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Fritz Lang, ou o homem duplo
Inácio Araújo
Fritz Lang conheceu tempos sombrios. Passou pela Primeira Guerra, onde em que
perdeu um olho. Conheceu o horror do pós-guerra alemão, com suas instituições em
farrapos. Viveu a ascensão do nazismo, após a qual partiu para o exílio, onde passou
pela Segunda Guerra e suas decorrências, o pesadelo atômico e a guerra fria.
Estsa vivência do horror é que se encontra tão presente em sua obra, onde em
que a experiência humana traz filme após filme a marca da tragédia e da desrazão.
Penso que a palavra desrazão significa bem uma parte considerável de seu
trabalho, onde no qual existe um esforço insano da razão para sobrepor-se à
irracionalidade, tão insano que a própria insanidade parece não raro apoderar-se da
razão para compor um universo sombrio, doloroso, instável.
Eles podem lutar por dinheiro, por mulher, por poder. Afirmam-se não sobre a
natureza, mas sobre outros homens. Seu igual é seu pior inimigo, sua sombra.
Lang criou, desde a juventude, um mundo de seres divididos, onde se tem a
impressão de que nunca podemos ser um só. Como diz Joan Bennett em O segredo da
porta fechada (Secret Beyond the Door..., 1948), quando Michael Redgrave a vê: é
como se olhasse por baixo da de minha maquiagem.
Porque sob o rosto existe sempre outro rosto. Não era assim com M., o vampiro
de Düsseldorf (M, 1931)? Estse homem tão comum que podia ser qualquer um, até ser
tomado por uma outra sombra, um outro fantasma, outra uma alma (pode-se escolher o
nome), estse outro eu para quem matar crianças era uma necessidade urgente.
E o que dizer do pProfessor. Baum, o psiquiatra hipnotizado pelos escritos do
Dr.Dr. Mabuse em O testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse,
1933)? Baum transfigurava-se no homem disposto a criar o caos em busca do poder
absoluto, depois de exercer o habitual poder absoluto do psiquiatra, servindo-se dele.
Fico com os exemplos mais óbvios, mais sintomáticos destse desarranjo
profundo que para Fritz Lang é o homem. Desarranjo incontornável, incorrigível.
Trágico, em suma.
Pois aquele que deseja regenerar-se, como a Gloria Grahame de Os corruptos
(The Big Heat, 1953), é contempladoa com o café fervendo que vai transformar seu
rosto em dois: um belo e sadio, o outro desfigurado e doloroso. Esta queimadura, no
entanto, será a marca de sua honestidade, ou, antes, de sua duplicidade. Pois assim são
os homens.
Assim é o Michael Redgrave de O segredo da porta fechada, estse marido que
ora podemos sentir gélido, ora gentil. Ora nNão sabemos se é um homem de verdade ou
o simples terror da exogamia experimentado por Joan Bennett.
Podemos, por fim, pensar em Dana Andrews, no simpático jornalista Dana
Andrews, de Suplício de uma alma (Beyond a Reasonable Doubt, 1956), o filme das
reviravoltas mais estonteantes, mais inverossímeis e, no entanto, talvez as mais
verdadeiras pelo que expõem da visão languiana do humano. Pois ali esse este homem
que luta tão tenazmente contra a pena de morte e suas iniquüidades não será ele próprio
alguém a matar friamente e por motivos torpes outros seres humanos.?
Sim, nós sofremos nos filmes de Lang. Eles são carregados de um mistério que
não está apenas na tela, mas que se transporta para a existência de cada um, e nos coloca
em questão, em alerta, em risco. Que questiona nossa identidade, como se devêssemos
ao fim de cada filme perguntar quem afinal somos e reafirmá-lo.
Toda a dor do século 20XX, até 1960, parece tomar forma nos filmes de Fritz
Lang. Entre tantos grandes cineastas clássicos, não há dúvida de que ele está entre os
maiores. Mas entre os maiores não sei se existe algum em que a dor de existir se
manifeste tão claramente e se deixe transmitir não como experiência pessoal, mas como
mácula universal.