incerteza jurisprudencial: a controvertida...

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INCERTEZA JURISPRUDENCIAL: A CONTROVERTIDA PERDA DO OBJETO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RAZÃO DE SENTENÇA SUPERVENIENTE 1. Introdução Questão processual que tem gerado alguma controvérsia no âmbito doutrinário e jurisprudencial se refere à perda ou não do objeto do agravo de instrumento, interposto em face de decisão interlocutória proferida no curso processual, em razão de sentença superveniente proferida pelo juízo de primeiro grau. No atual Código de Processo Civil, após as alterações feitas pela Lei nº 11.187/2005, o cabimento do agravo de instrumento se restringe às decisões interlocutórias proferidas no curso do processo que sejam suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação ou nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, conforme artigo 522 do compêndio processual. Tendo em vista que a interposição do agravo de instrumento contra decisão proferida no curso do processo, em regra, não suspende seu andamento, permitindo a continuidade até a prolação da sentença, não é raro que a fase cognitiva do processo encontre seu fim antes do julgamento do agravo de instrumento. O ilustre doutrinador Nelson Nery Junior, nesse sentido, ensina: “O princípio oposto (o da recorribilidade em separado das interlocutórias), se adotado, conspiraria para a procrastinação do andamento do processo e, quiçá, em verdadeira denegação de justiça em face da inevitável demora até se chegar ao provimento de mérito almejado pelo autor. Nem seria bom cogitar-se de que, a cada decisão interlocutória no curso do processo, se paralisasse todo o procedimento até que fosse cada qual resolvida, individualmente, para, somente então, o processo retomar o andamento normal. Seria, por assim dizer, admitir-se apelação ampla contra cada decisão interlocutória. Esse é o verdadeiro sentido do princípio da irrecorribilidade em separado das interlocutórias: coibir ‘apelações’ contra as decisões proferidas no curso do processo” 1 . Nesse cenário surge a controvérsia sobre qual destino dar ao agravo de instrumento. 1 Néri Júnior, Nelson. “Teoria Geral dos Recursos”. 6ª ed. São Paulo: Ed RT, 2004, pg. 180.

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INCERTEZA JURISPRUDENCIAL: A CONTROVERTIDA PERDA DO

OBJETO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RAZÃO DE

SENTENÇA SUPERVENIENTE

1. Introdução

Questão processual que tem gerado alguma controvérsia no âmbito doutrinário

e jurisprudencial se refere à perda ou não do objeto do agravo de instrumento, interposto em

face de decisão interlocutória proferida no curso processual, em razão de sentença

superveniente proferida pelo juízo de primeiro grau.

No atual Código de Processo Civil, após as alterações feitas pela Lei nº

11.187/2005, o cabimento do agravo de instrumento se restringe às decisões interlocutórias

proferidas no curso do processo que sejam suscetíveis de causar à parte lesão grave e de

difícil reparação ou nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a

apelação é recebida, conforme artigo 522 do compêndio processual.

Tendo em vista que a interposição do agravo de instrumento contra decisão

proferida no curso do processo, em regra, não suspende seu andamento, permitindo a

continuidade até a prolação da sentença, não é raro que a fase cognitiva do processo encontre

seu fim antes do julgamento do agravo de instrumento.

O ilustre doutrinador Nelson Nery Junior, nesse sentido, ensina:

“O princípio oposto (o da recorribilidade em separado das interlocutórias), se

adotado, conspiraria para a procrastinação do andamento do processo e, quiçá, em

verdadeira denegação de justiça em face da inevitável demora até se chegar ao

provimento de mérito almejado pelo autor. Nem seria bom cogitar-se de que, a cada

decisão interlocutória no curso do processo, se paralisasse todo o procedimento até

que fosse cada qual resolvida, individualmente, para, somente então, o processo

retomar o andamento normal. Seria, por assim dizer, admitir-se apelação ampla

contra cada decisão interlocutória. Esse é o verdadeiro sentido do princípio da

irrecorribilidade em separado das interlocutórias: coibir ‘apelações’ contra as

decisões proferidas no curso do processo” 1.

Nesse cenário surge a controvérsia sobre qual destino dar ao agravo de

instrumento.

1 Néri Júnior, Nelson. “Teoria Geral dos Recursos”. 6ª ed. São Paulo: Ed RT, 2004, pg. 180.

2

Assim, o presente estudo pretende analisar a sorte que deve ser dada ao agravo

de instrumento interposto em face de decisão interlocutória quando haja, antes de seu

julgamento, ou de seus consectários, a prolação de sentença, fixando, especificamente: (i) as

correntes doutrinárias existentes sobre o tema; (ii) a evolução jurisprudencial no âmbito do

Superior Tribunal de Justiça.

É importante frizar que não se pretende, em razão do prórpio objetivo deste

artigo, analisar, em separado, todas os tipos de decisões interlocutórias sobre as quais possa

recair o agravo de intrumento.

Ainda que o destino do agravo de intrumento, quando da prolação de sentença,

dependa, como se defenderá mais adiante, da natureza da decisão que recorreu, não

trataremos de cada decisão em separado, e nem mesmo nos restringiremos a um único tipo de

decisão interlocutória, não obstante a maioria dos julgados do STJ se referir a tutelas

antecipadas.

2. Considerações doutrinárias

A doutrina processual, assim como a jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça que mais adiante será analisada, elencam dois critérios para solucionar tal caso: (i)

critério hierárquico; (ii) critério cognitivo, que podem ser assim definidos:

(i) Critério Hierárquico: por essa perspectiva, a decisão do tribunal,

proferida por órgão colegiado, qual seja, a decisão nos autos do

agravo de instrumento, não ficaria prejudicada por conta da

superveniência de sentença, pois os efeitos desta ficariam

condicionados ao desprovimento do agravo. Segundo Fredie Didier Jr. “Este é o chamado critério da hierarquia e com base nele se entende que,

justamente porque há a possibilidade de as decisões serem incompatíveis (acórdão

do agravo e sentença), o agravo de instrumento não fica prejudicado por conta da

superveniência de sentença”; 2 (ii) Critério Cognitivo: por essa visão, a sentença proferida pelo

juízo de 1ª instância sempre prevalecerá sobre a decisão proferida nos

autos do agravo de instumento, uma vez que se trata de decisão

proferida com base em juízo de cognição exauriente. Assim, nas

2 Didier Junior, Fredie; Cunha, Leonardo José Carneiro da. “Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais”. 8ª ed.Salvador; JusPodivm, 2010. Vol.3, pg 173/179

3

palavras de Fredie Didier Jr,. “a sentença englobaria a decisão

interlocutória impugnada – que fora proferida com base em juízo de

cognição sumária -, de modo que o agravo de instrumento pereceria o

seu objeto”3.

Em artigo publicado na Revista de Processo, o professor Welder Queiroz dos

Santos, ao analisar as posições doutrinárias sobre a perda ou não do objeto de agravo de

instrumento interposto em face de decisão antecipatória da tutela – deve-se ressaltar a

restrição do tipo de decisão recorrida pelo agravo que o ilustre professor analisou –, assim

consignou:

“Teresa Arruda Alvim Wambier entende que o agravo resta prejudicado, por perda

de objeto, quando interposto contra a decisão que concede ou não uma liminar.

Afirma ainda que todo segmento recursal derivado de decisão interlocutória

concessiva ou denegatória de liminar perde a utilidade e a sentença prolatada é que

prevalece.

Sobre a sorte do agravo de instrumento, Nelson Nery Junior sustenta que na hipótese

de o agravo de instrumento ser interposto contra decisão interlocutória diversa de

antecipatória de tutela, os atos processuais que são praticados posteriormente à

decisão agravada ficam sujeitos à condição resolutiva, dependendo do

desprovimento do recurso. No entanto, quando se refere à medida liminar

antecipatória da tutela, entende que a situação é diferente. Para Nelson Nery Junior,

a sentença de mérito superveniente independe da cassação ou da manutenção da

liminar antecipatória, uma vez que tanto a liminar quanto a sentença decidirão sobre

a mesma matéria, sendo a liminar antecipatória absorvida pela sentença.

Cassio Scarpinella Bueno também compartilha do entendimento de que a decisão

antecipatória da tutela é absorvida pela sentença. Assevera que se o agravo de

instrumento não tiver sido julgado, não deve mais ser julgado. Como o agravo

dirige-se à específica decisão interlocutória que antecipa os efeitos da tutela, com a

sentença, essa decisão passa a não existir mais. Por fim, manifesta sua concordância

com o entendimento do STJ de que o “recurso especial interposto de acórdão

proferido em agravo de instrumento dirigido à decisão antecipatória da tutela em

primeira instância fica prejudicado pela superveniência da sentença”.

Após afirmar que a análise da questão do agravo de instrumento pendente de

julgamento e prolação da sentença depende da natureza da decisão interlocutória

3 Didier Junior, Fredie; Cunha, Leonardo José Carneiro da. “Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais”. 8ª ed.Salvador; JusPodivm, 2010. Vol.3, pg 173/179

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recorrida e do fato de a sentença ter ou não transitado em julgado, Daniel Amorim

Assumpção Neves assevera que se tratando de decisão interlocutória que tenha

como objeto uma tutela de urgência – antecipada ou cautelar – proferida a sentença,

aquela é imediatamente substituída por esta, já que a tutela definitiva substitui a

tutela provisória, devendo o relator do agravo pendente de julgamento no tribunal

não conhecer do recurso “por perda superveniente de objeto ( recurso

prejudicado)”. Entende ainda que a substituição é imediata e independe do trânsito

em julgado ou da interposição de apelação.”4

O que se verifica dos ensinamentos supra transcritos é que, apesar de se

referirem a um tipo específico de agravo de instrumento, aquele que impugna decisão

antecipatória da tutela, a perda ou não do objeto do agravo, para tais doutrinadores, deve se

pautar no caso concreto, quer dizer, deve ficar condicionada à natureza da decisão que se

agravou.

A análise em estanque dos critérios hierárquico ou cognitivo pode levar a

péssimas soluções. Podemos imaginar uma sentença que tenha fundamento em documento

cuja falsidade material fora alegada em agravo de instrumento pendente de julgamento: por

ser uma questão prévia ao próprio mérito da sentença, não há como aplicar, por exemplo, o

critério cognitivo para dizer que o agravo de instrumento perdeu seu objeto.

Nesse caso, como leciona Nélson Nery Jr., a sentença é dada sob condição, sua

eficácia depende do desprovimento do Agravo. Assim “caso seja provido, implementa-se a

condição e resolve-se a sentença. Todos os atos processuais praticados depois da

interposição do agravo (a sentença inclusive) serão anulados, caso sejam incompatíveis com

o resultado do provimento do agravo” 5

No mesmo sentido doutrina Teresa Arruda Alvim Wambier, quando diz que

“(...) o destino que deve ser dado ao agravo, depois de proferida a sentença, depende do

conteúdo da decisão impugnada”6.

Assim, o ideal não é pré-determinar a aplicação de um dos conceitos, da

cognição ou hierárquico, mas aplicá-los de acordo com a análise do caso concreto, que

4 Queiroz dos Santos, Welder. “Tutela antecipada, agravo de instrumento pendente e prolação da sentença”. Revista de Processo. Vol. 199. p. 281. Set/2011 5 Nery Jr., Nélson. “Liminar impugnada e sentença irrecorrida: a sortedo agravo de instrumento”. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judicias, São Paulo: Ed. RT, 2003, pg 532/528 6 Wambier, Teresa Arruda Alvim.”O destino do agravo após a sentença”, in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. Nelson Nery Jr. E Tereza arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT,2003. Pg 689.

5

determinará o destino a ser dado ao agravo depois de proferida a sentença. Nesse sentido são

os ensinamentos de Fredie Didier:

“Há casos em que é evidente a utilidade do agravo de instrumento, mesmo

sobrevindo sentença. É o que ocorre, por exemplo, nos casos em que é indeferido o

pedido de denunciação da lide: sobrevindo sentença contrária ao litisdenunciante,

por óbvio que permanecerá ele interessado no julgamento do agravo de instrumento

por ele interposto contra aquela decisão interlocutória e eventualmente pendente de

julgamento.

É o que também ocorre nos casos em que a decisão interlocutória resolve

parcialmente o mérito da demanda, mediante a antecipação do julgamento de um dos

seus capítulos, quando ele prescinde de dilação probatória. Nesses casos, não se

pode dizer, em absoluto, que a sentença superveniente esvaziará o conteúdo do

agravo de instrumento eventualmente interposto contra aquela decisão, até porque a

sentença sequer poderá tangenciasr o capítulo de mérito resolvido pela

interlocutória, sob pena de ofensa à coisa julgada.

(...)

Mas há casos em que, efetivamente, a superveniência da sentença termina por

esvaziar o conteúdo do recurso de agravo. É o que ocorre, em regra, nos casos em

que se interpõe agravo de instrumento contra decisão interlocutória que antecipa os

efeitos da tutela jurisdicional sob o fundamento de que estão ausentes os requisitos

para a sua concessão. Sobrevindo sentença confirmatória da tutela antecipada, não

há mais sentido em se discutir a presença ou ausência daqueles requisitos, tendo em

vista o juízo de cognição exauriente com que foi proferida esta decisão final. O

mesmo acontece em relação ao agravo de instrumento interposto contra o

indeferimento da litisdenunciação, nos casos em que a sentença final favorece o

litisdenunciante.” 7

Parece claro que não há uma regra que determine, independente do conteúdo

do agravo de instrumento, sua perda de objeto em razão de superveniente sentença. Aliás,

pode-se até afirmar o contrário após leitura do artigo 559 do Código de Processo Civil:

Art. 559. A apelação não será incluída em pauta antes do agravo de instrumento

interposto no mesmo processo.

Parágrafo único. Se ambos os recursos houverem de ser julgados na mesma sessão,

terá precedência o agravo.

7 Didier Junior, Fredie; Cunha, Leonardo José Carneiro da. “Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais”. 8ª ed.Salvador; JusPodivm, 2010. Vol.3, pg 173/179

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Entretanto, como será abordado no próximo tópico, a questão é divergente

perante o Superior Tribunal de Justiça.

3. A Questão no Âmbito do Superior Tribunal de Justiça

O Superior Tribunal de Justiça diverge, ao longo dos anos, sobre o tema,

tendo, no entanto, prevalecido o entendimento de que, independente do objeto do agravo de

instrumento, em razão do critério cognitivo, este sempre perderá seu objeto quando da

prolação de sentença superveniente.

Tendo em vista a divergência existente no âmbito da Corte, necessário se faz

verificar a evolução, ou mais apropriado ao caso, a involução do tema perante o STJ, através

da verificação de seus julgados ao longo do tempo.

Inicia-se a análise com o Resp 742512/DF, publicado no DJ em 21.11.2005,

em que o seu relator, o ministro Castro Meira, entendeu pela prevalência do agravo de

instrumento após a prolação da sentença, já que no caso concreto, o mesmo não perdera o seu

objeto. Importante frizar que o argumento utilizado não foi o da prevalência do critério da

hierarquia, mas da necessidade de observar o caso concreto. Eis a ementa do voto do ilustre

relator:

RECURSO ESPECIAL Nº 742.512 - DF (2005/0062075-9) EMENTA PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM PROCESSO CAUTELAR JULGADO POSTERIORMENTE À SENTENÇA. DÚVIDA QUANTO Á PERDA DE OBJETO. ALEGAÇÃO DE JULGAMENTO ULTRA PETITA . AUSÊNCIA. 1. A superveniência da sentença no processo principal não conduz, necessariamente, à perda do objeto do agravo de instrumento. A conclusão depende tanto "do teor da decisão impugnada, ou seja, da matéria que será examinada pelo tribunal ao examinar o agravo, quanto do conteúdo da sentença" (O destino do agravo depois de proferida a sentença. Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outros Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Série 7. Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier - coordenadores. São Paulo: RT, 2003). 2. A questão soluciona-se pela aplicação de dois critérios: a) o da hierarquia, segundo o qual a sentença não tem força para revogar a decisão do tribunal, razão por que o agravo não perde o objeto, devendo ser julgado; b) o da cognição, pelo qual a cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária da interlocutória. Neste caso, o agravo perderia o objeto e não poderia ser julgado. 3. Se não houver alteração do quadro, mantendo-se os mesmos elementos de fato e de prova existentes quando da concessão da liminar pelo tribunal, a sentença não atinge o agravo, mantendo-se a liminar. Nesse caso, prevalece o critério da hierarquia. Se, entretanto, a sentença está fundada em elementos que não existiam ou em situação que afasta o quadro inicial levado em consideração pelo tribunal, então a sentença atinge o agravo, desfazendo-se a liminar.

7

4. Trata-se de medida cautelar no curso da qual não houve alteração do quadro probatório, nem qualquer fato novo, entre a concessão da liminar pelo tribunal e o julgamento de improcedência do pedido do autor. Prevalência do critério da hierarquia. Agravo de instrumento não prejudicado. 5. Ausência de julgamento ultra petita. 6. Recurso especial improvido.8

No entanto, a ministra Eliana Calmon proferiu voto divergente, enfatizando a

adoção do critério da cognição:

VOTO-VENCIDO EXMA. SRA. MINISTRA ELIANA CALMON: Sr. Presidente, tenho algumas colocações a fazer. Em primeiro lugar, considero muito perigoso o STJ, adotando o critério da hierarquia, tomar como tese jurídica a possibilidade de decisão interlocutória do Tribunal valer mais do que a sentença de 1º grau. Atualmente, a grande luta da magistratura é no sentido de repor a dignidade da Justiça de 1º grau. No momento em que essa Corte adota o critério da hierarquia, está a dizer que vale mais um exame perfunctório, em decisão interlocutória do Tribunal, do que uma sentença de mérito, com juízo exauriente, do magistrado de 1º grau. Essa tese jurídica, dentro do STJ, é perigosíssima, porque chancela mais um ato de grande e profundo desprestígio à magistratura de 1º grau. Hoje a primeira instância está deformada, funcionando como uma corte de passagem, espécie de protocolo do Tribunal. Por essas razões, não aceito o critério da hierarquia, pois adoto o da cognição. Entendo que a sentença tem prevalência sobre a decisão do Tribunal. É natural que caia por terra a decisão interlocutória que foi examinada no Tribunal, à vista dos pressupostos pertinentes a uma interlocutória, em cognição sumária. Este é o princípio, mas naturalmente existem exceções. Excepcionalmente, diante do periculum in mora, quando comprovada a inutilidade do processo se não se preservar a situação fática, será possível a quebra do princípio. Novamente, pontuo minha preocupação em adotar-se o critério da hierarquia, porque este é um Tribunal de precedentes e, tecnicamente, há de ser mantida a estrutura do processo, em que o 2º grau revê a decisão de 1º grau à vista da fundamentação nela contida. A decisão do Tribunal é válida e sobrepõe-se a do juiz de 1º grau quando proferida em revisão, em substituição ao juízo de primeiro grau. Isto não é o discurso processual; parece-me, data maxima venia, que é técnica procedimental, servindo inclusive para acabar a superposição de recursos, com o fim de buscar uma liminar. Peço vênia ao Sr. Ministro Castro Meira, que teve toda a preocupação de expor, com muita clareza, seu ponto de vista, mas dou provimento a este recurso.

O ilustre ministro Luiz Fux proferiu voto de desempate, prevalecendo o voto

do ministro relator Castro Meira. No entanto, da leitura do voto do ministro Luiz Fux,

verifica-se que diferentemente do ministro Castro Meira, o eminente professor da UERJ

adotou o princípio da hierarquia, independente do caso concreto, uma vez que defende não 8 Resp 742512/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11.10.2005, publicado no D.J. 21.11.2005.

8

haver, em nosso ordenamento jurídico, a possibilidade de uma decisão de 1ª grau prevalecer

no plano da eficácia sobre uma decisão de 2ª grau, verbis:

VOTO-DESEMPATE RECURSO ESPECIAL. LIMINAR E E CONCESSÃO EM AGRAVO. REVOGAÇÃO PELA SENTENÇA. MANUTENÇÃO DO PROVIMENTO DE URGÊNCIA. PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. 1. A consagração do duplo grau de jurisdição implica na competência de derrogação das decisões inferiores pelas decisões superiores. 2. Conseqüentemente, denegada a liminar em primeiro grau e deferida no segundo grau, na forma do art. 512 do CPC, a decisão superior substitui da decisão inferior. 3. Consectariamente, a reforma do provimento liminar pela sentença não influi na concessão do mesmo em face do acolhimento do efeito ativo do agravo que lhe é superior. 4. A revogação da sentença somente opera a revogação da tutela antecipada concedida pelo Tribunal, pela revogação trânsita de decisão do mesmo órgão julgador competente para julgar a apelação. 5. A ratio essendi da Súmula 405 do STF pressupõe o princípio da hierarquia e da cognição, por isso que ressoa ilógico que se o juízo da liminar confere sentença contrária, mantenha-se a liminar adotada em cognição sumária. 6. Outrossim, se o Tribunal concedeu a liminar, somente a reforma da sentença pelo próprio Tribunal tem o condão de esvaziar a decisão do Tribunal. 7. Deveras, não é por outra razão, senão por prejudicialidade, que o agravo sempre deve ser incluído em pauta antes da apelação, até porque, do seu julgado posterior pode esvaziar-se o interesse de agir no julgamento da apelação. 8. A Ação Cautelar, in casu, restou por conferir solução provisória à lide, sem qualquer ofensa às leis federais, porquanto é da sua essência atingir de forma mediata "a lide e o seu fundamento", na forma do art. 801 do CPC. 9. A possibilidade de apreciação do fumus boni juris não impede senão impor que o juiz adentre no meritum causae da ação principal para empreender essa composição provisória, sem a eiva do julgamento ultra petita. 10. Sob o ângulo da jurisprudência de resultado, o mandado, in casu, tem término previsto para menos de 2 (dois) meses, o que revela a insignificância da prestação jurisdicional, hipótese lindeira a prestigiada tese do fato consumado. 11. Recurso Especial desprovido, nos termos do voto do E. Relator.

Entretanto, logo após o julgamento do recurso supra transcrito, em decisão

publicada em 19.12.2005, a Primeira Seção do STJ, na Rcl 1444/MA, de relatoria da ministra

Eliana Calmon, decidiu de maneira diametralmente oposta.

Assim, na Rcl 1444/MA ficou decido pela prevalência da sentença, aplicando-

se o critério da cognição. No caso da Reclamação em comento, o STJ decidiu pela perda de

objeto do Recurso Especial interposto em sede de Agravo de Instrumento, tendo em vista a

superveniência da sentença de mérito: VOTO A EXMA. SRA. MINISTRA ELIANA CALMON (RELATORA): – A decisão proferida pelo STJ no recurso especial atacou tutela antecipada e não aceitou a

9

decisão concessiva. Entretanto, esta tutela não mais existe, porque já foi substituída pela sentença de mérito que confirmou a liminar. Verifica-se, portanto, que a reclamação perdeu inteiramente o sentido porque não se dirige contra a tutela antecipada, enquanto estamos diante de uma sentença meritória. Há uma corrente minoritária nesta Corte, inclusive com recente julgado da Segunda Turma, a qual, filiando-se à teoria da hierarquia, entende que não pode o julgador revogar expressa ou tacitamente uma medida adotada pelo Tribunal, mesmo em juízo exauriente e de mérito, como o que ocorreu na hipótese. O meu entendimento é no sentido de não aceitar a manutenção de uma tutela antecipada outorgada pelo Tribunal, se ela está em desacordo com a sentença de mérito proferida pelo juiz de primeiro grau. Nesse sentido são os arestos seguintes: (...) Dessa forma, nego provimento à reclamação, ficando prejudicado o julgamento dos embargos de declaração. É o voto.9

Verifica-se da análise da jurisprudência do STJ que a maioria das decisões

monocráticas e dos acórdãos proferidos pelas Turmas é no sentido da perda do objeto do

agravo de instrumento quando da superveniência de sentença, em razão da aplicação

indiscriminada do princípio da cognição.

No entanto, em julgamento datado de 17.03.2010 foi proferida decisão pela

Corte Especial - órgão orientado a uniformizar a jurisprudência do STJ - no bojo de Embargos

de Divergência em Recurso Especial, EREsp 765105 / TO, de relatoria do Ministro Hamilto

Carvalhido, em que, por 6 votos a 5, ficou decidido que não há perda do objeto do agravo de

instrumento interposto em face de medida antecipatória da tutela, mesmo após a prolação de

sentença de procedência. Confira-se

Processo EREsp 765105 / TO EMBARGOS DE DIVERGENCIA EM RECURSO ESPECIAL 2007/0294006-6 Relator(a) Ministro HAMILTON CARVALHIDO (1112) Órgão Julgador CE - CORTE ESPECIAL Data do Julgamento 17/03/2010 Data da Publicação/Fonte DJe 25/08/2010 Ementa EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA DECISÃO QUE CONCEDE TUTELA ANTECIPADA. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA DE MÉRITO CONFIRMANDO A TUTELA. PERDA DO OBJETO. INOCORRÊNCIA.

9 Recl 1444/MA. Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 23.11.2005, DJ 19.12.2005.

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1. A superveniência da sentença de procedência do pedido não prejudica o recurso interposto contra a decisão que deferiu o pedido de antecipação de tutela. 2. Embargos de divergência rejeitados. Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da CORTE ESPECIAL do Superior Tribunal de Justiça, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Teori Albino Zavascki conhecendo dos embargos de divergência e dando-lhes provimento, no que foi acompanhado pelos votos dos Srs. Ministros Nilson Naves, Felix Fischer, Gilson Dipp e João Otávio de Noronha, e os votos das Sras.. Ministras Eliana Calmon e Laurita Vaz e dos Srs. Ministros Luiz Fux, Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator, por maioria, conhecer dos embargos de divergência e os rejeitar, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencidos os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Nilson Naves, Felix Fischer, Gilson Dipp e João Otávio de Noronha. As Sras.. Ministras Eliana Calmon e Laurita Vaz e os Srs. Ministros Luiz Fux, Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior votaram com o Sr. Ministro Relator. Não participou do julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão e Nancy Andrighi.10

Os embargos de divergência foram opostos em razão da divergência existente

entre os arestos proferidos pela Primeira Turma, no AgRgREsp nº 638.561/RS, Relatora

Ministra Denise Arruda, pela Segunda Turma, no AgRgAgRgREsp nº 917.581/PR, Relatora

Ministra Eliana Calmon, e pela Quinta Turma, no AgRgREsp nº 587.514/SC, Relatora

Ministra Laurita Vaz, que decidiram pela perda do objeto do agravo de instrumento após a

prolação da sentença, em razão da aplicação do critério da cognição, em face do aresto

proferido no processo que gerou os embargos de divergência que ora se analisa. Isso porque

no processo que gerou os embargos de divergência então analisados foi proferida decisão de

subsistência do agravo de instrumento, não obstante a superveniência de sentença de

procedência.

De pronto verifica-se que, por terem sido recebidos os embargos de

divergência, a questão que ora se analisa era absolutamente divergente no âmbito do STJ.

Vejamos o teor do voto do ministro relator, Hamilton Carvalhido, que prevaleceu por 6 votos

a 5: “EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 765.105 - TO (2007/0294006-6) VOTO O EXMO. SR. MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO (Relator): Senhor Presidente, embargos de divergência interpostos por Durval Lúcio da Costa e outro contra acórdão da Terceira Turma deste Superior Tribunal de Justiça, assim ementado: (...) É que, enquanto a Terceira Turma decidiu que "A sentença de mérito superveniente não prejudica o agravo de instrumento interposto contra a tutela

10 EREsp 765105 / TO. Rel Ministro Hamilton Carvalhido, Corte Especial, julgado em 17.03.2010, DJ 25.08.2010.

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antecipada" , a Segunda Turma decidiu que o recurso relativo à antecipação da tutela perde o objeto com a superveniência da sentença de procedência, que absorve os seus efeitos, por se tratar de decisão proferida em cognição exauriente. Numa palavra, situa-se a divergência em se a sentença de procedência torna prejudicado o recurso interposto contra a decisão que defere antecipação de tutela. Manifesta a divergência entre julgados de Turmas de Seções diversas, devidamente comprovada e demonstrada na forma do disposto no artigo 255, parágrafos 1º e 2º do Regimento Interno deste Superior Tribunal de Justiça, inclusive com o cotejo analítico individualizado, em relação a cada acórdão paradigma, conheço dos presentes embargos de divergência. (...) Isso estabelecido, tenho que a superveniência da sentença de procedência do pedido não torna prejudicado o recurso interposto contra a decisão que deferiu a antecipação dos efeitos da tutela. É que a antecipação da tutela não antecipa a sentença de mérito, mas sim a própria execução do julgado que, por si só, não produziria os efeitos que irradiam da tutela antecipada. Não é outro o sentido que exsurge da lei processual, valendo anotar, a propósito, o que dispõe o artigo 273 do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994: (...) E o artigo em referência, na regra da execução provisória, em sua redação anterior à Lei nº 11.232, de 2005: (...) E na regra do pedido de cumprimento de sentença, pela letra do artigo 475-O, incluído pela Lei nº 11.232, de 2005: (...) Nesse sentido, confiram-se os seguintes precedentes: "PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. COMPENSAÇÃO DE VALORES INDEVIDAMENTE RECOLHIDOS. SENTENÇA DE MÉRITO. AUSÊNCIA DE PERDA DO AGRAVO INTERPOSTO DA DECISÃO DA TUTELA ANTECIPADA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. TUTELA CASSADA NOS TERMOS DA SÚMULA 212/STJ. 1. Não perde o seu objeto o agravo de instrumento desafiado de decisão que concede antecipação da tutela, em sobrevindo a sentença de mérito da ação. A decisão que concede antecipação da tutela não é substituída pela decisão de mérito posto que os seus efeitos permanecem até que seja cassada pela instância superior. “Não há relação de continência entre a tutela antecipada e a sentença de mérito. A aludida tutela não antecipa simplesmente a sentença de mérito; antecipa, sim, a própria execução dessa sentença, que, por si só, não produziria os efeitos que irradiam da tutela antecipada. (REsp 112.111/PR; Min. Ari Pargendler.) 2. Pacificada a jurisprudência das 1ª e 2ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o instituto da compensação, via liminar em mandado de segurança ou em ação cautelar, ou em qualquer tipo de provimento que antecipe a tutela da ação, não é permitido. Aplicação da Súmula nº 212/STJ: “A compensação de créditos tributários não pode ser deferida por medida liminar”. 3. Recurso especial provido para cassar a tutela antecipada." (REsp 546.150/RJ, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/12/2003, DJ 08/03/2004 p. 176)

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"AGRAVO REGIMENTAL. TUTELA ANTECIPADA. SENTENÇA DE MÉRITO SUPERVENIENTE. PERDA DO OBJETO RECURSO ESPECIAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO. 1. O julgamento definitivo da questão em 1ª Instância não exaure o conteúdo do provimento concedido em sede de antecipação da tutela, uma vez que seus efeitos sobrepõem-se muitas das vezes à fase de conhecimento, antecipando no tempo a execução da própria sentença. 2. Agravo regimental a que se nega provimento." (AgRg no Ag 470096/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/09/2003, DJ 13/10/2003 p. 331) Pelo exposto, rejeito os embargos de divergência. É O VOTO.”

Verifica-se que o voto vencedor dos embargos de divergência entendeu pela

prevalência do agravo de instrumento interposto em face de decisão antecipatória da tutela,

não obstante a superveniência de sentença de procedência, sob o argumento de que, no caso, a

sentença terá seus efeitos imediatos, podendo desde sua prolação ser executada, em razão da

antecipação de tutela já deferida, de forma que o agravo de instrumento permanece útil, já que

pode inviabilizar essa execução imediata da sentença.

O entendimento do ministro relator se baseia no artigo 520, VII, do Código de

Processo Civil, que prevê o recebimento da apelação apenas em seu efeito devolutivo quando

a sentença confirmar os efeitos da tutela. Nesse caso, que é exatamente o caso concreto que

foi julgado, o agravo de instrumento interposto da decisão que antecipou a tutela permanece

com objeto a ser julgado, mesmo após a prolação da sentença de procedência, visto que terá

como finalidade obstar a execução imediata e provisória da sentença, que não será obstada

pela apelação, recebida em seu efeito apenas devolutivo, se confirmada a antecipação de

tutela.

Assim, o que se percebe do voto do ilustre ministro relator é que, a depender

do caso concreto – do objeto do agravo e do objeto da sentença - o agravo de instrumento,

após a prolação da sentença, perderá ou não seu objeto.

Acompanharam o ministro relator em seu voto os ministros Aldir Passarinho,

Luiz Fux, Laurita Vaz e Eliana Calmon, essas duas últimas acompanharam a íntegra do voto

do relator, sem qualquer ressalva, não obstante terem posição consolidada na corte pela

aplicação do critério da cognição para concluir pela perda do objeto do agravo de instrumento

após a prolação de sentença.

O voto divergente, que restou vencido, proferido pelo ministro Teori Albino

Zavascki, entendeu pela perda do objeto do agravo de instrumento, tendo em vista que o

julgamento da causa esgota a finalidade da medida liminar, prevalecendo a sentença a partir

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de então, deixando claro a sua posição pela aplicação do critério cognitivo para resolução do

conflito em apreço. Eis a transcrição do voto no que interessa ao presente estudo:

O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI:

(...)

4. Assim considerada a situação, não há dúvida de que, processualmente, está prejudicado o julgamento do agravo de instrumento interposto contra a decisão deferitória da liminar, já que esta esgotou inteiramente a função para a qual foi deferida no processo. Com efeito, as medidas liminares, tanto as antecipatórias quanto as tipicamente cautelares, são provimentos jurisdicionais com características e funções especiais. São editados em situações peculiares de ocorrência ou de iminência de risco ou de perigo de dano ao direito ou ao processo. Justamente em razão da urgência, são medidas tomadas à base de juízo de verossimilhança, que, por isso mesmo, se revestem de caráter precário, não fazem coisa julgada e podem ser modificadas ou revogadas a qualquer tempo. Elas exercem, no contexto da prestação jurisdicional, uma função de caráter temporário, vigorando apenas pelo período de tempo necessário à preparação do processo para o advento de outro provimento, tomado à base de cognição exauriente e destinado a dar tratamento definitivo à controvérsia. É importante realçar esse aspecto: as medidas liminares desempenham no processo uma função essencialmente temporária. Ao contrário dos provimentos finais (sentenças), que se destinam a trazer soluções com a marca da definitividade, as liminares são concedidas em caráter precário e com a vocação de vigorar por prazo determinado. É o que já ensinava Calamandrei, em seu conhecido e didático estudo sobre as medidas cautelares: (...) Convém anotar que, no entendimento de Calamandrei, uma das espécies do que denomina de medida cautelar está a medida que antecipa provisoriamente providências relacionadas com o mérito (tutela antecipatória), '...destinada a durar hasta el momento em que a esta regulación provisoria de la relación controvertida se sobreponga la regulación de carácter estable que se puede conseguir a través del más lento proceso ordinario' (op.cit., p. 59). O signo da temporariedade das medidas liminares decorre, portanto, do necessário vínculo de referência e de dependência que guardam em relação aos provimentos de tutela definitiva, cujos efeitos ela antecipa provisoriamente. É a tutela definitiva, com a qual mantêm elo de referência, que demarca a função e o tempo de duração da tutela provisória. Isso significa que, em relação às liminares, o marco de vigência situado no ponto mais longínquo no tempo é justamente o do advento de uma medida com aptidão de conferir tutela definitiva. É por isso que o julgamento da causa esgota a finalidade da medida liminar. Daí em diante, prevalece o comando da sentença, tenha ele atendido ou não ao pedido do autor ou simplesmente extinguido o processo sem exame do mérito. Procedente o pedido, fica confirmada a liminar anteriormente concedida bem como viabilizada a imediata execução provisória (CPC, art. 520, VII). Improcedente a demanda ou extinto o processo sem julgamento de mérito, a liminar fica automaticamente revogada, com eficácia ex tunc (súmula do 405 do STF), ainda que silente a sentença a respeito. A partir de então, novas medidas de urgência devem, se for o caso, ser postuladas no âmbito do próprio sistema de recursos, seja a título de efeito suspensivo, seja a título de antecipação da tutela recursal, medidas que são cabíveis não apenas em agravo de instrumento

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(CPC, arts. 527, III e 558), mas também em apelação (CPC, art. 558, § único) e, como medida cautelar, em recursos especiais e extraordinários (Regimento Interno do STF, art. 21, IV; Regimento Interno do STJ, art. 34, V). 7. Ante o exposto, dou provimento aos embargos de divergência, para confirmar o acórdão do tribunal local, sem prejuízo da medida cautelar deferida no âmbito do recurso especial 936.599 (MC 14.378/TO). É o voto.

A posição do ilustre ministro Teori Albino Zavascki pode gerar, como

consequência da aplicação do critério da cognição, a não observância dos princípios da

eficácia e celeridade do processo, já que, com a perda do objeto do agravo de instrumento, em

razão da superveniente sentença de procedência, que confirmou a tutela antecipada, o réu teria

que, para não ver o julgado imediatamente executado, interpor apelação dessa sentença, que

não será recebida no efeito suspensivo ope legis, e dessa decisão - dos efeitos em que a

apelação será recebida - interpor novo agravo de instrumento, retardando o processo e

gerando um número excessivo de recursos.

Ressalte-se, oportunamente, que não obstante o ilustre doutrinador Nélson

Nery Jr. ter posicionamento mais consentâneo com o voto vencedor, no específico caso de

agravo de instrumento interposto de tutela antecipada, quando da prolação da sentença de

procedência, o mesmo defende a posição exarada no voto vencido, isto é, pela

prejudicialidade do agravo de instrumento:

“O objeto do agravo de instrumento é a cassação da liminar. Se a sentença tiver

julgado procedente o pedido, terá absorvido o conteúdo da liminar, ensejando ao

sucumbente a impugnação da sentença e não mais da liminar (...) A sentença se

sobrepõe à interlocutória anterior, que concedera a liminar, e ela, sentença, é que

poderá vir a ser impugnada por meio do recurso de apelação (...)”11

Com essa decisão da Corte Especial, que tem como um de seus objetivos

uniformizar a jurisprudência do STJ, poderíamos imaginar que, a partir de então, a questão

quanto à perda ou não do objeto do agravo, em razão de sentença superveniente, teria sido

consolidada de acordo com o voto vencedor.

No entanto, verifica-se que a jurisprudência amplamente majoritária no STJ é,

ainda hoje, no sentido oposto ao que a Corte Especial decidiu. Em pesquisa realizada no site

do STJ, nos anos de 2010, 2011 e 2012, são encontrados apenas dois acórdãos, prolatados

11 Nery Jr., Nélson. “Liminar impugnada e sentença irrecorrida: a sortedo agravo de instrumento”. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judicias, São Paulo: Ed. RT, 2003, pg 532/528

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pela 4º e 2ª Turma, que seguiram o decidido pela Corte Especial no julgamento do EREsp

765105 / TO. Confira-se: Processo REsp 962117 / BA RECURSO ESPECIAL 2007/0142272-0 Relator(a) Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (1123) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 04/08/2011 Data da Publicação/Fonte DJe 05/09/2011 Ementa PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. SÚMULA N. 284/STF. ILEGITIMIDADE PASSIVA. COISA JULGADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO JULGADO APÓS PROLAÇÃO DE SENTENÇA. PERDA DE OBJETO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Atrai a incidência do óbice previsto na Súmula n. 284/STF a alegação de que o art. 535 do CPC foi violado desacompanhada de argumento que demonstre efetivamente em que ponto o acórdão embargado permaneceu omisso. 2. A orientação do STJ de que a superveniência de sentença de mérito acarreta a perda do objeto do agravo de instrumento deve ser observada com ponderação e a perda de objeto do agravo há de ser verificada no caso concreto, visto que, em determinadas situações, a utilidade do agravo mantém-se incólume mesmo após a prolação da sentença. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nessa parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.12 Processo REsp 1233290 / PR RECURSO ESPECIAL 2011/0020261-5 Relator(a) Ministro HUMBERTO MARTINS (1130) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 26/04/2011 Data da Publicação/Fonte DJe 03/05/2011

12 REsp 962117 / BA. Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma, julgado em 04.08.2011, DJ 05.09.2011.

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Ementa PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA DECISÃO QUE INADMITIU ASSISTÊNCIA SIMPLES. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA DE MÉRITO. PERDA DO OBJETO. NÃO OCORRÊNCIA. INTERESSE DE AGIR AFERIDO EM CONCRETO. 1. Inexistente a alegada violação do art. 535 do CPC, pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, como se depreende da análise do acórdão recorrido. 2. Esta Corte Superior tem entendimento consolidado no sentido de que a prolação de sentença de mérito, mediante cognição exauriente, enseja a superveniente perda de objeto do agravo de instrumento. 3. A aplicação desta orientação jurisprudencial, todavia, deve ser feita com parcimônia. Isto porque a perda de objeto do agravo de instrumento não deve ser analisada em abstrato. O destino a ser dado ao agravo de instrumento, depois de proferida a sentença, depende do conteúdo da decisão impugnada. 4. Haverá casos - como na apreciação da tutela de urgência - em que a sentença superveniente, por ser prolatada após um juízo amparado em cognição exauriente, esvaziará o conteúdo do recurso de agravo. Em outras situações, contudo, a utilidade do agravo de instrumento permanece intacta, ainda que sobrevenha sentença. 5. Tanto é assim, que o próprio Código de Processo Civil, em seu art. 559, determina que, "a apelação não será incluída em pauta antes do agravo de instrumento interposto no mesmo processo". Ora, se podem coexistir agravo de instrumento e apelação, é porque esse não restou prejudicado com a prolação da sentença. 6. No caso dos autos, é evidente que o interesse do recorrente em ingressar na lide como assistente não ficou deteriorado com a prolação da sentença, até porque, trata-se de uma questão processual que não foi envolvida no julgamento do mérito. Recurso especial provido. Acórdão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator, sem destaque." Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator. 13

Verifica-se, portanto, que não obstante a decisão proferida pela Corte Especial

do STJ em 2010, continua sendo posição predominante naquele tribunal o entendimento pela

perda do objeto do agravo de instrumento, de forma indiscriminada, quando da prolação da

sentença, em razão da aplicação do critério da cognição.14

13 REsp 1233290 / PR. Rel. Ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 26.04.2011, DJ 03.05.2011 14 AgRg no AREsp 98370 / RO. Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 12.06.2012, DJ 20.06.2012; AgRg no REsp 1178665 / SC Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 12.05.2012, DJ 21.05.2012; AgRg nos EDcl no REsp 1232873 / PE Rel. Ministro Francisco Falcão, 1ª Turma, julgado em 10.04.2012, DJ 20.04.2012; REsp 1266918 / SC Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 16.02.2012, DJ 27.02.2012; AgRg no REsp 1114681 / SP Rel. Ministro César Asfor Rocha, 2ª Turma, julgado em 21.06.2012, DJ 01.08.2012.

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A posição do STJ, no que diz respeito à aplicação do critério da cognição de

forma indiscriminada, sem avaliação do caso concreto, além da não observância do que já

ficou decidido pela Corte Especial, merece críticas, vez que dissociada dos pressupostos de

eficácia, celeridade e uniformização processuais, como acima mencionado.

Não parece consentâneo com a segurança jurídica que deve permear as

relações processuais, a existência de tamanha indefinição jurídica, que acarreta ainda a

possibilidade de co-existir nos diversos tribunais do país decisões absolutamente díspares. O

papel do Superior Tribunal de Justiça é exatamente extirpar incongruências jurisprudenciais,

jamais fomentá-las.

Merece ressalva, por último, a possibilidade da polêmica objeto do presente

estudo ter seu fim decretado com o ingresso no mundo jurídico do novo Código de Processo

Civil (PLS 166/2010 aprovado no Senado Federal e PLC 8046/2010 em trâmite na Câmara

dos Deputados) que preverá o regime da irrecorribilidade em separado das decisões

interlocutórias como regra, movido pela tendência já existente dos tribunais de diminuir o

acúmulo de recursos que possuem para julgar, concentrando seus esforços no julgamento das

apelações.

Como dito, o regime da irrecorribilidade no Projeto de Código de Processo

Civil é a regra, entretanto, o seu artigo 929 prevê quatro exceções em que será possível

interpor agravo de instrumento das decisões interlocutórias proferidas no curso do processo.

A primeira dessas hipóteses se refere à possibilidade de interposição do agravo

de intrumento contra decisão que diga respeito a tutela de urgência ou da evidência.

Guilherme Jales Sokal bem define a razão de tal exceção:

“A razão da possibilidade de revisão imediata nessas hipóteses reside no resguardo

dos efeitos práticos do reexame, que ficaria sensivelmente prejudicado se aguardada

a solução definitiva da causa. Os efeitos constritivos dessas medidas incidentais,

assim, imporiam ônus possivelmente injustificados a uma das partes por período de

tempo muito longo, de forma que o recurso imediato se mostra como a única via de

afastar o perecimento de direitos de modo irreversível.”15

As outras hipóteses que permitirão a interposição do agravo de instrumento

são, (i) decisões que versem sobre o mérito da causa, (ii) decisões proferidas na fase de

15 Jales Sokal, Guilherme. “A impugnação das decisões interlocutórias no processo civil”. O novo processo civil brasileiro (direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo código de processo civil); coordenador Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense 2011, pg. 421-425.

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cumprimento de sentença ou no processo de execução, (iii) e nos demais casos expressos no

Código ou em outras leis esparsas.

Assim, tendo em vista que a maioria das discussões travadas no âmbito do STJ

se referem a agravo de instrumento interposto em face de decisões que anteciparam a tutela, a

polêmica nessa espécie não será sanada pelo futuro Código de Processo Civil, o que é mais

uma razão a intesificar a necessidade da corte especial do Brasil unir esforços para

uniformizar sua jurisprudência.

4. CONCLUSÃO

Do exposto, é possível verificar as seguintes conclusões:

(i) A questão quanto à perda ou não do objeto do agravo de instrumento

interposto de decisão interlocutória, quando haja superveniência de sentença, é divergente

principalmente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça;

(ii) A doutrina prevê três formas para solução do caso, quais sejam, a) a

aplicação do critério da hierarquia; b) a aplicação do critério da cognição; c) ou a não

aplicação de nenhum dos critérios pré- definidamente, verificando as peculiaridades do caso

concreto, para então concluir pela perda ou não do objeto do agravo;

(iii) Existe uma tendência maior da doutrina em se filiar a essa última forma

de resolução da questão aqui estudada, condicionando a sorte do agravo de instrumento à

natureza da decisão que o mesmo recorreu, em conjunto com a natureza da sentença que foi

prolatada;

(iv) A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem um histórico de

prevalência do critério da cognição;

(v) Entretanto, em 2010, após o julgamento pela Corte Especial de caso em

que se questionava a perda do objeto de uma agravo de instrumento interposto em face de

decisão antecipatória da tutela, em razão de posterior sentença de procedência prolatada -

EREsp 765105 / TO - , ficou fixado o entendimento de que, a perda do objeto do agravo

depende da verificação, no caso concreto, do interesse remanescente na decisão do agravo,

não obstante a sentença;

(vi) Apesar da pretensa uniformização de jurisprudência realizada pela

Corte Especial, continua sendo jurisprudência majoritária do STJ a aplicação, indiscriminada,

do critério cognitivo, para verificar a perda do objeto do agravo de instrumento.

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(vii) O futuro Código de Processo Civil, ainda como projeto em trâmite nas

casas legislativas, pode pôr fim a parte dessa discussão já que prevê, como regra, a

irrecorribilidade em separado das deciões interlocutórias. Entretanto, prevê algumas exceções

à essa regra, dentre elas se encontra a possibilidade de interpor agravo de instrumento de

decisão que diga respeito a tutela de urgência ou da evidência.