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In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi, de Liszt, enquanto possível lugar metafórico e teológico César Alberto Rego Lomba Magalhães ___________________________________________________ Dissertação de Mestrado em Musicologia Histórica (26, ABRIL, 2011)

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In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi, de Liszt, enquanto possível lugar metafórico e teológico

César Alberto Rego Lomba Magalhães

___________________________________________________

Dissertação

de Mestrado em Musicologia Histórica

(26, ABRIL, 2011)

Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em Musicologia Histórica, realizada sob a orientação científica do

Drº Paulo Ferreira de Castro.

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In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi, de Liszt, enquanto possível lugar metafórico e teológico

de César Alberto Rego Lomba Magalhães

PALAVRAS-CHAVE: lugar teológico – metáfora – signo – mudança – Transfiguração

RESUMO: O nosso primeiro propósito com esta dissertação é descrever e explicar uma concepção, partilhada por alguns teólogos modernos, do fenómeno musical enquanto potencial metáfora da Palavra e, deste modo, enquanto veículo possível para meditar acerca do Mistério Cristão. A figura central de Jorge Pique Colado, na a sua tentativa de sistematizar uma Teologia do Musical, constituirá o alvo privilegiado da nossa atenção. Mais tarde, e como segundo propósito, tentaremos estudar o caso particular de uma peça de piano composta por Franz Liszt no seu último período, In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi S.188, de modo a tentar provar o seu potencial semiológico e, consequentemente, a sua relevância teológica. Tentaremos demonstrar a eficácia comunicacional desta peça enquanto Signo do evento, relatado nos evangelhos sinópticos, da Transfiguração de Jesus.

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In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi, by Liszt, as a potencial theological and metaphorical place

by César Alberto Rego Lomba Magalhães

KEYWORDS: theological place – metaphor – sign – change – Transfiguration

ABSTRACT: Our first purpose with this dissertation is to describe and explain a view, shared by some modern theologians, over the musical phenomena as a potencial metaphor of the Word and, therefore, as a possible vehicle to meditate about the Christian Mistery. The central figure of Jorge Pique Collado, in his attempt to systematize a Musical Theology, will be the main target of our attention. Later, as our second purpose, we will attempt to study the particular case of a piano piece composed by Franz Liszt in his late period, In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi S.188, in order to prove its semiological potential and, therefore, its theological relevancy. We will try to demonstrate the communicational efficiency of this piece as a Sign to the event, reported by the synoptic gospels, of Jesus Transfiguration.

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ÍNDICE

Introdução ........................................................................................................... 5

I – O fenómeno musical enquanto possível locus theologicus.......................... 9

Sobre a ideia de Percepção Estética do Mistério , em Collado....................... 10

A Música enquanto Metáfora.......................................................................... 22

II – Introdução ao sentido teológico do Mistério da Transfiguração ............... 37

III – In festo… de Liszt, enquanto possível lugar metafórico e teológico ...... 48

O último período de Liszt .............................................................................. 49

Uma aproximação ao texto musical................................................................ 59

Uma aproximação ao texto musical enquanto representação..........................62

In festo… enquanto lugar metafórico da ideia de mudança .............................. 65

Uma última possibilidade de leitura de In Festo… como lugar teológico ......... 81

Conclusão.......................................................................................................... 86

Bibliografia ...................................................................................................... 89

Apêndice: Partitura………………………………………………………..…97

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Introdução

O trabalho que nos propusemos a realizar, em virtude dos seus objectivos,

recorre a conhecimentos de várias disciplinas. Como trabalho transdisciplinar que tenta

ser, abrange questões não só do tipo musicológico, como teológico e filosófico. Um dos

principais objectivos do nosso trabalho é descrever e reflectir sobre os pressupostos que

orientam a abordagem de alguns teólogos modernos ao fenómeno musical,

nomeadamente de Jorge Pique Collado, pelo que será necessário estabelecer um diálogo

constante entre musicologia e teologia. Tendo como eixo central uma peça de Liszt, este

trabalho não se resume unicamente a essa peça mas é nela que encontra o seu pretexto e

o seu acabamento. Ela servirá de caso de estudo e ocupará a segunda metade do nosso

trabalho. Em parte, a abordagem que pretendemos fazer à peça é do tipo largamente

semiológico. A semiologia trata do signo e é enquanto signo que desejamos tratar a peça

de Liszt. A proposição – In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi enquanto

possível lugar metafórico e teológico – já contém em si algumas constatações por

explicar e por provar. Usamos o termo lugar porque cremos que esta peça é um terreno

fértil para a formulação não apenas de uma mas de várias hipóteses do tipo semiológico.

Usamos o termo metáfora porque, como veremos, é a determinação semiológica que

melhor se adequa (ainda que não seja a única) à peça enquanto um tipo de

representação. Usamos o termo teológico porque, como procuraremos demonstrar na

primeira parte do trabalho, há alguma legitimidade em abordar o fenómeno musical

como justo lugar de reflexão teológica..

A peça que iremos estudar contém uma única referência programática (embora

a peça em si não seja explicitamente programática, pois não contém um programa) – o

seu próprio título. As hipóteses que podemos formular são à partida delimitadas por

5

esse título. É o episódio da Transfiguração aquele que pretendemos estudar, tal qual

Liszt o aborda e o procura representar, na sua totalidade ou não. O tema da

representação é portanto central à nossa tese. Se partirmos do princípio que

representação corresponde àquele fenómeno no qual uma coisa se encontra no lugar de

outra coisa, para a qual simultaneamente remete, é legítimo dizermos que estamos

diante de uma representação da Transfiguração, seja ela do episódio por inteiro, seja ela

uma simples evocação do evento que lhe é central.

Queremos evitar o debate semiológico entre o referencialismo e o não-

referencialismo musical. Segundo Richard Elfyn Jones (ELFYN, 2007, p.45), a maior

parte dos estetas inscrevem-se na segunda categoria, localizem-se eles no Formalismo

(como Hanslick ou Gurney), ou no Expressionismo Absoluto (como Leonard B.

Meyer). Sem mergulharmos nos meandros deste debate, que apesar de tudo é o ponto

de partida de qualquer reflexão sobre semiologia musical, tomamos como princípio de

fundo que à música pode ser atribuído, com um certo tipo de legitimidade, um código

de significados que permite que esta funcione e comunique enquanto signo, para quem

está inteirado desse código. Se em termos absolutos, a música possui intrinsecamente

qualquer significado, é uma questão que cai fora do âmbito do nosso trabalho. As

seguintes palavras de Raymond Monelle resumem fielmente a posição em que nos

localizamos: “In music the meaning is simply whatever the music means; the question

of “true” meanings is no more than empty talks.” (MONELLE, 2000, p.147) A música

tem portanto os significados que lhe são atribuídos por um dado código historicamente

localizado, convencionado e partilhado. Se esses significados são mais ou menos

verdadeiros, se esse código tem uma legitimidade própria ou apenas facultada, é algo

que foge às nossas preocupações. Porque, para todos os efeitos, a música só se torna

signo quando: 1) se constrói e 2) se escuta à luz de um dado código comparticipado.

Eero Tarasti é um dos autores em semiologia musical a insistir nesta questão: “In order

for the sign to function, the two subjects [compositor e ouvinte] must share common

codes.” (TARASTI, 2002, p.18)

Recusamos o axioma mais extremista do formalismo musical – a música é um

significante sem significado, uma sintaxe sem semântica. A música será sempre, a nosso

ver, aquilo a que Monelle chama uma wordless song, que, apesar da sua componente

não verbal, terá tanto mais significados quanto mais longo e complexo for o código

sintáctico-semântico que a sustentar. É esse código que confere ao representante o

atributo da representatividade.

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O nosso trabalho divide-se em três partes. À primeira parte do trabalho, demos o

nome de O fenómeno musical enquanto possível locus theologicus. O nosso objectivo,

nesta primeira parte, é realizar uma exposição e uma descrição de uma certa orientação

estésica que recupera do discurso romântico grande parte das suas categorias, na

avaliação do fenómeno musical. Tentaremos explicar porque motivos é que alguns

autores da teologia moderna reconhecem no fenómeno musical uma capacidade

acrescida para representar todo um universo de elementos teológicos. Tentaremos

perceber de que pressupostos estes autores partem e de que modelos representacionais

estes autores se servem para provar que a música efectivamente pode servir de metáfora

à Palavra e com o que demais se relaciona. No fundo, desejamos examinar aquele

código partilhado que é transversal ao pensamento destes autores na sua abordagem da

música enquanto signo. Estaremos sempre a referir-nos à teologia cristã, ao discurso

vivo sobre o mistério Cristão. Um dos autores que dominará a nossa atenção é Jorge

Pique Collado. Interessa-nos nomeadamente descobrir os pressupostos que orientam a

sua abordagem metodológica à música enquanto possível lugar teológico.

À luz do objectivo proposto, é evidente que não cumpriríamos plenamente a

nossa função se deixássemos por explicar, na medida das nossas capacidades, qual o

sentido teológico do mistério da Transfiguração. A segunda parte deste trabalho é

dedicada a essa matéria.

Na terceira parte, dedicaremo-nos à análise da peça de Liszt, enquanto caso de

estudo. Parece-nos apropriado abordarmos a peça enquanto signo. Em concomitância

com o fenómeno da representação, designa-se muitas vezes por signo aquilo que, por

estar no lugar de uma coisa, tem a capacidade de se referir a essa coisa. Preocupa-nos

então perceber de que modo é que este signo tem ou não uma maior capacidade de se

referir à ideia da Transfiguração de Jesus do que outra peça qualquer que possamos

escolher. Para provar o potencial semiológico desta peça, avançaremos com algumas

hipóteses baseadas num tipo de pensamento paradigmático. Serão sempre hipóteses e

como tal objectos de debate. Um dos propósitos da semiologia é tentar compreender de

que maneira um dado evento cultural pode funcionar como um signo e a que se deve a

maior ou menor eficiência desse signo. O critério para avaliar a eficiência

comunicacional de um signo, mesmo que tenha um fundo estatístico, baseia-se num

modelo explicativo sempre hipotético: “… semiotics claims to do nothing more than

elaborate models and hypotheses of reality.” (TARASTI, 2002, p. 24).

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O modo como Liszt procura representar (criar um signo para), o fenómeno da

mudança – que no fundo é uma categoria mais abrangente dentro da qual cai o tema de

transfiguração – é um dos temas que mais nos interessa estudar. Se provarmos que este

signo tem a capacidade de se referir – através um movimento metafórico – à ideia de

mudança, poderemos depois realizar o passo, do geral para o particular, em provar que

ele tem também a capacidade de se referir à ideia da Transfiguração – através de um

movimento indexical. Procuraremos também assim olhar a peça enquanto lugar

teológico. Este é um signo musical com valor teológico. Não só queremos perceber de

que modo é que o episódio da Transfiguração nos pode ajudar a entender melhor a peça

de Liszt, como partiremos da breve peça de Liszt para iluminar um pouco o evento

bíblico que procura representar.

São estes os objectivos que esperamos cumprir.

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I

O fenómeno musical enquanto possível locus theologicus

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Sobre a ideia de percepção estética do Mistério, em Collado

Foi Melchor Cano, frade dominicano espanhol do século XVI, quem formulou

pela primeira vez a noção de lugar teológico, na sua obra póstuma De locis theologicis

(1562). Por lugar teológico, Cano entende aquele lugar onde o teólogo vai colher o

material de que necessita para produzir e fundamentar as suas ideias, em matéria de

teologia. Em De locis theologicis, Cano distingue sete lugares teológicos – as Sagradas

Escrituras, a Tradição, a Igreja Católica, os Concílios, o Magistério, os Santos Padres e

os Escritos dos teólogos. Peter Hünermann, no seu Dogmatische Prinzipienlehre (2003),

procura reflectir sobre as opções de Cano e acrescenta aos setes lugares originalmente

formulados, mais seis: a Filosofia, a Ciência, a Cultura, a Comunidade, as Religiões e a

História. Será por fim Jorge Pique Collado, teólogo e musicólogo, na sua obra Teología

y Música: Una contribución dialéctico-trascendental sobre la sacramentalidad de la

percepción estética del Misterio (2006) quem irá discorrer, com particular

sistematicidade, sobre a Música enquanto possível lugar teológico. Importa-nos deter a

atenção nesta obra já que ela servirá de ponto confluente ao longo da nossa reflexão

subsequente. Passemos a explicar as principais linhas de pensamento de Collado.

A obra de Collado encontra-se dividida em duas grandes partes: uma primeira,

onde o autor procura fundamentar teoricamente a sua convicção de que a música pode,

com efeito, contribuir para o discurso acerca do Mistério cristão; uma segunda parte,

onde através do estudo de algumas obras musicais de três compositores (Victoria,

Schönberg e Messiaen), o autor procura fundamentar musicologicamente a tese acima

adiantada. A proposta inicial de Collado é clara: “Como propuesta de nuestra tesis

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esperamos demostrar que la música puede ser abordada como «posible» lugar

teológico.” (COLLADO, 2006, p. 18). Collado dispõe-se a inaugurar uma nova teologia

do musical, procurando perceber de que maneira é que a música pode discursar

teologicamente com o ouvinte e de que meios a musicologia se pode servir para explicar

esse discurso. Para isso, Collado oferece à musicologia uma terminologia e uma

metodologia de trabalho: “El núcleo central de nuestro trabajo consiste en analizar

objectivamente cómo en la música se puede percibir esteticamente la emoción que

mueve al affectus que hace percibible algo de la revelación del Mistério y cómo este

proceso es interpretable fenomenologica, musicológica e teologicamente.” (COLLADO,

2006, p.375). Desta forma, Collado procurará discriminar aquele nível profundo da

percepção musical que permite ao ouvinte aceder aos significados Misteriosos de uma

dada obra musical. Esse nível profundo da percepção ele designa por percepção estética

do Mistério. Cabe à musicologia ajudar a concretizar esse nível especial da percepção.

Estabelecida a percepção do Mistério, a percepção musical torna-se, por analogia,

Revelação. E a escuta, um modo de oração.

Como atrás vimos, Collado distingue dois diferentes níveis de percepção

musical: a emoção e o affectus, sendo que o segundo nível tem por condição o primeiro:

…aun existiendo una relación entre emoción y affectus, deben distinguirse para obtener parámetros de estudio que sean teologicamente – y como es lógico, fenomenologicamente – relevantes. La emoción conduce al affectus, a la moción profunda que partiendo de los sentidos embargados, conduce a una moción empática que se comprende como experiencia que puede ser inicio dinámico de percepción del Misterio. (COLLADO, 2006, p.385)

É através da relação dinâmica entre estas duas categorias da percepção musical que, se

bem sucedida, a percepção transforma-se em Revelação. Collado distingue três tipos

concretos de emoção que conduzem a três tipos concretos de affectus: a emoção

experiencial que conduz à graça; a emoção deslumbrante que conduz à visão/audição

empática; e a emoção sacramental que conduz à comunicação com a experiência de

transcendência. Não entraremos para já em detalhe no que concerne ao carácter de cada

uma destas emoções e de cada um destes affectus. O assunto é delicado e assaz obscuro.

Saber em que consiste uma emoção e um affectus, e de que modo eles se distinguem e

não se confundem durante a experiência da percepção musical, seria já por si uma

matéria muito difícil de enfrentar. O que importa conservar neste momento é que

Collado oferece ao musicólogo uma metodologia que lhe possibilita a leitura do nível

teológico de uma dada peça musical. Através dos dados da sua análise e da sua própria

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experiência como ouvinte, o musicólogo deve procurar objectivar fenomenologicamente

essa vibração empática que Collado designa por emoção. Realizado esse passo,

conhecemos o affectus envolvido, que é a chave para a percepção do Mistério. Em

suma, o que Collado pretende deste modo edificar é um sistema orientador para a

abordagem da música enquanto possível lugar teológico.

- - -

De tudo o que antecede, resultam tantas implicações e tantas questões por

explorar que uma tese desta dimensão não seria o suficiente para tratá-las a todas com a

atenção que merecem. Limitar-nos-emos e colher o que de tudo isto pode ser útil para o

nosso estudo. Surge, em primeiro lugar, a questão de perceber exactamente em que

consiste essa estranha tentativa de objectivar uma emoção, tarefa que à partida parece

ser contrariada pelos seus próprios termos. De que instrumentos pode o analista se

servir para cumprir semelhante tarefa? É isto relevante para o discurso musicológico?

Tem a musicologia validade para fazer algo deste género?

Las cuestiones que proponemos a la musicología para su desarrollo es si la vibración empática es musicológicamente definibile y objetibable. Nuestro análisis de los elementos musicales que se concretan en la partitura, en el análisis musical formal, en el estudio de las técnicas compositivas nos permite afirmar que esta objetivación es posible. (COLLADO, 2006, p.389).

Collado, após o seu estudo, conclui que é possível. Vejamos um exemplo concreto.

Como já referimos, um dos três compositores que Collado utiliza como caso de

estudo é Messiaen. Segundo Collado, Messiaen é um dos compositores que melhor

expressa aquilo a que chama emoção deslumbrante, emoção que deslumbra os sentidos.

Para provar isto, o musicólogo analisa um conjunto de peças do compositor francês.

Infelizmente, não faz nenhuma referência ao seu monumental La transfiguration de

notre seigneur Jesus-Christ (1965-69), obra que seria relevante para o nosso estudo. As

peças que analisa são retiradas de duas obras do compositor escritas para órgão: o Livre

du Saint Sacrement (1984) e Messe de la Pentecôte (1949-59). Vejamos os parâmetros

que dominam a análise de Collado ao Communion da Messe de la Pentecôte. Em

primeiro lugar, faz uma referência ao canto de pássaro que dá início à peça, “La

improvisada irrupción del pájaro descrito com su canto (pájaro imaginário) nos sitúa ya

en el ambiente de la naturaleza, de frescor y luz que percibimos por la clara linea del

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canto del órgano com un registro de oboe.” (COLLADO, 2006, p.352). Através de uma

relação metonímica (ou indexical, se desejarmos usar a terminologia de Peirce), associa

o som do canto do pássaro a todo um ambiente de natureza. Refere em seguida uma

secção que, por alguma razão que nos é impossível vislumbrar, Collado pressente uma

chamada ao louvor do Senhor, “Sigue una sección armónica, lenta, com ritmos amplios

y ampliados según los esquemas de aumentación de Messiaen. […] No es difícil

encontrar en este fragmento armónico paralelo la invitación a la alabanza que en ningún

momento se materializará.” (COLLADO, 2006, p.352). Faz, de seguida, uma referência

ao canto do rouxinol e à representação das águas:

Aparece el canto de un ruinseñor, indedicado así por el próprio Messiaen, agudo, juguetón, lleno de fuerza del Espíritu, luminoso. Pasamos página, y encontramos el agua de la fuente y los pájaros que empizan su particular alabanza. El agua está encarnada por la mano izquierda que debe ejecutarse según la precisa indicación de Messiaen, en staccato (gouttes d´eau), según la modalid que él asimila a las gotas de água. (COLLADO, 2006, p.352).

Se continuássemos, repararíamos que o enfoque de Collado cai essencialmente sobre os

elementos representativos da peça mais capazes de deslumbrar os sentidos, os vários

efeitos onomatopaicos, o tratamento ágil do ritmo, o timbre dado pela registação

escolhida e.t.c. Seria interessante percebermos porque é que Collado crê que certo tipo

de música deslumbra mais os sentidos que outro tipo de música. Qual é concretamente o

critério? A variedade tímbrica é um índice de deslumbramento? A riqueza rítmica é

índice de deslumbramento? Estas questões importantes ficam apenas por adivinhar.

Interessa-nos observar então o modo como Collado se serve destes dados para realizar

uma leitura da peça enquanto possível lugar teológico:

Nos hallamos, sonoramente, ante la percepción adorante del Misterio que se hace eco del don eucarístico, gustado y percibido por el don del Espíritu. Se transfigura en percepción impresiobable en nuestros sentidos. En el oído y la vista. Somos llevados a la adoración del Incondicionado, revelación sonora del Misterio como eco del Espíritu que se hace vibración interna, que con su aleteo vibrante, nos mueve internamente a la alabanza y al gozo. […] Com la música de Messiaen nos situamos en los umbrales de la contemplación del Misterio, pues a través de la impresión de los sentidos llegamos a percibir algo que va más allá de la intuición o de la imaginación. Nos hallamos en los limites, en el umbral mismo de la percepción estética del Mistério. (COLLADO 2006, p.355 e p.370).

Qual é o valor efectivo desta leitura? À primeira vista, uma leitura deste género pode em

nada parecer enriquecer a compreensão de uma dada peça musical. É um discurso

fundado, ao que aparenta, numa relação maioritariamente facultativa entre aquilo o

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ouvinte professa e aquilo que ouve. A pretensão de objectividade parece ser ferida a

partir do momento em que o ouvinte procura explicar a peça à luz dos movimentos

internos da sua alma. A ideia de que uma emoção pode ser objectivada e servir de

critério de análise parece absolutamente contraditória à partida. Contudo, aquilo que nos

pode perturbar no aspecto contemplativo e obscuro das palavras atrás citadas é

simultaneamente aquilo que este discurso tem de mais característico. Pois este não é

apenas um discurso musicológico mas um discurso também teológico. Entendemos que

discurso teológico se refere a todo o discurso acerca de Deus e de tudo o mais com o

que Aquele se relaciona. De um modo mais preciso, esta é uma leitura musicológica

realizada à luz de uma fé religiosa. Note-se que Collado usa o termo de fé sensível,

destacando os dois sentidos fundamentais através dos quais o ouvinte estabelece o

entendimento com a obra – o sentido da escuta e o sentido da fé. O levantamento, a

circunscrição, a selecção e, por fim, a interpretação dos dados musicológicos é todo um

processo realizado contra um mesmo pano de fundo: a fé sustentada de um homem que

ouve e que olha as coisas. A fé media implicitamente cada um destes processos. Mesmo

que a análise nos pareça insuficiente e pouco exaustiva, aquela bastou para Collado

explicar a relevância teológica da peça, para pôr em objecto a emoção experimentada

pela fé do musicólogo. E não nos parece que entremos em contradição ao falarmos que

tudo acontece pela fé do musicólogo. Pelo contrário, mais justa seria a acusação de

redundância. Não há musicologia ideologicamente inocente. Sempre que o acto musical

é transportado para o acto exclusivamente verbal, e neste traduzido, é realizado um voto

de fé que secretamente todos podemos reconhecer. Mas a fé de Collado é uma fé com

uma determinação própria, é uma fé religiosa e mais localmente cristã. Numa audição

crente, as relações simbólicas, enraizadas numa sintaxe e numa semântica muitas vezes

comum e partilhada, têm contornos mais definidos e necessários. No pensamento

estético-cristão, as relações simbólicas tem como arquétipo impreterível o Cristo e todo

o discurso a Ele envolvido. Cristo não é uma contingência das coisas, é uma

necessidade nas coisas viventes. Todas as coisas do mundo vivem, por necessidade, a

uma distância própria em relação ao Cristo. Eis um exemplo muito expressivo. No

quarto capítulo de Die Wahreit ist Symphonisch (1972), H.U. von Balthasar, um dos

maiores vultos da teologia moderna, compara o mundo a uma orquestra e compara

Cristo a um diapasão. Cabe à orquestra afinar os seus instrumentos de acordo com

Aquele diapasão, de maneira a produzir um som consistente e harmonioso. A analogia é

ingénua mas flagrante, pois demonstra bem como o arquétipo em função do qual se

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constrói a cosmovisão teológico-cristã é um arquétipo sempre cristológico. O

pensamento estético naturalmente que não sái ileso a estas implicações. Um homem de

fé (e cabe a cada um descobrir o que caracteriza um homem assim), olha e ouve o

mundo numa relação de sintonia com a sua fé. O que é o mesmo que dizer que a fé

religiosa, como qualquer outro aspecto cultural, determina o modo de ouvir de um

homem. Note-se no entanto que no seio de uma estética musical de matiz teológica, a

Palavra não é uma mera cor local que o compositor pode, se assim o desejar, imprimir

na sua obra. Não é a música que é a condição para o exercício da Palavra. Mas é a

Palavra que é a condição para o exercício da música: “La música aprendió de la Palabra

a hablar el lenguaje del Espíritu.” (COLLADO, 2006, p.169) Pierangelo Sequeri,

teólogo e musicólogo contemporâneo, no seu L´Estro di Dio (2000), é bem explícito na

caracterização do musicólogo enquanto ouvinte da Palavra: “…una teoria de lo sacro in

musica sará dunque, una teoria teológica dell´uomo come uditore, ‘come mosso’ della

Parola ‘dio’.” (SEQUERI, 2000, p.466). Artur Mourão, no seu artigo Festas dos Sons e

Teologia, elabora acerca da relação que existe entre a experiência da escuta do som

musical e a experiência da escuta da Palavra, ambas experiências de Mistério: “Não é

estranho ou avulso o nexo entre música e teologia. Há entre elas afinidades secretas,

cumplicidades múltiplas e, possivelmente, uma intencionalidade única e derradeira. […]

Ambas têm a ver com a escuta, uma dos sons, outra da Palavra.” (MOURÃO, 2006,

p.2). Se quisermos usar a terminologia de Jean Molino, podemos reparar que os três

teólogos atrás citados apresentam uma semelhante tendência estésica, uma semelhante

estratégia perceptiva da música. É uma estratégia que entende o fenómeno musical de

acordo com uma pré-determinação original desse mesmo fenómeno. Como diz Artur

Mourão, de acordo com uma afinidade secreta. Mas esta estratégia esconde uma

implicação mais profunda: ela acabar por minar a própria ideia de uma dimensão

estésica enquanto ela própria uma dimensão construtora de significados. Passemos a

explicar. Jean-Jacques Nattiez, na sua elaboração acerca da dimensão estésica,

originalmente formulada por Molino, refere o seguinte: “By esthesic I understand not

merely the artificially attentive hearing of a musicologist, but the description of

perceptive behaviours within a given population of listeners.” (NATTIEZ, 1990, p.92).

Ao definir o carácter desta recepção, refere o seguinte:

The meaning of a text – or, more precisely, the constellation of possible meanings – is not a producer´s transmission of some message that can subsequently be decoded by a “receiver”. Meaning, instead, is the constructive assignment of a web of interpretants to a particular form; i.e., meaning is

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constructed by that assignment. […] ‘receivers’, when confronted by a symbolic form, assign one or many meanings to the form; the term “receiver” is, however, a bit misleading. Clearly in our test case we do not ‘receive’ a ‘message´s’ meaning (since the producer intended none) but rather construct meaning, in the course of an active perceptual process. (NATTIEZ, 1990, p.11-12)

A ideia apresentada por Nattiez de que o ouvinte constrói e investe de significados

aquele que é o objecto da sua escuta não se aplica, em teoria, no caso em estudo. Numa

experiência de Mistério, o significado do evento feito forma nunca é construído pelo

sujeito da experiência. O significado – qualquer coisa de divino – é um gesto autêntico

que é efectivamente recebido, dado a conhecer durante a experiência de revelação. Isto

é claro no modo como von Baltahsar, na sua estética musical, define a noção de forma:

“Em arte, forma significa: a introdução do divino nas categorias do espaço e tempo,

como trâmite normal da sua acessibilidade.” (von BALTHASAR, 1995, p.16-17).

Aquilo que von Balthasar designa por divino (noção que só por si seria complicada de

determinar), não é, pela sua própria natureza, uma construção equívoca. É uma presença

unívoca que, no acto da revelação, se anuncia e se oferece, torna-se dádiva. É uma

presença que é dada a conhecer, tal como aos três apóstolos foi dado a conhecer, foi

revelado, o aspecto divino de Jesus Transfigurado. Quando Susanne Langer, em Feeling

and Form (1953), define a arte como a transformação simbólica de formas subjectivas

em formas objectivas, está a partilhar uma semelhante visão reveladora e vagamente

platónica da forma artística. Mas aquilo que Collado procura é algo mais que

desenterrar formas subjectivas. O ouvinte de Collado, aquele ouvinte que procura

percepcionar esteticamente o Mistério (ou como também diz Sequeri, realizar uma

experiência afectiva do divino), faz algo de muito diferente de Arnold Schering ou

Susan McClary, quando tentam encontrar programas escondidos nas sinfonias de

Beethoven. Nestes últimos casos, ainda nos encontramos num domínio declaradamente

construtor do ouvinte. Mas a Palavra não é construção, mas acto construtor de todas as

coisas, de todos os significantes e significados, é código originário. É pelo Mistério da

Palavra que tudo se constrói, tudo adquire forma. Recordemos que, segundo Collado, a

música aprendeu da Palavra a sua semântica. Desta forma, tem uma responsabilidade

acrescida na Sua compreensão: “La música será ya su [da Palavra] primera

hermeneuta.” (COLLADO, 2006, p.186). A música torna-se, para Collado, num sistema

hermenêutico idealizado e apropriado à compreensão da Palavra, hermenêutica que tem

como estrutura de mediação o sentido da fé. Cumprida esta exigência de base, o ouvinte

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de Collado torna-se leitor, o musicólogo torna-se exegeta, e a música adquire a

autoridade devida enquanto lugar teológico.

Embora neste momento estejamos a tratar exclusivamente do nível estésico da

experiência musical, de maneira a entendermos aquilo que Collado designa por

percepção estética do Mistério, importa referir que Hans Küng, teólogo contemporâneo,

na sua obra Musik und Religion (2006), alarga a mediação da fé religiosa a outros níveis

do discurso musical: “…no cabe duda que la fe religiosa, junto com los demás factores

sociales y espirtuales, puede surtir efecto tanto al componer como al reproducir la

música y en la misma recepción de esta.” (KÜNG, 2008, p.17). Küng distingue três

fases fundamentais: composição, execução e recepção. Para Küng, nenhuma dimensão

da experiência musical sai ilesa à influência da fé. A fé enforma o modo de actuação do

compositor, do executante e do ouvinte. Joseph Ratzinger, no seu famoso Introduzione

allo spirito della liturgia (2001), defende a necessidade da fé ao nível poiético no acto

de composição de música litúrgica: “…senza fede non ha arte propria alla liturgia.”

(RATZINGER, 2001, p.133). De facto, seria a altura para perguntar se não depende

maioritariamente, ou até exclusivamente, da disposição de fé do ouvinte mais do que da

disposição de fé do compositor, o êxito no alcance dessa percepção estética do

Mistério? De facto, pela nossa própria experiência enquanto ouvintes, não é difícil

imaginarmos porque é que muitos estetas acreditam que a música cumpre todas as

exigências que a torna num meio tão adequado para a expressão da transcendência. A

apologia que Collado faz da música enquanto sistema hermenêutica da Palavra assenta

na convicção de que essas exigências são efectivamente cumpridas pela música. No seu

livro Music and the Numinous (2007), Elfyn Jones resume de um modo esclarecedor

aquele carácter do fenómeno musical que o torna tão próprio à abstracção:

If we speculate about the relationship of art and music to the transcendental then we know that, despite the mechanics of its articulation, music is widely regarded as being closer to the world of the psyche than to the external world. Since its essence has no tangible reality, no body, no place, it might be well described as a psychological process. (And this is despite the fact that the organising and performance of it involves self-evidently physical processes). (JONES, 2007, p.13)

Esta tendência encontra-se bem exemplificada, de um modo exactamente análogo, no

modo como Collado caracteriza o fenómeno musical:

Se el Mistério se manifesta en la Palabra, la música, que comparte la intagibilidad, la inmaterialidaded, la incorporeidad, la enexpresabilidad del mistério, se une intimamente a la manifestación epifenómica del mistério

17

revelado, hecho Palabra. […] La inefabilidad de la música, la invisibilidad de la misma, la intangibilidad del arte de los sonidos, la convierten en metáfora viva del lenguaje del Mistério. (COLLADO, 2006, p.78 e p.81).

Este género de caracterização pode parecer inofensiva e até ingénua, mas na verdade

corresponde a um pressuposto de base fundamental, não só da metodologia de Collado,

como de grande parte do pensamento teológico-musical aqui em estudo. O fenómeno

musical, em virtude daquilo que possui de mais constitutivo – a própria natureza do som

–, torna-se na metáfora ideal do logos de Deus, ao qual pretensamente se assemelha no

aspecto. Se entendermos metáfora, no sentido de Peirce, enquanto ícone – signo que

remete para algo com o qual possui qualquer coisa de comum – a noção de metáfora

encontra-se perfeitamente aplicada. As propriedades do som e do silêncio, unidades

mínimas do fenómeno musical, partilham um carácter de intangibilidade imediata que

constitui um referente muito eficiente daquilo que Elfyn Jones designa o mundo da

psyche, por antítese ao mundo tangível da physis. Collado adopta essa relação

metafórica simples e dá-lhe uma nova determinação, adaptando-a à sua fé: o mundo da

psyche torna-se o mundo da Palavra. Reparemos no entanto que não é ao carácter

positivo mas ao carácter negativo do fenómeno sonoro que tanto Elfyn Jones como

Collado aludem: a música é metáfora do Mistério porque não é tangível, porque não é

corpórea, porque não é visualizável, porque não é expressável. Contudo, em nada isto

diminui o poder da metáfora, já que também o divino, como alega Rudolf Otto, é uma

categoria negativa por relação ao terreno. Otto, no seu famoso Das Heilige (1917),

procurar enumerar os meios possíveis de que a expressão artística se pode servir para

representar o numinoso, (termo que ele cunha pela primeira vez de preferência a

sagrado). Ele começa precisamente por referir a insuficiência da maior parte dos meios

(e, como mais tarde veremos, também da música) para representar positivamente o

numinoso:

Para esclarecer a natureza do sentimento numinoso convém lembrar como ele se exprime exteriormente, como é comunicado e transmitido de uma psique para outra. A rigor nem é possível “transmiti-lo”, uma vez que nem é “ensinável”, mas apenas despertável a partir do “espírito”. […] A pior forma de fazê-lo é por meio de meras palavras; ao invés, cabe transmiti-lo como também se faz com sentimentos e atitudes psicológicas: pela empatia e sintonia com aquilo que se passa na psique da outra pessoa. Na postura solene, no gesto, no tom de voz e na expressão fisionómica, na manifestação da singular importância do assunto, na solene concentração e devoção da comunidade em oração, isto está mais presente que em todas as palavras e designações negativas que nós mesmos temos encontrado para tanto. Acontece que elas nunca indicam positivamente o objecto

18

Somente ajudam na medida em que pretendem designar um objecto opondo-o a outro, do qual é distinto ao mesmo tempo em que lhe é superior. Por exemplo: o invisível, o eterno (atemporal), o sobrenatural, o supramundano. (OTTO, 2007, p.100)

Por várias razões sobre as quais mais tarde elaboraremos, Otto crê que a música, tal

como as palavras, contém a capacidade de representar apenas negativamente o

numinoso. Reencontramos deste modo o pensamento anterior de Collado. E como em

Collado, os ecos de uma prática de teologia negativa, prática ainda transversal à teologia

moderna, presente no pensamento de figuras fundamentais como von Balthasar, Karl

Rahner e Bruno Forte. Esta tradição remonta à influente obra de Pseudo-Dionísio, o

Areopagita, nomeadamente à sua Teologia Mistica, a partir da qual se tornou clássica a

tríplice via: via negationis, via eminentiae e via causalitatis. Posteriormente, elaboraremos

mais um pouco sobre a via negativa, quando regressarmos a Otto.

De regresso a Collado, reparemos ainda que a metáfora de que Collado nos fala

não é uma metáfora qualquer. É, nas palavras de Collado, a metáfora de uma linguagem.

Visto que o fenómeno musical aprendeu da Palavra a sua linguagem, ele está de tal

modo naturalmente constituído que se torna capaz de recriar e projectar a linguagem

Daquela. O discurso de Collado torna-se deste modo num discurso metalinguístico. É ao

remeter-se para si própria e para as suas características de base que a música remete

para a linguagem original, para a linguagem adâmica, torna-se revelação. Von

Balthasar, no seu Verbum Caro (1960), acrescenta a exigência de beleza à experiência

de revelação. Von Balthasar designa por forma revelationis a obra que tem a beleza

como ponto mediador entre a Palavra e o receptor. Para von Balthasar, a música

constitui o mais frágil limiar entre a esfera humana e a esfera divina, entre o receptor e a

Palavra: “A música é a forma que mais nos aproxima do espírito, o véu mais subtil que

dele nos separa.” (von BALTHASAR, 1995, p.47).

Sequeri, no seu Musica e Mistica (2005), realiza um levantamento bastante

exaustivo das relações históricas entre a experiência musical e a experiência mística e

religiosa. Em nota de conclusão, refere que o espírito cristão lançou uma nova ponte

entre o mundo dos sons e aquilo a que chama o mundo do espírito: “L´insediamento

musicale dello spirito del cristianesimo, plasmato dalla forma della parola riconoscente

della fede, há segnato un nuovo corso anche nel rapporto – immemoriale e universale –

fra la musica dei suoni e il mondo dello spirito.” (SEQUERI, 2005, p.505).

19

Hans Küng reconhece na música puramente instrumental um privilégio

acrescido nesta ligação entre o mundo do homem e aquilo que designa pela ultimíssima

realidade divina:

…la música instrumental tiene su función autónoma, que no necesita de la palabra para explicarse. Es música humana esa realidad de los sonidos totalmente outra, en cuanto símbolo tónico de una ultimísima realidad divina. […] En determinados momentos le es dado al ser humano abrirse, y abrirse tanto que acierta a percibir en el sonido infinitamente bello el sonido de lo eterno. (KÜNG, 2008, p.19)

Note-se as três passagens citadas atrás. São significativas e difíceis de ignorar as

relações que existem entre este género de discurso e aquele discurso romântico em torno

da ideia que mais tarde Wagner cunhou de música absoluta. Este discurso foi

fomentado por autores como Tieck, J.G.Herder, Wackenroder, Moritz, J. P. Richter e

E.T.A. Hoffmann, a partir dos anos 80 do século XVIII. Desenvolveu-se no seio da

cultura musical alemã, sob o aspecto de uma teoria da música instrumental. Estes

autores, num esforço de pôr em palavras aquilo que simultaneamente declaravam não

estar sujeito aos parâmetros da linguagem verbal, descreviam a música que ouviam

através de uma série de metáforas que evitavam a imagem a favor do conceito, mais

propriamente de dualidades conceptuais – o incorpóreo por antítese ao que é tangível, o

mundo subtil do espírito por antítese ao mundo externo, o inefável por antítese a tudo o

que admite uma sintaxe clara. A experiência musical era descrita como uma experiência

limite, na fronteira entre o conhecido e o desconhecido. A música seria a cópia mais

próxima que o homem poderia ter do mundo latente do espírito. A música instrumental

(e sobretudo a sinfonia) ocupava um lugar de destaque já que teoricamente,

desconsiderando qualquer outro elemento que não o puramente musical, seria o mais

musical de todos os géneros, estando por isso mais próximo daquele ideal. Superando

qualquer baliza verbal, a música instrumental poderia assim expressar de um modo

verdadeiramente pleno e livre as suas próprias leis. Dois exemplos bastam para compor

esta imagem e para entendermos melhor as relações de proximidade entre este discurso

e aquele que foi tratado até este momento:

For music is certainly the ultimate mystery of faith, the mystique, the completely revealed religion. (DAHLHAUS, 1989, p.34); For devotion, I think, is the highest result of music, holy, heavenly harmony, humility, and joy. By this route, music has carried off its most beautiful treasures and attained the innermost point of art. […] What was the thing that separated it [music] from all things foreign, from sight, dance, gesture, even from the accompanying voice? Devotion. It is devotion that elevates humans and a gathering of humans above words and gestures, for

20

then there is nothing left of their feelings except- tones. (DAHLHAUS, 1989, p.64).

A primeira passagem provém do Phantasien über die Kunst, für Freunde der Kunst

(1799), de Tieck; a segunda do Cäcilia (1793) de J. G. Herder. Estas são apenas duas de

várias passagens que Carl Dahlhaus cita, na sua obra Die Idee der absoluten Musik

(1978), para reflectir acerca da contemplação da música absoluta como um modo de

devoção. Aquilo que Dahlhaus pretende provar é que a arte musical se encontra, na

visão destes autores, praticamente colocada no domínio devocional da religião. A

experiência musical adquire os contornos, as características e o mesmo valor de uma

experiência mística. Mais uma vez, a percepção musical torna-se revelação. O

paradigma estético é um paradigma poético-religioso. Daniel Chua explica a evolução

deste discurso, em grande parte, devido a um desencantamento moderno em relação ao

próprio fenómeno religioso: “`Art´ became a religion of modernity, and absolute music,

as the condition to which all art should aspire, was its god.” (CHUA, 2006, p.8) A

associação progressiva, se bem que muitas vezes subentendida, da ideia de música

absoluta à categoria estética do sublime (desenvolvida por Burke e Kant no final do

século XVIII), reforça a ideia de uma música como veículo de devoção e

transcendência. Ao longo do século XIX, Schopenhauer, Wagner (com as suas

hesitações), Nietzsche e o próprio Liszt são alguns dos vultos que dão continuidade a

um discurso muitas vezes denominado de metafísica da música instrumental. O modo

como Nietzsche avalia os últimos quartetos de Beethoven, no seu fragmento

abandonado e intitulado Über Musik und Wort (1871), é particularmente flagrante:

“During the highest revelations of music we even feel involuntarily the crudeness of

every figurative effort and of every emotion dragged in for purposes of analogy; for

example, the last quartets of Beethoven quite put to shame all perception and the entire

realm of empiric reality.” (NIETZSCHE, 2003, p.7). Novamente, a percepção musical

transforma-se num acto de revelação. Também aqui a música é descrita como a

superação do símbolo, a superação da mediação. A música fornece um tipo de

conhecimento inspirado, revelado, que escapa aos parâmetros comuns da percepção

normal. A música torna-se então no modelo ao qual todas as formas de expressão

artística devem aspirar. Sequeri não deixa de considerar este tipo de discurso como um

dos exemplos mais evidentes e fundamentais que a história da música conheceu da

relação entre a experiência religiosa e a experiência musical:

21

Nella cultura musicologica, la specifica associazione della musica com la forma mistica dell´esperienza religiosa entra in campo intorno a due voci fondamentali: (a) la dottrina degli effetti estatici della musica vocale e strumentale, variamente associata alle forme rituali e alle cosmogonie arcaiche circa la risonanza di una matrice musicale dell`universo; (b) le interpretazioni romantiche dell sentimento religioso del sublime dove la musica appare l´arte mistica per eccellenza, in quanto è la più capace di suscitare nell´uomo la percezione dell´infinito e del divino che pervade ogni cosa. (SEQUERI, 2005, p.6).

Se paralelamente demos início a esta curta reflexão acerca da ideia romântica de

música absoluta, foi para agora regressarmos um pouco mais esclarecidos ao exame que

vínhamos a fazer daquela tendência estésica de teólogos como H.U. von Balthasar,

Hans Küng, Pierangelo Sequeri e sobretudo Jorge Pique Collado. Isto porque nos parece

que entre estes dois discursos existem diferenças e semelhanças que, observadas no seu

conjunto, ajudam-nos a melhor entender individualmente cada um dos dois discursos na

sua relação com a ideia da música enquanto metáfora.

Música enquanto metáfora

Em primeiro lugar, nunca será demais sublinhar o lugar marginal que este modo

de pensar a música ocupa na estética musical contemporânea. Elfyn Jones nota-o bem:

“In the specific area of metaphysical aesthetics, and in particular with reference to

music as a divine arte, (if “divine” is not too loaded a term at this early juncture), we

must remember that the theological-metaphysical approach was the normal one up to at

least the baroque era. But afterwards, rational philosophy tended to deflate any claim of

music´s transcendental powers, and with the exception of some romantics (most notably

Schopenhauer) this has been the case until de present.” (JONES, 2007, p.12). A

musicologia, enquanto nova ciência exegética, redescobre em Collado e noutros

teólogos modernos e contemporâneos a pretensão a uma metafísica que tinha

virtualmente desaparecido desde o discurso romântico. Uma pretensão fundada na ideia

basilar da música enquanto metáfora da Palavra. Mas como dissemos, há importantes

diferenças entre estes dois discursos.

22

Ao reflectir sobre o discurso romântico em torno da ideia de música absoluta,

Sequeri refere a tentação frequente destes autores em caírem numa espécie de panteísmo

estético, menosprezando a determinação cristã que implicitamente sustenta parte

daquela ideologia. De facto, a diferença mais clara entre este discurso romântico e o

discurso de Collado é que Collado adapta a abstracção do inefável à particularidade

cristã, movimentando-se no interior de um programa mais restrito, de uma paradigma

referencial mais delimitado. Uma é experiência mística, outra é experiência místico-

cristã. Mas ambas parecem partir do mesmo princípio – a música enquanto lugar

metafórico.

Como Dahlhaus refere, o discurso acerca da ideia de música absoluta, ao

contrário do discurso formalista que mais tarde teve origem, não pretende distinguir o

que é absoluto do que é poético. A música absoluta contém, apesar de todas as

pretensões à inefabilidade, um programa declarado, um programa que em grande parte

se assemelha à descrição de uma experiência mística. A música absoluta não é auto-

referencial. A música absoluta contém uma referencialidade, mas uma referencialidade

possivelmente contraditória. Isto porque aquela pretensa capacidade que a música

absoluta tem em representar um transcendente funda-se simultaneamente na sua

capacidade em nada representar. Daniel Chua, na obra já citada Absolute Music and

Construction of Meaning (2006), defende a ideia algo controversa que música absoluta

não possui uma história. O que há apenas é a história de um discurso. Para Chua, a

música absoluta não tem uma história porque, na prática, ela representa uma

contradição. A metáfora é simplesmente inconcretizável porque os seus próprios termos

se contrariam:

So what is absolute about music is not ultimately music itself but a transcendental sign of absence that enabled the German Idealists and the early Romantics to make instrumental music mean nothing in order that it might mean everything.” […] The absolute, as the transcendental signifier, is unsignifiable and therefore unknowable. (CHUA, 2006, p.168 e p. 170).

É por nada representar, que a música adquire a capacidade de representar o todo. Tal

como em Collado, a música representa o transcendente por uma relação de

negatividade. A música absoluta torna-se, nas palavras de Chua, num negative other:

“Absolute music therefore discriminates. Indeed, it defines itself by exclusion. The

category of the “extra-musical” was invented in the nineteenth century as the negative

other of the “purely musical.” (CHUA, 2006, p.4). Chua defende que com este discurso

dá-se a inauguração da semiótica do zero, um sistema semiótico que tem como motivo

23

principal uma fracção vazia entre um significante idealizado e um significado

transcendente. Curiosamente, a antropologia já cunhou com o termo estado zero a

experiência mística. Jordan D. Paper, no seu Mystic Experience: a descriptive and

comparative analysis (2004), realiza um estudo comparativo de diversos tipos de

experiência mística ao longo de várias culturas. Uma das conclusões de Paper é

precisamente o quão desadequada a pretensão de inefabilidade se encontra em relação à

realidade de uma experiência mística: “Although the mystic experience is universally

acknowledged as ineffable, as with my own experience, descriptions of the experiences

immediately preceding and following the mystic experience are available.” (PAPER,

2004, p.6)

Keith E. Yandell, no seu The Epistemology of Religious Experience (1993),

elabora acerca do processo através do qual o sujeito de uma experiência mística

concretiza a descrição da mesma: “Every description of a religious experience can be

transformed into a phenomenological description by the simple device of making a

description of how things are into a description of how things seemed to be.”

(YANDELL, 1993, p.17). A metáfora é precisamente um desses veículos que permite

ao sujeito da experiência (musical ou mística) traduzir aquilo que é naquilo que parece

ser. A música absoluta seria, para os seus defensores, aquilo que de mais perto parece

ser com aquilo que é. Seria portanto a metáfora ideal. Também Collado, como vimos,

reconhece com legitimidade na música esse veículo, essa metáfora idealizada do

Mistério revelado. O acento no valor metafórico da música é permanente ao longo da

sua obra: “La teología busca en la música la forma de una belleza racional que através

del desarollo del discurso musical sirva de metáfora de la revelación del Mistério.”

(COLLADO, 2006, p.380).

Importar aprofundar um pouco mais essa noção de metáfora no contexto

musical. Esta é uma das proposições principais do nosso trabalho. A ideia de metáfora é

talvez a ideia que mais rápida e intuitivamente acode às nossas mentes quando

reflectimos acerca do fenómeno da representação, seja musical seja de outra natureza.

No entanto, é um termo que conhece diferentes acepções consoante os semiologistas,

havendo quem evite utilizar o termo de todo. Nietzsche, no seu ensaio Über Wahrheit

und Lüge im außermoralischen Sinn (1873), defende que toda a epistemologia humana

se funda na metáfora. O homem pensa metaforicamente. Antes da linguagem, antes da

verdade, vem a metáfora: “The first metaphor the human min uses in the act of

cognition is the translation of sensual perception into an image. Only through another

24

metaphor can this image be translated into language… The translatio, the leap, takes

place even before the first word is articulated.” (NIETZSCHE, 1967, p.105-106). Em

consequência disto, toda linguagem é um sistema complexo de metáforas verbais

fundado num anterior sistema de metáforas mentais. A primeira metáfora dá-se na

transferência da percepção à imagem mental. A segunda metáfora dá-se na transferência

da imagem mental à linguagem. Nietzsche traduz a palavra grega de metaphorein

literalmente para Übertragung, o que aponta para a natureza transferencial e arbitrária

da metáfora. Todo o conhecimento é um desdobramento contínuo de signos. Toda a

linguagem é retórica porque se funda numa doxa e não numa verdadeira episteme. No

entanto, em semiótica, o termo é geralmente utilizado com a conotação de ícone, noção

de Charles Sanders Peirce – como já dissemos atrás, um signo que representa o objecto

por possuir algo em comum com este. William Wimsatt, no seu The Verbal Icon:

Studies in the Meaning of Poetry (1970), entende a metáfora, não apenas como um

signo que aproxima apenas duas realidades, mas como um signo que aproxima duas

realidades ao pôr em destaque uma terceira realidade, aquela que as aproxima, esse

algo em comum:

Even the simplest form of metaphor or simile (“My love is like a red, red rose”) present us with a special and creative, in fact a concrete, kind of abstraction different from that of science. For behind a metaphor lies a resemblance between two classes, and hence a more general third class. This class is unnamed and most likely remains unnamed and is apprehend only through metaphor. (WIMSATT, 1970, p.79)

Portanto, a metáfora não se refere apenas a duas classes que semanticamente se

aproximam. A metáfora é um signo que comporta consigo a abstracção dessa qualidade

que aproxima essas duas classes e que permite que uma seja reconhecida como

representamen da outra. Servindo-nos dos termos de Yandell, essa qualidade é aquela

parecença pela qual a coisa que parece ser toma o lugar da coisa que é. Essa qualidade

em ponto abstracto torna-se uma terceira dimensão do signo. No caso de Collado, na

música como metáfora, essa terceira classe que permite à música que sirva de

representamen à Palavra, é aquela pretensa qualidade invisual comum a ambos. O

mesmo se aplica em grande parte à metáfora romântica da música como veículo do

espírito. Em ambos, o critério que subjaz à metáfora é de ordem largamente visual. É

por desobedecer a um critério de visualidade (como já dissemos, através de uma relação

de negatividade), que a música transcende os parâmetros normais de representação,

tornando-se um modo especial de representação. Noutros autores, a desobediência a este

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critério tem o efeito precisamente contrário. No seu Vom Musikalisch-Schönen (1854),

Eduard Hanslick afirma que a música tem um âmbito muito limitado de representação

precisamente por não cumprir as exigências de visualidade que, por exemplo, a pintura

cumpre. Note-se que desta forma, Hanslick está privilegiar a visualidade como critério

único para avaliar representatividade na arte. A música, segundo Hanslick, se tivesse de

representar por exemplo a figura de uma maçã, deveria representá-la da mesma maneira

que um quadro representa uma maçã, através de uma semelhança entre o objecto e o

ícone. Ora, não fazendo a música tal coisa, ela simplesmente é incapaz de representar a

maçã. Seja no caso de Hanslick, seja no caso de Collado, há uma subordinação mais ou

menos implícita da representação à visualidade como critério de significação por

excelência.

Há quem também tenha aplicado a mesma metáfora (música-Palavra),

servindo-se de uma terceira classe distinta, a notar o tempo. Jeremy Begbie, no seu

Theology, Music and Time (2000), serve-se de uma relação metafórica diferente que a

qualidade invisual do som – a qualidade expansiva e irreversível do tempo, aspecto

teoricamente comum a ambas aquelas duas realidades. A sua proposta inicial é tão

ambiciosa como a de Collado: “My guiding conviction in this book is that music can

serve to enrich and advance theology, extending our wisdom about God, God´s relation

to us and to the world at large. I hope to show this with particular attention to that

dimension of the world we call ‘time’.” (BEGBIE, 2000, p.3). Begbie escolhe aquela

característica fundamental do fenómeno musical – a progressão temporal – para fundar

a sua própria teologia do musical. Independentemente da diferença entre as duas

metáforas, tanto Collado como Begbie partem de um pressuposto comum: que o

fenómeno musical partilha qualquer coisa com a transcendência, que existe algo em

comum entre as duas realidades, que existe uma terceira classe que as aproxima.

É curioso que Daniel Charles, no seu artigo Music and antimetaphor (1995),

oferece razões sólidas para provar que a música é precisamente o contrário daquilo que

Collado defende: uma antimetáfora. Servindo-se das várias versões de Kafka do mito de

Prometeu, Daniel Charles tenta provar que aquela terceira classe de que Wimsatt fala

(Daniel Charles prefere usar o termo tertium comparationis) está sempre ausente no

fenómeno musical:

In the first version, the myth is offered in its entirety; in the last, Prometheus no longer exists; he has been reduce to the “inexplicable mountains”. The tertium comparationis – the “definitive level of meaning outside of it” – which would legitimate its exegesis. While “ordinary” metaphors rely upon “relations the reader

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has to know beforehand, either through his own experience or through the literary conventions familiar to him”, a parable by Kafka becomes the metaphor of itself: the dimension or level on which it would be possible to discover its “real”, nonfigurative or eigentilche meaning is absent. Such a text has no frame of reference other than itself: it is at once an antimetaphor and an absolute metaphor. […] In that sense, music and metaphor appear connected together, at least under the guise of antimetaphor or absolute metaphor, that is, in a non-Nietzschean manner. For Nietzsche language speaks only indirectly about things. (TARASTI (ed.), 1995, p.35-36).

De um modo muito resumido, a ideia principal de Daniel Charles é que a música, por

comunicar directamente ao ouvinte, por não pressupor qualquer modo de intercessão,

não contém aquela exigência de mediação que está implícita a qualquer metáfora. É

puramente auto-referencial e, deste modo, não pode ser metáfora. Os seus significados

são sempre significados incorporados, usando os termos de Leonard B. Meyer. Quer

isto dizer que referente e referido se confundem. Deste modo, Daniel Charles arrisca-se

a suprimir a própria existência de signos musicais, já que um signo corresponde

geralmente a uma relação entre um referente e um referido. Tarasti não vai tão longe

como Daniel Charles mas refere-se também à música enquanto faded metaphor, por ser

um sistema semiótico não verbal. Tarasti, no seu livro Signs of music: a guide to

musical semiotics (2002), elabora sobre aquela tentativa, muito comum na teoria

musical no século XIX, de entender a música como uma verdadeira metáfora de um

organismo natural. Esta ideia remonta ao ensaio de Goethe de 1790, Versuch die

Metamorphose der Pflanzen zu erklären. Pela análise que Tarasti faz de vários autores,

a música obedecerá tanto mais à metáfora do organismo quando mais coerente ela for:

“The basic problem of organic music is not how the music can be divided into smaller

parts but rather how those parts cohere.” (TARASTI, 2002, p.98). Como Tarasti se

apercebe, o princípio da coerência é mais determinado pelo analista de que pelo

compositor. Uma obra musical é tanto mais coerente quanto mais perfeitamente se

adaptar aos parâmetros de perfeição formal esboçados por uma teoria anterior.

Novamente, encontramo-nos diante de um modo diferente de encarar o fenómeno

musical enquanto metáfora. Desta vez na sua relação com a ideia de organismo, sendo o

tertium comparitionis a coerência.

- - -

27

Já referimos que um dos parâmetros que permite ao signo musical, para

Collado, servir de metáfora ao transcendente é um parâmetro de ordem visual.

Falaremos agora de outro parâmetro, distinto mas igualmente fundamental: um

parâmetro de ordem linguística, mais concretamente linguístico-verbal. Por várias vezes

Collado refere que é aquela qualidade inefável da música, além da qualidade invisível,

que lhe permite servir de metáfora à Palavra. Quando Chua diz que o significado da

música absoluta reside no facto de não ter significado algum, ele percebe que também o

parâmetro segundo o qual os apologistas da música absoluta se servem para sustentar a

tese da inefabilidade é um parâmetro fundamentalmente linguístico-verbal. Como a

música não significa da mesma maneira que as palavras significam, ela nada significa

senão aquilo que é impossível de significar verbalmente, aquilo que escapa a um

parâmetro linguístico, aquilo que não pode ser expresso em palavras, o inefável. A

linguagem verbal torna-se então o modelo de representação, mas mais uma vez aplicado

negativamente. No domínio da semiótica musical, Molino é um dos vários

semiologistas a contestar essa convicção de que a linguagem verbal constitua o modelo

para todo e qualquer fenómeno simbólico. Monelle é outro importante autor a insistir

neste problema. Um signo não tem de ser necessariamente verbalizável. A significação

verbal é apenas uma das possíveis formas de significação: “Referential meaning is not

the same as lexical meaning.” (TARASTI (ed.), 1995, p.92). A ideia de que uma

linguagem é tanto mais inefável quanto menos verbalizável for, assenta precisamente no

pressuposto de que o modelo através do qual se deve avaliar o grau de eficácia

comunicacional de todas as linguagens, incluindo a musical, é o modelo da linguagem

verbal. Para Monelle este preconceito remonta ao próprio Saussure, no Cours de

linguistique générale (1916), e faz parte de uma semiótica ainda enraizada numa teoria

da linguagem. No seu The Sense of Music (2000), Monelle elabora com particular

consistência sobre este problema:

… commentators have persistently found musical signification a difficult area. Musical meaning is said to be “vague” or “foggy”. This is apparently because musical semiosis is different in kind from linguistic semiosis, and music therefore cannot be translated into words. Music is “at once intelligible and untranslatable” (Lévi-Strauss 1970/1964 p.18) […] It is sometimes felt that language is the paradigm of semantic precision, while music signifies only in a generalized way. This view is based on a naïve idea of the relation between language and the world, of which even Saussure was guilty. (MONELLE, 2000, p.11).

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Este preconceito tem ainda importantes consequências a nível dos instrumentos com os

quais o semiologista aborda a música, muitos desses instrumentos retirados da teoria da

linguagem, como é o caso da obra cheia de mérito de Victor Kofi Agawu, Music as

discourse: semiotic adventures in romantic music (2008). Termos como discurso,

narrativa, frase, oração, parêntesis, são alguns dos termos utilizados pelos analistas,

muitas vezes intuitivamente. Rosário Mirigliano é outra autora que avisa contra os

perigos deste procedimento: “…the mere use of concepts drawn from the theory of

language does not constitute a guarantee of the sign nature of the object examined nor

of the semiotic quality of the analytic procedures.” (TARASTI (ed.), 1995, p.58).

A ideia de que a música é qualquer coisa de inefável, para além de radicar neste

preconceito de linguagem, parece ser contrariada pelo próprio facto de que os autores

que defendem esta ideia se esforcem simultaneamente por colocar em palavras a

experiência musical. O mesmo se aplica à pretensão de inefabilidade de uma

experiência mística. F. Samuel Brainard, no seu Reality and Mystical Experience

(2000), tal como Paper, procura refutar a exigência de inefabilidade, própria do estado

zero da experiência mística:

…the notion that a mystical experience must be ineffable obscures the fact that we do seem able to talk about mystical states to some extent. […] Such an increasing capacity to speak about these experiences makes them no less mystical. Again, what appears to differentiate the mystical from the nonmystical is not ineffability but the perceived nonordinariness of the experience process itself. ´Ineffable´ may be a very handy mark for recognizing a nonordinary experiencing process, but it, in itself, seems to be only an indication of a mystical experience, Not what makes an experience ´mystical´. (BRAINARD, 2000, p.56).

Para Brainard, tudo aquilo que cai sob o desígnio de experiência mística, tem apenas

duas características em comum: nonordinariness e profundity. Não a inefabilidade. É

precisamente no facto de não ser inefável que a experiência mística encontra a sua força

comunicadora. A ser inefável, ao não encontrar nível de expressão humana, seria

impartilhável. Toda a experiência mística oferece modos de expressão. O sujeito da

experiência encontra sempre meios de objectivação de sentido. A linguagem poética foi,

para os apologistas da música absoluta, o meio principal de objectivação de sentido.

Mas também esses apologistas se confrontaram, como a teologia moderna continua a

confrontar-se, com aquilo que Bruno Forte designa como o naufrágio de todas as

possibilidades da palavra humana, (FORTE, 1995, p. 73) quando procura descrever o

transcendente.

29

- - -

Discriminamos até agora dois critérios através dos quais é avaliada a eficácia da

metáfora musical como metáfora do Mistério: um critério visual e um critério

linguístico-verbal. Ambos os critérios são aplicados negativamente. É por não ser visual

e por não ser verbalizável que a música serve de metáfora do Mistério. Serão pois a

invisualidade e a inefabilidade os dois tertium comparationis que constituem esta

metáfora. Isto vai de encontro precisamente as conteúdos da obra já referida, Il Sacro,

de Rudolf Otto. Segundo Otto, a arte ocidental não possui meios positivos para

representar o numinoso. Apenas meios negativos, que ele também chama de meios

indirectos. Também a música se inscreve nesta categoria. Meios positivos ou directos

seriam, como já vimos, o lance de um gesto, um tom de voz, uma fisionomia, a

totalidade da expressão devocional, aspectos próprios da antropologia do homem

enquanto sujeito religioso. Os dois principais meios negativos indirectos dos quais a arte

ocidental se pode servir são, segundo Otto, as trevas e o silêncio, uma categoria visual e

uma categoria sonora. Otto cita muito pertinentemente três versos de Tersteegen:

Herr, rede Du allein Beim tiefsten Stille sein Zu mir im Dunkeln

Otto procura provar, através de alguns exemplos, que é no momento em que a

música dá lugar ao silêncio que ela obtém o seu efeito mais bem sucedido enquanto

possível signo do numinoso:

Na linguagem dos sons, o que corresponde à escuridão é o silêncio. […] Um meio positivo para expressar o sagrado nem mesmo a música possui, a qual, de resto, consegue despertar toda sorte de sentimentos. O momento mais sagrado e numinoso na missa, o da transubstanciação, mesmo a mais consumada música de missa solenemente o exprime calando-se, e isso literalmente e por um tempo relativamente longo… É bem instrutivo analisar a Missa em Si Menor de Bach sob esse aspecto. Sua parte mais mística é, como de praxe nas composições para missas, o “Et Incarnatus”. O efeito aqui se encontra no leve murmúrio das hesitantes e sucessivas entradas do tema da fuga a se esvair em pianíssimo. Com a respiração contida, em sonoridade mediana, as terças diminutas descendentes extremamente esquisitas, no vai-não-vai das sincopas e no sobe-e-desce dos estranhos semitons a reproduzirem o espanto receoso, implicam o mistério, mais insinuado que expresso. (OTTO, 2007, p.109).

30

Seria importante recuperar e expandir as palavras de Artur Mourão, sobre o nexo entre a

música e a palavra: “Ambas têm a ver com a escuta, uma dos sons, outra da Palavra,

mas desaguando e imergindo no que não cabe nem nos sons nem nas palavras, antes

abrindo-se ao silêncio e à “música calada”, de que sabia S. João da Cruz.” (MOURÃO,

2006, p.3). A música calada é uma ideia constante na teologia estética. Como diz Otto,

a música exprime calando-se. Podemos reencontrar esta ideia naquelas palavras de de

Kempis no seu De imitatione Christi (1418): “A minha boca fica muda perante Vós, e o

meu silêncio fala-vos.” (de KEMPIS, 1994, p.128). Tudo isto são exemplos da via

negationis. Na sua Teologia della storia (1991), Bruno Forte elabora sobre o fenómeno

do silêncio enquanto via negationis:

…o Silêncio apresenta-se com a Não-palavra, isto é, como a negação daquilo que especifíca o Verbo enquanto tal. Se é próprio do Verbo o ser concebido e proferido, o provir originado por um princípio vivo ao qual esta indissoluvelmente ligado e, portanto, o ser gerado, será próprio do mais além do Verbo o puro e simples ser "não-gerado" (p. 65). [...] Se a Palavra é ícone porque é presença e comunicação do infinito e eterno dentro das coordenadas do espaço e do tempo, o Silêncio, por sua vez, é trevas, é o invisível mais além do visível. (p. 66).

Como Forte sugere, o Silêncio corresponde a um estado de não-geração, à incapacidade

de algo fazer-se presente. De que modo então é que o silêncio, a ausência de som, pode

implicitamente sugerir, servir de metáfora, à presença do numinoso? Na verdade o

tertium compartionis, julgamos nós, não é tanto a ausência do som mas a sugestão

implícita da ausência de tempo. Como Bruno refere, a Palavra é uma presença dentro

das coordenadas do espaço e do tempo. O som pressupõe uma corrente de vibrações em

progressão no tempo. A ausência de som sugerirá então precisamente o contrário, a

ausência de progressão, a negação de uma presença, a ausência de um fim para, a fuga

às coordenadas do espaço e do tempo, remetendo para aquelas várias categorias como o

infinito e o intemporal, categorias com proximidades evidentes com a categoria do

numinoso. Daniel Charles, na sua reflexão da música enquanto antimetáfora, fala desta

relação próxima que a ausência de som tem com a sensação da ausência do tempo:

For Cage as for Heidegger, silence or absence prevents time from being taken as something already present or already there. Time has to spring. In so far as it springs, it disappears into its own withdrawal. Because of this withdrawal (or `withholding´, or `denial´), its very granting prevents us from basing our understanding of musical signification on any `constant presence´, or any `now-moment´, which would require some calculus or measurement concerning a `temporal interval´. (TARASTI (ed.), 1995, p.32).

31

É importante notarmos que o silêncio, em música, não equivale necessariamente

à ausência total de som. A música pode efectivamente representar o silêncio, através de

efeitos de contraste, pondo em oposição sonoridades cheias com sonoridades quase

vazias. Do mesmo modo, o silêncio enquanto uma apresentação total, só adquire um

estatuto semiológico no contraste que realiza com uma apresentação sonora que lhe é

anterior ou que lhe é posterior.

Fomos assim destilando três possíveis tertium compartionis para a metáfora entre

música e a categoria do transcendente: a invisualidade, a inefabilidade e a

intemporalidade.

- - -

Usando os termos de Monelle, num terreno semanticamente tão vago e

nebuloso como se julgar ser o da música, o consenso entre os semiologistas em relação

à função semiológica um dado momento musical é muitas vezes raro de encontrar. É

por pretensamente cumprir aquela exigência de inefabilidade (cumprimento que, como

vimos, é muito questionável), que a música contém um tão vasto painel paradigmático.

Entenda-se por painel paradigmático o conjunto de significados que podemos associar,

com algum tipo de legitimidade, a um dado signo. De tal forma é ele vasto que um

mesmo momento musical pode significar para dois receptores coisas não apenas

distintas mas virtualmente opostas. Na teologia, este aspecto merece particular atenção.

Isto porque é devido a esta abertura e a esta falta de consenso, que a música sempre foi

objecto de desconfiança por parte de muitos teólogos. Com a mesma facilidade que ela

se adapta a uma semiótica do divino, também se adapta a uma semiótica do demoníaco.

Hans Küng resume estas duas tendências que percorrem a história da música:

… desde tiempos remotos distinguieran los humanos en la música voces de los dioses pêro también de los demónios. Y si personas religiosas justamente encomiaron la música como forma purísima de espiritualidad, otras la condenaron por razones religiosas, en cuanto la más detestable forma de sensualidad. En fin, si unos aprobaban aun la música instrumental para sublimar al máximo el entusiasmo religioso, otros – y no solo los Padres de la Iglesia, sino también Calvino – intentaron desterrarla de los ofícios divinos ya menudo hasta de la vida secular.” (KÜNG, 2008, p.16)

32

A dicotomia da música enquanto veículo de espiritualidade/ veículo de

sensualidade é uma questão essencialmente relacionada com o modo como a música é

percebida mais do que como ela é produzida. Podemos encontrar um dos exemplos mais

inequívocos desta dicotomia nas hesitações de Santo Agostinho na sua relação com a

experiência musical: “Quando acontece eu ser mais comovido pelo canto que pelas

palavras cantadas, vejo-me a cometer um pecado por expiar e então preferia não ouvir

cantar.” (AGOSTINHO, 2001, p.176). Santo Agostinho vê-se confrontando com o

prazer que experimenta ao ouvir o cântico litúrgico, identificado o logos com aquela

dimensão verdadeiramente espiritual da música, e o melos com a dimensão sensual.

Dualidades deste género, que têm como arquétipo de fundo a dualidade corpo/alma, são

transversais a grande parte do pensamento teológico acerca da música.

Collado, na tentativa de reforçar o potencial metafórico da música, reflecte sobre

este seu carácter dual:

Para estudiar la música como lenguaje de trascendéncia del Misterio hay que atender a la outra cara de la ambivalência de su manifestación, el aspecto demoníaco-profano. De hecho, aqui encaja perfectamente la concepción de la música en su doble comprensión: la que mueve a las más altas virtudes y la que suscita las más bajas pasiones. Pêro esse precisamente en este punto donde radica su potencialidad reveladora del Misterio. Para la manifestación de lo sacro, fenomenologicamente, se necesita de objetos. Estos no siendo santos, se convierten en sacros en tanto son indicadores del Misterio, según hemos podido observar en la aproximación fenomenológico-teológica de Tillich. Si dejan de ser indicadores del Misterio se convierten en demoníacos. (COLLADO, 2006, p.79).

Collado apoia-se largamente em Paul Tillich para criar uma distinção com uma grande

relevância semiológica. Importa apresentar a passagem de Tillich que Collado cita: “La

representación del fin último del ser humano – los objectos sagrados – tienden a

convertirse en su fin último. Se transforman así en ídolos: la sacralidad provoca la

idolatria.” (COLLADO, 2006, p.254). Parece-nos que a distinção de Collado entre o

sagrado e o demoníaco é uma distinção entre aquilo que poderemos chamar uma

representação e um totem. Um totem nada representa porque é puramente auto-

referencial. Quando a signo artístico pretende representar qualquer aspecto da realidade

divina e acaba por abandonar a função de representamem para se tornar no próprio

objecto o fim último, ele adquire uma estatuto demoníaco. Caso paradigmático

apresentado por Collado é o caso do Bezerro de Ouro que, construído pelos israelitas

para se referir ao Deus que se julgava estar ausente no Sinai, acaba por ele próprio se

tornar num fim último. Neste sentido, e de acordo com Collado, o demoníaco é a

33

idolatria. A idolatria acontece quando a representação deixa de existir. Se efectivamente

a representação corresponde àquilo que está em vez de algo (Peirce), a uma referência

(Jakobson), um reconhecimento de algo ausente (Gadamer), a um acto de substituição

mental (Mounin), a idolatria não é representação. Quando o referente e o referido se

tornam a mesma coisa, quando entre eles há uma relação de isomorfia, a idolatria

acontece. O que impede que o signo que procura representar o transcendente se

confunda com o ser representado, é que ele nunca o representa por inteiro, ele

representa-o a algum respeito. Não representa a totalidade do objecto, mas apenas uma

parte dele, um certo ponto de vista. Já S. João da Cruz dizia que a fé vai ao encontro de

uma verdade velada, que nunca se oferece por inteira. Este mesmo raciocínio aplica-se

à música. A música religiosa deve pugnar, segundo Collado, por ser uma referência

sensível do Mistério. Exige a forma enquanto substituto. Sequeri fala da necessidade da

mediação simbólica do sensível. Von Balthasar fala de uma espiritualidade do sensível.

Collado fala de uma fé sensível. Na análise que faz ao Moses und Aaron (1930-32) de

Schönberg, Sequeri fala desse conflito entre o elemento estético e o elemento ascético,

entre a necessidade de um mediador sensível entre o Deus e o homem. O formalismo da

auto-referencialidade estética é portanto, por razões fáceis de adivinhar, algo depreciado

por Sequeri: “El arte debe salir, por eso mismo, del âmbito restringido de las reglas y

del ámbito corporativo de la auto-referencialidad, y volver a hacerse cultura abierta y

replantar los sentidos espirituales.” (SEQUERI, 2000, p.471). A proposta de Sequeri –

a proposta de uma arte musical que volta a ser cultura aberta, um terreno livre para a

plantação de sentidos – é a mesma proposta que pode minar a possibilidade que esses

mesmos sentidos sejam, como Sequeri deseja, espirituais. Pois é essa abertura que no

fundo permite ao fenómeno musical não sair do terreno das ambiguidades, das

dualidades, das triplicidades etc. por oposição a um sentido único. Deste modo, e como

Collado refere, uma teologia do musical só é possível na tentativa, não de fixar sentidos

únicos, mas de superar os sentidos e as dualidades comuns, entre o sagrado e o

demoníaco, entre o espiritual e o sensual, tentativa que Collado reconhece em vários

compositores, como é o caso de Mozart:

La consideración de lo musical en el ámbito teológico comporta un intento de superar las oposiciones dialécticas entre sacro-profano, sensible-inteligible, afecto-efecto, espiritual-carnal. Mozart seria para Balthasar – y también para Barth – una metáfora de esta superación. […] En Mozart «eros» y «ágape» se experimentan sin poderse distinguir. (COLLADO, 2006, p.154).

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- - -

Um dos autores que talvez poderá ajudar-nos melhor a compreender a questão

da dualidade da metáfora musical (porque é enquanto metáfora que a música apela para

dois sentidos que se opõem), é Tarasti. Já referimos as reflexões que Tarasti dedicou ao

problema da música enquanto possível metáfora do organismo. Também para esta

metáfora, Tarasti detecta o problema da ambiguidade do signo musical: “To end our

discussion on the metaphor of the ´organic` as a music-theoretical episteme, we can note

that the same thing happens with it as with the notion of ´nature`. As Lovejoy´s analysis

and our cases show, ´nature` can mean almost anything, both order and disorder. In the

same way, organic unity and growth can mean almost anything.” (TARASTI, 2002,

p.103). Tarasti, ao ser confrontando com este problema, resolve-o propondo como

solução aquele que para muitos é a própria essência do problema. Ao aperceber-se que

toda a metáfora se funda num esquema cultural e ideológico, em grande parte arbitrário,

a única maneira de compreender uma metáfora em todo o seu sentido e de modo

possivelmente unívoco é percebendo-a ideologicamente:

Why, then, do we examine a phenomenon which leads to such ambivalence? It is because nature and organic growth have meant something to philosophers and to musical scholars, especially to those studying symphonic thought. They are notions loaded with powerful ideological concepts, whose precise meaning might be obscure, but which have been and are still used when we speak about essential things in music.” (TARASTI, 2002, p.103).

O mesmo se aplica a qualquer modo de representação musical que desejarmos analisar.

A representação em música é, para muitos autores, de ordem largamente indexical mais

do que icónica. Quer isto dizer que o signo musical representa através de uma relação de

proximidade real que existe entre o representamen e objecto. A título de exemplo, o

seguinte conjunto tímbrico: um toque de caixa e um toque trompete. Num primeiro

nível, este conjunto refere-se apenas a uma chamada para a guerra. Mas por extensão,

acaba por aludir à própria ideia de guerra no seu todo. Estabelece-se assim uma relação

indexical. No entanto, no seu mais profundo sentido, esse por extensão só pode

entendido simbolicamente. Entenda-se por símbolo aquele signo cuja relação entre o

representamen e o objecto é puramente convencionada e não assenta nem numa relação

nem icónica nem indexical. Este foi talvez um dos mais ricos contributos de Eco à

semiologia. Eco percebeu que a descodificação tanto dos índexes como dos ícones

depende inteiramente de uma interpretação simbólica, de uma convenção, de uma

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ideologia partilhada. É a consciência desta ideologia partilhada que permite ao

semiologista tentar resolver o problema da ambivalência de um dado signo. Esta

ideologia é no fundo um código partilhado tanto pelo compositor como pelo ouvinte,

código do qual depende necessariamente o sucesso da comunicação: “…music´s

meanings are unlikely to be accessible to those who refuse to engage with the musical

code.” (AGAWU, 2008, p.6). Neste sentido, uma metáfora (ou um ícone, segundo

Peirce) só pode ser descodificada por inteiro quando o receptor possui um conhecimento

prévio desse código. A metáfora musical pressupõe desde logo um ouvinte preparado.

Uma metáfora é uma construção de um tempo para um tempo. A distinção que Otto M.

Christensen realiza entre afectual listener (o ouvinte ideal do século XVII e grande

parte do século XVIII); emotional listener (o ouvinte ideal do final do século XVIII e

grande parte do século XIX); e intelectual listener (o ouvinte ideal da música moderna e

pós-moderna) resulta em categorias talvez demasiado generalistas mas que resumem

bem como a predisposição do ouvinte na escuta da música é em grande parte

determinada por convenções da época. O ouvinte, que é teoricamente o mediador entre

o nível de expressão e o nível de conteúdo, deve estar inteirado de uma simbologia

historicamente localizada. De acordo com cada época, o ouvinte tem uma diferente

relação com cada um destes dois níveis. Desta forma, Christensen conclui: “Music in

general can be “completely” understood only by its contemporaries.” (TARASTI (ed.),

1995, p.89). No caso dos teólogos sobre os quais temos vindo a reflectir, esta

simbologia historicamente localizada, simbologia que unifica a sua visão da música

como lugar onde a Palavra pode ser ouvida e colhida (em suma, como possível lugar

teológico), não é mais que a própria Teologia onde se mobilizam, e as Escrituras que a

suporta.

36

II

Introdução ao sentido teológico do

Mistério da Transfiguração

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Antes de passarmos ao caso de estudo que dá título ao nosso trabalho, importa

fazermos uma introdução aos conteúdos do episódio da Transfiguração. A

Transfiguração é um episódio da vida de Jesus que vem descrito em três dos quatro

evangelhos, mais concretamente nos três evangelhos sinópticos: Mateus (17, 1-9),

Marcos (9, 2-10) e Lucas (9, 28-37). Existe também uma referência directa na segunda

carta de Pedro (1, 16-18). Algumas referências indirectas poderão ser encontradas ao

longo do evangelho de S. João e das cartas de S. Paulo. Apresentamos aqui a narrativa

marciana:

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e levou-os sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E transfigurou-Se diante deles. As Suas vestes ficaram brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira no mundo as poderia branquear. Apareceram-lhes Elias e Moisés, que estavam conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: «Mestre,,é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». Pedro não sabias o que dizia, pois estavam cheios de medo. Então desceu uma nuvem e cobriu-os com a sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: «Este é o Meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!» E, de repente, olharam em volta e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. Ao descerem da montanha, Jesus recomendeu-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram a recomendação e discutiam uns com os outros o que queria dizer «ressuscitar dos mortos.» (Mc, 9, 2-10)

É quase certo que nenhum dos autores destes três evangelhos foi testemunha

ocular de qualquer evento na vida de Jesus. O evangelho de S. Marcos, por ser

cronologicamente o mais antigo, foi a fonte principal (porém, não a única) no qual os

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autores de Mateus e Lucas se debruçaram. Julga-se que o autor de Marcos, por sua vez,

se terá baseado num testemunho oral já bastante disseminado entre as primeiras

comunidades cristãs: “Before it was utilized by the Markan author, the Transfiguration

story probably enjoyed its own independent life orally.” (S. LEE, 2009, p.9). O carácter

deste testemunho oral e os acrescentos do autor de Marcos são objecto de grande

inquirição. Supõe-se que narrativa marciana constitua uma liga de várias proveniências

culturais. Simon S. Lee resume essa ideia:

Scholars who have worked on the Transfiguration have suggested several different sources from which it may have come and ways of understanding it: 1) as a misplaced resurrection narrative, 2) as a story of a Hellenistic divine man, 3) as an apocalyptic revelation, 4) as part of the Sinai/Mosaic tradition, 5) as a story related to the binding of Isaac, 6) having to do with the Feast of Booths, 7) as part of the enthronement pattern, and 8) part of Epiphany/ Christophany. (S. LEE, 2009, p.9).

Os evangelhos sinópticos são hoje tão conhecidos por aquilo que os relaciona

como por aquilo que os distingue. No que diz respeito ao relato da Transfiguração, os

três sinópticos apresentam uma sequência narrativa praticamente idêntica, com algumas

diferenças de carácter. Tantos a recepção do acontecimento por parte dos três discípulos

como a apresentação das figuras do Antigo Testamento são alguns dos aspectos que

exibem pequenas variações nas três narrativas. Eis um exemplo conciso de leitura

exegética destas variações: “Segundo os textos evangélicos, a Transfiguração é: a

proclamação de Jesus como o novo Moisés (Mateus); a epifania gloriosa de Jesus e o

Messias escondido (Marcos); o momento mais alto da preparação da paixão que se

aproxima (Lucas).” (GALVÃO (ed.), 2008, p.7). Descobrir se Liszt, na composição da

sua peça, se baseou nalguma das três versões em particular é uma tarefa absolutamente

impossível. Mas esta impossibilidade, ao que nos parece, nunca constituirá um

obstáculo relevante para a compreensão da peça de Liszt. Como iremos ver, as

diferenças entre as três versões são, apesar de tudo, sem consequências para efeitos

representativos. John Paul Heil resume nas seguintes palavras a concordância dos três

sinópticos:

Although all three versions of the transfiguration narrative exhibit their own unique characteristics, each narrates essentially the same sequence of literary motifs for its respective Gospel audience. After an introduction that locates the event temporally and spatially, each version begins with a stunning transfiguration of Jesus external appearance before three of his disciples followed by a dramatic appearance of Moses and Elijah in conversation with Jesus. In response, Peter suggest the building of three tents, one for Jesus, one for Moses and one for Elijah.

39

Then in each version a cloud overshadows ‘them’. A voice from the cloud announces that this is my beloved or chosen Son and commands the disciples to listen to him. Each version concludes with a notice that Jesus alone was left there. Each version, then, presents a unified, consistent narrative that is of the same basic literary genre, evoking in general the same basic responses from their respective implied Gospel audiences familiar with the genre. (HEIL, 2000, p.33).

Os elementos principais estão, como veremos, contidos em cada um dos três sinópticos.

- - -

É consenso exegético que as palavras de Jesus: “Em verdade vos digo: alguns

dos que estão aqui presentes não hão-de experimentar a morte, antes de terem visto

chegar o filho do Homem com o seu Reino.” (Mt, 16, 28), são uma referência directa ao

episódio da Transfiguração, no qual foi permitido a alguns dos apóstolos contemplar a

divindade de Jesus, filho de Deus. De facto, estas palavras precedem imediatamente a

narrativa da Transfiguração nos três sinópticos. Ao contrário dos famosos eventos da

vida pública de Jesus, os destinatários deste acontecimento são apenas três discípulos:

Pedro, João e Tiago. Com a Transfiguração, Jesus pretendia reconfirmar a fé

escorregadia dos seus discípulos, introduzindo-os ao Mistério da Sua Pessoa. A

Transfiguração dá-se em seguimento directo de uma conversa entre Jesus e os

apóstolos. O tema desta conversa é a identidade e a paixão de Jesus por realizar-se (Mt

16, 13-38; Mc 8, 27-38; Lc 9, 18-27). É a primeira vez que Jesus prevê a Sua paixão,

morte e ressurreição. Pedro não entende as palavras de Jesus e é repreendido por isso.

(Mt 16, 21-23; Mc 8, 31-33). O episódio da Transfiguração inicia-se em cada um dos

sinópticos com uma nota temporal (seis dias depois, em Marcos e Mateus; oito dias

depois, em Lucas), nota que tem como referência esta conversa anterior. O que está pois

em causa na Transfiguração é a confirmação da identidade controversa de Jesus

enquanto: 1) a segunda Pessoa da Trindade; 2) o Cristo ressuscitado. Analisemos por

alguns instantes estes dois pontos.

1) O episódio da Transfiguração é um pretexto para meditar sobre o mistério da

hipóstase. A Transfiguração testemunha a favor da doutrina da união hipostática,

doutrina segundo a qual Cristo possui uma dupla natureza, sendo Deus verdadeiro e

homem verdadeiro simultaneamente. Neste sentido, a Transfiguração vem a demonstrar

a verdade da Encarnação. No momento da Encarnação, a segunda Pessoa da Trindade,

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ao revestir-se de carne e forma senciente, vem avisar, porque é consubstancial ao Pai,

do carácter divino de cada homem enquanto filho de Deus. Na Transfiguração, a carne

de Jesus torna-se translúcida de divindade, reiterando a proposição adiantada

anteriormente com a Encarnação, a divindade na humanidade. No Mistério da

Encarnação, observamos o movimento contrário de Deus, na Sua vontade de adoptar e

abraçar o tempo e a história dos homens. No Mistério da Transfiguração, os três

apóstolos são testemunhas da verdade daquele movimento.

2) A Transfiguração é também a antevisão de uma escatologia cumprida, é uma Páscoa

antecipada. Ao revestir-se de luz e glória, Jesus prevê a glória da ressurreição, a glória

pascal. Já referimos a relação de causalidade que existe entre o episódio da

Transfiguração e as revelações sobre a Paixão e a Ressurreição que Jesus faz aos

apóstolos dias antes (Mt, 16 21-28; Mc, 8, 31-38; Lc, 9, 22-27). Muitos exegetas julgam

mesmo que a Transfiguração é uma narrativa alterada da aparição de Jesus aos

discípulos após a Ressurreição. “Trata-se de uma narrativa que, segundo muitos

exegetas, começa por nascer como relato da aparição do Ressuscitado aos discípulos

num monte com toda a sua glória.” (das NEVES, 2002, p.141). Na medida em que os

evangelhos constituem não biografias, mas interpretações inspiradas e catequéticas da

vida de Cristo, para muitos exegetas é possível que a Transfiguração seja um relato

deslocado de um acontecimento que ocorreu após a ressurreição. Por todas estas

considerações, não podemos deixar de frisar quão fundamental será para a nossa análise

musicológica os paralelos entre a Transfiguração e a Ressurreição, nomeadamente ao

realizarmos uma leitura da peça enquanto possível lugar teológico. O que antecede é

para já suficiente para deixar este ponto em aberto e dele nos recordarmos em momento

oportuno.

Por tudo isto, a Transfiguração insere-se no género literário da epifania,

embora há quem também o classifique como uma visão apocalíptica. Epifania, em

termos muito gerais, designa a manifestação de uma figura ou de uma acção divina a um

ou mais homens. Heil classifica a Transfiguração mais concretamente como uma

epifania mandatória, já que tem por base um mandado concedido pelo Deus Pai a uma

dada figura, neste caso ao Deus Filho. A Transfiguração é um caso particular de

epifania porque na verdade é uma epifania múltipla: do Deus filho (Cristofania), de

Elias e Moisés, e do Deus Pai (teofania).

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- - -

É interessante ler Damian Dombrowski, num estudo seu da representação da

Transfiguração em Rafael, a referir uma exigência de inefabilidade para a boa

representação do evento da Transfiguração: “Até talentos criativos incontestados se

viram condenados ao fracasso quando não tomaram em consideração a inefabilidade da

cena, já para os Evangelistas demasiado exigente, e pretenderam reproduzir a visão que

os próprios discípulos não suportaram.” (GALVÃO (ed.), 2008, p.175). De acordo com

a exegese, o argumento da inefabilidade seria um argumento discutível. A

transformação que se dá em Jesus é uma transformação, apesar de tudo, de carácter

explicitamente corporal. Simon S. Lee resume o carácter absolutamente corpóreo do

evento: “To recover the story, we need to recognize that the transfiguration is not an

other-worldly narrative, disconnected from the body and ordinary human experience.

On the contrary, it is precisely Jesus` transfigured body that discloses the face of God

and the hope of God´s future, addressing the concrete reality of a fearful,

uncomprehending group of disciples and a tragic, unbelieving world.” (S. LEE, 2009,

p.2). De facto, há toda uma fenomenologia muito própria a compor o episódio. Existem

motivos básicos que são muito característicos das cenas epifânicas na bíblia. “Todas as

teofanias e cristofanias apresentam elementos espaciais, divinos e humanos, com uma

tipologia semelhante: a montanha, a luz, a nuvem, a mensagem da voz de Deus, os

intermediários (Moisés, Isaías, Jesus).” (das NEVES, 2002, p.141). Atrás referimos que

as pequenas variações existentes entre as três versões da Transfiguração não são de

consequência para efeitos representativos. Abre-se naturalmente agora a questão de que

critério é que utilizamos para determinar qual dos elementos da narrativa são

potencialmente mais representáveis que outros. Para evitar a formulação de um mau

critério, decidimos fazer um levantamento de literalmente todos os elementos passíveis

de representação contidos na narrativa:

1) Jesus

Jesus é o objecto da Transfiguração, sob a acção directa de Deus. Pela natureza do

pecado, os apóstolos tendem a considerar Jesus um homem, um rabi. É para confirmar

aos apóstolos que Jesus é filho de Deus, essencialmente distinto dos outros homens, que

a Transfiguração dá-se a acontecer sobre Jesus.

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2) Os três discípulos.

Pedro, Tiago e João constituem a audiência privilegiada da Transfiguração. Não são

parte activa nela. São testemunhas. “… fomos testemunhas oculares da Sua majestade.”

(2 Pedro 1,16) São estes os mesmos discípulos de que Jesus se faz acompanhar a outra

monte, o monte das Oliveiras, na véspera da Sua Paixão. No caso da Transfiguração, os

três discípulos fazem um contraste significativo com as três figuras divinas que

conversam: Jesus, Moisés e Elias. O medo e a confusão dos apóstolos é um motivo

emocional comum na audiência de uma epifania. A oferta que Pedro faz, a de montar

três tendas, sugere bem a confusão que o apóstolo experimenta.

3) Subida à montanha \ Descida da montanha

Mateus 17, 1

Marcos 9, 2

Lucas 9, 28

2 Pedro, 1, 18

Mateus 17,9

Marcos 9,9

Lucas 9,37

Para muitos exegetas, a montanha onde ocorreu a Transfiguração (segundo a tradição,

o monte Tabor na Galileia) é uma segunda evocação do Sinai, montanha na qual a Lei

foi entregue a Moisés. Também na revelação sinaítica, Deus surge no topo de uma

montanha, falando envolto numa nuvem. Desde logo, a subida de Jesus e dos discípulos

à montanha é um elemento que invoca um movimento vertical significativo em direcção

a Deus. Dorothy Lee, na sua análise da versão marciana da Transfiguração, distingue

três fases – ascent, revelation, descent – sendo que a primeira e a terceira dizem respeito

à subida e à descida de Jesus e dos discípulos da montanha.

43

4) Luz \ Vestes brancas e brilhantes

Mateus 16, 2

Marcos 9, 3

Lucas 9, 29

O aspecto luminoso que as vestes de Jesus adquirem no cimo da montanha tem uma

qualidade claramente apocalíptica. Esta imagem vai de encontro, por exemplo, à

profecia de Daniel sobre o Filho do Homem: “…as suas vestes eram brancas como a

neve, cabelos claros como a lã.” (Dn, 7, 9) De facto, a visão é tão radiosa que os

discípulos não a conseguem suportar. O autor de Mateus explicitamente compara o

rosto brilhante de Jesus com o sol (Mt, 17,2; o único dos sinópticos onde ocorre esta

analogia). A literatura profético-apocalíptica do judaísmo e do cristianismo primitivo

está recheada deste género de imagens, geralmente associados à vinda do Messias.

Dorothy Lee refere que tanto a luz como as roupas devem ser entendidos como motivos

metonímicos que, por extensão, reforçam a ideia de Transfiguração.

5) Moisés e Elias

Mateus, 17, 3-4

Marcos, 9, 4-5

Lucas, 9, 30-33

Moisés e Elias representam dois eixos importantes da religião judaica, a lei e a

profecia respectivamente. Um é o paradigma do legislador, outro é o paradigma dos

grandes profetas do Antigo Testamento. Ambos vêm corroborar a verdade do

testemunho de Jesus. O diálogo que ocorre entre os três é o diálogo da aliança entre o

Antigo e o Novo Testamento. Nem Marcos nem Mateus mencionam o conteúdo desse

diálogo. Apenas Lucas enuncia o conteúdo: a Paixão que Jesus vai enfrentar em

Jerusalém. Esta conversa foi longa, tanto que os discípulos precisam de montar uma

44

tenda e dormir. Há também um elemento apocalíptico na aparição destas duas figuras,

mais concretamente na sugestão da ideia da Segunda Vida, em que os justos do Antigo

Testamento estarão também presentes. “No caso da Transfiguração, as figuras de Elias e

de Moisés tanto significam o profetismo e a Lei como apresentam dois personagens

que, pela tradição bíblica, não chegaram a morrer, pois foram elevados ao céu, de onde

viriam nos tempos finais.” (das NEVES, 2002, p.141)

6) As três tendas

Mateus 17,4

Marcos 9, 5-6

Lucas 9,33

É Pedro quem propõe montar três tendas. É incerto o propósito do apóstolo. À

primeira vista, a sua intenção seria montar um abrigo para as três figuras em diálogo:

Moisés, Elias e Jesus. A exegese oferece várias significações para a ideia das três

tendas, que agora não nos importa elaborar.

7) A nuvem

Mateus 16, 5

Marcos 9, 7

Lucas 9, 34-35

A nuvem é um tópico comum às teofanias tanto do Antigo Testamento como do Novo

Testamento. A nuvem é ao mesmo tempo Deus presente e Deus misterioso. É uma

presença velada. No baptismo de Jesus por João Baptista, a nuvem de onde Deus fala

está também presente. Os três sinópticos referem que a nuvem lança uma sombra sobre

a montanha, o que põe em evidência o carácter assombroso daquela manifestação.

45

8) Voz de Deus

Mateus 16,5

Marcos 9,7

Lucas 9, 35-36

2 Pedro, 1,17-18

A voz de Deus é um elemento intimamente relacionado com a nuvem. A voz do Pai

pede para que escutem o Filho. O imperativo exortativo Escutai-O é fundamental para

compreender o carácter mandatório do acontecimento. Ao contrário da revelação

sinaítica, Deus não surge para entregar a lei, mas para apontar a nova Lei, Jesus. Nesta

medida, Jesus, a Lei, supera Moisés, o legislador.

- - -

Conjuntamente com estes elementos visuais e sonoros, existe um elemento que é

transversal a todo este episódio: o próprio evento da Transfiguração. A Transfiguração é

o motivo central de toda esta narrativa. O que devemos entender por Transfiguração?

“Por Transfiguração de Jesus entendemos, segundo a leitura evangélica, o processo de

metamorfose a que Jesus foi sujeito no cimo do monte alto.” (GALVÃO (ed.), 2008,

p.145). José Carlos Carvalho fala de um processo de metamorfose. O verbo grego do

qual os evangelhos de Mateus e Marcos se servem é metamorfoustai. O autor de Lucas,

embora se baseie maioritariamente em Marcos, evita usar esse verbo, descrevendo a

mudança de outro modo, dizendo que o aspecto do Seu rosto torna-se diferente (9,29)

(tò eidos tou prosósopou autou). Na carta aos Filipenses de São Paulo (Fl, 2, 6-7)., é

bem explícita a natureza mórfica de Jesus: “Ele tinha forma [morphe] divina, mas

apegou-se à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-Se a Si mesmo,

assumindo a forma [morphe] de servo e tornando-Se semelhante aos homens.” (Fl, 2, 6-

7).

É importante perceber que Jesus submeteu-se passivamente a essa

transformação, por vontade do Pai. A exegese é unânime a esse respeito. “The aorist

passive form (metamorfoustai) indicates that this external transformation of the physical

appearance of Jesus was effected objectively, from outside, by God (divine passive)

rather than subjectively or interiorly by Jesus himself.” (HEIL, 2000, p.77). José Carlos

46

Carvalho explica a vontade do Deus Pai em transfigurar o Filho, através da ideia de

transferência da lei:

Agora, depois da conversa com o Antigo Testamento, Deus entrega a Palavra do seu Filho muito amado. Em vez de palavras escritas nas tábuas da lei, dá a Palavra. Essa entrega (que fundamenta a traditio, a “transferência” do Pai) eleva Jesus à condição de ‘metamorfoseado’. Jesus é passivo. Metermofte é significativamente um ‘passivo teológico’ para indicar que tudo é acção de Deus, é Deus que age e actua esta transformação em Jesus, antecipando assim para os discípulos a glória que encontrarão na Páscoa. Jesus é transformado ao estado escatológico e definitivo. (GALVÃO (ed.), 2008, p.149).

Simon S. Lee reitera o carácter passivo da Transfiguração de Jesus ao compará-la com o

tema da metamorfose tal qual é tratado pela poesia grega (essencialmente Homero) e a

poesia latina (Ovídio, Apuleio e Luciano de Samósata): “In this kind of

anthropomorphic presentation of gods in antiquity, the term metamorphosis (a noun

from the verb form metamorfoustai) comes to mean ‘to remodel’ or ‘to change into

another form’ predominiantly in its passive or middle form.” (S. LEE, 2009, p.25).

Rébie alude à Trindade de modo a explicar o aspecto mandatório da Transfiguração:

“Se è il Padre a condurre i tre sul monte della conoscenza circa la persona di Gesù, tale

agire è in perfetta sintonia com le parole: «…nessuno conosce il Figlio se non il Padre, e

nessuno conosce il Padre se non il Figlio e colui al quale il Figlio lo voglia rivelare.”

(ORSI (ed.), 2008, p.30). Em suma, Jesus não se transfigurou activamente por vontade

própria, não incorreu numa revelação voluntária. Foi, provavelmente em resposta das

suas preces (Lucas 9,29), que Deus o transfigurou por tempo indeterminado. Jesus não

foi sujeito mas objecto da metamorfose. É por adquirir formas divinas que Moisés e

Elias, figuras celestiais, têm oportunidade de comunicar directamente com Jesus. Em

nenhuma outra passagem dos Evangelhos, Jesus comunica com os mortos a não ser

nesta montanha, espaço onde por instantes se suspende o devir humano. A questão da

metamorfose na Transfiguração encontra um paralelo evidente nas técnicas de

metamorfose temática exploradas, ainda que não criadas, por Liszt. De certo modo, este

evento na vida de Cristo seria o que mais idealmente poderia ter sido representado por

Liszt, que sistematizou e aperfeiçoou muitas dessas técnicas. Mas como veremos no

nosso estudo da peça, o tratamento que Liszt faz desse evento não é tão óbvio como

poderíamos esperar.

47

III

In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi, de Liszt,

enquanto possível lugar metafórico e teológico

48

O último período de Liszt

O período criativo de Liszt que é geralmente designado por último período, é

um período que cada vez mais tem prendido a atenção musicológica. O reportório de

Liszt que desde sempre foi tomado como o seu mais importante contributo para a

história da música – o reportório orquestral do período de Weimar – deixou de ser o

único alvo privilegiado da admiração pelo compositor. O Liszt do último período é

muitas vezes encarado como o pai legítimo do modernismo musical (o pai ilegítimo

seria Wagner, o qual teria surripiado de Liszt as suas muitas inovações), o antevisor do

impressionismo, do bitonalismo, do atonalismo, do dodecafonismo… O Liszt do último

período assumiu, na opinião de muitos, a paternidade de todos os grandes movimentos

musicais do início do século XX. Julga-se, erradamente, que Schönberg, Debussy,

Ravel, Satie, Bartok, Stravinsky, Scriabin… todos devem alguma coisa ao Liszt do

último período. Erradamente porque sabemos há muito que a publicação da maior parte

das peças de piano que caracterizam o lado mais experimental do último período de

Liszt só se realizou décadas depois da morte do compositor, algumas delas nas décadas

de 40 e 50 do século XX. Estes compositores não poderiam ter acesso à maior parte

destas obras mais experimentais. Um marco importante foi a publicação do último

volume de Verschiedene Werke für Pianoforte zu zwei Händen por Viana da Mota em

1927. Obras que hoje nos parecem fundamentais como Csárdás macabre S.224 (1881-

82) ou Bagatelle sans Tonalité S.216a (1885) só foram publicadas em 1951 e 1956

respectivamente. Via Crucis S.53 (1878-79), uma das composições mais inovadoras em

49

toda a obra de Liszt, foi rejeitada inicialmente para publicação (juntamente com os

Septem Sacramenta S.52 e Rosário S.56) e só foi estreada em 1929.

Apesar disto, o impacto que estas peças nos causam ainda hoje parece ser

suficiente para legitimar o esforço de tentar enquadrá-las de alguma maneira na história

posterior. Custa-nos acreditar que estas peças, tão desgarradas do seu tempo,

antecipando tantas coisas do futuro, possam ter constituído experiências isoladas, sem

qualquer ressonância na vida musical posterior. Muitos musicólogos esforçaram-se por

conferir a estas obras um sentido histórico, teleologicamente orientado, procurando ver

nelas causas de efeitos de que não foram causa. É uma tarefa tentadora encontrar

relações de causalidade entre Unstern! Sinistre, disastro S.208 (1880-86) e alguns dos

Préludes L 117/ L 123 de Debussy, entre Bagatelle sans Tonalité e Drei Klavierstücke

op. 11 de Schönberg. Olhando retrospectivamente, estes acontecimentos só nos parecem

fazer sentido se vinculados com uma invenção ulterior. Isoladamente, causam confusão

e estranheza. Se é verdade que normalmente procuramos estudar uma obra à luz daquilo

que veio antes dela e contribuiu para a sua génese, grande parte da maneira de

compreendermos as últimas obras de Liszt é estudando-as à luz daquilo que veio depois,

aplicando-lhe categorias criadas posteriormente. Daí que seja evidente que, para já, a

principal apologia por estas peças ainda não emane da sua beleza constituinte (que é

grande, a nosso ver) mas do seu papel hiperbólico, e muitas vezes ilusório, na história

da música.

Justamente por haver a consciência de que, porque a sua existência era

ignorada, muitas das peças mais vanguardistas do último período de Liszt não

marcaram, nem directa nem indirectamente, a concepção de importantes obras de

compositores do início do século XX, é mais seguro afirmar-se que o Liszt da última

fase antecipou ou previu algumas inovações que viriam a marcar a música do início do

século XX. Quer isto dizer que Liszt não contribuiu para essas inovações. Foi

simplesmente o primeiro a fazer algo parecido. Não foi um fundador. Foi um vidente,

um profeta, um guru. Foi o que viu primeiro, o que antecipou. Este antecipar é mais

uma maneira prudente e camuflada de associar o Liszt do último período à história que

veio a seguir. Este esforço camuflado é, por exemplo, evidente no excelente artigo de

Alan Forte sobre o idioma experimental de Liszt:

It is not our intention to assert that there is a direct connection between Liszt´s non-traditional music and the music of the avant-garde composers of the early twentieth century, but rather show that when he created music that was remarkably similar in specific general structural aspects of the innovative music that followed

50

the Jahrhundertwende, he anticipated a significant historical development. (FORTE, 1987, p.210).

Alan Walker, o mais importante biógrafo moderno de Liszt, adere ao mesmo

género de discurso: “The little piano piece Nuages Gris (1881) could well be described

as the gateway to modern music. Not the least of its intriguing features, is its ending,

which drifts away into keylessness and foretells the coming of impressionism in music.”

(WALKER, 1996, p.440). Walker recorre mesmo, sem admitir total fidelidade, à

metáfora do artista que viaja no tempo de uma metahistória imaginada:

To take an overview of the music of Liszt´s old age is to marvel afresh at its historical location. It does not belong to its time and place – and yet it is there, in defiance of all the laws of musical chronology. What such pieces teach us is that history can occasionally produce a time-warp in which, without warning, we may find ourselves in distant galaxies. (WALKER, 1996, p.452).

É com este discurso datado e cansado que se dá continuidade à campanha iniciada pelo

próprio Liszt em relação à sua pessoa – o de promover o seu lugar na história das

coisas. Evidentemente que é difícil olhar sem surpresa para alguns dos estranhos ensaios

que Liszt compôs no final da sua vida. À surpresa segue-se a sua apologia. Esta

apologia torna-se ainda mais necessária quando é feita a um compositor que ainda hoje

é frequentemente acusado de populismo e mau gosto. Contra essas acusações recorre-se

então ao último período de Liszt, prova inegável de que Liszt não só não era populista

como tinha o bom gosto de escrever coisas que ninguém compreendia. A apologia do

Liszt compositor, fenómeno que se tornou urgente desde que Liszt virtualmente

começou a compor e que dura até os dias de hoje, é, como se percebe, um fenómeno em

permanente renovação. A imagem de um Liszt vidente, ou das profecias de Liszt, como

Leibowitz o designou, é a última lufada dessa apologia. “This has nothing to do with the

“value” of the music. Take it or leave it, the devices are there, and they point to the

future.” (WALKER, 1996, P.439). Não se lhe elogia o talento. Não se lhe elogia o

valor. Elogia-se-lhe a clarividência.

---

Atribui-se geralmente ao último período de Liszt os últimos dez anos da sua

vida (há quem os expanda para quinze), entre 1876 e 1886, após a criação das suas

obras de maiores dimensões: as sinfonias, os poemas sinfónicos, os concertos, as

51

missas, os oratórios… Apesar da sua idade avançada, tornou-se num dos períodos mais

movimentados da vida do compositor. Sem residência fixa, Liszt viajava

frequentemente entre Weimar, Roma e Budapeste, sem nunca deixar de dar aulas ou

participar activamente na vida musical europeia. Devido à frequente mobilidade entre

estas três cidades, este período costuma ser designado por la vie trifurquée. O que

parece ainda distinguir este período dos demais são os indícios de uma profunda

depressão que se fazem sentir nestes últimos anos e que, julga-se (mas estas coisas

nunca se podem saber), tiveram um efeito profundo na música de Liszt. Apontam-se

várias razões para esta depressão. Uma ansiedade cada vez maior motivada pela morte

de vários amigos e familiares (várias das peças deste período são elegias e lamentações),

uma melancolia crescente motivada pela proximidade com a sua própria morte, uma

sensação progressiva de perda de talento, uma saúde mais fragilizada, um alcoolismo

indomável, uma postura inquietante e supersticiosa em relação a tudo. Pela primeira vez

se vislumbram nas cartas de Liszt alguns tiques suicidas. Em 2 de Julho de 1881, Liszt

cai de uma escadaria acontecimento que teve consequências irrecuperáveis para a sua

saúde. Julga-se que, em resultado da sua depressão, Liszt tomou uma atitude, não só

mais pessoal, mas muito mais descomprometida em relação à sua música. Em

circunstâncias tão incertas, o medo de correr riscos ou é demasiado grande ou então

torna-se injustificado. O compositor dedica-se então a experimentar ao limite os seus

materiais. Mas como todos sabemos, Liszt não adoptou uma postura experimental, pela

primeira vez, apenas neste período. Citando as palavras de David Butler Cannata: “…

the epiteht “experimental” describes almost everything Liszt ever attempted as a

musician.” (CANNATA, 1997, p.1). Liszt foi desde muito cedo acusado de excesso de

experimentalismo. Em qualquer fase da sua carreira, lutou por ser um músico inovador.

Ansiava e procurava aquilo que era novo e diferente, tanto no seu talento como no dos

outros. Nunca durante a sua vida, Liszt se desligou de um dever que pressentia perante a

história. A obsessão pela teleologia, iniciada com o idealismo alemão, marcou

profundamente a percepção que Liszt, e uma grande parte dos compositores do

romantismo alemão, tinham em relação aos seus deveres e às suas prioridades enquanto

compositores. Enredados numa simbiose confusa entre uma necessidade de homenagear

o passado e um dever de infligir uma marca no futuro, cada compositor resolveu este

dilema à sua maneira. Beethoven, em particular, sempre foi um exemplo difícil de

seguir. Beethoven oferecia dois modos de actuação, contrários entre si: por um lado, um

exemplo a imitar, nas suas obras manifestamente românticas do segundo período; por

52

outro lado, o exemplo de uma relação muito pessoal e inovadora com a tradição e o

passado, nas suas obras tardias. Havia pois dois modos de seguir Beethoven – fazendo o

mesmo que ele fez ou fazendo diferente do que ele fez. Daí que o dilema da música

alemã tenha sido perene ao longo do século XIX. Qualquer compositor podia

legitimamente reclamar para si o estatuto de herdeiro de Beethoven. Este compromisso,

de honrar o passado e simultaneamente zelar pelo futuro, foi sobretudo penoso para

Liszt, que nunca, até hoje, se conseguiu demarcar de uma imagem de demagogo

musical, exímio na técnica, pobre no conteúdo. É evidente ao longo da sua vida a

vontade do compositor húngaro em ser um participante activo nessa imaginária

metahistória do progresso.

Os períodos de criatividade de Liszt, sobretudo nos últimos dez anos,

conheceram vários bloqueios criativos. Além dos problemas já apontados, foram

bloqueios motivados por crises de falta de confiança, alimentadas em grande parte por

uma crítica permanentemente feroz contra a sua música. Perseguido por uma fama

perene de virtuoso sem talento, intimidado pelo espectro de alguns compositores que ele

próprio afirmava lhe serem incomparavelmente superiores, Liszt tinha frequentes

ataques de derrotismo, chegando a proibir explicitamente a publicação e a execução de

obras suas. O oratório de St. Stanislaus S.688, iniciado em 1869, foi uma das obras que

mais sofreu com esse género de crises. Acabou incompleta. É no entanto de sublinhar

que a falta de confiança que Liszt tinha no seu talento, não se podia dever a uma falta

absoluta de alento ou encorajamento. Liszt foi uma personalidade reverenciada,

permanentemente homenageada. Organizavam concertos em sua honra, os discípulos

peregrinavam às suas aulas. A lista de obras que lhe foram dedicadas é impressionante.

Muito possivelmente, a recepção mais generosa que Liszt teve em vida aconteceu nesta

fase final:

One feature of the Liszt reception in his last period was a sanctification of the man and his prior activities. Liszt´s withdrawal to Italy, taking on minor orders, and dedication to the composition of sacred music took him away from the aesthetic fray and thus tended to neutralize his position. His absence from the scene in turn allowed critics to focus on and appreciate his career and achievements as a whole, which meant recognizing Liszt´s genius as performer and generous spirit, among others. (ARNOLD, 2002, p.49).

Porém, é sintomático que, daqueles que tiveram oportunidade de conhecer Liszt tanto

como executante como compositor – os seus contemporâneos –, as opiniões sempre

foram mais consensuais no que diz respeito ao seu talento como o primeiro do que

53

como o segundo. Enquanto compositor, muitos não o levavam a sério. A grande maioria

da crítica era implacável com a sua música. Mas também não foram poucos os seus

partidários. Basta ler um artigo analítico de Felix Draeseke, um dos maiores militantes

da Nova Escola Alemã, para nos apercebermos como o reconhecimento que tantos

pensaram que lhe fora apenas consagrado depois da sua morte, afinal já lhe era devido

durante a vida. Poucos compositores podem orgulhar-se de ver, durante o seu tempo de

vida, as suas obras submetidos ao escrutínio de um analista, de verem o seu nome ter

uma entrada numa enciclopédia, de terem um esboço biográfico seu publicado aos

catorze anos, de se verem até condecorados como cabeça de lista de uma escola de

composição. Poucos compositores do século XIX foram tão biografados em vida como

Liszt. Ele próprio nunca escreveu uma autobiografia, apesar dos pedidos serem

constantes.

Não está pois em causa perceber se Liszt foi um compositor experimental ou não,

mas que carácter assume o experimentalismo de Liszt nos diferentes períodos da sua

vida. A tentativa de dividir a obra de um dado autor num dado número de períodos

criativos – extensões de tempo nos quais o estilo do autor sofreu poucas variações – tem

como pressuposto a ideia de que a relação que um artista tem com a sua própria

criatividade transforma-se ao longo do tempo. Podem-se especular as razões para esta

transformação: um momento biográfico fundamental na vida do autor; o contacto com

uma influência externa marcante etc. É muito comum falar-se da última fase de um

autor, período que antecede a morte do autor e em que o seu comportamento criativo é

drasticamente distinto daquele apresentado em fases anteriores. Fala-se de uma última

fase em compositores como Haydn, Beethoven, Verdi, Stravinsky ou R.Strauss,

compositores aos quais são muitas vezes atribuídos os méritos de um camaleão criativo.

Liszt é outro desses populares camaleões. Mudando mais uma vez de aparência, o Liszt

do último período é popularmente entendido como o velho epifanista que se dedica a

uma reforma secreta da música (a contrastar com a reforma pública a que se dedicou na

sua fase de Weimar). Se esta perspectiva tem encontrado tão grande consenso na cultura

popular é porque, numa primeira instância, o bom senso parece estar do lado dela.

Porém, a contrariar a exigência de coerência estilística deste período, devemos fazer

notar que Liszt, nos seus últimos dez anos, não deixou de fazer muito daquilo que já

fazia nos últimos quarenta. Não deixou de compor transcrições sobre obras de outros

autores (a última foi a Tarantella S.482 de Cesar Cui em 1885), peças de alto teor

virtuosístico (Toccata S. 197 de 1881 ou as Ungarische Rhapsodie 16-19 S.244 de

54

1882-85), ou música de pendor mais nacionalista (Puszta-Wehmut S.246). Também não

deixou de escrever obras de concepção mais alargada, como Via Crucis ou o

Historische ungarische Bildnisse S.205 (1885). Da mesma forma, no que se poderia

chamar de primeiro período, não são poucas as peças vanguardistas. A título de

exemplo, a obra Harmonies poétiques et religieuses S.154 de 1833, inspirado por

Lamartine (peça que Liszt incluiria numa segunda versão, com o título de Pensée des

morts, no seu ciclo de 1847) é tão vanguardista para a sua época como Nuages Gris

S.199 é para a sua.

Por outro lado, só a teimosia nos poderia impedir de reconhecer que existem

diferenças, profundas diferenças, entre o Liszt das Nuages e o Liszt das Harmonies. Um

espaço de quase cinquenta anos separa a concepção das duas peças, pelo que

evidentemente que seria de esperar que iguais não fossem. O Liszt do último período é

conhecido por ser um Liszt muito mais autobiográfico Em termos temáticos, grande

parte das peças do último período estão associados a um acontecimento traumático na

vida do compositor. Daí o desinteresse de Liszt em vê-las publicadas. Por exemplo, Am

Grabe Richard Wagners S.202 (1883), uma das duas elegias pela morte daquele

compositor, não foi publicada ou sequer publicamente executada até 1952. Liszt

descreveu-as como as suas peças de mortuário. O seu filho morreu em 1859. A sua filha

morreu de parto em 1862. Conforme os anos passavam, Liszt continuou a ver figuras

que amava e admirava morrer. Uma das mais traumáticas foi sem dúvida a morte de

Wagner em 1883, com quem Liszt nunca deixou de ter vários conflitos pessoais mas

que sempre admirou profundamente como compositor. A morte, que nunca deixou de

ocupar os pensamentos de Liszt desde cedo (em parte devido à morte do seu pai quando

Liszt tinha dezasseis anos), tornava-se agora um tema recorrente na sua vida. Nestas

circunstâncias, somos forçados admitir uma relação de causalidade entre este facto e

muito do carácter lúgubre da música deste período. Esta música é geralmente associada

às seguintes características, ainda que nenhuma delas seja exclusiva deste período:

1) uma economia de meios evidente no tratamento da forma: livre, curta e com fins em

aberto;

2) opções harmónicas muito difíceis de explicar à luz da harmonia tonal tradicional;

exploração tímbrica da harmonia;

3) melodia muitas vezes do tipo recitativo;

55

Evidentemente que podemos encontrar todas estas características presentes em

obras de Liszt muito anteriores a este período. Contudo, é inegável que elas têm uma

presença mais pronunciada e frequente nas obras deste período. Nuages Gris (ou Trübe

Wolken) de 1881, escrita muito pouco tempo depois da queda traumática de Liszt, é

indiscutivelmente a peça ícone do último período de Liszt. É de resto uma peça que

apresenta interessantes semelhanças formais com a peça que desejamos estudar. As três

características apontadas são também muito evidentes ao compararmos uma peça de

Liszt escrita na sua juventude com uma revisão feita por Liszt no seu último período. O

resultado da revisão é brutalmente distinto do original.

Somos desta forma, conduzidos à peça que dá título ao nosso trabalho – a peça

In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi, escrita em pleno último período. In

Festo… é uma peça típica, mas simultaneamente atípica, deste período. Típica porque

reúne algumas características musicais que se julga tipificarem este período,

nomeadamente ao nível do tratamento da forma e de alguns recursos retóricos comuns a

outras peças do mesmo período. Atípica, porque a estas características se combinam

outras características inconsistentes com o estilo que se atribui ao Liszt da fase final,

como a ausência quase completa de dissonância. Mesmo ao nível programático esta

peça escapa às categorias usadas geralmente para caracterizar a música deste período,

associadas à nostalgia, ao pessimismo ou à retrospecção. Por tudo isto, se torna muito

difícil encontrar peças do mesmo período com as quaisquer podemos realizar pontos de

comparação relevantes. A nossa prioridade não é porém explorar o lugar contraditório

que esta obra assume no período em que foi escrita, mas o modo como ela actua

enquanto signo que é.

- - -

Interessa-nos abordar alguns daqueles aspectos da biografia de Liszt mais

directamente relacionados com o seu percurso religioso. O amor de Liszt ao

cristianismo é transversal ao longo da sua vida. Liszt cresceu no seio do catolicismo

romano do qual nunca se separou até ao fim dos seus dias. A tentação em exercer o

sacerdócio apresentou-se desde logo na sua juventude. Uma influência fundamental foi

o catolicismo liberal do abade Robert Félicité Lamennais (ou de la Mennais), a quem

Liszt dedicou De profundis S.691 (1834?). A primeira obra de Lamennais que Liszt teve

oportunidade de ler foi o Paroles d´un croyant de 1834, onde o autor elabora acerca do

56

papel do artista como uma espécie de evangelista em sociedade. Na obra Esquisse d´une

Philosophie, em 3 volumes, de 1840, Lamennais fala da obrigação missionária de um

verdadeiro artista que, através do seu talento, deve conduzir o sujeito estético a Deus.

Conhecido é também o entusiasmo de Liszt pelos São-Simonianos, que Emile

Barrault lhe deu a conhecer. O excelente artigo Liszt´s Saint-Simonian Adventure

(1998), de Ralph P. Locke, explora bem a incursão de Liszt no interior deste

movimento. O São-Simonismo foi um movimento de cariz social e político iniciado sob

a influência directa dos escritos de Claude Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon.

Liszt é um dos vários compositores que se interessou pelas ideias do movimento.

Berlioz e Halévy foram outros dois. Embora Liszt se tenha expressamente dissociado do

movimento mais tarde, nos seus últimos anos reconheceu a importância que as ideias do

movimento tiveram para si na sua juventude. O movimento defendia princípios

socialistas de cooperação e solidariedade, baseados na crença de uma sociedade

transformada positivamente pela produção industrial Um dos preceitos do são

simonismo era que as artes – e a música, enquanto a suprema – deveriam ter um papel

activo na condução dos homens. O artigo de Liszt, De la musique religieuse, de 1834,

denota a influência deste movimento e de Lamennais. Liszt replica a ideia de que a

música deve servir de veículo de progresso e de condução do povo à verdade do credo

religioso. Já com este artigo, Liszt demonstra o seu descontentamento com a música

religiosa do seu tempo e a sua vontade em reformá-la:

Do you hear that stupid bellowing resounding beneath the vaulted roofs of cathedrals? What is it? It is the song of praise and benediction addressed to Jesus Christ by his mystic bride… And the organ, […] – do you hear it now prostituting itself with vaudeville airs and even gallops? […] O shame! O scandal! When will these loud-mouthed drunkards be chased from the holy place? When shall we at last have religious music? […] the great productions of a Palestrina, a Handel, a Marcello, Haydn, Mozart can hardly stay alive in libraries. (MERRICK, 2008, p.60).

Estas amostras de desagrado em relação à produção de música religiosa do seu

tempo estão presentes ao longo de toda a sua vida. A seguinte passagem provém de uma

carta que escreveu em Weimar em 1851, e onde faz algumas observações acerca da

música daquela paróquia: “The music in our Catholic church, and in particular the

organist, jangled my nerves so much on Palm Sunday that I wondered whether to go to

church at Easter- feeling quite incapable of turning my thoughts to God during an hour

of such discordance.” (MERRICK, 2008, p.67). Em Roma, em 1862, Liszt repetiu o

57

mesmo género de acusações à prática musical das igrejas. A sua estadia em Roma teve

início em 1861 e foi interrompida por um retiro para o Mosteiro da Madonna del

Rosario, no Monte Mário. Este retiro teve início em 1863, pouco depois da morte

prematura da sua filha Blandine. Não foi um retiro absoluto. Liszt saía para visitar

vários pupilos e para participar em alguns eventos musicais e religiosos. É durante esse

retiro que compõe as duas lendas de S. Francisco de Assis e as transcrições para piano

das sinfonias de Beethoven. Em 1865, recebe aí as ordens menores. Embora a

sinceridade dos votos eclesiásticos de Liszt sempre tenham sido objecto de debate, Liszt

estudou teologia com alguma profundidade e diligência. Em virtude da sua formação,

Liszt conhecia certamente a fundo o mistério da Transfiguração.

- - -

Das peças de piano de tema religioso que Liszt escreveu nos últimos dez anos

da sua vida, apenas duas foram escritas explicitamente para o piano: Sancta Dorothea

S.187 (1877) e In festo transfigurationis domini nostri Jesu Christi S.188 (1880). As

peças que restam são transcrições de peças vocais, como O Roma nobilis S.546a (1879)

ou In domum Domini ibimus S.505 (depois de 1880).

A peça In festo … foi escrita em Weimar e data de 6 de Agosto de 1880. A festa

da Transfiguração é, tal como a festa da Apresentação do Senhor ou da Anunciação do

Senhor, uma festa com data fixa na igreja Católica – 6 Agosto, exactamente quarenta

dias antes da festa da Exaltação de Santa Cruz, a 14 de Setembro. Na tradição oriental,

onde esta festa litúrgica teve originalmente início, denomina-se a festa de hágia

Metamórfosis tou Kuríou – Santa Transfiguração do Nosso Senhor Deus e Salvador

Jesus Cristo. De facto, nas igrejas orientais esta festa tem uma relevância teológica

maior que na tradição católica: “Christians in the East regard the transfiguration as

central to the symbolism of the gospel, disclosing as much about themselves as about

God. In the West, by contrast, the feast of the transfiguration is a minor event and

ignored entirely in some denominational traditions.” (S. LEE, 2009, p.1). Nada nos

impede de acreditar que Liszt tenha escrito uma tão curta peça num ápice de um só dia,

ou até de uma só hora, como uma espécie de meditação sobre o Mistério celebrado

nessa data. A data da composição e o próprio título parecem querer sugerir isso. Pelo

quanto se sabe, a peça é inteiramente original. Mesmo ao nível do tema sagrado, a peça

não tem precedentes na obra de Liszt. O tema da Transfiguração de Jesus, à excepção

58

desta peça, não se encontra presente em mais nenhuma das peças que constitui a

vastíssima obra sagrada de Liszt. Mais tarde, Liszt viria a abandonar um arranjo para

órgão desta peça, da qual só restaram os primeiros oito compassos. Martin Haselböck

fez a primeira reconstrução do arranjo abandonado, para a sua edição das obras

completas de Liszt para órgão.

All that Franz Liszt wrote out of the organ version of the piano work [In festo transfigurationis] dating from 1880 was the first eight bars, with the designation 'fur Orgel´. In view of the continuity of the writing and the similarity with the piano version, this first complete realisation for organ appears entirely legitimate. (HASELBÖCK, 2002, p.34).

Uma aproximação ao texto musical

In Festo… é uma peça com uma aparência muito simples. Segundo os mais

comuns parâmetros analíticos – forma, harmonia, melodia –, as dificuldades não

parecem ser numerosas. As análises desta peça que existem na literatura são sucintas e

muito pouco ambiciosas. Nenhuma delas se preocupa verdadeiramente em abordar a

peça enquanto uma possível representação. O enfoque cai geralmente no tratamento da

harmonia, que é inegavelmente interessante.

Tematicamente, a peça contém dois elementos reconhecíveis: um motivo de

quatro notas longas, em oitavas, que surge na mão esquerda assim que a peça tem

início; e um arpejo de quatro notas, que surge na mão direita no quinto compasso.

Ambos são combinados, ao longo da peça, desde o quinto compasso até ao compasso

51, com um interregno de três compassos (c. 22-24). Este interregno de três compassos

antecipa a textura da secção final, ainda que esteja num registo grave. O primeiro

motivo realiza uma terceira maior ascendente, por graus conjuntos. Até ao compasso 40,

o arpejo de quatro notas partirá sempre da terceira do acorde. O grosso da peça (43

compassos dos 68 que a totalizam) consiste na sobreposição contínua destes dois

elementos temáticos – motivo no baixo e o arpejo na mão direita –, sobreposição

submetida a uma progressiva transformação harmónica e melódica.

O plano harmónico é muito simples mas flagrante. Depois da apresentação do

motivo do baixo (c.1-4), que sugere a ténue possibilidade de estarmos na tonalidade de

sol Maior, a entrada do arpejo na mão direita coloca-nos na verdade na tonalidade de Dó

59

Maior. O motivo do baixo repete-se mais duas vezes na íntegra (c.5-12), dando a

oportunidade ao ouvinte de o imprimir bem na memória. No compasso 13, sem

qualquer preparação, ocorre uma mudança abrupta para ré bemol Maior, onde

permanecemos por mais oito compassos. Evitamos usar o termo modulação, face à

inexistência de qualquer processo preparativo para a mudança entre as duas tonalidades.

A possibilidade de estarmos, não em ré bemol Maior, mas no II acorde napolitano de dó

Maior (fundamental e quinta abaixadas) é também defensável, mas pode ser objectada

por dois factores: pelo facto do acorde surgir inicialmente sobre a fundamental e não na

primeira inversão, o que seria mais comum numa II napolitana; e pela aparição do sol

bemol no baixo, o que aponta para a armação de ré bemol Maior e não para uma II

napolitana de dó Maior. O arpejo, no compasso 13, permanece melodicamente igual ao

anterior, com a única excepção de estar uma tonalidade uma segunda menor acima. O

motivo do baixo sofre uma variação tanto melódica como rítmica, apresentando uma

inversão do intervalo inicial de terceira seguida por uma nova subida de terceira por

graus conjuntos. As suas oitavas deixam de ser vazias. Depois de um compasso de

silêncio (c.21), surge uma armação de quatro sustenidos. Entre o compasso 22 e o 24,

surgem três acordes homorrítmicos em fá sustenido menor, embora também nada

impeça que estejamos já no II grau de mi Maior, a tonalidade que se segue. No

compasso 25, regressamos imediatamente à textura anterior, agora na tonalidade de mi

Maior. Oito compassos a seguir, no compasso 33, repete-se uma abrupta mudança, sem

preparação, para uma tonalidade de segunda menor acima – fá menor. Mais uma vez,

podemos alegar estarmos diante de uma II napolitana de mi Maior e, uma vez mais,

podemos disputar esse alegação pelas mesmas razões acima referidas. O motivo do

baixo descreve também de modo exacto e preciso o mesmo esquema anteriormente

apresentado. Portanto, o esquema dos compassos 5 a 22 é replicado literalmente entre os

compassos 25 a 40. No compasso 41, os arpejos sobem uma oitava, ainda em fá menor.

A partir do compasso 42, o motivo do baixo aparece numa forma modificada, fazendo

agora uma subida de três segundas menores (lá b, lá natural, lá #.), seguindo por um

intervalo de quarta perfeita descendente. Esta fase terminará na nota isolada de lá

sustenido (c.51), a terceira de fá sustenido maior, a tonalidade da secção seguinte.

A última secção (c.52-68) consiste num conjunto de acordes homorrítmicos, de

arpejo rápido, tocados no registo agudo do piano. A invocação do género do coral é

óbvia. Toda a secção encontra-se em fá sustenido Maior. A linha de topo continua a

descrever um movimento ascendente, mais propriamente uma subida de terceira menor

60

(lá #– si – dó #) entre os compassos 52 e 57. Compassos de silêncio servem de

separadores. A cadência final é uma cadência plagal. O acorde final evita repousar sobre

a sua fundamental, como é comum no Liszt do último período.

O plano harmónico da peça é então o seguinte:

Dó M » Ré b m » [Fá # m/Mi M] » Mi M » Fá m » Fá # M

A peça realiza portanto um arco de quarta aumentada ascendente, por graus conjuntos.

Nenhuma das análises parece referir este dado. Ao terminar a peça em fá sustenido, a

peça termina precisamente na sensível de sol que dá o início à peça, pelo que se a peça

recomeçasse, recomeçaria de um modo natural. Há portanto uma qualidade circular no

plano harmónico da peça.

Existem outras peças do último período de Liszt que, em termos formais,

partilham a mesma estrutura bipartida de In Festo…, mas nenhuma delas tem um

esquema harmónico tão rígido e orientado. Tal como em In Festo…, estas peças podem

ser divididas em duas partes, separadas por uma secção intermédia, sendo que a segunda

parte replica de um modo mais ou menos evidente a primeira parte. É o caso de Sancta

Dorothea, Nuage Gris, En Rêve. Nocturne S.207 (1885) e Wiegenlied (Chant du

berceau) S.198 (1880) mais tarde expandido e orquestrado como o primeiro andamento

do seu poema sinfónico Von der Wiege bis zum Grabe S.107 (1881-82). As três

primeiras destas peças também terminam com uma secção, mais ou menos curta, de

acordes homorrítmicos no topo do registo, à semelhança de In Festo…De facto, In

Festo… destaca-se do conjunto da última obra de Liszt essencialmente pela sua

severidade e pela sua rigidez global.

61

Uma aproximação ao texto musical enquanto representação

A próxima verificação que devemos fazer é que esta peça tem um título – In

festo transfigurationis domini nostri Jesus Christi –, pelo que tudo leva a crer que a

peça constitui uma representação de qualquer espécie do fenómeno que lhe dá o título.

Importa distinguir duas possibilidades. Liszt pode procurar representar o episódio da

Transfiguração de Jesus ou representar apenas a ideia da Transfiguração de Jesus. Como

vimos na segunda parte, o episódio da Transfiguração inclui vários elementos com

potencial representativo que não apenas a Transfiguração de Jesus: a subida à

montanha, o diálogo entre Moisés, Elias e Jesus, a nuvem, a voz de Deus, etc… Embora

a Transfiguração de Jesus seja o motivo central da narrativa, não é o único tema na

narrativa. Saber se Liszt quis com a sua peça aludir apenas à Transfiguração ou a mais

algum elemento que constitui o episódio é uma questão que ficará naturalmente sem

uma resposta decisiva. De facto, podemos optar por vários modos de distribuir os

elementos semânticos ao longo da peça. Imagine-se os seguintes três cenários:

Compassos 1-51 – Transfiguração de Jesus

[Compassos 22-24 – diálogo entre Moisés, Elias e Jesus]

Compassos 52-68 – Voz de Deus

Compassos 1- 51 – subida dos discípulos às montanhas

Compassos 52-68 – A Transfiguração de Jesus

Compassos 1-68 – A Transfiguração de Jesus

Recorremos a estes exemplos para ilustrar um fenómeno de ambiguidade semântica que,

de outro modo, poderia dar azo a uma explicação mais longa. Estas são algumas das

hipóteses com que podemos avançar, de modo mais ou menos arbitrário. Podíamos

formular outros mais. Mas optamos por nos debruçar sobre o último – pela hipótese de

toda a peça representar apenas e exclusivamente o evento da Transfiguração de Jesus.

Assim decidimos por duas razões. Em primeiro lugar, porque é a única possibilidade na

62

qual podemos depositar algumas certezas. Se há pelo menos um único elemento que

Liszt procurou incluir na sua representação esse elemento é a própria Transfiguração, já

que esse é o evento que dá nome à peça e é indiscutivelmente o evento central do

episódio. Tudo o resto, vem por acréscimo do episódio. Em segundo lugar, porque,

como veremos pelo estudo da peça, é o que faz mais sentido. Partiremos portanto do

princípio que esta peça constitui uma representação de alguma espécie e a algum

respeito do evento da Transfiguração de Jesus.

Como vimos na segunda parte, falar de Transfiguração é falar de metamorfose,

é falar de um dado ente (Jesus, neste caso) que passivamente se torna objecto de uma

mudança de forma. Essa mudança é presenciada pelos três apóstolos que

acompanharam. Collado, na sua categorização das emoções próprias da experiência

estética do Mistério, refere que a emoção que os três apóstolos experimentaram no

monte Tabor inscreve-se na categoria da emoção deslumbrante, comparando o

momento da Transfiguração a uma verdadeira experiência estética. Emoção

deslumbrante é, para Collado, aquela emoção que o sujeito estético experimenta quando

os seus sentidos sofrem uma transformação ao receberem um conjunto de sensações

invulgarmente profundas e desarmantes:

Es la emoción deslumbrante que se traduce en transformación de los sentidos. Porque la teologia no puede solamente ocupar y convencer la razón. Hoy se comprende al hombre como un todo, y los sentidos tienen un sentido, com un peso específico muy importante. […] Las hierofanias bíblicas son paradigma de esta emoción: la Zarza Ardiente es quizás la más impresionante, como vemos y oímos en el Klangideal de Schönberg. Cristo mismo preparao los discípulos a la visión-audición deslumbrante de la transfiguración, muerte en Jerusalén, por la empatía total com la finitud del hombre. (COLLADO, 2006, p.387).

Collado sugere que as manifestações hierofânicas derivam a sua força do

contacto abalador que essas manifestações estabelecem com os sentidos e com o corpo

do espectador. Este sofre um choque, uma comoção, é deslumbrado. A ideia da visão-

audição deslumbrante que os apóstolos experimentam, referida por Collado, pode

remeter-nos para uma ideia contida na Summa Theologica de Tomás de Aquino,

nomeadamente nas suas conhecidas três condições necessárias para que algo belo se

manifeste: integridade (integritas sive perfectio), proporção ou harmonia (debita

proportio sive consonantia) e brilho ou claridade (claritas). A passagem fundamental é

conhecida:

Ad pulchritudinem tria requiruntur. Primo quidem integritas sive perfectio: quae enim diminuta sunt, hoc ipso turpia sunt. Et debita proportio sive consonantia. Et

63

iterum claritas; unde quae habent colorem nitidum, pulchra esse dicuntur. (TOMÁS DE AQUINO, 2003, S. T. 1, q. 39, a.8 c., p.104)

Aquilo a que S.Tomás de Aquino se quis referir com a noção de claritas foi objecto de

debate, durante séculos. Note-se que a associação da beleza às ideias de luz, esplendor e

claridade não tem origem na estética tomista. Eras já ideias que tinham já ingressado no

vocabulário da teologia estética por via do movimento platónico-cristão, nomeadamente

pela obra de Pseudo-Dionísio, o Areopagita. No seu tratado Nomi divini, Pseudo-

Dionísio refere também a exigência de consonantia e claritas. O corpus areopagiticum

é basilar na formação do pensamento tomista. Ao contrário da ideia de integridade e

proporção, a ideia de claritas é aquela que parece ser mais constitutiva da experiência

estética enquanto experiência transformadora dos sentidos, como Collado refere. Não é

aliás irrazoável o exemplo que Collado dá do deslumbramento dos apóstolos durante a

Transfiguração, a pensarmos no carácter luminoso do evento, descrito pelos três

evangelhos sinópticos. No entanto, o deslumbramento em Tomás de Aquino não pode

ser totalmente confundido com o deslumbramento em Collado, já que para o primeiro a

beleza, enquanto veículo de deslumbramento, não é encarada como um problema

estético mas ontológico ainda. Eco, no seu Il problema estetico in Tommaso d'Aquino

(1956), refere que a questão da beleza ainda não é propriamente um verdadeiro

problema autónomo para Tomás de Aquino:

La respuesta consiste en hacerse cargo de que Tomás no se ocupó jamás exprofeso de problemas estéticos, a los que no dedicó nunca un tratado o un artículo, ni sintió la necesidad de reducir a sistema sus ideas estéticas. Tomás afrontó siempre el problema de lo bello al acaso, y no por desinterés estético, sino precisamente por la razón contraria, ya que una visión del mundo en términos de belleza le era por completo natural y espontánea, fácil y cotidiana, y se manifestaba como la tonalidad dominante de un clima sentimental y religioso, más que como cuestión filosófica abierta a soluciones encontradas, tales como el problema de los universales o de la presciencia divina. La visión estética de las cosas era entonces un hecho natural y corriente y que bastaba sistemar en sus grandes líneas... (ECO, 1982, p.146)

Este regresso a Collado permite-nos regressar à música enquanto lugar

metafórico e, mais propriamente, enquanto lugar teológico. Falamos ao longo da

primeira parte da música enquanto lugar metafórico da Palavra, referindo alguns

possíveis tertium comparationis. Interessa-nos agora falar da música como um possível

lugar metafórico da ideia de mudança, que no fundo é a ideia que subjaz a toda a

64

representação aqui em causa. É curioso repararmos que metáfora, no seu sentido

original grego (metaphorá), quer dizer mudança. Como foi referido já na introdução,

trataremos agora de provar a eficácia deste signo musical na representação da ideia de

mudança, uma categoria muito abrangente que compreende dentro de si a ideia da

Transfiguração, para mais tarde provarmos que há legitmidade, no presente caso, em

associar esta ideia generalista de mudança à ideia mais concreta da Transfiguração de

Jesus.

In festo… enquanto lugar metafórico da ideia de mudança

Mudança é uma ideia que a todos parece intuitivamente inocente e simples de

apreender. Mas na verdade esta ideia esconde uma série vastíssima de diferentes e

velhos problemas.

É bem certo que com as novas perspectivas abertas pelo pós-modernismo musical

e depois de mais de um século de produção etnomusicológica, encontrar hoje em dia

uma definição consensual do que é a música é cada vez mais uma dificuldade. Esse

também não é de todo o nosso objectivo nestas páginas. Mas suponhamos que na sua

normal acepção moderna, a música pressupõe algures na sua definição a noção de som.

Por causa disto, é necessário que pressuponha uma outra noção mais fundamental, e

daquela inseparável, que é a noção de tempo. “… music is predominantly an art of

time.” (MONELLE, 2000, p.81). Ora, não temos nem o espaço nem a competência para

meditar acerca do fenómeno do tempo neste lugar. É uma noção altamente problemática

e obscura, seja qual for a abordagem que a ela fizermos, e dessa responsabilidade

abdicamos em consciência. Optamos por isso por usar a noção, tal qual Monelle a

entende, de temporalidade, com tudo o que ela tem de cultural, como uma sequência de

tempo composto, com princípio, meio e fim. A música instaura, não um tempo, mas

uma temporalidade própria. Quanto muito, podemos com algumas reservas afirmar que

a música instaura uma temporalidade no tempo. Thomas Clifton, resume bem a

diferença que estamos a tentar explicar: “There is a distinction between the time which a

piece takes and the time which a piece presents or evokes.” (CLIFTON, 1983, p.5).

Temporalidade é o segundo tempo ao qual Clifton faz referência. Podemos desta forma

65

asserir também que a temporalidade, porque vive no tempo e tal como o tempo, é

sempre irreversível. “Time is not reversible; its direction fixes the behaviour of the

universe, and temporal phenomena are not reversible. The musical signal, like a

phonetic symbol, is conceived as having a direction of flow; it is in step with the

universe.” (MOLES, 1966, p.108). A temporalidade musical, como todos os tipos de

temporalidades, é irreversível. Ela produz no ouvinte uma sensação de avanço, de

sucessão, de prosseguimento, daquilo que Edward Lippmann chama de propulsão. No

seu famoso ensaio, Progressive Temporality in Music (1983), Lippman divide esta

progressividade em duas diferentes espécies:

A distinction can doubtless be made between the sheer forward propulsion of music and the presence of a logic of continuation: the first is compose of continuity plus some degree of inertia or insistence; the second is more a matter of consecution, of the degree of conviction or necessity with which phrases or parts of phrases follow one another. And we can perceive music as moving forward, whether languidly and passively or with determination, without the feeling of a logicality or necessity in the sequence of musical events or phrases, although to be sure, the reverse is not true – that the experience of logic can arise in music without some basis in temporal succession. (LIPPMANN, 1983, p.121).

A oposição que Lippmann realiza pode em parte sofrer de obscurantismo e gerar

alguma confusão. Não porque Lippmann não esteja a falar de duas coisas evidentemente

diferentes, mas porque se refere a dois domínios muito distintos da percepção musical.

Um primeiro domínio da percepção predominantemente sensorial (the sheer forward

propulsion) e um segundo de uma percepção que, embora necessariamente sensorial na

sua raiz, é daquilo que se pode chamar de um tipo mais estético (a logic of

continuation). Recordemos que o termo estética tem a sua origem no termo sensação do

grego aesthesis (daí dizermos que este tipo de percepção é sempre sensorial na sua raiz),

mas que ainda assim tem uma significação e um alcance distinto daquele, sobretudo

desde a consolidação da estética como ramo da filosofia no século XVIII. Segundo

Lippmann, o primeiro domínio [o da percepção sensorial] diz respeito à progressividade

musical enquanto fenómeno acústico, objecto das leis da ondulatória; o segundo

domínio diz respeito à progressividade musical enquanto fenómeno estético, que lida

com aspectos da escuta atenta, do reconhecimento, da análise e.t.c. Mais tarde no artigo,

Lippmann reformula a sua distinção inicial e acrescenta uma terceira categoria

intermédia:

Let us say that three types of temporal progress can be distinguished in music. The first is that of sheer continuity, or also, of succession in itself. The second

66

adds to the first the phenomenon of motivation or impulsion, and this may be either constant in its intensity, or continuously increasing or decreasing, or variable in some less regular fashion. The third type manifests the property of logic, a kind of necessity that is structural in nature, depending upon articulation, with concomitant relationships of pattern either within phrases or between them. (LIPPMANN, 1983, p.124).

Parece-nos evidente que esta categoria intermédia continua a pertencer ao segundo tipo

de percepção acima referenciado, a uma percepção que envolve já a lógica das

estruturas, a análise e as várias componentes da teoria musical, como o ritmo ou as

dinâmicas.

Ora, servimo-nos desta distinção para melhor esclarecermos o tipo de domínios

em que a música pode servir de lugar metafórico à ideia de mudança. Num primeiro

domínio – a música enquanto fenómeno acústico – a música vive necessariamente da

permanente mudança do som no tempo. Num segundo domínio – a música enquanto

fenómeno estético – a música pode ou não representar explicitamente a ideia de

mudança. O que é curioso notarmos é que, se a mudança é uma inevitabilidade da

música enquanto fenómeno sonoro (primeiro domínio), a mudança não é uma

inevitabilidade da música enquanto signo (segundo domínio). Se para a percepção do

tipo sensorial (primeiro domínio) a música sente-se sempre enquanto mudança, para a

percepção do tipo estético (segundo domínio) a música pode ou não sentir-se como

mudança. O compositor pode servir-se de vários meios para, numa mesma peça, criar

ora uma sensação de continuidade ora uma sensação descontinuidade (mudança),

através da manutenção do tempo e da direccionalidade: “Within a piece of music there

is usually a multiplicity of temporal continua, operating concurrently. […] So, for

example, some pieces are thoroughly directional at one level but have little

directionality at another.” (BEGBIE, 2000, p.35). A continuidade musical existe

quando, apesar da mudança que naturalmente constitui toda e qualquer fenómeno

musical, o sujeito estético pressente que nada muda. Numa marcha, quando o segundo

tempo se sucede ao primeiro, há algo que de certo modo está em permanente mudança.

Numa melodia, quando uma nota se sucede à outra no tempo e em alturas diferentes,

também há algo a mudar constantemente. Mas nenhuma destas mudanças são

verdadeiramente pressentidas enquanto mudanças porque, de um modo geral, em todos

estes casos elas fundem-se numa sensação de continuidade e contribuem para ela. Na

música, tal como em qualquer sistema semiótico, o presente composto é um raio de

tempo que compreende o passado próximo e o futuro próximo. Uma melodia de Haydn,

67

a título de exemplo, inclui todo um tempo presente que se só se torna efectivamente

num passado quando ela termina. Victor Zuckerkandl, no seu Sound and Symbol (1956),

esclarece-nos:

The existence of the individual tone in a melody is a being directed toward what no longer exists and what does not yet exist; thus past and future are given with and in the present and are experienced with and in the present; hearing a melody is hearing, having heard, and being about to hear, all at once. But the past is not a part of the future because it is remembered, nor is the future a part of the present because it is foreknown or forefelt. […] The simplest temporal Gestalt, the melody, shows the erroneousness of the view that the past can be given only as memory, the future only as foreknowledge. (ZUCKERKANDL, 1956, p.235).

Uma melodia funda uma temporalidade permanentemente presente, desde o início ao

fim da sua enunciação. As suas pequenas mudanças, todas as suas diferenças, são a

força da sua identidade. A primeira nota da melodia só se torna efectivamente objecto

do passado, não no momento em que é enunciada a nota que a procede, mas no

momento em que todas as notas da melodia forem enunciadas e a melodia completa-se;

assim que a estrutura sintáctica da oração termina. Isto porque todas as notas da

melodia, à medida em que são enunciadas, são ouvidas à luz daquelas que a precedem, o

que quer dizer que aquelas que a precedem estão de certo modo ainda presentes. Da

mesma forma, quando se enuncia a seguinte frase “O velho acendeu o cachimbo e

sentou-se no seu cadeirão.”, a palavra velho só pertence ao passado assim que passamos

à frase seguinte, e não no momento imediatamente após a ser enunciada. Isto porque a

palavra velho atravessa invisivelmente o resto da frase. Tudo o que se passa no interior

da melodia não deve pois ser encarado como uma mudança estrutural, porque não abala

a sua identidade. Com a marcha, há também uma estrutura de continuidade fundada

numa sucessiva vacilação do ritmo, uma repetição que cria uma sensação de presente

contínuo. De facto, como refere Tarasti, a música consiste numa série de agoras, agoras

esses com diferentes durações e que se sucedem no tempo: “In other words, musical

time, like any other type of time, is seized as a series of “nows” which succeed one

another on a one-dimensional continuum, that is, in a linear manner.” (TARASTI, 2002,

p.29). Portanto, a mudança na lógica musical existe apenas quando o ouvinte pressente

uma quebra na sensação de continuidade e experimenta a sensação de um novo

presente, em oposição a um passado anterior. Esta ideia tem contudo muitas

implicações e dá origem a muitos problemas. Lembremo-nos que num domínio

puramente estésico, aquilo que um sujeito pressente como mudança, o outro não

68

pressente. A sensação de continuidade que um experimenta ao ouvir uma dada coisa, o

outro não experimenta. A diferença de estruturas que para um é perceptível, para outro

assume uma importância menos significativa durante a escuta. Agawu fala-nos do

problema altamente subjectivo da aplicação, num contexto de análise, de princípios de

continuidade e descontinuidade: “As always, the discontinuity principle has to be

understood in context, for one person´s continuity may be another´s discontinuity. […]

Indeed, some may argue that aiming at demonstrating an absence of connection may be

perverse.” (AGAWU, 2008, p.93). A continuidade e a descontinuidade, tal como a

própria idea de mudança, devem pois serem entendidas no contexto. É necessária, como

referimos na primeira parte, uma certa consciência simbólica por parte do ouvinte para

assimilar o que constitui uma continuidade e o que quebra com essa continuidade, no

contexto musical. É através da assimilação destes dois princípios e do modo como eles

se relacionam que o ouvinte está então capacitado para assimilar a própria ideia de

mudança, no interior da lógica musical. Notemos que é por ser composta pela tensão

entre estes dois princípios, que a ideia de mudança acarreta consigo uma antiga

antinomia ontológica. Determinado objecto ao mudar, ainda que se transforme em algo

que antes não era, simultaneamente conserva algo de si. Há um princípio de

continuidade e de descontinuidade a actuar no objecto, quando ele muda. Quer isto dizer

que o objecto, enquanto muda, é e não é simultaneamente. Este é de resto um velho

problema filosófico, cujas preocupações remontam ao período pré-socrático. A

mudança não parece ser real e racional porque o ente que muda, existe e não existe ao

mesmo tempo. Pelos fragmentos que restam, Heraclito negava a realidade do ser,

precisamente ao ver-se confrontando com este problema. Tudo era devir. Por outro lado,

Parménides, sente-se forçado a negar a realidade do devir, de modo a admitir a realidade

do ser. A mudança e multiplicidade dos entes são fenómenos aparentes da percepção.

Aristóteles pretendeu resolver esta antinomia com a sua célebre distinção entre acto e

potência, explorada à exaustão no livro Theta da Metafísica. Ao dilema de Parménides

– o Ser, necessariamente, ou é ou não é – ele apresenta uma terceira alternativa: quando

muda, o Ser, sobre um dado aspecto é, sobre outro aspecto, não é. Aquando de uma

mudança, o ser (acto) e o não ser (potência) podem-se dar simultaneamente porque se

referem a aspectos ontológicos diferentes. Neste sentido, temos também um princípio de

continuidade e um princípio de descontinuidade a agirem simultaneamente sobre o

mesmo ente.

69

Regressemos então à peça de Liszt. É fundamental repararmos agora, e por isso

é que julgamos que esta peça constitui uma representação muito eficaz da ideia de

mudança, que Liszt aplica simultaneamente e com particular ênfase estes dois

princípios. Vejamos como.

Já dissemos que esta peça é composta por dois importantes elementos

temáticos: o motivo inicial de quatro notas, na mão esquerda; e o arpejo na mão direita.

Embora o motivo inicial seja composto por quatro notas, são essencialmente as três

primeiras que o caracterizam: uma terceira ascendente por graus conjuntos. Ora, este

primeiro motivo, julgamos nós, tem um nível de presença que percorre literalmente a

totalidade da peça. Ele não só é combinado com o arpejo ao longo da maior parte da

peça, na sua forma integral e na sua forma variada, como surge subtilmente, na mão

esquerda, naquele interregno de três compassos que divide a peça (c.22-24), nas notas

fá#-sol#-lá; como também na secção homorrítimica final, nas notas de topo, lá#-si-dó#

(c.52-58). Podemos mesmo alegar que a sobreposição entre o motivo e o arpejo

prolonga-se também ao longo de toda a secção final, com a excepção que o arpejo

transforma-se agora num arpejo rápido.

O motivo de três [quatro] notas percorre portanto toda a peça Sobre este motivo

há um princípio de continuidade (linearidade de presença) e descontinuidade (variação

de presença) a actuar em simultâneo. Ele de facto, é e não é simultaneamente Note-se

que um tema recorrente, em Liszt, comporta consigo duas dimensões fundamentais:

uma dimensão designativa e uma dimensão caracterizante. O tema é designativo

porque designa um dado objecto programático, aponta para algo. O tema é

caracterizante porque, além de o designar, ele reveste esse algo de um carácter. Ele

pode surgir transformado de vários modos, cada modo conferindo um diferente carácter

ao mesmo objecto designado. É fundamental notarmos que é através da diferença da

dimensão caracterizante, que se acentua a identidade da dimensão designativa. É a

repetição modificada de um tema, mais que uma repetição integral, aquela que lhe

confere maior identidade. É através da repetição modificada que se sublinha a

identidade, ou seja, aquela coisa que se conserva, apesar daquela mudança. É

contemplando o objecto de vários pontos de vista, vendo-o distorcido e modificado,

impregnado de diferença, que melhor ressalta a sua identidade, melhor ressalta aquilo

que nele permanece igual a si mesmo. Note-se que a identidade de um ente resulta da

duplicidade entre igualdade e diferença. A identidade de um ente reside não só na

70

igualdade absoluta entre as suas partes. Reside também na diferença, não só em relação

aos restantes entes, como na diferença entre as partes que o constituem internamente.

Estas conjecturas conduzem-nos a uma outra verificação importante, mas mais

frágil: que o tema transfigurado tenha como dimensão designativa Jesus. Mais

concretamente Jesus é o designado, sendo revestido de diferentes caracteres, consoante

as diferentes transformações ao longo da peça. O facto do tema ser constituído por três

notas ascendentes (alusão provável à trindade) fortalece esta possibilidade. O objecto

trinitário tem uma presença contínua, que simultaneamente conhece uma permanente

descontinuidade na modificação do seu aspecto original.

Tudo isto são alguns dos princípios básicos da transformação temática, mais

propriamente do funcionamento daquilo que se designa vulgarmente por tema

recorrente. Podemos alegar que isto é uma técnica muito comum, seja numa peça

programática ou não, sem efeitos maiores para questão de representação. Mas há uma

diferença a anotar. Numa peça programática, e sobretudo numa peça programática de

Liszt, a transformação temática é mais que um instrumento estrutural. É também um

instrumento hermenêutico. Um tema recorrente tem a capacidade de fornecer, em

simultâneo, coerência estrutural e coerência narrativa. Keith T. Johns, na análise

exaustiva que realiza aos poemas sinfónicos do compositor, explica-o:

Motivic transformation is perhaps the most powerful structural and narrative device Liszt employed in his symphonic poems. This device functions musically as well as programmatically and hermeneutically; it unites narrative developments with the workings-out of tightly conceived musical structures, even as it explains those developments and structures to attentive listeners. (T. JOHNS, 1997, p.17).

A recorrência de um tema já apresentado pode actuar como um auxiliar de memória.

Através da invocação do tema, somos transportados para uma secção passada, no

interior de uma dada temporalidade. O passado é aquilo que, por pertencer ao domínio

da memória, pode ser invocado, pode ser recuperado. Nesta medida, esta invocação vem

sempre na forma de uma reminiscência, de um reencontro com uma ideia que o ouvinte

já tinha anteriormente experimentado. Mas há uma condição para isto acontecer: o que

permite que aconteça a invocação do passado, é que entre a enunciação primeira do

objecto da invocação (objecto da reminiscência) e a invocação segunda (reminiscência),

houve um período de tempo em que novo material foi apresentado. É pelo contraste

com o novo material que o velho material se reafirma precisamente como velho. Ora,

nesta peça de Liszt em particular, o que acontece é que não há espaço nem oportunidade

71

para o tema ser recordado. Como dissemos, ele encontra-se continuamente presente,

ainda que sobre um efeito de acção também descontínua. O tema nunca aparece sob

uma forma de reminiscência. A mudança ocorre portanto, não pela reminiscência do

objecto, mas pela transformação contínua do objecto. Toda a peça é um tema

recorrente. Ora, isto só reconfirma a hipótese adiantada anteriormente: que toda a peça,

no seu conjunto, tem como representação única a Transfiguração do objecto, Jesus.

Uma peça que tem como material principal apenas a transformação temática deve pois

ter como tema a própria ideia de transformação. Estamos diante de um signo do

processo.

Recentemente, têm surgido várias tentativas em aplicar à musicologia os

fundamentos da filosofia do Processo, desenvolvida por Whitehead no seu Process and

Reality (1929). Richard Elfyn Jones, no seu já referido Music and the Numinous, é um

dos vários musicólogos a encetar esta tentativa. A filosofia do Processo corresponde a

uma avaliação metafísica do mundo enquanto lugar orgânico e continuamente

transfigurador, animado por um princípio de mudança por oposição a atributos fixos do

tipo cartesiano. Whitehead defendia que toda a realidade é um processo, em que tudo é

algo em vias de se tornar noutro algo, tornar-se naquilo que chama de entidade actual,

recuperando os termos de Aristóteles. Note-se que esta entidade actual, que superou o

estado de potência, não é ainda assim uma substância permanente. Não existem

substâncias permanentes, com fins em si próprias. Só a mudança é verdadeiramente

substancial, nunca acidental. Esta tentativa de descrever a realidade enquanto processo

herda elementos da ontologia dialéctica de Hegel, como o próprio Whitehead reconhece

na sua obra fundamental, ainda que não seja tão teleologicamente orientada como

aquela. O mundo enquanto processo é um mundo cuja teleologia está em permanente

revisão. Ela não é fixa. David Martin no seu livro Art and the Religious Experience: the

Language of the Sacred (1972) afirma que o fenómeno musical é aquele que melhor

pode representar a inevitabilidade do processo, tal qual Whitehead o descreve:

Music more than any other art is perceived mainly in the mode of causal efficacy. Abstract painting more than any other art is perceived mainly in the mode of presentational immediacy. Thus music appears in part elsewhere, whereas abstractions appear to be all here. In listening to music, we experience presentational immediacy because we hear the presently sounding tones. But there can be no “holding” and we are swept up in the flow of process. […] Music more than any other art forces us to feel causal efficacy; the compulsion of

72

process, the dominating control of the physically given over possibilities throughout the concrescence of an experience. (MARTIN, 1972, p.147).

A ideia de eficácia causal seria útil para o possível entendimento desta peça. Esta peça,

enquanto um signo possível para a ideia de mudança, é talvez melhor entendida como

processo. É algo que está em vias de se tornar algo, apresenta uma causalidade

permanente que se resolve, como veremos, na secção final da peça. Para isso, é

necessário agora reflectirmos um pouco sobre a peça enquanto entidade formal.

- - -

A peça é curta e isso influi no modo como irremediavelmente sentimos o tempo.

Dahlhaus é um dos autores a reflectir sobre o modo como a nossa experiência do tempo

influência a linguagem com que descrevemos os processos formais em música,

nomeadamente através da noção aristotélica geralmente traduzida do grego por

movimento. Movimento está associado a dois tipos de mudanças: uma mudança de

qualidade e uma mudança de lugar. Não interessa apenas pois o carácter do objecto (a

qualidade), por exemplo um dado tema musical, mas o lugar que ele ocupa na totalidade

da obra em que se encontra. Falarmos de lugar é desde logo pressupor um espaço

preenchido por vários acontecimentos relacionados por uma distância própria entre si.

O lugar é determinado por uma distância em relação a algo. A distância em música

entende-se segundo aquelas duas noções que, segundo Aristóteles, servem de medida ao

tempo – o antes e o depois. A música é muitas vezes analisada segundo uma lógica de

expectativa fundada nestes dois modos simples de entendimento temporal, o antes e o

depois. Segundo Dahlhaus, a análise musical encontra-se dominada por este binómio:

“…it is in this double meaning that the form in which time manifests itself in music is

conceptually grasped.” (DAHLHAUS, 1988, p. 284). O momento musical provém de

algo e tende em direcção a algo. Só assim se entende a noção de eficácia causal em

música. Isto é evidente por exemplo quando Agawu, na sua obra já anteriormente

referida Music as discourse: semiotic adventures in romantic music, fala da noção de

narrativa tal qual ela é aplicada ao discurso analítico:

Ideas of narrative are always already implicit in traditional musical analysis. When an analyst asks, “What is going on in this passage?” or “What happens next?” or “Is there a precedent for this event?” the assumption is often that musical events are organized hierarchically and that the processes identified as

73

predominant exhibit some kind of narrative coherence wither on an immediate level or in a deferred sense. (AGAWU, 2008, p.103).

Ora, poderíamos impulsivamente sugerir que esta peça tende para a secção final, que

tem início no compasso 52, onde finalmente há uma aparência de quebra formal com

toda a unidade anterior. De facto, podia-se alegar que o ouvinte apercebe-se de uma

mudança precisamente porque um determinante padrão de escuta é brutalmente

contrariado, ao verificar uma quebra abrupta na continuidade estrutural. Mas antes de

cedermos a esta sugestão, tentemos servirmo-nos de algumas noções usadas por Agawu

de maneira a explicar com mais clareza a estrutura da peça.

Agawu decide-se a analisar a música enquanto discurso, num paralelismo muito

comum com o discurso verbal. Neste sentido, a música torna-se uma sucessão de

orações que se relacionam entre si. Das várias categorias terminológicas que Agawu

formulou para analisar o discurso musical romântico, por comparação ao discurso

verbal, existem duas noções que talvez tenham alguma utilidade para nós: dynamic

curve e high point. Ambos os termos se completam já que o antecedente é a condição

necessária para o consequente. É através do primeiro que o segundo é atingido:

This curve, which embodies a variety of dimensional processes, rises gradually from a relatively low point, reaches a high point about two-thirds of the way through the structure, then subsides rapidly thereafter. The scheme is amply represented in organic life and psychological processes. Its proportions convey the sense that the attainment of the high point should come later, not immediately. Parameters that define this basic shape differ from work to work. The most direct embodiment is melody, and this is because the melodic impulse is often the fundamental motivating impulse in Romantic expression. Melodic high points are often literal high point […] Harmony too, is a critical conveyor of points of intensity. […] More immediately palpable is the behaviour of quantifiable parameters like texture and dynamics. (AGAWU, 2008, p.62)

Este é um esquema transversal à retórica romântica e relaciona-se fortemente com a

ideia da música enquanto organismo natural, referida na primeira parte deste trabalho.

Este esquema pressupõe uma causalidade e uma finalidade. A curva dinâmica dirige-se

para o ponto máximo, de maneira que o segundo se apresente como um efeito da causa

que o antecede. É através daqueles vários meios que Agawu aponta – melodia,

harmonia, textura e dinâmicas – que este efeito é produzido. De facto, na peça que

analisámos, todos estes factores têm um peso fundamental para que a secção

homorrítmica final surja como um efeito de tudo o que antecede.

74

James M. Baker, na curta análise que faz a esta peça de Liszt, aponta a

semelhança que existe entre o fim do In Festo… e o fim do Am Grabe Richard

Wagners. Ambas as peças terminam em fá sustenido maior, com a diferença que Am

Grabe termina na região central e In Festo… na região aguda. Contudo, esta não é a

única semelhança entre as duas peças. Ambas as peças recorrem a uma estrutura de

curva ascendente, desde uma região grave a uma região progressivamente mais aguda.

Am Grabe resolve esta estrutura tendo como high point a clara imitação de um toque de

sinos em fá sustenido maior. O high point de In Festo… pode ser considerado, com toda

a legitimidade, a secção final. Paralelamente ao exemplo toque de sinos, aqui temos

uma textura que invoca imediatamente a textura de um coral. Ao assemelhar-se à

textura de um coral, esta secção funciona como um verdadeiro índice de sacralidade, tal

como também o toque de sinos funciona no lamento dedicado a Wagner.

Baker não refere a outra elegia que Liszt dedicou a Wagner, após a sua morte,

R. W. Venezia S.201 (1883), apesar desta ter uma estrutura também muito semelhante à

de Am Grabe e consequentemente à de In Festo…. Também R. W. Venezia recorre a

uma estrutura de curva ascendente, desde uma região grave até a uma região aguda e

desta vez resolve o seu high point, não com um toque de sinos, mas com a imitação de

fanfarras, em forma de tercinas. Mais flagrante nesta peça é a utilização de um motivo

(também utilizado em Am Grabe e reminiscente do tema do Parsifal de Wagner) que,

durante a progressão da peça, realiza repetidamente uma oitava ora ascendente ora

descendente na mão esquerda, de um modo semelhante à gestualidade do motivo do

baixo em In Festo…

Sancta Dorothea, outra peça do último período, tem uma estrutura também

muito similar à de In Festo…. Também a peça consiste em grande parte numa

sobreposição de arpejos (neste caso, descendentes) com uma melodia em mi maior, em

semínimas. E também a peça termina em modo de coral, num registo agudo, replicando

a melodia principal, agora sem o arpejo. A principal diferença é que Sancta Dorothea

não tem um esquema harmónico progressivo mas estático. A melodia é apresentada ora

em mi Maior ora em dó sustenido Maior, terminando a peça em mim Maior. É uma

melodia mais longa e não pode ser considerada legitimamente um motivo, como é o

caso de In festo… Nesta peça, não existe tampouco um encaminhamento progressivo da

peça para o topo registo. A peça varia entre o registo agudo e o registo médio do piano.

Por tudo isto, In festo... parece ter um carácter mais narrativo e menos lírico que Sancta

75

Dorothea. O coral em Sancta Dorothea parece ter pois uma função menos específica do

que em In festo…

O coral é um lugar constante na obra de Liszt. Liszt recorre tanto a corais já

conhecidos como compõe também corais originais. Algumas obras paradigmáticas,

onde a utilização de um ou mais corais assume uma importância capital, são:

Hunnenschlacht S.105 (1856-57); a sonata Dante S.161(7) (1849); Die Toten-Oration

S.112.(1) (1860-66); La Chapelle du Guillaume Tell S.160(1) (1855); Der nächtliche

Zug S.110(1) (1859-61); e Via Crucis. Muitas vezes em Liszt, o coral serve de

contraponto semântico a uma ideia que directamente se lhe opõe, uma ideia geralmente

de carácter altamente cromático e instável. A linearidade tonal do coral reforça o valor

semântico da ideia que lhe é colocada em oposição. É o caso dos três primeiros casos

apontados. Em muitas destas obras, o coral constitui um dos high points da peça. O arco

termina em resolução na textura de um coral. Um dos casos mais curiosos é o seu Ce

qu'on entend sur la montagne S.95 (1848-49), o seu primeiro poema sinfónico. Esta

obra é composta por dois temas em forma de coral que, em virtude do lugar que

ocupam no poema sinfónico, possuem duas funções muito distintas. Na análise que

realiza a este poema sinfónico de Liszt, Berthold Hoeckner conclui o seguinte:

James Webster suggested that “the musical sublime can arise even thought the effects of a single moment: such a moment can `reverberate” long afterwards, on different musical and hermeneutic planes. […] In the Mountain Symphony the two chorales are two such moments. While the first moment is the climactic representation of the sublime object, the second moment appears, initially at least, as a representation of the sublime mind. (HOECKNER, 2002, p.185).

O raciocínio de Hoeckner é o seguinte: o segundo coral (que tem a sua primeira

apresentação apenas na letra Z) tem uma força retórica superior ao primeiro coral

porque é apresentado, pela primeira vez, ao fim de um arco dinâmico, no clímax da

peça. O ouvinte, descansado que todo o material temático tinha já sido apresentado, é

apanhado desprevenido por algo inteiramente novo e nunca experimentado antes. Isso

confere a este coral a capacidade de representar aquilo que Hoeckner designa pela

mente sublime por oposição ao objecto sublime do primeiro coral. Também Hoeckner

fala nos termos de Agawu, fazendo corresponder ao hight point ao momento da

apresentação deste coral: “…the equivalent of Kant´s dynamical sublime may be

understood as the structural moment that breaks through the form at the highpoint of the

work. […] The moment articulates not only the fissure between humanity and nature,

but also between the finite and the infinite.” (HOECKNER, 2002, p.186). Hoeckner

76

lembra a comparação com o finale da primeira sinfonia de Mahler, momento em que se

dá a súbita aparição de um coral em ré maior. O efeito sublime do coral resulta de duas

coisas: do facto de constituir uma novidade; do lugar inesperado onde esta novidade se

apresenta. Desta forma, o ouvinte sai verdadeiramente abalado pela mente criativa do

autor porque é quase forçado a dar conta dela. Aquilo que Nattiez designa por

compositor implícito encontra aqui um exemplo acabado.

In Festo… é o caso directamente oposto deste agora apresentado. Isto porque o

coral da secção final teoricamente não apanhará o ouvinte desprevenido. Pelo contrário,

soará como um efeito natural de toda a rede causal anterior. Neste sentido, a peça

apresenta uma eficácia causal acrescida. O arco melódico e harmónico tende a subir

pelo que é inteiramente natural que a peça termine no topo do registo e na harmonia de

fá sustenido maior, tonalidade que mais logicamente se seguiria de acordo com o plano

harmónico delineado desde o início (dó M» ré b m» mi M» fá m» fá # M). Note-se que

tonalidade de fá sustenido Maior assume uma função muito específica na retórica

lisztiana. A tonalidade de fá sustenido maior é, conjuntamente com a tonalidade de mi

Maior, a tonalidade privilegiada por Liszt para caracterizar o transcendente, numa

alusão provável às chagas de Cristo. Os exemplos sucedem-se desde muito cedo na sua

obra. Alan Walker, no segundo volume da sua monumental biografia de Liszt, apresenta

uma lista de obras que elucidam este aspecto. O coral, em In Festo…, tem portanto uma

função semântica já muito comum na obra de Liszt. Ele é, como dissemos, um índice de

sacralidade. Ao remeter para um género associado a uma música com uma função

religiosa, o coral tem a capacidade de por extensão sugerir toda uma ideia de

sacralidade. Ao conter uma alusão a um género claramente religioso, a pertinência

teológica da peça sai reforçada. Richard Elfyn Jones refere que a utilização de dadas

formas e géneros religiosos determinam obviamente o valor teológico de uma peça de

música:

All music […] reveal something about higher presences, but certain genres must reveal these more directly because this has been their historical role. This is the case with plainchant […] In one sense at least, Bach´s St. Matthew Passion is ontologically different from Beethoven´s Sixth Symphony, because Bach´s masterpiece sets words which directly invoke religious feelings.(JONES, 2007, p.23).

Note-se que esta textura de coral reduz o painel paradigmático da peça, ou noutras

palavras, o conjunto de significações possíveis de atribuir à peça. A ideia de

transcendência tem signos comuns na retórica romântica. Tal como o coral, são signos

77

convencionados e historicamente localizados. Em virtude dessa convenção, revelam-se

eficazes ao sugerirem ao ouvinte (que perfilha dessa convenção) aquela ideia de

transcendência. Disto segue-se naturalmente que nem toda a música tem um igual

potencial teológico, ainda que esse potencial varie conforme a convenção da época: “If

we allow all art to aspire towards being an immanent representation of a divine of a

force, some would argue that there is a danger in “corrupting” the notion of

transcendence.” (JONES, 2007, p.24). Em In Festo…, é quando o arco dinâmico atinge

a última fase que retrospectivamente toda a fase anterior adquire um sentido. A peça

reveste-se assim de sentido sacro. Mais concretamente, é com o coral que se confere um

sentido à mudança. É um high point que não só completa a estrutura sintáctica como

completa a estrutura semântica da peça. Aquilo que seria uma mudança indiscriminada

torna-se, à luz do coral, uma transfiguração, uma mudança discriminada. Só no fim é

que a peça se reencontra como unidade completa. Porque só no fim é que a peça

encontra o sentido para o qual se dirigia e no qual estava em vias de se tornar – um

sentido transfigurador. A natureza de processo (e como tal de mudança) torna-se uma

evidência. A peça adquire assim uma autoridade acrescida enquanto lugar teológico.

- - -

O carácter de processo desta peça é demonstrado, como vimos, pela sua eficácia

causal acrescida. Esta eficácia causal, como também já referimos, é geralmente avaliada

segundo duas escalas de tempo muito simples: o antes e o depois. Falta ainda avaliar a

qualidade que estes dois termos adquirem na presente peça. Passemos a explicar.

Já reparamos que toda a peça constitui um arco continuamente ascendente,

tanto a nível harmónico como melódico. Harmonicamente, através da mudança

progressiva de tonalidade por graus conjuntos em escada. Melodicamente, através de

um curso que tende irrevogavelmente para o topo do registo. Tanto o motivo principal

como o arpejo são de carácter ascendente pelo que, quando combinados, produzem uma

sensação acrescida de ascendência. Tudo isto são constatações simples mas que

escondem também interessantes implicações semiológicas. Enquanto signo, verificamos

que a identidade da peça reside na tensão que realiza entre dois pólos – o baixo e o cima

– pelo que o pólo favorecido é permanentemente o primeiro, que claramente domina

sobre o outro. Recordamos que a linguagem musical, como qualquer sistema semiótico,

não é um simples sistema referencial mas um sistema diferencial. Uma ideia musical

78

não se refere apenas um objecto, mas a uma diferença entre objectos. Daí a necessidade

de falarmos da tensão entre dois pólos.

Se tentarmos reduzir a peça às suas fundações mais essenciais, observamos que

ela funda-se nesta simples dialéctica, o baixo e o cima. O lugar em que o ouvinte se

encontra colocado é num presente que associa sempre o antes a uma qualidade de

localização inferior e um depois a uma qualidade de localização superior. Esta

dialéctica pode ser enriquecida por camadas de significações comuns: da sombra à luz,

do lugar terreno ao lugar divino, da matéria à transcendência, da neutralidade à

superação, do mal ao bem. Tal como o baixo e o cimo, também nenhum destes termos

tem uma vida autónoma. O seu significado reside na diferença que estabelece com o seu

contrário. Por esta razão, a peça poderia aplicar-se com facilidade a um vasto de leque

de acontecimentos. Através de um pensamento relacional paradigmático, in absentia, os

pólos podem ser substituídos com alguma flexibilidade. Basta o mínimo de agilidade

mental. A peça pode perfeitamente representar um simples amanhecer, uma transição da

noite para o dia. Dependendo do modo como o compositor a trabalhar, uma melodia

ascendente admite não só um vasto leque de motivos visuais como um vasto leque de

motivos psicológicos, muitas deles contraditórios: tanto pode querer representar vigor e

coragem como medo e tensão. Apesar da liberdade possível de significação, já tentamos

provar que esta peça possui uma capacidade crescida não só de representar a ideia de

uma mudança como a ideia mais concreta da Transfiguração. A ideia de que nada nesta

peça pode ter uma relação específica com o tema a representar, senão o título, não é

portanto meritória.

Mas se de facto aquela simples dialéctica vive da supressão progressiva de um

dos pólos em favor do outro, da potenciação de um pela actuação de outro (utilizando

os termos da lógica tomista), quando deixamos de estar efectivamente em baixo para

estar em cima? Quando deixamos de estar num plano não transfigurado para outro

transfigurado? Na curta análise que Bem Arnold faz desta peça, o analista localiza o

momento da transfiguração apenas a partir do compasso 40: “After three blocked chords

mm. 5-20 are restated a major third higher. At the end of this section both hands move

to the treble clef as the music ascends to depict Christ's Transfiguration.” (ARNOLD,

2002, p.149). Podemos legitimamente perguntar: porquê apenas neste momento e não

antes ou depois? Ben Arnold não fundamenta a sua sugestão pelo que somos obrigados

a deixar este seu enigma por resolver. James M.Baker, outro autor a dedicar alguma

atenção a peça, sem localizar nenhum momento específico, sugere uma ideia muito

79

curiosa: “The composition co-ordinates a modulatory sequence – from G major through

E major and F minor concluding in F# major – with a gradual shift in register, rising

from the depths to heavenly heights at the end, creating a sense of floating off into

space.” (ARNOLD (ed.), 2002, p.78). James M. Baker fala de uma sensação de

flutuação, de suspensão, de levitação. Esta sensação pode ser sugerida por várias

razões: a presença da dominante no baixo que recusa permanentemente a fundamental

em toda a peça; as mudanças de tonalidade bruscas e sem preparação; a dinâmica

contínua em piano… Mas note-se que em nenhuma passagem dos sinópticos, Jesus

levita ou verdadeiramente ascende aos Céus. Essa é uma ideia popular mas sem

qualquer fundamento bíblico. O único movimento vertical que se dá neste episódio é a

subida de Jesus e dos Apóstolos às montanhas. Curiosamente, para a imagética de

muitos pintores, como é o caso de Perugino ou do exemplo mais paradigmático de

Rafael, o Jesus transfigurado é representado levitando. Não é de todo irrazoável que

Liszt também se tenha inspirado numa tão intuitiva e popularizada imagem para a

concepção da sua peça.

Independentemente destas questões, é inegável ser esta a dialéctica que sustenta

toda a peça. Podem ser três e simultâneos os modos como esta simples dialéctica tem a

capacidade de funcionar como signo. Ela pode funcionar como um ícone, um índex e

um símbolo em simultâneo. Ao discutir a noção de tópico tal qual foi originalmente

formulada por Charles Rosen, Monelle apercebe-se que estas três categorias de Peirce –

ícone, índice e símbolo – podem estar em movimento num mesmo tópico. Quando o

tópico da segunda menor diz respeito à imitação de um choro ou suspiro, ele funciona

como um ícone. Quando, através da imitação do choro, remete também para a ideia de

um lamento, funciona como um índex. Contudo, e tal como Eco, Monelle defende que

um tópico, seja ele um ícone ou um índex, é sempre por natureza um símbolo. A sua

compreensão depende de certas convenções em vigor. Monelle dá ainda outro exemplo,

mais próximo dos nossos interesses. É o exemplo do motivo em escada utilizado em

várias obras de Bach:

The “step” motive (see especially pp.60-63 and 86-90) is an example of an iconic motive carrying an indexicality that is sometimes operative, sometimes not. Thus, in its complete form this motive iconically pictures physical footsteps, which indexically suggest “strength and confidence”. But sometimes it may merely picture steps, without any emotional implication – indeed, with contrary emotional meanings; and elsewhere it may appear in the absence of any mention of footsteps in the text, portraying strength and confidence through the indexicality of its implied representation. (MONELLE, 2000, p.22).

80

Os mesmos conteúdos deste exemplo podem-se aplicar ao esquema que sustenta o signo

que temos vindo a tratar. Como vimos, há uma relação icónica (ou metafórica) entre a

ideia de mudança e o modo com a peça procura representar a ideia de mudança. Tal

como no exemplo, esta relação icónica contém em si uma indexicalidade possível. Note-

se que esta indexicalidade apenas se torna operativa quando o receptor do signo é

capaz, provido de uma certa consciência simbólica, de explorar o potencial indexical de

um dado signo. Neste sentido, essa consciência simbólica seria mais concretamente a

capacidade que o ouvinte teria de associar a textura de coral a um conteúdo de

transcendência. A indexicalidade só se tornaria operativa quando o ouvinte fosse capaz

de transpor o plano generalista da mudança, que temos vindo a explorar, para o plano

particular da Transfiguração. Nesse sentido, o signo que é a peça de Liszt completa-se a

si próprio.

Uma última possibilidade de leitura de In Festo… como lugar teológico

A morte é crueldade, a ressurreição é crueldade, a transfiguração é crueldade, porque em todos os sentidos dum mundo circular e fechado não há lugar para a morte verdadeira, porque a ascensão é um dilaceramento e porque o espaço fechado se alimenta de vida, e as vidas mais possantes passam através das outras, deglutindo-as, num massacre que é transfiguração e bem-aventurança. (ARTAUD, 1996, p.101) Encontramos esta passagem num dos ensaios contidos em Le Théâtre et son Double

(1938) de Antonin Artaud. Neste momento da obra, o autor francês tem estado a

elaborar sobre um novo tipo de teatro, um teatro da crueldade, elaboração que agora

não nos interessa explorar. Há contudo algumas ideias chaves neste fragmento que nos

podem servir de base para uma possível leitura da peça de Liszt. Artaud localiza estes

três acontecimentos – morte, ressurreição e transfiguração – naquilo que ele designa por

um mundo circular e fechado. Melhor dizendo, é porque estes três acontecimentos se

dão, se relacionam e se sucedem, que o mundo se fecha e se torna circular. A

transfiguração constitui pois um acontecimento cruel, um movimento na curva deste

círculo, um massacre. Ela catapulta o homem na direcção de uma evidência que se lhe

assemelha. Ao catapultá-lo, fá-lo recuar. E no recuo, reencontra a curva por onde

81

anteriormente deslizara. A transfiguração só encerra em si a ideia de um círculo, porque

a morte é uma evidência. O homem transfigurado, no monte Tabor, é o homem que

primeiramente sabe que vai morrer e que, só por isso, prevê que vai ressuscitar. É sobre

a certeza da morte, que a perspectiva da ressurreição se funda. E se, como diz Camus,

todo o homem é homem condenado à morte, foi à morte que Jesus se condenou no

momento da Encarnação. Aí começa o sacrifício. Aí começa a circularidade de que

Artaud fala. Em Liszt, esta circularidade é por exemplo evidente nas suas peças

associadas ao tema da morte. Em Liszt, a morte é muitas vezes morte e transfiguração

(replicando o título do poema sinfónico de Richard Strauss). Veja-se os dois lamentos

pela morte de Wagner já referidos; ou o terceiro andamento do poema sinfónico Von der

Wiege bis zum Grabe – Zum Grabe: Die Wiege des zuküftigen Lebens; ou Die Toten-

Oration; ou Marche funèbre – Maximilien I dos Années de Pèlerinage III S.163(6)

(1867); ou Mosonyis Grabgeleit S.194 (1870). Todas estas peças procuram aludir de um

modo ou mais ou menos explícito à ideia de morte. E todas elas terminam com uma

resolução harmonicamente estável, ora serena ora apoteótica, após uma zona

harmonicamente mais instável. Há implicitamente uma sugestão da transmutação da

morte em vida. Há uma adesão implícita a este esquema circular de que Artaud fala. Já

referimos que esta peça encerra em si uma qualidade circular no que diz respeito ao seu

esquema harmónico. Ao terminar na tonalidade de fá sustenido, tonalidade que como

temos vindo a defender tem vindo a ser preparada pela lógica progressiva da peça, Liszt

termina a peça na sensível de sol que lhe dá início. O sujeito estético está pronto a ser

catapultado para o início e a reviver a circularidade do evento cristológico, mas desta

vez não através de uma representação do Cristo Transfigurado mas de uma

representação do Cristo Ressuscitado. Na peça de Liszt, os dois podem-se também

confundir.

Na música programática, tal como num texto literário, existem vários substratos

possíveis de compreensão narrativa. Apresentámos na primeira parte deste trabalho um

possível substrato do signo musical passível de ser explorado, um substrato teológico. É

a possibilidade desse substrato que faz da música um possível lugar teológico, um lugar

capaz de contribuir para um discurso vivo acerca do Mistério. Temos vindo a provar, ao

longo da análise que antecede, o potencial teológico desta peça. Esta peça tem, julgamos

nós, uma capacidade acrescida de representar o fenómeno que se propõe a representar e

a tornar-se assim num lugar metafórico com uma dimensão teológica relevante. A

metáfora musical que encerra tem não só a capacidade de aludir de um modo muito

82

preciso ao fenómeno da mudança como, através de um movimento indexical, ao próprio

momento da Transfiguração. Contudo, a festa da Transfiguração do Cristo, como todas

as celebrações religiosas, tem um alcance teológico que vai além do próprio episódio a

que diz respeito: “A festa da Transfiguração do Senhor celebra a manifestação

antecipada do Ressuscitado.” (GALVÃO (ed.), 2008, p.165). A Transfiguração aponta

para a Ressurreição.

Numa visão estritamente estruturalista, as realidades semiológicas não têm uma

significação individual. Como já dissemos, a sua significação reside na relação que

estabelecem com outras realidades. Por exemplo, o significado do signo verbal homem é

obtido através da relação que estabelece com o signo verbal mulher. Estas relações são,

na maior parte das vezes, invisíveis e inconscientes. Assentam na tese de que qualquer

sistema semiológico corresponde a uma estrutura complexa de relações entre as partes.

São por isso relações paradigmáticas e não sintagmáticas. Importa recordar esta velha

distinção empregue por Roman Jakobson entre relações do tipo sintagmático e relações

do tipo paradigmático. As relações do tipo sintagmático dizem respeito a relações in

praesentia, entre palavras combinadas em sequência. As relações do tipo paradigmático

dizem respeito a relações in absentia, a relações entre palavras presentes e outras

ausentes. Estas relações paradigmáticas aplicam-se não apenas a estruturas implícitas de

oposição como homem e mulher, como a estruturas implícitas de proximidade entre os

termos.

Através de um tipo de pensamento paradigmático, existe uma lógica própria ao

realizarmos uma transposição, por proximidade, do plano da Transfiguração para o

plano da Ressurreição. Como explicamos na segunda parte, os dois eventos estão

tematicamente interligados e partilham características. Em ambos os eventos o discurso

jesuológico transforma-se num discurso cristológico. Note-se que a própria

Transfiguração é na verdade uma representação levada ao superlativo. A

Transfiguração é uma representação acabada da Ressurreição Na Transfiguração, Jesus

apresenta-se enquanto Cristo, mas não por inteiro. É uma promessa de totalidade. O

Jesus transfigurado remete para o Cristo ressuscitado. Collado, em diálogo com Sequeri,

aponta esta relação: “… la belleza como re-conocimiento. En este reconocimiento se

experimentará la promesa y su cumplimiento pêro aún no totalmente completa. Es el

«sí, pero aún no». Sequeri lee en esta clave el pasaje de la Transfiguración: contexto de

anuncio de pasión y crucifixión, belleza de amor totalmente don.” (COLLADO, 2006,

p.203).

83

A simples dialéctica do baixo/cima parece ser a dialéctica a substantificar a

grande parte dos signos musicais que procuraram representar a Ressurreição. Recorde-

se que, embora a Ressurreição de Jesus seja um evento distinto da Ascensão de Jesus

aos céus (isso acontece após a Ressurreição), eles muitas vezes se confundem no

imaginário cultural, nomeadamente no musical. Ao assumir tão manifestamente aquela

dialéctica (através do arco harmónico e melódico), esta peça cumpre o requisito

convencional que lhe permitiria representar a Ressurreição, enquanto Transfiguração

que é. Também praticamente todas as peças de Liszt que visam explicitamente

representar a Ressurreição assumem essa dialéctica. Contudo, a dialéctica do baixo/cima

está longe de poder esgotar todas as possibilidades e todo o significado do evento da

Ressurreição de Jesus Cristo. Atrevemo-nos a dizer que ela satisfaz apenas um primeiro

nível muito superficial da representação do evento. A Ressurreição é mais que um

movimento vertical do sujeito cristológico, da morte consumada para uma nova vida.

Cristo, ao superar a morte, superou o tempo. A Ressurreição é uma proposta de

eternidade para todos os homens. A Ressurreição é a confirmação de que a morte é

efectivamente morte e transfiguração, a brutal aceitação de toda a crueldade do círculo

de Artaud. Uma representação, musical ou não, deste evento axial não pode deixar

escapar este aspecto. Ao deixá-lo escapar, deixa escapar o fundamento mais pessoal que

poderia relacionar o sujeito estético com o sujeito cristológico. É depois da Cruz que o

cristianismo deixa de ser um discurso ético para se tornar um discurso ontológico. Uma

verdadeira representação da Ressurreição imprime no sujeito estético um sentido. Um

sentido que é a eternidade, porque a Ressurreição corresponde em si a uma promessa de

eternidade.

De que modo é que esta miniatura pode satisfazer semelhante exigência?

Poderíamos alegar que a tão breve duração desta peça, por exemplo, contraria essa

realidade que idealmente deveria representar, a eternidade. Contudo, a brevidade em

música pode ser a coisa menos inofensiva que há. Note-se que a eternidade não é o

mesmo que uma expansão interminável de tempo. A eternidade é a supressão do tempo.

Cristo supera o tempo e a história. Tanto a Transfiguração como a Ressurreição são

Mistérios trans-históricos. Mas mesmo que fosse superada esta contradição, surgiria

outra ainda mais grave e difícil de resolver. O tema fundamental desta representação,

que temos vindo a descrever até agora – a ideia de mudança – em tudo parece

contraditar a noção clássica de eternidade. É eterno aquilo que não conhece uma

dimensão de mutabilidade, é eterno aquele bloco de jaspe que não se encontra sobre a

84

acção das velhas leis da geração e da corrupção. Se eterno e mutável constituem um par

absolutamente disjuntivo – a presença de um obriga à exclusão do outro – devemos

entender a obrigatoriedade dessa disjunção à luz apenas de uma lógica que a percepção

estética tende a inutilizar. Pois se não é contradição afirmar que um mesmo signo possa,

para dois sujeitos distintos ou para o mesmo sujeito em momentos distintos, designar

uma coisa e o seu contrário, então qualquer esquema disjuntivo torna-se inaplicável no

fenómeno estético. A disjuntividade só se torna um problema se o esquema em que nos

movimentarmos na nossa análise for ainda o esquema dual de sujeito/objecto. Mas essas

duas possibilidades que se parecem opor – mudança e eternidade – nem constituem

exclusivamente o objecto que nos propusemos a estudar nem partem apenas de uma

capacidade imaginativa e atributiva do sujeito. Resultam de uma correlação onde o

horizonte de possibilidades é tanto mais longo quanto mais proximamente se realizar

essa correlação. Olhando então para o nosso horizonte de possibilidades, que podemos

lá vislumbrar que nos permita sustentar concretamente a hipótese de estarmos diante

uma possível representação da Ressurreição? A um primeiro nível, já o referimos, a

velha dialéctica do baixo/cima. A um segundo nível, a impressão estética da eternidade.

Ao primeiro nível, lança-se o olhar competente de um musicólogo. Ao segundo nível,

pode-se lançar aquele olhar que Collado traduz pela percepção estética do Mistério. O

movimento do Cristo Transfigurado é o movimento repetido do Cristo Ressuscitado. A

peça de Liszt pode conter, para o sujeito que a aborda como lugar teológico, a

capacidade dessa repetição. A capacidade de um signo desdobrável, apto a apontar nas

duas direcções: o Cristo Transfigurado e o Cristo Ressuscitado.

Mas falta ainda o terceiro movimento dentro do círculo de Artaud – a morte. Já

referimos as semelhanças evidentes que existem entre a estrutura em arco ascendente de

In festo… e a estrutura das duas elegias pela morte de Wagner. A coincidência das

estruturas parece ser denunciadora. De facto, também In festo… poderia ser a elegia

pela morte do homem. Mas como aquelas duas elegias, será sempre morte e

transfiguração. Será sempre morte que gera a vida. A loucura desta contradição é a

loucura da Cruz.

85

Conclusão

É importante sumarizar algumas questões fundamentais que foram sendo

abertas ao longo do caminho que até aqui trilhamos. Muitas dessas questões o próprio

Collado as sintetiza, no final da sua obra, e nelas nos podemos deter para concluirmos a

nossa dissertação:

Se pude hacer teología a partir de la música? Pueden aportarse algo la música y la teología? Es valida la conjunción copulativa entre ambos lenguajes? La experiencia estética del Misterio es teologicamente contemplable? Puede pensarse en la música como nuevo lugar teológico? – han encontrado vías de respuesta en nuestra tesis. Emergen otras preguntas sobre cómo afrontar el paso de lo estético a lo religioso que há ocupado a los filósofos contemporáneamente. También en este punto obtenemos algunas respuestas si partimos, más que del concepto de estética, del concepto emoción estética que puede traspasarse, como hemos demostrado en nuestra tesis, com la emoción teológica. (COLLADO, 2006, p.393)

As várias interrogações que Collado coloca à partida resumem-se todas elas ao

questionamento de uma mesma possibilidade: é possível o diálogo entre a música e a

teologia? Em termos mais concretos, a própria tentativa de Collado em meditar sobre o

mistério da Eucaristia a partir do Livre du Saint Sacrement de Messiaen, ou sobre a

natureza da Revelação a partir da ópera Moses und Aron de Schönberg, é uma tentativa

legítima? Ao termos considerado a peça de Liszt como um possível lugar teológico,

como um terreno favorável à reflexão acerca do mistério da Transfiguração e das suas

implicações, já estávamos a dar assentimento a essa possibilidade e ao êxito das

tentativas de Collado. O diálogo interdisciplinar é hoje um fenómeno muito comum.

Não se trata pois de saber se ele é possível. Trata-se de saber se os pressupostos que o

86

sustentam, neste caso, são válidos. Porque verdadeiramente determinante não é saber se

existe uma concomitância entre a linguagem de duas disciplinas – a teológica e a

musicológica; mas sim dar resposta à questão que Collado nos propõe a seguir: qual é a

distância que vai entre aquilo que é estético àquilo que é religioso, no momento da

experiência musical? Verdadeiramente determinante é saber se a experiência musical

que tanto o musicólogo como o teólogo experimentam pode ser diferenciada e dividida,

como seria desejável. Verdadeiramente determinante é localizar a fronteira que separa a

experiência estética da experiência do transcendente. No fundo, importa questionar a

existência dessa fronteira. Essa é a questão fundamental, questão que se colocou

igualmente para o discurso apologista da música absoluta.

O deslumbramento em Collado é sempre e antes de mais um deslumbramento

estético, ainda que seja simultâneamente um deslumbramento associado ao divino. O

primeiro é condição para o segundo, é necessário reafirmá-lo. Como Collado refere,

todo o deslumbramento tem como ponto de partida uma simples emoção estética. É

nesta relação de precedência, ou noutras palavras, é na capacidade do sujeito em

comover-se diante de um dado objecto musical, que se abre a possibilidade de

transposição dessa experiência estética para uma experiência do transcendente. A

experiência estética parece ser mais ou menos comum a todos os homens, de alguma

maneira. A experiência do transcendente não o é, pelo que é mais digna de suspeita e

desconfiança que a primeira. Mas essa desconfiança pode ser ligeiramente dissipada se

concordarmos nisto: que, tal como a experiência estética, também essa experiência é

sustentada por um código de sentidos que o sujeito anteriormente perfilhara. Na

primeira parte deste trabalho, tentamos delinear esse código de sentidos, aqueles

pressupostos de base que dominam a experiência do sujeito crente, no momento da

audição. Esses pressupostos que procuramos pôr em exame podem ser considerados em

última análise convenções culturais. E atente-se que não é porque a experiência do

transcendente necessita, para se realizar, da adesão mais ou menos consciente do sujeito

a uma convenção cultural e historicamente localizada, dentro das coordenadas do

espaço e do tempo, que a experiência em si deixa de ser considerada da ordem do trans-

histórico. Porque é nos sinais e nos corpos do tempo que a experiência divina encontra a

via e a força para comunicar. É necessário haver a sarça, para o fogo ser aceso. É

necessário o elemento mediador, são necessárias as formas, pois é através da forma que,

como von Balthasar refere, o divino se introduz “… nas categorias do espaço e tempo,

como trâmite normal da sua acessibilidade.” (von BALTHASAR, 1995, p.17) Porque

87

uma experiência que, em teoria, é para os homens, terá de ser então inscrita no espaço

dos homens, no tempo dos homens, no código dos homens, na língua dos homens. É

preciso imaginar Jesus a falar aramaico. Era nessa língua que as multidões o podiam

entender. Na terceira parte do nosso trabalho, ao estudarmos a peça de Liszt foi

necessário provar a validade da sua actuação como signo. Para isso, fomos forçados a

admitir que esta peça só pode representar eficazmente a Transfiguração para um ouvinte

devidamente consciente de um código cultural. Um ouvinte capaz, por exemplo, de

realizar aquele movimento indexical a partir da secção do coral, que fornece

retrospectivamente um sentido sagrado à peça. O coral é uma convenção histórica e é

uma parte nesse código. É pois pela adesão ao código, à história e ao seu tempo, que o

homem se torna sujeito da experiência e a enriquece. Delinear e explicar a experiência

do transcendência através de uma antropologia, de uma história, não equivale a subtrair-

lhe no factor de transcendência. Uma experiência na qual o homem comparticipa, é uma

experiência que não pode renunciar ao homem e ao tempo em que ele se insere. Mas

também não tem de ser reduzida ao homem somente. Porque há o homem, há o mundo

e, entre os dois, um intervalo de acção, o espaço para aquela pergunta de Simone Weil:

Há uma pergunta que não tem significado absolutamente nenhum e, claro, nenhuma resposta; pergunta que habitualmente colocamos, mas que a alma na infelicidade não pode impedir-se de gritar sem cessar, com a monótona continuidade de um gemido. Essa pergunta é: porquê? Porque são as coisas assim? O infeliz pergunta-o ingenuamente aos homens, às coisas, a Deus, mesmo se nele não acredita, a não importa o quê. (WEIL, 2009, p.141)

Há que ouvir In festo… como um porquê.

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APÊNDICE: Partitura