imvf debates 2/2013 - preocupações de segurança nas Áfricas ocidental, central e oriental
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IMVF Debates 2/2013 - Preocupações de Segurança nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental - João Bernardo Honwana A falta de consolidação das Nações em África e a persistência de contextos políticos marcados pela corrupção, pela interferência dos militares no domínio político e por uma governação pouco inclusiva, são alguns dos problemas comuns a vários países africanos. Neste contexto, alguns eventos que aparecem aos olhos da comunidade internacional como surpresas são, na realidade, manifestações de processos internos que se desenrolam internamente há já algum tempo. São aqui referidos alguns desafios que se colocam a várias regiões e países africanos, nomeadamente o controlo de rotas comerciais por redes de criminalidade organizada no Sahel, as diferenças de evolução nas chamadas Primaveras Árabes, os fatores de instabilidade na África do Sul, ou as implicações do boom dos recursos no continente africano.TRANSCRIPT
PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL
1 IMVF DEBATES 2/2013
PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA Nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental
João Bernardo Honwana
Mesa Redonda, 26 de junho de 2013
Debates 2/2013
PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL
2 IMVF DEBATES 2/2013
Abstract
The lack of consolidation of African Nations and the prevalence of political contexts underpinned by corruption, military interference in the political sphere and weak inclusive governance, are some of the problems shared by several African countries. In this context, events that may appear to the eyes of the international community as surprises are indeed manifestations of internal processes that are evolving for some time. Some of the challenges posed to African countries and regions are mentioned, namely the control of trade routes by organised crime networks in the Sahel, the different evolution of the so-called Arab Springs, the instability factors in South Africa, and the implications of the current boom of resources in the African continent. The debates also focused on the role of international organisations in these contexts.
A falta de consolidação das Nações em África e a persistência de contextos políticos marcados pela corrupção, pela interferência dos militares no domínio político e por uma governação pouco inclusiva, são alguns dos problemas comuns a vários países africanos. Neste contexto, alguns eventos que aparecem aos olhos da comunidade internacional como surpresas são, na realidade, manifestações de processos internos que se desenrolam internamente há já algum tempo. São aqui referidos alguns desafios que se colocam a várias regiões e países africanos, nomeadamente o controlo de rotas comerciais por redes de criminalidade organizada no Sahel, as diferenças de evolução nas chamadas Primaveras Árabes, os fatores de instabilidade na África do Sul, ou as implicações do boom dos recursos no continente africano. Os debates tiveram também como pano de fundo o papel das organizações internacionais nestes contextos.
Keywords: Africa, Security, State Fragility, Arab Spring, Sahel region
Palavras-Chave: África, Segurança, Fragilidade do Estado, Primavera Árabe, região do Sahel
SOBRE A PUBLICAÇÃO
Esta publicação deve ser citada como: IMVF (2013); Preocupações de Segurança nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental. Mesa redonda realizada em 26 de junho de 2013 com João Bernardo Honwana, IMVF Debates 2/2013, Lisboa.
Pode copiar, fazer download ou imprimir o conteúdo desta publicação [recomendamos a utilização de papel reciclado ou certificado] . Pode incluir trechos desta publicação nos seus documentos, apresentações, blogs e websites desde que a fonte seja mencionada.
A edição dos conteúdos foi feita por Patrícia Magalhães Ferreira. O conteúdo desta publicação é da exclusiva responsabilidade do editor.
Esta publicação é resultado de uma colaboração entre o Instituto Marquês de Valle Flor, a Fundação AIP, o EuroDefense-Portugal
e a AFCEA-Portugal, no quadro do Ciclo de mesas redondas dedicadas ao tema “Estratégia e Segurança vs. Internacionalização e
Investimento”. Esta série de debates tem como objetivo aprofundar o conhecimento e a reflexão sobre várias dinâmicas políticas
e de segurança que condicionam as decisões de investimento e a internacionalização da economia portuguesa.
Saiba mais sobre o IMVF em www.imvf.org
PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL
3 IMVF DEBATES 2/2013
ÍNDICE
1. RESUMO DA MESA REDONDA 4
2. NOTA BIOGRÁFICA 12
PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL
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1. RESUMO DA MESA REDONDA
Na intervenção inicial, o orador traçou os principais
desafios que se colocam a África no âmbito das
dinâmicas políticas e de segurança em vários países
e regiões do continente.
O enfoque principal foi na região do Sahel, cuja
definição é objeto de grande debate uma vez que
não existe consenso sobre qual a sua abrangência
geográfica e os países que a compõem. Assim, cada
organização ou agência internacional poderá ter
uma definição diferente da região, considerando-se
neste caso que o Sahel é toda a faixa entre a costa
ocidental e oriental africana, que forma um corredor
quase ininterrupto do Atlântico ao Mar Vermelho,
em que o Saara e as terras mais férteis a Sul se
encontram. É uma região onde se verificam não
apenas semelhanças geográficas ou físicas, mas
também em termos de composição populacional e
económica. Na análise feita pelo orador, o Sahel foi
utilizado para caracterizar o tipo de desafios de
estabilidade que se colocam aos países africanos,
uma vez que concentra em si muitos dos desafios
políticos, demográficos e outros que são comuns a
vários países africanos
No geral, a região é caracterizada por Estados
frágeis, onde as nações não estão consolidadas. São
países com poucos recursos humanos, financeiros e
logísticos, a que acresce o flagelo da corrupção, o
que se reflete numa incapacidade de dar resposta
aos anseios e às necessidades básicas das
populações, originando descontentamento e
instabilidades que se manifestam amiúde de forma
mais violenta. As tendências recentes têm mostrado
um ressurgimento dos golpes militares e alterações
inconstitucionais de governo (Mali, Guiné-Bissau) e
uma grande interferência das forças armadas nos
processos políticos.
Com efeito, a ausência de Nações consolidadas e um
contexto político marcado pela corrupção, pela
interferência dos militares no domínio político e por
processos pouco inclusivos de governação, em que a
luta política se transforma na luta pela
sobrevivência, são alguns dos problemas comuns a
vários países africanos. Neste quadro, as forças
políticas tendem a ser muitas vezes forças
desagregadoras a Nação e não agregadoras ou
integradoras como seria expectável. As elites
políticas utilizam os instrumentos democráticos –
como a realização de eleições – para perpetuar o seu
jugo e como ferramentas e exclusão e de acesso ao
poder. Muitas vezes, o acesso ao poder é a única
forma de acumulação e alguns recursos. Isto significa
que prevalece uma perspetiva de “winner takes it
all” e a esfera política tende a refletir divisões
regionais, étnicas ou outras, não se verificando
grande experiência nem apetite para formais mais
inclusivas de governação.
Neste contexto, a política transforma-se num jogo
de aparências e o discurso formal perante a
Comunidade Internacional aponta para uma retórica
de construção de democracias estáveis e sólidas,
enquanto na realidade há outras dinâmicas em
curso. No fundo, é a democracia esvaziada do seu
conteúdo, tornando-se num vazio de aparências.
Assim, processos que aparecem aos olhos da
comunidade internacional como uma surpresa,
como o caso do Mali (considerado até um exemplo
de democracia no continente), são manifestações de
situações insustentáveis já existentes e reconhecidas
internamente há algum tempo.
Na zona geopolítica do Sahel, salienta-se também o
domínio das rotas comerciais pela criminalidade
organizada, em que o extremismo, o terrorismo ou a
classificação como “jihadistas” acaba por ser útil
para certos grupos, na medida em que lhes dá
acesso aos financiamentos de que beneficiam os que
efetivamente promovem essa agenda. Antigos
comerciantes de mercadorias ou contrabandistas
são agora apelidados de terroristas.
PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL
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Frequentemente, para as autoridades tal
classificação também é útil, na medida em que
podem dizer que a insegurança não se baseia num
conflito interno, mas antes faz parte da luta
internacional contra o terrorismo.
Há, assim, uma aliança de interesses significativos
que transformam grupos de criminosos em
criminosos políticos; e alguns deles transformam-se
mesmo. Não quer isto dizer que não exista um
núcleo duro de jihadistas, mas a maior parte destes
nem sequer é originário da região. Muitos vêm do
Afeganistão ou Paquistão, com tecnologia, treino e
ideologia, sendo que os grupos mais puristas não se
ocupam de atividades de tráfico. Outros são mais
flexíveis, ou seja, defendem que são jihadistas mas
que precisam de sobreviver. Depois existem também
os comerciantes que são jihadistas quando lhes
convém.
Os governos do Mali, do Níger ou da Mauritânia não
têm meios para impedir estes movimentos, desde
logo porque não possuem recursos ou orçamentos
suficientes para contrabalançar os montantes
financeiros que este tipo de atividades envolve. Estas
dinâmicas estão também ligadas a rápidas
transformações ao nível cultural e identitário em
vários destes países, uma vez que a nova geração
consegue gerar mais rendimento pelo recurso a
atividades criminosas ou a fornecer serviços diversos
a esses grupos criminosos, do que os seus
progenitores que se dedicam a atividades
tradicionais. O aspeto financeiro é muito importante
e deteriora a hierarquia familiar vigente, já que, por
exemplo, uma viagem de proteção aos traficantes
pode render mais do que um ano inteiro de trabalho.
Do ponto de vista de alguns líderes comunitários,
esta situação está a acabar com a cultura local. É
uma transformação que está a acontecer num
período de alguns anos e que enfraquece o principal
recurso destas sociedades: o recurso humano. Isto
levanta questões de disrupção familiar, mas também
de mudanças rápidas no plano cultural e das
identidades das comunidades.
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6 IMVF DEBATES 2/2013
As previsões para o futuro não são animadoras, uma
vez que acrescem outros fatores demográficos e
ambientais, em que a explosão populacional está
associada a grandes carências alimentares. Prevê-se
que a população do Sahel mais que duplique nos
próximos 25 anos, enquanto há uma descida da
capacidade de produção de alimentos e o avanço do
deserto para sul, em resultado das alterações
climáticas. Tal origina pressão sobre as terras
produtivas e choques entre populações nómadas e
sedentárias. Com a desertificação e a falta de inputs
produtivos, se nada mudar na configuração da região
o problema no futuro será gigante.
A falta de consolidação nacional é um problema
comum a quase todos os países africanos, sendo
evidente em países com grande peso populacional e
considerados gigantes do continente, como é o caso
da Nigéria ou da África do Sul. Nesta, a ideia de
“rainbow nation” surgiu como ideia que caracteriza
o país, mas a integração de vários grupos continua
por resolver. Já Mbeki falava da existência de duas
realidades distintas - uma África do Sul branca, rica e
influente, e uma África do Sul pobre e negra - que
era necessário aproximar.
Outro problema é o facto de grande parte da
população que deveria ser ativa estar
desempregada. Existe um amplo exército de jovens
desempregados, sem oportunidades e sem
perspetivas, numa economia que está mais
modernizada e que tem cada vez mais necessidades
em termos de tecnologia e de competências, às
quais estes jovens não conseguem corresponder.
Estas são grandes interrogações comuns também a
outros países africanos, onde representam
constrangimentos às possibilidades de crescimento
económico e desenvolvimento humano. No caso da
África do Sul, em que Mandela é uma âncora na
sociedade sul-africana, a preocupação é acrescida,
na medida em que um eventual descarrilamento
coloca em causa todos os outros países da região,
muito dependentes da África do Sul em termos
económicos e de investimento.
Existem alguns países no continente que optaram por seguir uma trajetória de desenvolvimento muito própria – como a Etiópia ou o Ruanda,
caracterizados como “Estados Desenvolvimentistas”
– em que as elites no poder se concentraram em
fazer crescer a economia e ampliar a classe média,
com pouca atenção às liberdades individuais, aos
direitos democráticos e aos direitos humanos. As
elites afirmam a necessidade de garantir que as
pessoas comem, que as crianças vão para a escola e
que há crescimento económico, assegurando as
necessidades básicas e essenciais das populações. De
facto, na Etiópia, as grandes crises de fome com um
caráter cíclico, que nos invadiam com imagens
terríveis todos os anos, desapareceram. Os
dirigentes etíopes afirmam que esse é o seu mérito:
ter salvo milhões de vidas e transformado esta
situação numa situação irreversível. Quanto à
questão da democracia, exprime-se a ideia de que
esta chegará um dia, quando as pessoas já não
morrerem de fome e quando existir uma classe
média pujante. Este é um debate interessante, ou
seja, de saber o que deve vir primeiro, em que
medida os processos devem ser sequenciais ou
simultâneos.
Com base nessa ideia da importância de manter as
populações vivas e alimentadas, até há bem pouco
tempo parecia que tudo seria permitido ao regime
ruandês, desde prisões arbitrárias a excessos
diversos do regime, em que eram destruídas todas
as contestações ao seu poder. No entanto, a atitude
dos parceiros internacionais está a mudar e os
excessos do sistema político começam a ser
escrutinados, com a agenda democratizante a vir ao
de cima. Mas por outro lado, é inegável que Kigali é
uma das cidades mais agradáveis do continente,
uma cidade limpa e onde os transportes públicos,
bancos e serviços funcionam eficazmente, e onde
não se observa uma corrupção generalizada. Se
Kigali reflete a realidade mais geral do país, então há
que reconhecer um certo mérito na forma como o
regime esta a gerir e a transformar o país, sem
desculpar o escasso espaço democrático. É difícil
prever o que o futuro reserva para estes países,
podendo haver em alguns casos um processo de
avanços e recuos.
DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL
7 IMVF DEBATES 2/2013
No contexto continental, o otimismo gerado em torno de África nos últimos anos deriva, em grande parte, do boom dos recursos. Há uma tendência de pensar que os problemas vão ser resolvidos porque há recursos – como o petróleo e o carvão - e dinheiro. Moçambique é um dos exemplos, onde se fala muito no bom ambiente para os negócios. No entanto, levanta-se a questão essencial da forma como se gerem esses recursos naturais, quem deles beneficia e como são utilizadas as receitas desses recursos.
A História demonstrou que muitos desses proveitos
saíram de África e pouco foi aproveitado em termos
internos. A riqueza verdadeira não chegou à maioria
da população. Este é um risco real que vários países
africanos correm. Para além disso, muitos dos
investimentos nos recuros naturais e em termos
industriais, que até utilizam e transferem tecnologias
avançadas para os países africanos, não se refletem
na geração de emprego (p.ex. indústria de alumínio
em Moçambique). Outros geram problemas
ambientais. Estamos atualmente a viver uma
oportunidade única, uma vez que o interesse pelos
recursos naturais se renovou e a capacidade de
África atrair conhecimento nunca foi tão grande,
mas há também uma grande responsabilidade que
recai sobre as elites africanas.
Por um lado, são necessárias lideranças internas
comprometidas com o futuro dos seus países, que
centrem as suas ações numa visão de longo prazo e
em prol das suas populações. Se a transformação
não chegar à maioria da população e se não
surgirem lideranças visionárias e inspiradores que
implementem essa visão, o futuro de África pode
estar comprometido.
Por outro lado, também os parceiros de África têm responsabilidades, uma vez que temos de analisar como é que os parceiros internacionais/externos se têm envolvido no continente. Tem sido mais numa perspetiva de ajudas e financiamentos a curto-prazo (o que é perfeitamente legítimo e legal no contexto dos quadros legais vigentes), ou com uma visão mais de longo-prazo, em que há uma vontade de transformar o continente e o potencial existente numa realidade sustentável? Queremos que África seja não apenas o sítio onde vamos buscar os recursos ou queremos que seja um parceiro para o futuro? Assim, os parceiros internacionais não deverão olhar o continente apenas na ótica de comércio ou de extração de recursos naturais, mas investir nas infraestruturas, nas indústrias, na criação de emprego e no capital humano, de forma a reforçar capacidades e implementar estratégias de longo prazo.
DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL
8 IMVF DEBATES 2/2013
Na Guiné-Bissau, à semelhança de outros países, o
problema da qualidade da liderança política exige
um processo de diálogo inclusivo e extensivo à
sociedade. Neste âmbito, foi colocada uma questão
sobre as vantagens e desvantagens dos governos
denominados de inclusivos, por oposição à
realização de eleições, mas ambos têm problemas.
Frequentemente, em África, os governos de unidade
nacional ou de partilha de poder também significam
a distribuição dos recursos e do poder no seio de
uma pequena elite.
No caso da Guiné-Bissau, da Serra Leoa ou da Guiné-
Conakri, as dinâmicas internas, que são complexas,
são ainda agravadas pela influência do tráfico de
droga, na medida em que estes países são portas de
entrada.
Estes negócios – de tráficos diversos, pirataria,
comércio ilegal - movimentam grandes montantes
financeiros, que não conseguem ser
contrabalançados pelos orçamentos dos governos
dos países africanos ou pelo apoio dos doadores. O
que as Nações Unidas podem trazer em termos de
programas de desenvolvimento, ou a União Europeia
com a ajuda ao orçamento, não se compara aos
montantes em termos de volume a valor das drogas
que transitam através do Sahel e da África Ocidental,
desde a América Latina até à Europa. De acordo com
a análise de agências especializadas, a influência que
as redes regionais de trafico tem é
incomparavelmente maior do que a intervenção e o
interesse da comunidade internacional na zona.
Estas redes da droga exercem uma influência
considerável nos círculos de poder politico e militar
na região, nomeadamente na Nigéria. Isto pode
explicar, segundo algumas fontes, a resistência que
se verifica a restruturação das forcas de defesa e
segurança na Guiné-Bissau, o golpe de Março de
2012 e as dinâmicas que se lhe seguiram. Este
argumento carece de verificação, mas é um dos
fatores apontados por algumas pessoas, quando se
debate esta situação.
Durante o debate, foram abordadas com maior
detalhe algumas questões específicas, aqui
resumidas em três grupos:
Guiné-Bissau e Golfo da Guiné
Os problemas na Guiné-Bissau estão, em parte,
ligados a um confronto entre elites urbanas e mundo
rural. Em Bissau existe um pouco de emprego, um
pouco de riqueza e negócios, e é onde se desenrola a
luta política, existindo uma dissociação em que o
resto do país é largamente ignorado pelas elites
urbanas. Os Balanta representam este sentido de
alienação e exclusão do mundo rural, no sentido em
que os Balanta das zonas rurais sentem que foram os
que mais se sacrificaram na luta de libertação
nacional e que não há investimento nessas zonas,
nem em termos de educação e saúde, nem de
infraestruturas, estando a riqueza concentrada em
Bissau. Sentem, assim, que pagaram o preço mais
elevado pela libertação do país, mas que não viram a
sua situação melhorar desde então, ao contrário das
elites urbanas que tiraram benefícios dessa situação.
Assim, usam o facto de terem armas e estarem
presentes nas forças armadas para “se sentarem à
mesa onde os outros comem” (a elite política). Esta
pode ser uma visão simplista da realidade, mas é
uma visão sentida e partilhada por alguns grupos
Balanta na Guiné-Bissau.
DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL
9 IMVF DEBATES 2/2013
“Primaveras Árabes”
Foram abordadas algumas diferenças nos países que
passam atualmente pelas chamadas “Primaveras
Árabes”, incluindo o Egito, a Tunísia e a Líbia, uma
vez que cada contexto é muito particular.
No Egito, não se coloca tanto a questão de
consolidação da Nação, mas é antes uma questão
mais ideológica. Mesmo que se verifiquem tensões
entre a maioria muçulmana e os cristãos, e mesmo
dentro da maioria muçulmana, o que assistimos é
uma luta pelo poder entre as tendências islamitas e
as forças secularistas. Na Tunísia, verificam-se
tensões muito significativas entre tendências mais
conservadoras, que assumem aspetos religiosos, e
aquilo que se denominava de um excessivo
liberalismo e ocidentalização da Tunísia por parte de
Ben-Ali. O facto de o regime ser corrupto fez com
que o liberalismo e a ocidentalização fossem quase
automaticamente associados à corrupção, o que deu
ainda mais força aos setores mais conservadores da
sociedade tunisina.
Na Líbia não há Estado, na medida em que Kadhaffi
destruiu o Estado através da personalização do
poder e este passou a ser identificado com um
pequeno grupo de pessoas. Não é portanto uma
questão de reconstrução ou reconstituição, mas sim
de aprender a construir e consolidar um Estado, o
que torna o desafio mais complicado. Ser líbio tem
significados diferentes para quem vem do leste de
Benghazi, para quem é de Trípoli, para quem é
nómada/tuareg, etc. A Líbia encontra-se
fragmentada em tribos, há tendências irredentistas
no leste, e existem grandes recursos financeiros mas
não há uma visão unificadora do país. As autoridades
líbias parecem estar a cometer o erro de pensar que
se atirarem dinheiro para os problemas, estes se
resolverão. Para além disso, os grupos de Benghazi,
que tiveram um enorme protagonismo na queda de
Kadhaffi, sentem que não estão suficientemente
representados nas estruturas de poder do Estado
que estão a ser criadas. Outro fator que torna a
situação mais complexa é o facto de ter sido
aprovada uma lei em que, quem estava ligado a
Kadhaffi, não podia assumir cargos públicos ou
É nesta combinação entre os problemas internos,
que são sérios e graves, e este novo fenómeno, que
são o poder das organizações criminais, que deve
residir a resposta aos problemas destes países e do
Golfo da Guiné. Com efeito, isto deve ser abordado
ao mais alto nível mas, neste momento, não se
debate profundamente nem se tem em conta estes
fatores nas organizações internacionais, e estamos a
tentar matar um cancro com uma aspirina.
Na Somália houve uma intervenção massiva e um investimento considerável, particularmente em termos de poder militar – e especialmente através de missões e contingentes da Marinha, de diversos países. Houve também investimentos importantes na própria Somália, uma vez que o fenómeno da pirataria tem origem em terra, e portanto seria necessário criar condições locais em termos de desenvolvimento e de emprego. Gastaram-se grandes montantes financeiros e a realidade é que as ações de pirataria estão hoje muito reduzidas naquela zona. No entanto, o Golfo da Guiné até agora não parece ter sido capaz de atrair o mesmo nível de atenção da parte da comunidade internacional. Para além disso, a pirataria no Golfo da Guiné constitui um desafio que ultrapassa as capacidades de resposta do continente. Enquanto não houver o mesmo empenhamento da comunidade internacional nessa zona – com presença militar, patrulhamento das águas, etc. – o problema não se resolverá.
DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL
10 IMVF DEBATES 2/2013
Sem exagerar na responsabilidade dos atores
externos, estes tiveram também um papel
importante nas formas diferentes como estas
revoluções se desenvolveram. Tanto na Tunísia como
no Egito, houve muita hesitação por parte dos
parceiros do Ocidente, sem saberem o que fazer
relativamente a antigos aliados e como gerir a queda
de Mubarak ou de Ben Ali. Já na Líbia houve uma
confrontação militar mais séria, e havia um interesse
óbvio em fazer a mudança de regime, pelo que não
houve hesitação em armar, equipar e ajudar as
forças milicianas que se levantaram contra o regime.
Agora temos o problema de gerir essas mesmas
forças e tentar controlar a situação, sem saber muito
bem como. Na Síria verifica-se também este tipo de
problemas, mas de uma forma mais alargada: quem
é que estamos a apoiar? Quem são estas forças?
Serão aqueles que depois se vão virar contra nós? O
que é que está na agenda destes grupos? É só uma
mudança de regime e depois a implementação da
democracia ou haverá uma inflexão para regimes
islamitas radicais? Há muitos cenários possíveis que
se desenham para o futuro, pelo que são naturais as
preocupações que dominaram a política americana e
dos parceiros ocidentais em relação à Síria.
trabalhar na administração do Estado; isto não só
limita a disponibilidade de recursos humanos, como
torna mais difícil a criação de estruturas inclusivas.
Foi ainda questionado o motivo de as revoltas no
Norte de África não terem alastrado à África
Subsaariana. Tal poderá estar relacionado com uma
multiplicidade de fatores, entre os quais se contam o
acesso a redes sociais – que foi fundamental para
mobilização dos jovens através da internet –, o apoio
dos atores externos, ou por exemplo o papel das
forças armadas (no caso tunisino). Em várias destas
“primaveras”, e particularmente no Egito, o que se
verificou foi um nível de desespero e/ou de
convicção que ultrapassou o receio, ou seja, as
pessoas perderam o medo a partir de determinado
momento. Muitos jovens afirmavam que, mesmo
que os militares carregassem sobre eles e alguns
deles morressem, outros jovens haveriam de vir
atrás deles, e os soldados não os poderiam matar a
todos. Este tipo de momento psicológico foi
extremamente importante para tornar a mudança
apenas uma questão de tempo, e explica a forma
como aqueles jovens permaneceram na Praça Tahir
até à queda de Mubarak.
DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL
11 IMVF DEBATES 2/2013
No entanto, se estas organizações por um lado têm a
vantagem do conhecimento intimo dos problemas
que a proximidade com os mesmos lhes dá, elas
também refletem, por outro lado, as insuficiências
estruturais dos estados membros e ainda não
conseguiram fazer que o todo fosse mais do que a
soma das partes. As parcerias com organizações das
sub-regiões não são muitas vezes fáceis, mas são
fundamentais.
É interessante falarmos sobre cooperação entre as
organizações da comunidade internacional, quando
vemos que os atores do crime organizado estão
muito mais avançados em termos de ligações e de
colaboração. Enquanto nós falamos de cooperação,
eles executam-na de forma extremamente eficaz.
Estamos constantemente a debater e a afirmar que é
preciso agir, mas o que e necessário é agir mesmo,
de forma coordenada, eficaz e clara. Se calhar é
preciso usar estes desafios como oportunidades para
impor certas dinâmicas e fazer avançar algumas
agendas que são muito queridas da comunidade
internacional, principalmente as agendas normativas
(democracia, desenvolvimento, etc.) Ao nível micro,
muitos dos fenómenos de criminalidade organizada
assentam em indivíduos e grupos que estão
descontentes e foram excluídos dos processos,
sendo estes que constituem os “exércitos” dos
agentes criminais. É preciso responder a isso, e quem
o deve fazer em primeiro lugar são as autoridades
dos próprios países. Assim, é necessário realizar
ações de cooperação, mas também no sentido de
melhorar as condições em que as pessoas vivem nos
países africanos.
As soluções para os problemas abordados passam muito por um investimento de longo prazo nas forças sociais e nas capacidades das sociedades, porque a interação entre os governos e cidadãos bem informados, organizados e responsáveis é crítica para promover o progresso almejado. Por outro lado, é também preciso promover o interesse em África e manter o continente nos radares da comunidade internacional e dos parceiros externos. Existem vários fatores que para isso contribuem, como é o caso dos interesses económicos e nos recursos naturais. Para além disso, a perceção de ameaça da “grande imigração africana para a Europa”, sendo um argumento pelo lado negativo, também pode ajudar a promover o interesse no desenvolvimento dos países africanos.
Papel das organizações internacionais
Foram debatidas algumas das falhas das
organizações internacionais, particularmente das
Nações Unidas e da União Europeia, em termos de
alerta precoce (early warning) e de identificação dos
problemas na sua profundidade e complexidade.
Com efeito, há vários mecanismos de alerta no
terreno, há embaixadas, há agentes especiais, há
colaboração entre várias organizações, há uma
presença através da ajuda ao desenvolvimento, mas
os acontecimentos no Mali e os eventos no Norte de
África foram considerados uma surpresa. Isto
significa que os mecanismos de early warning
falharam, porque não se viu o que se estava a
passar, ou porque não se deu a devida importância
aos sinais do terreno. É questionável a possibilidade
de prevenir os acontecimentos, mas pelo menos a
surpresa não deveria ter existido. É necessário
efetuar uma reflexão sobre esse falhanço, mas esta
ainda não está a ser feita.
Frequentemente, a Comunidade Internacional tende
a cometer o erro de investir em soluções militares
para problemas de natureza política. Ao adotar uma
postura militar ofensiva com mandatos robustos,
como no caso da RDC e no Mali, o ONU arrisca-se a
criar a perceção de estar a deixar de ser uma
organização principalmente preocupada com a
construção, manutenção e consolidação da paz, para
ser um instrumento de fazer a guerra. A prazo, isto
pode ter a consequência de alterar profundamente a
identidade, o lugar e o papel da organização no
mundo. Uma tal transformação deveria ser objeto de
aturado estudo e deliberação estratégica, não
apenas de decisões táticas ditadas por necessidades
imediatas.
Referiu-se também que, por vezes, a ONU é parte do
problema, a convite dos próprios responsáveis pelo
problema. Por exemplo, as autoridades malianas são
as primeiras a solicitar a força de peacekeeping/
enforcement internacional, na medida em que isso
contribui para desviar atenções e energia dos vários
atores relativamente ao processo necessário de
reformulação do Estado e de diálogo político.
As organizações regionais e sub-regionais vão
certamente ter um papel crescente nesta equação.
DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL
12 IMVF DEBATES 2/2013
2. NOTA BIOGRÁFICA About the Speaker João Bernardo Honwana, from Mozambique, is the director of the Africa II Division in the UN Department of Political Affairs since May 2012.
He has served the United Nations as director of the
Africa I Division (Southern & Eastern Africa), chief of
staff of the UN Mission in Sudan, representative of
the secretary-general and head of the UN
Peacebuilding Support Office in Guinea-Bissau
(UNOGBIS), and chief of the Conventional Arms
Branch in the Department for Disarmament Affairs
(UNODA).
Prior to joining the UN, Honwana was a senior
researcher and project coordinator at the Centre for
Conflict Resolution, University of Cape Town, South
Africa, from June 1993 to January 2000. He has also
been a fellow at the Instituto de Estudos Estratégicos
e Internacionais in Lisbon.
He participated in Mozambique’s national liberation
struggle and, after independence, served in various
capacities in the armed forces, including as
commander of the Mozambican Air Force and Air
Defence from 1986 to 1993. Honwana trained as a
fighter pilot and military aviation tactical
commander in the former Soviet Union (1977–80,
1982–83), graduated from the UK Royal College of
Defence Studies (1990), and holds an MA in war
studies (1992) from Kings College, London.
Instituto Marquês de Valle Flôr Rua de São Nicolau, 105 1100-548 Lisboa Portugal Tel.: + 351 213 256 300 Fax: + 351 213 471 904 E-mail: [email protected] www.imvf.org
SOBRE O IMVF O Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) é uma fundação de direito privado e uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) que realiza ações de ajuda humanitária, de cooperação e educação para o desenvolvimento económico, cultural e social, realiza estudos e trabalhos científicos nos vários domínios do conhecimento, bem como fomenta e divulga a cultura dos países de expressão oficial portuguesa.
ABOUT IMVF Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) is a private foundation and a Non-Governmental Development Organization (NGDO) that carries out humanitarian aid and economic, cultural and social development cooperation and education. It also conducts studies and produces scientific papers on several fields of knowledge, and promotes and disseminates the culture of countries whose official language is Portuguese.