, programadas para atender cada cliente. Para as pessoas com deficincia, alm da permanente procura por oportunidades de trabalho, oferece cursos bsicos de formao e orientao profissional.

    EsporteO desenvolvimento da prtica esportiva e a preparao de atletas de ponta para competies nacionais e internacionais so realizaes do IBDD nesta rea. O esporte utilizado como recurso para reabilitao, integrao social e conscientizao da sociedade sobre o potencial da pessoa com deficincia. O IBDD conquistou nove medalhas de ouro e seis medalhas de prata nas Paraolimpadas de Sidney (2000), Atenas (2004) e Pequim (2008).

    Todos os servios do IBDD para a pessoa com deficincia so gratuitos.

    O IBDD j beneficiou cerca de 30 mil pessoas e demonstra que a incluso da pessoa com deficincia no mercado de trabalho tem uma ampla capacidade de gerar mudanas sociais.

    Contato:IBDD - Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com DeficinciaRua Artur Bernardes, 26-A - Catete - Rio de Janeiro / RJ CEP 22.220-070 Tel.: (21) 3235-9290E-mail: [email protected] Site: www.ibdd.org.br

  • 25

    Pequena histria da deficincia: do quase-divino ao demasiadamente humano Marcio Tavares dAmaralPresidente do IBDD

  • Este texto foi adaptado de uma palestra realizada em 2004

  • 27

    Meu objetivo fazer uma introduo filosfica, falar sobre a idia do que ser uma pessoa com deficincia hoje e do que foi no passado. Ns temos a idia de que ser uma pessoa com deficincia sempre foi, sempre significou a mesma coisa. No entanto, o sentido negativo e excludente da palavra deficien-te, em relao s pessoas a quem se aplica essa designao, tem a ver com uma civilizao cujo fundamento a eficcia, a capacidade de produzir efeitos, e tudo medido por essa capacidade. De modo que a natureza humana e a singularidade individual no tm, a rigor, nenhum valor; o que vale uma medida externa que mostra a quantidade de efeitos que uma pessoa, ou uma instituio, capaz de produzir, e se ela no consegue produzir esses efeitos que esto na mdia, ento chamada de deficiente, porque vivemos numa civilizao da eficincia, que a civilizao industrial. Portanto, esse sentido negativo, e freqentemente pejorativo, da palavra deficiente, existe h uns trezentos anos, no mais do que isso. O prefixo de tem um sentido inteiramente ne-gativo, como em derrota, perda do caminho, perda da rota; deportado, ter sido mandado embora do porto; desestrutu-

  • rado, no estruturado; deficiente, no eficiente. O prefixo de, nesse caso, tem o sentido de no, portanto uma negao da prpria essncia da pessoa como pessoa, porque ela est sendo avaliada por algo que no pessoal, que pertence a uma mdia e que tem a ver com a produo de efeitos. Mas nem sempre foi assim. Num passado mais prximo (isto , em relao aos comeos de nossa civilizao), digamos, na Idade Mdia, o deficiente era s uma pessoa sagrada. A marca que ele portava era o sinal de diferena e, nesse sentido, o diferente era assinalado e s podia ser assinalado por Deus. Havia algo de sagrado em torno da pessoa deficiente, do cego, por exemplo, que em geral era tomado como um adivinho exatamente por no ver as coisas presentes e poder ser sen-svel s coisas futuras. A pessoa com deficincia intelectual, que j se chamou de excepcional, de retardado, e mais recentemente deficiente mental, era chamado o simples. Ele era a pessoa simples da aldeia no se tratava do bobo da corte e a pessoa simples era a que estava mais prxima de Deus, das crianas. Usando apenas esses dois exemplos de deficincia, a visual e a intelectual, a pessoa com deficincia no passado era tratada positivamente. A deficincia era o sinal, a marca, uma espcie de predestinao. Em vez de excludas, essas pessoas eram protegidas pela sociedade. Elas eram assinaladas, tinham um lugar e um papel a representar nessas comunidades. De maneira alguma, elas ficavam de fora. Assim, analisando as diferentes maneiras de tratar as pessoas com deficincia e a prpria noo de deficincia, que pode ser vista de forma positiva, bem diferente do modo como vista hoje, eu me dei conta de que, se ns pensamos como pessoas que vivem numa civilizao que se define como ocidental e

  • 29

    crist cuja origem est na Grcia e no Oriente Mdio, na Palestina entre o povo judeu os pais fundadores de nossa cultura atual, tanto do lado grego como do lado judaico e depois cristo, so pessoas com deficincia. Quem o fundador da cultura grega para ns? Quando pensamos na cultura grega, qual o primeiro nome que nos ocorre, porque no conhe-cemos nenhum antes dele? Homero. Homero, que cantou a Guerra de Tria e depois a viagem de volta de Ulisses em IIada e Odissia. Essas so as duas narrativas fundadoras da Grcia, da cultura grega, da diferena entre Ocidente e Oriente. Essa a narrativa-me do Ocidente, me da Europa, portanto nossa av. Homero era cego e, no entanto, ningum pensa em se referir a ele como Homero, o ceguinho, como nos referimos ao ceguinho da feira, que um cantador, um repentista, um extraordinrio poeta e a quem, entretanto, nos referimos pela deficincia, no pela poesia. Homero era um grande poeta, o maior poeta de todos os tempos, assim se diz, mas o fato de ser cego no significativo. Era um fato e ponto. A tragdia de dipo, por exemplo, que uma das narrativas paradigmticas da nossa cultura: a me, o pai e o filho, e o conflito entre os trs, que deu na psicanlise, enfim, em tantas coisas. Em dipo Rei, quem o detetive, quem que sabe a verdade desde o comeo e aconselha dipo a no se aprofundar demais na descoberta da verdade porque ele vai se dar mal? Tirsias, o adivinho, cego. O que quer dizer a palavra adivinhar? Adivinhar vem do latim divinare, o adi-vinho aquele que tem o dom divino, o dom da divinao. Ele tem o dom de se pr prximo do divino e, portanto, de saber o que os humanos comuns no sabem. a deficincia de Tirsias que o faz ser essa pessoa marcada positivamente e no a pessoa excluda que hoje seria.

  • Pelo lado judaico, temos a Bblia, iniciando-se com o Gnesis e prosseguindo com a narrativa dos homens, dos patriarcas, reis, profetas, etc. A partir do momento em que a trinca dos patriarcas Abrao, Isaac e Jac se completa, pode-se dizer que foi lanada a pedra, um povo passa a existir, um povo escolhido por Deus, com quem Deus fez uma aliana. Jac, por exemplo, no era o filho primognito de Isaac, e o primo-gnito era quem tinha prestgio, quem tinha o mando. Jac, ento, props ao irmo, Esa, trocar a primogenitura por um prato de lentilhas. Esa gostava muito de lentilhas e aceitou a troca. Assim foi feito e os dois enganaram o pobre Isaac, que abenoou Jac pensando que era Esa em seu leito de morte. Com isso, Jac ficou sendo o patriarca e houve muita confuso e brigas entre os irmos. Um dia, Jac soube que Esa estava vindo com toda sua famlia e se sentiu ameaa-do. Resolveu fugir para outra terra levando sua famlia, seus escravos, seus rebanhos e suas riquezas. Havia um rio que ele precisava atravessar e depois estaria em segurana. Jac levou toda a sua famlia e seus bens para o outro lado do rio, ficando por ltimo. No momento de sua travessia, algum se interps entre ele e o rio, impedindo-o de prosseguir. Os dois se atracaram numa luta que levou a noite inteira, sem se resolver em vitria para nenhum deles. Ao alvorecer, aquele com quem Jac lutara lhe disse que por ter lutado bem po-deria passar e atravessar o rio. Jac se recusou a passar sim-plesmente e pediu ao outro que ao menos lhe revelasse seu nome. Aquele lhe respondeu: No, meu nome eu no digo. E criou ento uma entorse na perna de Jac, que o deixou manco pelo resto da vida. Declarou ter deixado no corpo de Jac a sua marca, pela qual ele seria sempre lembrado como aquele que lutou com Deus, e doravante este ser seu nome,

  • 31

    Israel, aquele que lutou com Deus. Portanto, Jac, que o fundador da outra tradio ocidental, que juntamente com a tradio grega formou nossa civilizao, um coxo. Ningum se lembra dos pais-fundadores de nossa Histria um como cego e outro como coxo, entretanto, os dois so pessoas com deficincia. Os dois so de alguma forma assi-nalados, tendo sido Jac diretamente assinalado por Deus, em sua luta entre o mortal e o imortal, e tido tambm seu nome mudado, nome este que conferiu ao povo a que deu origem, Israel. Esses dois deficientes, Homero e Jac, so os pais-fundadores da cultura que hoje, no seu quase ocaso, trata a pessoa com deficincia como algum menos humano, nem por isso mais divino, algum a ser excludo, a ser mantido margem da sociedade, sem cidadania, uma vez que a diferena vista como um sinal negativo e no afirmativo. Essas histrias bonitas servem para comparar a maneira dis-criminatria como tratamos as pessoas com deficincia e que nos obriga a nos reunir na associao de luta por seus direitos com a maneira natural com que a deficincia foi incorporada desde as origens dessa cultura, fundada mesmo por pessoas (Jac e Homero) que hoje chamaramos de de-ficientes, essa cultura que no final as expulsaria. Tanto Jac como Homero no teriam lugar em nossas escolas, em nos-sas universidades, sofreriam com as barreiras arquitetnicas, etc., um no teria escrito a Ilada e a Odissia e o outro no teria sido o pai-fundador da nao judaica e, portanto, av do cristianismo.

  • 33

    Por um novo compromisso socialTeresa Costa dAmaral

  • 35

    1. A Cidadania Usurpada

    Refletir sobre a questo dos direitos das pessoas com deficincia significa hoje discutir cidadania e democracia, igualdade social e respeito s diferenas. Pensar a mesma questo no contexto brasileiro nos obriga a uma srie de anlises que envolvem justia social e direitos humanos e nos levam a considerar as muitas e incontveis imposies econmicas e sociais que fazem dessa populao um radical exemplo de excluso social em nosso pas.Na realidade, a cidadania usurpada das pessoas com deficincia se inscreve entre os nossos mais graves problemas sociais mas no faz parte da conscincia social brasileira.Proponho formularmos a premissa de que para compreender os direitos da pessoa com deficincia no Brasil preciso, antes de mais nada, que os enfoquemos como uma questo de cidadania e de direitos humanos.A necessidade dessa abordagem social e ampla do problema resulta da convergncia de trs aspectos distintos.Por um lado, sua dimenso demogrfica. Considerando que a Organizao das Naes Unidas calcula que a populao com

  • deficincia em pases com as caractersticas socioeconmicas do Brasil de 10% da populao global, cerca de 18 milhes de brasileiros so portadores de algum tipo de deficincia, intelectual, fsica, auditiva ou visual. Podemos considerar que no temos dados oficiais confiveis, embora o IBGE tenha encontrado um ndice de 14,50% no ltimo censo nacional.Por outro, o fato de constiturem a parcela mais fragilizada de toda a populao brasileira, se levarmos em conta as limitaes inerentes s deficincias e as limitaes impostas pelo preconceito e pela sociedade, ambas determinando definitivamente sua excluso social.E por fim tambm porque um problema de direitos sociais, porque a vida da grande maioria dos 18 milhes de brasileiros com deficincia est marcada pelo preconceito e caracterizada por falta de acesso a servios de preveno, sade e educao, e falta de oportunidades de acesso ao mercado de trabalho.Se unirmos aos clculos da ONU os estudos do IPEA que dizem que, no ano de 2000, cerca de 16% da populao brasileira tinha como renda domiciliar per capita menos de 1/4 de salrio mnimo estando abaixo da linha de extrema pobreza teremos em torno de 3 milhes de pessoas com deficincias vivendo com essa renda. E sobrevivendo, desse modo, sem nenhum tipo de reabilitao bsica, por menor que seja, sem qualquer possibilidade de romper a excluso social e construir seu acesso cidadania. Talvez esses nmeros permitam perceber, tocar, a magnitude do problema, a existncia de cerca de 3 milhes de brasileiros presos em suas deficincias, sem possibilidade de serem seres humanos: cegos sem bengalas, amputados sem muletas, paraplgicos sem cadeiras de rodas, surdos sem comunicao, deficientes intelectuais totalmente isolados.

  • 37

    O desrespeito aos direitos humanos da pessoa com deficincia atinge mais do que os radicalmente excludos pelos efeitos da misria absoluta, e torna todos iguais na discriminao causada pelo preconceito e pelo desconhecimento. A excluso em que vive 10% da populao brasileira comea pelo desrespeito ao direito civil bsico de ir e vir, passa pelo desrespeito ao direito poltico de votar e de participar da vida poltica, e desemboca no desrespeito aos direitos sociais bsicos de acesso sade e educao, ao trabalho e ao lazer: no h expresso mais violenta de no-cidadania. como se pudssemos viver a aspirao de sermos uma democracia excluindo dela 18 milhes de brasileiros. como se o mundo j no vivesse as grandes perspectivas de incluso que vm sendo construdas como uma das solues mais humanas e eficazes, disseminando a idia de incluso social da pessoa com deficincia e de normalizao de sua vida.Como ento entender o permanente desrespeito aos seus direitos bsicos de cidadania? A nica resposta possvel perceber o problema como uma questo social e entender a sociedade como o local onde predomina o preconceito, onde o estigma atingiu de tal modo a pessoa com deficincia que a colocou vivendo em um mundo feito de diferena e discriminao.Direitos civis foram construdos no mundo pela garantia dos direitos individuais, pelo direito de ir e vir, pela liberdade de expresso, pelo acesso justia. Direitos polticos foram garantidos pela participao nos diversos nveis de deciso possibilitando convivncia poltica e exerccio de democracia. Direitos sociais foram personificados na construo do Estado do Bem Estar Social e foram plantados e colhidos das mais

  • diversas formas em nosso mundo atual. O direito sade foi definido como matria bsica do direito vida, como possibilidade de colocar ao alcance de todos o bem estar ampliado e amparado nos avanos das cincias e da medicina. O direito educao, como necessidade fundamental para a construo do ser humano, indispensvel ao homem como ser completo onde conhecimento e cultura transformam cotidianamente suas dimenses de vida. E o direito ao trabalho, como forma de realizao do homem no mundo moderno, por onde pode tomar parte na construo de sua vida, de sua comunidade, de seu pas. Tambm o direito ao lazer e ao esporte foram reconhecidos. E finalmente as liberdades e conquistas desse nosso sculo esto representadas pelo imprescindvel desenvolvimento dos direitos coletivos e difusos que tornaram o homem moderno consciente de que sua vida tem uma dimenso maior onde a preservao dos bens coletivos necessria e impe limites vontade pessoal.Esses direitos de cidadania, construdos ao longo da histria moderna, esto por construir em nosso pas, e para grande parte da populao brasileira so ainda uma luta diria a ser travada.Ao examinarmos o enunciado desses direitos bsicos torna-se indispensvel pensarmos na realidade brasileira, verificarmos o quanto nos falta para alcanarmos uma democracia verdadeira e abrangente. Essa anlise torna-se mais necessria quando se refere especialmente s pessoas com deficincia, pois a elas, mais radicalmente ainda, a cidadania cotidianamente negada. Admitamos e nos alegremos com as excees porque com elas poderemos estar comeando uma nova aliana.Para as pessoas com deficincia, direitos civis, direitos polticos, direitos sociais, direitos coletivos fazem parte de

  • 39

    uma realidade por construir. Examinemos sob o olhar dos direitos da pessoa com deficincia alguns desses pontos que determinam hoje o respeito que um pas tem por seus habitantes, que falam da qualidade de vida de um povo, dizem da democracia nele construda. No Brasil cotidianamente desrespeitado o direito de ir e vir das pessoas com deficincia fsica. Em sua grande maioria os meios de transporte coletivos no esto adaptados, as caladas e vias pblicas no so acessveis, os prdios, nem os pblicos nem os de uso coletivo, respeitam as necessidades mnimas de acessibilidade para cadeiras de rodas e outras dificuldades de locomoo.Nem os surdos nem os deficientes auditivos nem os cegos nem os deficientes visuais tm respeitado seu direito liberdade de expresso, porque no somente sua prpria expresso individual lhes negada quando a educao no lhes garante esses meios , mas tambm lhes negado o acesso aos meios de comunicao do mundo moderno, que poderiam se tornar acessveis atravs de adaptaes fceis, para citarmos apenas algumas simples, como o uso da impresso em Braille, a utilizao da linguagem de sinais e de legendas nos meios de comunicao, dentre outras inmeras possibilidades.Tambm no respeitado o direito de acesso justia porque embora o Brasil tenha uma legislao relativa s pessoas com deficincia moderna, considerada por organismo internacional como a mais inclusiva das Amricas, ela no nem conhecida nem aplicada nem respeitada, o que quase a torna intil.No so respeitados os direitos polticos porque sabemos que a grande maioria das pessoas com deficincia no faz parte do processo poltico, no votando pois as condies para o exerccio do voto no esto acessveis, ou no participando

  • porque seu alijamento da cidadania faz com que no exista representao poltica consistente para suas reivindicaes.Seu direito sade no respeitado. Se no so expulsas logo na entrada pelas barreiras da discriminao e do desconhecimento, so logo em seguida descartadas pelo despreparo e o preconceito dos profissionais de sade que em sua grande maioria parecem querer desconhecer que as necessidades de mbito geral dessas pessoas so as mesmas de qualquer um. Por fim, so colocadas para fora pela falta de recursos humanos e materiais adequados s suas necessidades especficas. No dispomos de um sistema de preveno coordenado e no temos atendimento especializado. As doenas relacionadas com as diferentes deficincias se instalam na populao brasileira livres de qualquer controle, sem preveno primria, secundria ou terciria, abandonadas que esto prpria sorte, ao acaso da fora pessoal de conseguir vencer e conviver com a deficincia. Prova disso a precariedade do sistema de concesso de rteses e prteses.Tambm o direito educao desrespeitado. O Brasil discute ininterruptamente as reformas do ensino, as novas necessidades da educao, a criana na escola, a formao profissional, mas a educao especial inclusiva no existe como problema importante a ser enfrentado. A sociedade, atravs das associaes de pais, assumiu a maior parte da educao das pessoas com deficincia intelectual, e o Estado, atravs do que sobrou dos grandes institutos, recebe as pessoas com deficincia visual e auditiva. Reafirmo: as raras excees confirmam essa anlise. O pas age como se as pessoas que necessitam de educao especializada no precisassem ser levadas em conta, no estivessem entre as obrigaes do

  • 41

    Estado com educao, quando so exatamente elas as que mais precisam e mais tm a perder se no passarem por um processo educacional. Por outro lado, tambm no esto nas instituies de profissionalizao nem nas disputas por colocao no mercado de trabalho. Seu direito ao trabalho no respeitado nem na formao profissional nem na hora da disputa por competncia. A grande maioria das diferentes instituies responsveis pela formao profissional em nosso pas mantm-se fechada para elas. Os Sistemas Nacionais de Aprendizagem e as universidades ainda no so inclusivos. Desse modo, o preconceito lhes nega o direito a adquirir competncia e a grande maioria no consegue nem se profissionalizar nem se empregar em igualdade de condies.Direito ao esporte, cultura, ao lazer, so praticamente da dimenso do suprfluo para sua grande maioria.Diariamente elas tm desrespeitados seus direitos bsicos de cidadania. Constru-los porm simples. No so necessrios nem bilhes de dlares de investimento, nem inovaes tecnolgicas difceis de alcanar, nem grandes obras, nem mesmo reformas institucionais profundas ou grandes mudanas de legislao. Mas a discriminao baseada no preconceito e no desconhecimento que define a falta de compromisso com o problema. preciso fazer entender o direito que as pessoas com deficincia tm de serem iguais. O reconhecimento da diferena e a luta pela igualdade devem ser os marcos de uma democracia onde todos tm os mesmos direitos e so cidados da mesma categoria.O preconceito se forma com a necessidade de eficincia e produtividade do mundo moderno somada ameaa que a pessoa com deficincia representa atravs de suas limitaes.

  • como se o homem fosse avaliado no pelo que tem de humano, pelo seu contedo, mas pelo que tem de aparncia, por sua representao. Nesse contexto, a diferena e a falta representados na deficincia so uma ameaa busca de perfeio do homem moderno. Existe um pacto entre Estado e sociedade em nosso pas em relao a essa questo. O acordo comea quando o assunto mantido na rea da assistncia social, da caridade, do paternalismo, passa pelas falsas polticas de participao e se completa quando entende a deficincia como diferena e aceita a cidadania incompleta dos diferentes. essa cidadania diferenciada que mantm a pessoa com deficincia longe. preciso acreditar na construo de seus direitos em nosso pas, participar dessa construo; e ela s acontecer quando houver conscincia social para exigir o respeito diferena, quando entendermos que s uma sociedade inclusiva pode construir uma democracia verdadeira.

    2. Os instrumentos para a cidadania: marco legal e conscientizao em busca da participao social

    O Brasil tem hoje um dos mais modernos marcos legais de direitos da pessoa com deficincia na Constituio de 1988 e na Lei 7.853/89, complementada por leis federais, dentre elas a 8.213 e a 10.088 e por legislaes estaduais e municipais. O grande desafio para implementar esse arcabouo legal exatamente vencer as barreiras do preconceito e da discriminao, e essa legislao s ser realmente posta em prtica quando houver um entendimento do problema como

  • 43

    uma questo social, e quando houver um movimento de conscientizao com a participao da sociedade.A Constituio de 1988 resgatou as bases da cidadania, em especial para as pessoas com deficincia. Deu os parmetros legais, sua fundamentao indiscutvel. A Lei Federal 7.853/89, como primeira regulamentao nessa rea, determinou a possibilidade de construo de sua incluso social.A elaborao do projeto de lei foi resultado de uma ampla consulta s pessoas com deficincia, s suas instituies e comunidade em geral atravs de sua participao nos trabalhos do Comit Presidencial durante o ano de 1986, e do trabalho da CORDE Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa com Deficincia , na poca diretamente vinculada Presidncia da Repblica. Foi o texto mais discutido e completo sobre essa questo j enviado pelo governo ao Congresso Nacional. Nele se integravam as reivindicaes do movimento de luta das pessoas com deficincia, os instrumentos para a ao governamental na rea, as bases legais para o reconhecimento do carter de direito coletivo e difuso desses direitos, e avanos na luta contra o preconceito e a discriminao, refletindo a convergncia de interesses atravs da importncia central dada incluso da pessoa com deficincia levando em conta um processo de abertura da sociedade e de sua adaptao s caractersticas e necessidades dessas pessoas.O Projeto inicial foi aperfeioado pelo Congresso e votado nas Comisses de Constituio e Justia, de Educao e de Oramento com rapidez que dificilmente se encontra nesse processo. Sua tramitao e a sano presidencial foram um momento nico de ateno para o problema em nosso pas.Resulta que temos hoje na Lei 7.853/89 um desafio para

  • todos ns: considerada entre as mais modernas e desenhada como um instrumento de igualdade de oportunidades, ela se contrape realidade que cotidianamente nega pessoa com deficincia no Brasil o exerccio de seus direitos.Desde seu prembulo podemos avaliar a amplitude e abrangncia de suas pretenses: a Lei Dispe sobre o apoio s pessoas com deficincia, sua integrao social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa com Deficincia CORDE, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuao do Ministrio Pblico, define crimes e d outras providncias. As conquistas so grandes, em especial as que se referem s responsabilidades do poder pblico, figura dos interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, s competncias do Ministrio Pblico, criminalizao do preconceito e criao, atravs de lei, de um rgo na esfera da Presidncia da Repblica encarregado do planejamento e coordenao das aes federais para a rea.A Lei 7.853 estabeleceu normas gerais para o exerccio da cidadania das pessoas com deficincia e definiu as responsabilidades do poder pblico. Finalmente tivemos reconhecidos em lei os principais caminhos para essa construo, detalhados em especial nas reas de educao, sade, formao profissional e trabalho, formao de recursos humanos e acessibilidade. Atravs do princpio do direito a uma incluso social completa, a Lei especificou os fundamentos de sua incluso na comunidade, os mecanismos que devem conduzir a construo de sua cidadania e o papel do poder pblico nessa construo.Determinou tambm a reestruturao da CORDE como rgo subordinado Presidncia da Repblica, dotado de autonomia administrativa e financeira e com recursos oramentrios

  • 45

    especficos, definindo suas competncias de coordenao e planejamento nas aes federais direcionadas para as necessidades especficas das pessoas com deficincia em sade, educao, trabalho, previdncia e assistncia dentre outras criando inclusive rgos especficos visando impedir paralelismos na atuao, disperso de recursos e perda de resultados, e desse modo evitando a criao de organismo abrangente, que englobasse mas segregasse as diferentes reas de atendimento pessoa com deficincia.O governo Sarney, com a criao da CORDE, posicionou a questo das pessoas com deficincia como assunto prioritrio, atendendo ao fato de os diferentes aspectos de sua incluso social passarem por diversos ministrios a abrangncia multidisciplinar da questo da deficincia um potencializador de suas dificuldades , e constatando que sua construo precisa de coordenao nica que permita desenvolver um sistema adequado de acesso sade, educao e ao trabalho. Respondeu igualmente s reivindicaes e modernidade das proposies para polticas sociais criando rgo que se auto-define pela sabedoria da incluso, evitando a marginalizao das estruturas especiais. necessrio reunir esforos do governo e da sociedade para tirar da marginalidade a questo da pessoa com deficincia. Nos trs anos em que dirigi a CORDE procuramos ser o ponto de convergncia e articulao dos rgos e instituies envolvidos, viabilizando o planejamento da poltica nacional para o setor tendo como pontos primordiais seu carter interministerial, sua estrutura leve e a participao da sociedade civil. Visamos a normalizao de procedimentos, de interlocutores, de fontes de recursos, de atitudes; tratamos como parte do todo uma questo que at ento era colocada

  • margem. O governo federal entendeu o problema das pessoas com deficincia como uma questo social, e trabalhou procurando construir, com a participao da sociedade e a diviso de responsabilidades, a superao de bloqueios estruturais e o desenvolvimento de projetos modelares. A execuo das aes foi descentralizada, favorecendo as estruturas estaduais, municipais e comunitrias. Trabalhar para o resgate da cidadania das pessoas com deficincia, onde quase tudo est por construir, antes de tudo gerou a necessidade de criao da estrutura a ser coordenada, e a necessidade de planejar, incentivar e coordenar as aes do governo federal nesse campo implicou em rigorosa nomeao de objetivos e em simplificados caminhos de interveno. A CORDE foi um projeto de construo de cidadania atravs da parceria do Estado e da comunidade. Nele o Estado no fugiu de seus deveres nem a sociedade abriu mo de seus direitos e de sua representatividade, mas pde-se construir em conjunto. Basicamente nossa experincia confirmou que preciso abrir o aparelho de Estado para assumir sua responsabilidade na construo dos direitos bsicos das pessoas com deficincia, e reafirmou que a sociedade e o movimento das pessoas com deficincia deve participar desse processo.Passo importante dado atravs da Lei 7.853/89 para a construo dessa cidadania foi tambm a definio da existncia legal dos interesses coletivos e difusos da pessoa com deficincia e a determinao das responsabilidades do Ministrio Pblico em sua defesa. Essa medida permitiu uma srie de conquistas em aes de garantia de necessidades bsicas das pessoas com deficincia, por exemplo quanto acessibilidade nos meios de transporte. A participao do Ministrio Pblico na luta por cidadania uma das grandes

  • 47

    alianas que alcanamos, e quanto mais esse engajamento se tornar realidade mais estaremos construindo uma cidadania verdadeira e duradoura.A criminalizao de atos discriminatrios realizados contra as pessoas com deficincia completou o arcabouo legal que a Lei 7.853 efetiva. As sanes penais que impe visam prevenir ou punir condutas que acontecem diariamente baseadas no preconceito.Mas o novo marco legal, precursor de conquistas e inovador de responsabilidades, fica com sua aplicao restrita porque existe um enorme vazio formado em torno do problema, resultado da grande discriminao em relao questo da pessoa com deficincia em nosso pas. Cabe a cada um de ns construir cidadania, dar significado e concretude a esse instrumento legal. E nesse sentido necessrio desenvolver, pelos mais diferentes meios, a participao social nessa luta. imprescindvel trabalhar pela conscientizao da sociedade e do governo para o problema de 18 milhes de brasileiros.A proposta de um trabalho de conscientizao que utilize a comunicao como principal instrumento deve procurar fazer com que a sociedade entenda o significado da diferena para transform-la em igualdade, encontrando um caminho, entre tantos possveis. Esse trabalho precisa ser permanente para que vena o preconceito, mobilize a sociedade, produza e divulgue conhecimento, chame participao e conte com a parceria da sociedade e do Estado em um processo de conscientizao eficiente.Para que esse caminho comece a ser trilhado antes de mais nada precisamos entender nosso olhar sobre a deficincia. A primeira dificuldade resultante do medo, o medo de olhar a pessoa com deficincia no que ela nos diferente, no

  • que nos mostra de perda, no que nos ameaa de morte. A segunda dificuldade que a enorme discriminao imposta ao problema passa indiscutivelmente pela questo da alteridade, de entendermos a diferena, de nos confrontarmos com ela. A sociedade tem certamente uma enorme dificuldade em entender o outro, o diferente, e aceit-lo. E a sua busca da excelncia impe regras definitivas s minorias e aos diferentes e exclui a deficincia. At aqui o deficiente foi mantido margem do sistema. E a diferena mantida diferena destri o ideal de direito igualdade base da democracia. Pois a marginalidade quem impe a sociedade e sobre a sociedade que precisamos pensar para entender a no-conscincia em relao questo das pessoas com deficincia. Ento perceberemos que a conscincia est consolada na legitimao da proteo e na discriminao justificada. E a ausncia de informaes permite manter a inconscincia generalizada. Cotidianamente a pessoa com deficincia no cidad, e os mecanismos da sociedade as apresentam como se elas fossem legitimamente cidados diferentes. Torna-se assim necessrio procurarmos compreender por que a questo no existe como preocupao social. Ser porque o padro que dita as regras, a maioria que estabelece o padro e no comum que se desenvolvem as caractersticas aceitveis da normalidade? E desse modo se percebe como desvio a deficincia e se estigmatiza a pessoa com deficincia?

  • 49

    3. A construo da igualdade

    Discutir as possibilidades de mudana nas questes que envolvem o social na realidade um desafio. Mobilizar a sociedade e cham-la a participar, colocando em circulao questes que antes no apareciam, uma tarefa difcil, principalmente quando governo e sociedade, sujeito e objeto, esto reunidos na mesma inconscincia da questo. preciso tornar mensagem a questo da pessoa com deficincia, superar o vazio e o preconceito nela existentes, fazendo com que a conscientizao seja um processo eficiente de interveno.Existe uma grande batalha a ser travada, a conscientizao do Estado e da sociedade. E pode, e deve, existir um grande aliado: a informao.Os centros de produo de conhecimento, em especial a universidade como produtora e disseminadora de saber, podem ser a base para a construo dessa aliana. Mas so os meios de comunicao, divulgadores de conhecimento e formadores de opinio, que definiro a mudana de atitude social. S com um novo pacto, com o engajamento dos formadores de opinio, poderemos construir uma nova conscincia sobre a deficincia. preciso fazer conhecida sua questo social, preciso produzir e fazer circularem informaes, mobilizar comunidades, chamar participao, construir polticas pblicas.A resoluo da questo social est na cidadania, no direito igualdade, na integrao, no respeito s diferenas que s a democracia pode alcanar. E essa incluso no significa manter as pessoas com deficincia como diferentes, embora admitidas como parte. Significa sim torn-las iguais, aceit-las no que tm de excelncia aquela a que aspiramos sem reservas

  • ou preconceitos. E esse processo pode se desenvolver por um longo caminho de conscientizao, natural ou dirigido, mas sempre acontecendo na chave social e poltica.O princpio de incluso que prega o direito de a pessoa com deficincia viver inserida na sociedade um facilitador na medida em que repudia qualquer forma de excepcionalidade, tanto aquela que segrega mantendo-a longe, quanto aquela que superprotege mantendo-a diferente. A idia de incluso, impondo a todos ns o desafio do convvio dos diferentes, permite criar os mecanismos da igualdade e inventa novas formas de construir democracia. necessrio trabalhar desenvolvendo estratgias que visem inserir a pessoa com deficincia como parte da discusso e do encaminhamento das principais questes sociais brasileiras.Precisamos produzir modelos inovadores de ao conjunta da sociedade organizada e do Estado, com o sentido de tirar da marginalidade a questo e com o objetivo final de trabalhar pela incluso social da pessoa com deficincia e por sua cidadania. A defesa de seus direitos deve ser entendida como uma tarefa mais ampla, que atua no somente na vertente da defesa legal, jurdica, mas passa pela construo dessa cidadania. De tal modo hoje inexistem para elas direitos de cidadania que se torna necessrio comear a construir uma realidade nova atravs da diviso de responsabilidades.Lutar pela defesa dos direitos das pessoas com deficincia, no Brasil, impe participar de sua construo a fim de possibilitar seu exerccio, implica em acabar com os pontos de bloqueio construindo projetos modelares com parcerias normalizadoras, significa discutir, divulgar e tornar conhecidos seus direitos, e utilizar os meios legais para a defesa e a garantia de seu exerccio.O direito a medidas de discriminao positiva vem sendo

  • 51

    praticado em diversos pases. Essa compensao comea nas aes positivas que, apoiando e incentivando formas de vencer e quebrar o preconceito, so necessrias para construir igualdade onde a discriminao deixou sua marca de excluso. Visando encontrar solues para questes estratgicas do problema, precisamos utilizar novas formas de interveno atravs da elaborao de estudos e diagnsticos, da proposio de estratgias e solues, e do planejamento e implantao de projetos inovadores e alternativos.A cidadania efetivar-se- atravs de aes e solues nas reas de sade, educao, trabalho, assistncia social, cultura, esporte, lazer, acessibilidade, adequao arquitetnica, meios de transporte e de comunicao, dentre outros, mas essas respostas devem estar adequadas nossa realidade econmica e social e por isso mesmo baseadas na participao social e na simplificao de meios sem que isso signifique diferenas de cidadania.Precisamos realizar um trabalho permanente de conscientizao com a realizao de campanhas mobilizando a sociedade e o Estado, chamando participao, produzindo e divulgando conhecimento, tornando o pas parte do processo de resgate de cidadania.Precisamos atuar na rea de incluso social realizando atendimento especializado, orientando e encaminhando, normalizando a vida das pessoas com deficincia em suas dificuldades cotidianas.Precisamos, na rea de preveno, construir, integradamente com as aes bsicas de sade, medidas simples e que, inseridas nas rotinas do sistema, podem evitar at cerca de 60% das deficincias. necessrio fazer o atendimento em sade para as

  • pessoas com deficincia integrado s aes do Sistema nico de Sade. Mas as aes de governo de ateno sade tambm devem incluir o atendimento especializado a essas pessoas. urgente desenvolver um sistema efetivo de concesso de rteses e prteses. urgente fazer da reabilitao um programa aberto e abrangente que, atendendo s necessidades comuns da populao em geral, tambm proporcione reabilitao adequada s mltiplas necessidades das diferentes deficincias. inovadora a contribuio que o esporte pode assumir, tendo papis a desempenhar em diferentes campos. Por um lado tem grande potencial no processo de reabilitao, bem-estar e incluso social. Por outro pode ter no mundo atual que cultiva o esporte e d a ele enorme espao nos meios de comunicao um papel de liderana para a conscientizao social, sendo importante inovao estratgica para alcanar uma mudana na representao que a sociedade tem da pessoa com deficincia, atravs do belo e da eficincia que o esporte pode demonstrar.Na rea de educao precisamos trabalhar a incluso escolar com responsabilidade formando professores, informando os recursos humanos da rede escolar e aparelhando-a de tal modo que haja um resultado positivo da incluso, e no simplesmente a substituio de um sistema paralelo de educao especial por um sistema de excluso camuflada.Na rea de assistncia social precisamos lutar pela garantia do mnimo social. Lutar pela reviso da regulamentao equivocada do direito constitucional de um salrio mnimo a que tem direito a pessoa com deficincia que no tem meios de prover a prpria manuteno nem de t-la provida pela famlia. A limitao de renda mdia familiar de at um quarto

  • 53

    do salrio mnimo d a dimenso do total descompromisso com o problema.Precisamos intervir na rea de profissionalizao, trabalho e emprego utilizando como recursos metodolgicos a normalizao da realizao de cursos e treinamentos, da profissionalizao, da seleo para empresas, da prestao de servios. A insero profissional s acontece quando h adequada formao profissional. Nesse sentido necessrio que a grande maioria das diferentes instituies responsveis pela formao profissional em nosso pas se disponha a receber as pessoas com deficincia. As Escolas Tcnicas e os Sistemas Nacionais de Aprendizagem podem contribuir de maneira decisiva para romper o crculo que se fecha para as pessoas com deficincia. As universidades precisam se abrir para essa populao. As empresas tm um papel preponderante nessa incluso pelo trabalho quando entendem sua capacidade de realizar o processo de seleo e contratao com a exigncia da capacidade e da eficincia, sem focar na diferena que exclui. E podem ir ainda mais longe quando se apercebem do papel de exemplaridade que podem desempenhar.As aes de construo de direitos implicam em um duplo movimento: por um lado, uma atuao como movimento social parte de um processo de conscientizao da sociedade e do Estado, e por outro, uma ao na esfera jurdico-legal que, alm de resultar em ganhos de direito, colabora para uma mudana na conscincia social.Entendendo justia como objetivo maior da democracia, e justia social como aspirao do mundo moderno, lutar pelos direitos das pessoas com deficincia pode e deve se tornar uma luta engajada para nossa sociedade. necessrio incluir

  • a questo da deficincia dentre os temas da conscincia social brasileira, coloc-la nas discusses e nas propostas sobre a nossa dvida social.As pessoas com deficincia no querem mais a violncia do favor. So 18 milhes de brasileiros que no tm cidadania. Que no querem mais do Estado como favor o que lhes devido como obrigao. S poderemos viver uma democracia quando houver em nosso pas conscincia da existncia de 18 milhes de brasileiros com deficincia. A questo social latente em nosso pas est diretamente ligada compreenso do relacionamento entre diferena e igualdade, ponto primordial da questo da deficincia e da construo da democracia. Qualquer que seja a diferena, s a democracia pode respeit-la. E impossvel construir uma democracia sem respeitar as diferenas.

    Rio de Janeiro, agosto de 2008

  • 55

  • 57

    Entrevistas e perfis

  • 59

    As entrevistas e perfis reproduzidos a seguir foram realizados no Rio de Janeiro, entre julho de 2002 (Pedro Pacheco de Queiroz Filho e Eurico Carvalho da Cunha) e agosto de 2004.

    Pedro Pacheco de Queiroz Filho, professor da UFRJ por Marcos S Corra

    O professor Pedro Pacheco de Queiroz Filho livrou-se de um problema que estava ficando para l de complicado em julho de 2002: o planejamento de suas frias num hotel do interior. A programao da viagem custou-lhe muita busca na Internet, procura de um lugar que lhe parecesse adequado. Encontrou uma pousada em Minas Gerais. Mas para chegar l sem carro, teria que pegar um nibus para So Jos dos Campos, outro para Paraispolis e outro at a cidade de Gonalves, para dali em diante contar com a boa vontade do hoteleiro, que se dispunha a ir busc-lo na rodoviria. Alm disso, cada passeio pelos arredores do hotel implicava quatro ou cinco quilmetros de preocupaes adicionais.Montando a operao logstica, ele chegou a meados do ms

  • carregado de mapas da serra mineira, fichas com os hor-rios das empresas de transportes interestaduais e dvidas insolveis. Mas de repente se livrou de toda essa carga, ao receber a notcia de que estava aprovado no concurso pblico da Comisso Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Com isso, as frias acabaram antes de comear, o que em seu caso no deixava de ser um alvio. Havia tirado o primeiro lugar entre os assistentes de pesquisa, passando com mdia 102,06 num grupo em que havia aprovados com 58,50 pontos. Era o can-didato nmero 177 e, como a vida o ensinou a ser cauteloso, inscrevera-se para a vaga reservada a pessoas com deficincia. Pelo resultado, poderia at dispensar a regalia.Da viagem estava dispensado. Mas teria que tomar posse no fim do ms, depois de cumprir certas formalidades, como o exame de sade, e com elas comeava uma nova srie de problemas. Para ele, um exame mdico mais difcil que as provas. Sempre foi assim. Na escola pblica de Copacabana, no Rio de Janeiro, onde fez o primrio, o desafio nunca foi exatamente passar de ano. L em casa, isso era obrigao, diz ele. Duro mesmo era chegar a essa escola pblica e, depois de cantar o Hino Nacional no ptio, subir para a sala de aula por velhas escadas, marchando numa fila de colegas. Eu ficava com as pernas ardendo por causa do cido ltico, como se tivesse corrido numa competio olmpica, recorda-se.Naquele tempo, Pedro andava. Mal, mas andava. A distrofia muscular progressiva, doena hereditria e ainda incurvel, porm, j anunciava sua chegada por contraturas que lhe re-puxavam os calcanhares para cima. Aos seis anos, caminhava na ponta dos ps. Tinha o que a literatura mdica chama de andar eqino. Comeava a ter certa dificuldade para correr, pular, subir escada, fora a elevao dos calcanhares, explica.

  • 61

    E sabia o que isso queria dizer. Via na famlia seu pai e seus trs tios paternos em cadeiras de rodas.Aos oito anos, tinha a certeza absoluta de que herdara a do-ena. Mas ela foi durante muito tempo uma luta para continuar de p: Estou com nove, dez, 11 anos, terminei o primrio e ainda estou andando do mesmo jeito. Minha marcha no est comprometida. No posso fazer muitas coisas. No sou capaz de subir em nibus; se cair, preciso de ajuda para me levantar do cho. Mas, caminhando, eu sou igual a qualquer um, a no ser pelo fato de andar na ponta dos ps. Manteve at os trinta anos a expectativa de evitar a cadeira de rodas. Mudou de idia quando fazia o Doutorado em Fenomenologia das Partculas Elementares, no Instituto de Fsica da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E, como a doena, sua primeira cadeira foi herdada. Era uma Everest, toda de ferro cromado, que estava guardada com a famlia, diz. Seu pai havia morrido poucos anos antes num acidente estpido. Quebrara o fmur durante o banho de chuveiro em casa e uma embolia pulmonar o matou na enfermaria do hospital Miguel Couto, onde esperava pela cirurgia ortopdica. O Miguel Cou-to era ento um centro famoso de traumatologia. Mas pelo visto faltava na equipe algum para se lembrar de que uma pessoa com distrofia muscular, ainda por cima com uma perna imobilizada, dependia de cuidados especiais para se virar na cama. Ele ficou internado durante o Carnaval, com um calor danado. Numa sexta-feira, minha me chegou l para ajud-lo a tomar caf e o encontrou morto na enfermaria. Segundo os mdicos, ele teve uma embolia pulmonar. Mas do atestado de bito consta insuficincia respiratria. Tudo possvel. Morreu aos 56 anos. Era um nordestino de Timbaba (PE), que descobriu a doena depois dos 16 anos, e assim mesmo por

  • acaso. Ele era de 1930 e, em 1946, se meteu numa aventura junto com um dos irmos. Embarcou num navio cargueiro que levava animais para o Mediterrneo. Subiu a bordo como gru-mete, pensando que iria passear. Mas no navio percebeu que no tinha condies de executar as tarefas que lhe davam. O servio de marinheiro era pesado demais para ele. Foi assim que ele notou. Havia uma coisa errada com seu corpo. A av de Pedro trouxe os oito filhos de Timbaba para o Rio de Janeiro para tratar dos quatro que tinham distrofia muscular. Essa uma patologia que frustra a medicina desde o sculo XIX. Tem quarenta caras diferentes, cada uma com sua forma, seu ritmo e sua expectativa de vida. A mais grave, a de Du-chenne, identificada naquele sculo, costuma pr as pessoas em cadeira de rodas ainda na pr-adolescncia. Quando esto com vinte e poucos anos, a doena comea a comprometer funes vitais, afetando o funcionamento dos pulmes e do corao. O Brasil tem provavelmente oitenta mil pessoa com distrofia, nmero alto mas insuficiente para coloc-la entre as prioridades estatsticas das polticas nacionais de sade pblica. Na antiga capital da Repblica, ao contrrio do que a famlia Pacheco de Queiroz pensava ao sair de Timbaba, os mdicos no sabiam resolver o problema. Mas pelo menos a cidade naquela poca estava mais preparada para cuidar deles como deficientes fsicos. Sua av sustentou os oito filhos como modista. Quer dizer, era costureira. Havia muita festa no Rio e a clientela era boa. Dava para viver daquilo. Minha me, por sinal, conheceu meu pai porque foi trabalhar como bordadeira na casa de minha av. Uma lei da dcada de 1950 deu ao pai de Pedro uma licena especial para vender artesanato em barraca de rua, prerroga-

  • 63

    tiva que o poder pblico h muito tempo desistiu de exercer na cidade. O ponto que lhe coube, dividido com um cego chamado Alberto, ficava numa esquina da rua Dias da Rocha, em Copacabana. Aos poucos, seus irmos foram ganhando outras concesses no bairro. Postou-se um em cada esqui-na: Meu tio Newton, na da rua Raimundo Corra; meu tio Carlos, na da Santa Clara; e meu tio Renato, na da Figueiredo Magalhes. A barraca de artesanato sustentou a famlia at os anos 70. Um padro de classe mdia baixa, mas de classe mdia, lembra o professor. Enquanto deu, meu pai manteve os filhos na escola sem que precisassem trabalhar. Ele s con-seguiu terminar o secundrio, no quis nem tentar o curso de engenharia porque teria de ir faculdade de bonde, mas tinha essa coisa com educao. Filho seu tinha que estar na escola estudando. Ns nos acostumamos com isso. Quando passei no vestibular, no houve festa. Nem quando passei para o mestrado na UFRJ. Ou quando resolvi fazer o doutorado. Era obrigao. Com a barraca, o pai pagava o aluguel do apartamento de trs quartos em Copacabana. Foi somente na dcada de 1980 que as crises da economia brasileira comearam a derrubar o pa-dro de vida da famlia. Mudaram-se para um apartamento de dois quartos e houve uma fase de atrasos do aluguel. Mas os barraqueiros pernambucanos no chegaram a ver as esquinas de Copacabana tomadas informalmente por camels. Quando isso aconteceu, estavam todos mortos. Pedro se rendeu cadeira de rodas porque seu irmo, tendo revelado os sintomas da doena muito mais tarde do que ele, sofreu em casa uma fratura de fmur num acidente como o do pai. Estava na janela olhando a rua e levou um tombo de

  • nada, mas quebrou a perna. Foi um pnico total na famlia. Parecia que a histria iria se repetir. Juntamos todas as econo-mias, pedimos dinheiro emprestado e mandamos meu irmo para um hospital particular. Ele se recuperou. Mas era uma pessoa que andava e, depois daquela fratura, passou a ser um cadeirante. A eu pensei: se ele, que andava melhor do que eu, est usando cadeira, por que eu no vou usar? A deciso mudou sua vida. E surpreendentemente, depois de tantos anos de resistncia, mudou-a para melhor. Na ca-deira, em vez de se sentir preso, sentiu-se liberto. Antes, na hora do almoo, ficava sozinho na sala de aula e pedia a um colega de turma que me trouxesse um sanduche e um suco quando voltasse do intervalo. Depois, passei a sair do Bloco A e atravessar o campus do Fundo para ir comer, como todo mundo, no restaurante do outro lado. Teve, afirma, uma adap-tao quase instantnea cadeira de rodas. Pior foi vencer a averso psicolgica. A pessoa prefere andar se arrastando mas ficar de p para no se sentir diferente dos outros, diz ele. O olhar que se dirige a uma pessoa em cadeira de rodas sempre diferente do olhar para uma pessoa que anda mal, mas anda. E todo mundo foge desse olhar. Quatro anos atrs, Pedro descobriu coisa melhor: a cadeira mo-torizada. Deve a descoberta professora Maria Clara Migowski Pinto, que conheceu atravs de uma enfermeira, durante uma crise de pancreatite. A amizade feita no hospital virou uma aliana permanente. Juntos eles fundaram h quatro anos a Associao Carioca dos Portadores de Distrofia Muscular que, alm de brigar pelos direitos dos deficientes fsicos, serve para aproximar pessoas capazes de entender umas s outras. Foi assim que acabei entrando em contato com um movimento que at ento desconhecia. No fcil, fora de casa, encontrar

  • 65

    uma pessoa com distrofia. Parece que porque eles chamam muita ateno nas ruas. Mas no . Hoje, ele acredita que a troca de experincias um santo remdio. Muitas pessoas com distrofia se sentem mais limi-tadas do que deveriam. No conseguem lugar no mercado de trabalho por falta de formao profissional. O mercado muito fechado para deficientes. Sem preparo, fica praticamente im-penetrvel. Outros se deixam levar pelo quadro depressivo, porque a distrofia uma doena que tem isso. Ela vai evoluindo sempre; s vezes muito lentamente, mas sempre. Eu sei que o que eu fao hoje no poderei estar fazendo daqui a cinco anos. Sei porque quando tinha trinta anos eu era de um jeito. Aos trinta e cinco, era de outro. E agora no sou mais o que era. E sei tambm como meu pai estava aos 55 anos. Conheo pessoas com distrofia. Acompanho o processo delas. Maria Clara, a presidente da associao, aprendeu com Pedro a usar o metr do Rio. Agora ela no sai da Praa Saens Pea, na Tijuca, vinda l da estao de Rocha Miranda, onde d aulas numa escola primria de manh. Em compensao, um dia ela me pegou de repente no meio de um shopping e me mandou trocar de cadeira com ela. Queria que eu experimentasse o modelo motorizado. No chame de cadeira eltrica, por favor. Dei uma voltinha naquilo e pensei: ih! gostoso. Menos de seis meses depois, tinha comprado a minha. Escolhi uma nacional, das mais baratas. Custou R$ 3.500. Mas com ela adquiri a autonomia definitiva para ir e vir entre a universidade e meu apartamento na hora em que quero, sem precisar de ningum para me empurrar. Por que a cadeira motorizada faz tanta diferena? Porque a pessoa com distrofia no tem fora muscular, ele responde. Quer ver? Pe o cotovelo na mesa e estende a mo peque-

  • na, quase de criana. Derrot-lo numa queda-de-brao fcil. Difcil faz-lo com a devida leveza. E olha que pus toda a minha fora, ele comenta, como se dissesse uma bravata. Acho at que estou vermelho. Estava.Turbinado pelo motor eltrico, Pedro se move no labirinto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) como se estivesse em casa. Nas salas esvaziadas pelo recesso de ju-lho, se precisa de lugar para uma reunio, ele mesmo arruma o espao, empurrando cadeiras em volta da mesa como se manobrasse uma pequena empilhadeira silenciosa. A plata-forma em que apia os ps funciona nessas horas como ps. Com a ponta dos dedos, comanda uma alavanca que o torna espantosamente gil, capaz de conversar enquanto acompa-nha os passos do interlocutor pelas rampas e corredores da universidade. H seis anos, professor de Fsica na UERJ. Seu celular toca com freqncia e, quando chama, geralmente para tratar de problemas alheios, como mobilizar a associao para arranjar um aparelho de ventilao artificial para uma pessoa com distrofia em perigo de colapso cardiorrespiratrio. Cuida de si mesmo e dos outros. Quando posso, vou com a cadeira Saens Pea, pego o metr e saio onde quero. Em certas estaes, o segurana tem que me carregar nas escadas. Essa uma velha luta nossa. Pela lei, o metr tem de ser adaptado para cadeira de rodas. Mas at agora isso s aconteceu em alguns terminais. Em todo caso, eu ando sozinho de metr: vou para Copacabana, Botafogo, escolho aonde quero ir ao cinema. Costumo dizer que fao mais coisas assim do que se fosse pobre demais para comprar o ingresso. Para ele, o Rio de Janeiro tem em geral a extenso das linhas do metr. A Barra da Tijuca, por exemplo, Pedro mal conhece.

  • 67

    Nunca foi ao exterior, apesar da insistncia dos colegas. Sua especialidade acadmica territrio de nmades. A tal ponto que a Internet, como ele comenta, nasceu nos laboratrios de fsica de partculas pela necessidade de integrar pesquisadores ao redor do planeta. Mas ele nunca se animou a viajar muito. Conhece um pouco do Brasil, mas nada do Nordeste, de onde veio sua famlia. Mas um dia ainda pretende visitar Timbaba. Ao estdio do Maracan, quase na sua porta, j foi algumas vezes. Estreou num Fla x Flu. Estacionou na arquibancada disposto a torcer pelo Flamengo, como seu pai. Saiu do jogo Fluminense. A torcida do Flamengo pareceu-lhe acima de suas condies fsicas. Para a vida de professor e pesquisador, considera sua adapta-o quase completa. Aqui, estar ou no numa cadeira de rodas no faz muita diferena, diz ele. Principalmente, se voc um fsico terico e no experimental. Sua vida ir da frente do computador para a biblioteca e da biblioteca para a sala de aula. S precisa de uma mesa para trabalhar. Dou aula num retroprojetor, em vez de usar o quadro-negro. claro que no a mesma coisa. Mas d para o gasto. E gosto muito de dar aula. Foi uma coisa que acabou com minha inibio. J pensou em ter filho? Ainda no, mas no descarto essa hiptese. Meu irmo, que tambm tem distrofia, tem uma menina. Ela est com oito anos e normal. S no fico correndo atrs de casamento. Estou namorando h dois anos. Ela se chama Cludia, advogada, tem seqela de plio nas duas pernas, ainda no tempo da universidade praticou natao a srio. Cludia trabalha h 15 anos em defesa dos direitos dos deficientes. Foi ela, alis, quem redigiu os estatutos da associao que Pedro criou a partir de um rascunho feito aqui mesmo, numa sala da UERJ.

  • A aprovao no concurso da CNEN veio desarrumar essa ro-tina. Para comeo de conversa, a cidade onde sempre viveu vai ganhar no mnimo quarenta quilmetros. O laboratrio da comisso fica nos confins da Zona Oeste, para l da Barra da Tijuca. Um colega j est me chamando de emergente da Barra, ele confessa. Pela primeira vez na vida, aos quarenta anos, comeou a olhar com certo interesse para os autom-veis. Antes, nem sabia a diferena entre uma marca e outra. De repente, com a perspectiva concreta de viajar todo dia l para longe, comecei a notar que existe o Kangoo, o Berlingo... So modelos de furgo. Seu olho, quando bate num carro, a primeira coisa que enxerga o lugar da cadeira de rodas. Mas para lidar com dificuldades de locomoo, o que no falta a Pedro tarimba. Desde menino, ele trata dessa matria com ateno e mtodo. No colgio secundrio, eu j acordava pensando: vou ter que me levantar, ir at o ponto de nibus, subir no nibus cheio, pegar a escada. Nos intervalos das au-las, calculava: vou ter que chegar ao ptio, descer a escada, atravessar o corredor, tudo isso sem cair. Um carro, a essa altura, no o intimida. Pesquisar dosimetria em radioterapia na CNEN tambm no chega a ser novidade. Difcil, mesmo, ele achou foi uma formalidade burocrtica da admisso chamada exame de sade. Sinal de que o Pas continua a ser reprovado no tratamento da distrofia muscular.

  • 69

    Eurico Carvalho da Cunha, administrador de empresas por Marcos S Corra

    Esta no uma histria de cegueira. O administrador de empresas Eurico Carvalho da Cunha perdeu a viso aos sete anos de idade, mas aos 58 dirige uma das maiores cadeias de restaurantes do Rio de Janeiro, controlando pessoalmente o trabalho de quase quinhentos funcionrios. casado com Marluce Dias da Silva a diretora-geral da Rede Globo, que recentemente a revista Fortune ps em 37 lugar na lista das executivas mais importantes do mundo mas no vive sua sombra. Para falar de sua experincia, conversou durante mais de duas horas na sede do IBDD, no Rio, respondendo a seis entrevistadores, sem deixar uma s vez de identificar pela voz o nome de quem lhe dirigia uma pergunta ou perder o fio das longas respostas. Aqui ele conta como chegou to longe:

    MSC O que a cegueira? ECC Certamente, a cegueira para mim no excluso social.

    MSC Mas qual a sua sensao da cegueira? Por exemplo: para o escritor Jorge Luis Borges, que ficou cego muito tarde, foi o fim da escurido. Ele passou a viver num nevoeiro esver-deado e vagamente luminoso, que nunca se apagava. ECC Eu perdi a viso aos seis anos de idade. Na ocasio, claro que no tinha percepo plena das complicaes que aquilo poderia me trazer. Mas eu me lembro nitidamente do momento em que aconteceu. Estava sentado em meu quarto e vi contra a parede uma bola escura, que foi crescendo, crescendo e, de repente, fez com que eu no visse mais nada. Portanto, a pri-meira sensao foi de escurido. Mas a sensao do primeiro

  • instante. Com o tempo, a pessoa se habitua tanto a ela que deixa de avaliar se aquilo a escurido ou a claridade. Eu diria que nem a escurido nem a luminosidade permanente de viver debaixo de um poste de luz. s uma sensao natural. Mas um fato curioso que eu me lembro com nitidez das cores. Essa uma coisa que no perdi. Se eu voltasse a enxergar, tenho a plena convico de que saberia com clareza distinguir o azul, o vermelho, o amarelo. Essas cores esto muito vivas na minha memria. Esto at muito presentes.

    MSC O que foi a tal bola escura? ECC Eu tive descolamento de retina. Primeiro, aos quatro anos, perdi a viso no olho esquerdo num acidente banal que mudou muito pouco a minha vida. Meu av pediu um travesseiro. Meu irmo e eu fomos correndo buscar e comeamos a brigar no quarto, disputando para ver quem levaria o travesseiro. Meu irmo era mais velho e mais forte do que eu. Acabei caindo, bati com a cabea na ponta da cama e perdi a viso no olho esquerdo. Mas esse primeiro descolamento de retina para mim no foi vital, porque eu continuei enxergando com o outro olho. A sensao brutal de ficar cego eu s tive dois anos depois, quando j estava na escola, comeando a aprender e ainda via razoavelmente. Era uma criana agitada, que se metia muito em briga de rua, levava uma vida perfeitamente normal. Na minha famlia, ningum tomou aquele primeiro acidente como um sinal de que eu talvez precisasse de cuidados especiais. Na noite anterior ao segundo deslocamento de retina, lembro perfeitamente que estava brincando perto de casa e um me-nino me bateu com uma espingarda de brinquedo. Depois, fui jogar futebol e levei uma bolada na cabea. No dia seguinte, aconteceu.

  • 71

    MSC Poderia, ento, ter evitado ou pelo menos adiado o problema? ECC Adiar no me parece uma soluo. Perder a viso ainda criana talvez seja melhor do que perder a viso j adulto, porque a pessoa se prepara desde muito cedo para enfrentar os desafios. O aprendizado do braile, por exemplo, para mim foi muito facilitado por ter sido to cedo. Voc se habitua a conviver com a deficincia. Acho que os adultos que perdem a viso tm um desafio muito maior do que eu tive, prova-velmente. Aprender a conviver com a cegueira , dentro do possvel, acima de tudo, esquecer que ela existe. Acho que a cegueira, antes mesmo de ser um problema pessoal, um problema da sociedade. a sociedade que limita as pessoas cegas e, por isso, elas tambm se limitam. Elas se colocam obstculos porque os obstculos so postos para elas. No meu caso particular, o grande desafio da vida foi realmente no me autolimitar, no me impor barreiras e imaginar que grande parte das coisas que eu pudesse fazer faria de fato.

    MSC Aos sete anos? ECC Evidentemente, aos sete anos nem me ocorreu que eu teria que lidar com isso pelo resto da vida. Mas eu nunca parti do princpio de que, por causa da cegueira, as coisas seriam inacessveis. E desde cedo certos desafios podem ser decisivos. O primeiro deles foi o colgio interno. Aos sete, oito anos de idade, fui posto num colgio interno, o Instituto Benjamin Constant, na Urca, especializado em educao de cegos. Aquele era um mundo totalmente desconhecido para mim, que at ali vivera com meus pais. Depois, quando eu estava habituado a esse mundo, por volta dos 12, 13 anos, os professores do Benjamin Constant foram procurar meus

  • pais e disseram: Este menino tem condies, tem potencial. Ele pode enfrentar uma escola comum em condies pratica-mente idnticas s dos outros alunos e tem uma famlia que pode ajud-lo. Na poca, no havia nenhuma orientao em escolas comuns para lidar com alunos com deficincia. E eu fui estudar no Instituto Lafayette, uma escola particular na Ti-juca, sem qualquer servio de apoio para um estudante cego. De uma hora para outra, estava no meio de uma turma de adolescentes, com um professor no quadro-negro ensinando trigonometria, outro dando aula de desenho e eu tendo que conviver com aqueles desafios todos juntos. Foi uma experi-ncia muito dura num primeiro momento, mas eu realmente consegui aprender a lidar com ela muito bem. MSC Como? ECC Comecei a desenvolver certos mecanismos de compen-sao. Por exemplo, a memria. Precisava dominar o que era dito nas aulas porque eu tinha muito pouco acesso a livros. Ento, para mim, as aulas eram fundamentais. Muitas vezes, memorizava o que era dito pelos professores. Ou fazia cl-culos mentais. No Lafayette, acabei sendo bom aluno, tirava boas notas e quando o professor queria chamar a ateno de um colega me citava como exemplo: Como voc no est aprendendo? O Eurico est aprendendo tudo. Aquilo me in-comodava profundamente, porque fazia eu me sentir diferente dos outros e eu no queria ser diferente, queria ser igual. Co-mecei a me sentar no fundo da sala de aula e fazer baguna como todo mundo. S fiquei satisfeito quando fui suspenso, e durante um bom tempo deixei de ser citado como exemplo. A sim estava integrado.

  • 73

    MSC Os colegas o tratavam normalmente? ECC Quando cheguei quela fase dos 16, 17 anos, adolescn-cia, comecei a ter um pouco a sensao de no ser convidado para as festas. A primeira coisa que eu fiz foi organizar uma festa na minha casa. Todo mundo foi e da para frente, por reciprocidade, passei a ser convidado. Em pouco tempo, era eu que estava organizando as festas e os eventos da turma. Fiquei superintegrado. Combinava: amanh vamos ao teatro, ao barzinho, ao restaurante. Enfim, passei a ser o organizador das festas. Criei um grmio literrio-musical, um clube de conversao em ingls e, com isso, ganhava minha turma. So essas coisas, essas maneiras de conviver com as pessoas que resolvem se voc vai ou no ser socialmente aceito por elas. Voc tem de ir ao encontro delas. Esse o remdio contra o sentimento de excluso.

    MSC No seu caso, isso sempre funcionou? ECC Provavelmente, eu sempre tive na vida uma grande sorte. Acho que na vida preciso ter sorte tambm. Quando eu es-tava terminando o curso secundrio, o terceiro grande desafio foi escolher a faculdade. O que fazer? Em vez de fazer Direito ou Letras, como a maioria dos cegos faz, optei por um curso que era novo na poca, o de Administrao de Empresas, na Fundao Getlio Vargas (FGV). O curso tinha uns cinco ou seis anos de existncia, no mximo. Fui para l e deu certo. Ao termin-lo, veio aquela sndrome tpica de quem est se formando: e agora, qual o prximo passo? Como que vou me virar no mercado de trabalho? E a entrou a sorte, na for-ma de um concurso para professor que a FGV resolveu abrir exatamente naquele momento. Passei e um ms depois de me formar eu estava trabalhando, o que foi uma experincia

  • riqussima. Fiquei l por uns 12 anos. Cheguei a ser professor no curso de mestrado da FGV.

    MSC Quando virou consultor de empresas? ECC Depois de alguns anos, resolvi acumular a atividade de professor com a de consultor. Montei um escritrio, bem perto da FGV, no bairro de Laranjeiras, e comecei a fazer con-sultoria. Eu continuava entusiasmado com o magistrio, mas chegou uma hora que a consultoria passou a ser uma coisa de tal volume que tive de abandon-lo. Os meus assistentes comearam a dar mais aulas do que eu e fiquei envergonhado com essa situao. Demiti-me e trabalhei nesse escritrio de consultoria durante 15 anos. Viajava quase todas as semanas para atender clientes no Brasil inteiro. Prestei consultoria para mais de cem empresas dos mais diversos tipos. Mas por volta de 1990, acabei me cansando desse ritmo.

    MSC E tornou-se empresrio. ECC Virei empresrio quase por acaso. Como eu disse, estava cansado daquela correria. E me aconteceu uma coisa curiosa. Estava fazendo uma pesquisa para uma empresa de alimenta-o, que me obrigou a entrevistar donos de restaurante. Nesse tempo, eu freqentava uns restaurantes perto de minha casa, na Barra da Tijuca, cujo dono queria abandonar o negcio por causa de um assalto. Ele comeou a insistir muito para que eu comprasse um restaurante dele. Eu me esquivava: No tenho nada a ver com isso, sou do campo universitrio, trabalho com consultoria. Mas comecei a pensar naquilo: Afinal de contas, dei consultoria para tanta gente, por que no pr em prtica eu mesmo as idias que passo para os outros? Ento, resolvi enfrentar a mudana. Foi uma guinada total na minha vida.

  • 75

    MSC Hoje comanda quantos restaurantes? ECC Dezessete. Por causa deles, sou agora uma espcie de mestre-de-obras. Passo no mnimo dez ou 12 horas por dia discutindo com engenheiros e arquitetos projetos de reforma dessas casas e mudanas da decorao. Cuido mais de obras do que de qualquer outra coisa. E o resultado disso que acabei me interessando por arquitetura. Nunca pus as limita-es da cegueira no caminho do que quis realizar. Quando fui cursar Administrao ou virei professor da FGV ou consultor de empresas, nunca pensei nos impedimentos da deficincia fsica. Creio que as pessoas se autolimitam demais se ficam pensando nisso.

    MSC Que limites os outros tentaram lhe criar? ECC Ah, isso comea em casa, na famlia. Meus pais, por exemplo, temiam muito pelo meu futuro. Fui criado numa casa de classe mdia. Meu pai era mdico, trabalhava num laboratrio, o Roche. Morvamos na Tijuca. Quando resolvi estudar Administrao, ele e minha me ficaram absoluta-mente impactados com a notcia. Como voc vai fazer Administrao? Por que no faz Letras, vai dar aulas para algumas escolas, ensinar braile, enfim, vai fazer essas coisas que os cegos geralmente fazem? Houve grandes discusses em torno disso. Eu realmente queria buscar um campo novo, embora no soubesse exatamente, claro, o que iria acontecer comigo. Mas eles eram totalmente contra a minha deciso. Aprendi muito a quebrar essas barreiras com as discusses que tive com meu pai naquela poca.

    MSC E na infncia, a famlia no tentava proteg-lo demais por causa da cegueira?

  • ECC Claro que sim. S voltei a jogar bola, por exemplo, no Benjamin Constant, porque no internato no havia condio de meus pais acompanharem de perto tudo que eu fazia. Por isso o internato foi importante, embora muitas vezes eu tives-se um convvio complicado com as crianas de l. Elas eram difceis, em muitos casos, abandonadas. Mas, por outro lado, a liberdade e a autonomia que eu passei a ter foram muito im-portantes para mim, me deram condies para encarar a vida. Ao mesmo tempo, o isolamento prejudicava essa formao. No sei como a escola est hoje, mas naquela poca era um mundo parte. Quem vivia l tinha um contato mnimo com a realidade exterior. Isso nos criava problemas de postura social. A maioria dos cegos no cuidava da aparncia fsica, por exemplo. Como l dentro no tinham condies de se arrumar, no davam a menor ateno ao fato de estarem com uma roupa apropriada, com o cabelo penteado, com o sapato limpo. As pessoas no percebiam sozinhas e ningum lhes ensinava que isso seria fundamental para que se integrassem vida l fora, para que no fossem vistas como diferentes. O cego precisa saber como ser visto pela sociedade. Ele tem que saber quais so as referncias das pessoas que enxer-gam. Isso imprescindvel para suas relaes com o resto do mundo. Naquele tempo, no havia no Benjamin Constant nenhum tipo de preocupao nesse sentido, absolutamente nenhum. O Instituto era, como eu j disse, um mundo parte. Como a sociedade? O que ela espera de voc? Nada disso era sequer mencionado. Havia cursos meramente cognitivos. Voc aprendia matemtica, portugus, essas coisas. Minha sorte foi o fato de todo fim de semana ir para minha casa, onde convivia com meus pais, meus irmos e outros meninos. Assim, ia compreendendo como era o mundo l fora.

  • 77

    MSC Pelo que se v nesta entrevista, o senhor sempre reco-nhece a voz das pessoas com que fala e se lembra do nome delas, mesmo quando so muitas e acabaram de lhe ser apresentadas. Isso dom ou treino? ECC Tive a esse respeito uma experincia bastante interes-sante. Trabalhando como consultor de empresas e, ao mesmo tempo, como professor na FGV, eu lidava com muitos alunos e clientes, alm de coordenar seminrios para at cem pessoas. Nesses casos, eu geralmente tinha ao meu lado um assistente que, no primeiro contato, dizia os nomes das pessoas para mim. Da apresentao em diante, eu geralmente era capaz de me lembrar dos interlocutores e identificar pela voz os partici-pantes de uma turma, pelo menos os mais falantes. At isso eu devo ao magistrio. Foi uma experincia muito enriquecedora tambm do ponto de vista da desinibio. Quando comecei a trabalhar, por volta dos 16 anos de idade, dava aulas de ingls num cursinho perto de casa, o que foi muito til. Aprendi a me desinibir, a me dirigir a grupos, isso formou a base que me permitiu mais tarde ser professor da FGV. Mas desde crian-a, por causa da cegueira, comecei a exercitar a memria. E com isso, ela foi se desenvolvendo. Na poca do Lafayette, eu freqentemente precisava que os colegas lessem coisas para mim. E eu tinha que memorizar o que ouvia, no tinha como pegar o mesmo livro duas, trs, quatro vezes, como faz quem enxerga. Tenho muito boa memria, sim. At me surpreendo, eventualmente, com detalhes que sou capaz de recordar e nem eu mesmo sei dizer por que aquilo foi parar na minha cabea. Por exemplo, quando foi que Einstein escreveu a teoria da relatividade. Esse tipo de coisa.

    MSC Quantos telefones sabe de cor?

  • ECC Seguramente os telefones de todos os meus restauran-tes. No sei muito os dos outros, porque minha secretria faz as ligaes para mim. Mas todo domingo noite eu fao uma rodada dos restaurantes, ligo para cada um para saber como vo as coisas. Esses, com certeza, eu conheo de cor. E ainda fao exerccios para a memria. Atualmente, tenho nas minhas empresas cerca de quinhentos funcionrios. E fao exerccios com isso. Pego uma folha de papel e tento ir escrevendo os nomes dos que trabalham no restaurante tal, dos que trabalham em outro. E claro que consigo me lembrar praticamente de todos eles. So coisas que o cego vai desenvolvendo naturalmente. Volta e meia, minha mulher pega o telefone e me diz que est participando de um semi-nrio e precisa saber com urgncia o que aconteceu com o PIB brasileiro nos ltimos dez anos. Quase sempre eu sei a resposta. Porque a memria uma coisa que eu venho exer-citando pela vida afora.

    MSC Por falar em seu casamento com Marluce Dias: o senhor em casa d palpite sobre a TV Globo? ECC Dou mais palpite sobre a empresa do que sobre a pro-gramao, evidentemente. Mas devo dizer que, modstia parte, eu me considero bastante bem informado sobre a tele-viso. Sei quase tudo que est acontecendo sem ler jornais e revistas. Eu me informo exclusivamente pela TV e pelo rdio. Toda manh, enquanto estou fazendo meu alongamento, minha bicicleta ergomtrica, estou de ouvido na televiso ou seguindo o noticirio do rdio. S a j so uma hora e meia por dia de notcias. noite, ouo os telejornais. E como tenho boa memria, acabo sendo uma pessoa bem informada.

  • 79

    MSC Nada alm dos telejornais? ECC Assisto muito, por exemplo, aos debates da Globo News, que me interessam, e aos filmes. Teatro uma coisa de que particularmente gosto. Vou ao teatro com certa freqncia, porque no palco o texto mais importante e, para mim, mais fcil de acompanhar do que o filme. Mas j fui muitas vezes ao cinema. Existem filmes, claro, em que a parte visual indispensvel e, nesses casos, til ter algum ao lado para ir dizendo o que acontece na tela. Mas perfeitamente possvel assistir a um filme sem v-lo.

    MSC A entrevista d a impresso de que no houve frustra-es em sua vida. ECC Estou tentando me lembrar agora de frustraes srias que eu possa ter tido. Mas francamente estou com dificul-dade. Talvez porque em grande parte eu tenha procurado basear minha vida na autoconfiana, na vontade de vencer. Eu me lembro de estar no Benjamin Constant aos nove anos j pensando no meu futuro, o que faria ao longo da vida. Pro-vavelmente, amadureci muito cedo. Com o sofrimento, ou voc amadurece ou sucumbe. Sem energia para a vida, voc se transforma numa pessoa amargurada. A vida impe desa-fios o tempo todo e o cego precisa ter coragem no cotidiano, nas pequenas coisas, em cada pequena coisa. Para um cego, a queda de um objeto pode significar uma dificuldade muito grande. Ento, ele tem que ser uma pessoa organizada. Eu me organizo da melhor forma possvel, porque sei que um objeto no lugar errado uma barreira de trabalho. Voc tem que se programar, ser metdico, atacar cada pequeno desafio com determinao e planejamento.

  • MSC Para que este relgio de pulso? ECC Parece comum, mas um relgio falante. Diga-se de pas-sagem que ainda est no horrio de vero. Est atrasado uma hora, o que engraado porque eu tenho muita preocupao com o tempo. Na minha mesa de trabalho h um relgio que fala baixinho, para no incomodar as pessoas, mas de meia em meia hora ele diz que horas so. Com isso, vou controlando meu tempo. s vezes minhas reunies so longas demais. Eu costumo dizer que sofro de reunite. Tenho reunies de manh noite, todos os dias, praticamente das nove da manh s nove da noite.

    MSC Isso vcio de consultor de empresas? ECC , e eu no me livrei dele. Na minha atual atividade, to-cando meus prprios negcios, tambm me reno o tempo todo. Por isso, o relgio me ajuda bastante.

    MSC Nas cem empresas a que deu consultoria, o senhor ten-tou tambm deixar a marca de programas para deficientes? ECC Os primeiros deficientes empregados em programao de computadores no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) foram postos ali por ns, se no me engano, em 1974. Quase trinta anos atrs. Houve um movimento para isso. Faza-mos campanha pela imprensa, programas de rdio, levvamos o assunto a jornais e televiso. Tentvamos influenciar nesse sentido os legisladores na poca. Esse movimento funcionava na FGV. Tinha um nome curioso: Centro Operacional Pedro de Alcntara, porque foi Dom Pedro II quem fundou o Benjamin Constant. Durante uns trs ou quatro anos, eu participei do movimento, cheguei at a dirigi-lo. Depois, comecei a ficar muito envolvido com a consultoria e no tive mais tempo de

  • 81

    me dedicar a isso diretamente. Mas confesso que aproveitei pouco essa oportunidade de consultoria para chamar a ateno das empresas sobre o problema da pessoa com deficincia, embora ache que meu exemplo de algum modo j fosse uma forma de divulgar o assunto. Mas de forma concreta acho que fiz pouco. Na Dataprev, como consultor, empregamos alguns deficientes. Mas eram aes eventuais.

    MSC O sucesso, na sua opinio, depende do mrito individual ou do esforo coletivo? ECC De ambos. Desde que sa do Benjamin Constant, houve avanos importantes na legislao brasileira para a integrao da pessoa com deficincia, embora o mercado para ele ainda seja muito limitado. Nisso tambm o Brasil continua muito atrs dos Estados Unidos, da Europa, do Japo. preciso que a sociedade brasileira avance muito nesse sentido. Mas eu, que fui professor, consultor e atualmente sou empresrio, acho essencial pr a competncia frente da deficincia. A deficincia atrapalha, mas um aspecto complementar de sua vida e no o centro dela. Eu posso falar com a maior naturalidade sobre a minha cegueira, mas ela no o tema principal de minha vida.

  • Valente O exemplo da Proview Depoimento de Srgio Horovitz por Ana Cludia Monteiro

    Valente, no dicionrio, um adjetivo que designa aquele que tem valor ou valentia, audaz, corajoso, intrpido, forte, vigoro-so, ativo, resistente,