imvf debates 2/2013 - preocupações de segurança nas Áfricas ocidental, central e oriental

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PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL 1 IMVF DEBATES 2/2013 PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA Nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental João Bernardo Honwana Mesa Redonda, 26 de junho de 2013 Debates 2/2013

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IMVF Debates 2/2013 - Preocupações de Segurança nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental - João Bernardo Honwana A falta de consolidação das Nações em África e a persistência de contextos políticos marcados pela corrupção, pela interferência dos militares no domínio político e por uma governação pouco inclusiva, são alguns dos problemas comuns a vários países africanos. Neste contexto, alguns eventos que aparecem aos olhos da comunidade internacional como surpresas são, na realidade, manifestações de processos internos que se desenrolam internamente há já algum tempo. São aqui referidos alguns desafios que se colocam a várias regiões e países africanos, nomeadamente o controlo de rotas comerciais por redes de criminalidade organizada no Sahel, as diferenças de evolução nas chamadas Primaveras Árabes, os fatores de instabilidade na África do Sul, ou as implicações do boom dos recursos no continente africano.

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Page 1: IMVF Debates 2/2013 - Preocupações de Segurança nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental

PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL

1 IMVF DEBATES 2/2013

PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA Nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental

João Bernardo Honwana

Mesa Redonda, 26 de junho de 2013

Debates 2/2013

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PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL

2 IMVF DEBATES 2/2013

Abstract

The lack of consolidation of African Nations and the prevalence of political contexts underpinned by corruption, military interference in the political sphere and weak inclusive governance, are some of the problems shared by several African countries. In this context, events that may appear to the eyes of the international community as surprises are indeed manifestations of internal processes that are evolving for some time. Some of the challenges posed to African countries and regions are mentioned, namely the control of trade routes by organised crime networks in the Sahel, the different evolution of the so-called Arab Springs, the instability factors in South Africa, and the implications of the current boom of resources in the African continent. The debates also focused on the role of international organisations in these contexts.

A falta de consolidação das Nações em África e a persistência de contextos políticos marcados pela corrupção, pela interferência dos militares no domínio político e por uma governação pouco inclusiva, são alguns dos problemas comuns a vários países africanos. Neste contexto, alguns eventos que aparecem aos olhos da comunidade internacional como surpresas são, na realidade, manifestações de processos internos que se desenrolam internamente há já algum tempo. São aqui referidos alguns desafios que se colocam a várias regiões e países africanos, nomeadamente o controlo de rotas comerciais por redes de criminalidade organizada no Sahel, as diferenças de evolução nas chamadas Primaveras Árabes, os fatores de instabilidade na África do Sul, ou as implicações do boom dos recursos no continente africano. Os debates tiveram também como pano de fundo o papel das organizações internacionais nestes contextos.

Keywords: Africa, Security, State Fragility, Arab Spring, Sahel region

Palavras-Chave: África, Segurança, Fragilidade do Estado, Primavera Árabe, região do Sahel

SOBRE A PUBLICAÇÃO

Esta publicação deve ser citada como: IMVF (2013); Preocupações de Segurança nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental. Mesa redonda realizada em 26 de junho de 2013 com João Bernardo Honwana, IMVF Debates 2/2013, Lisboa.

Pode copiar, fazer download ou imprimir o conteúdo desta publicação [recomendamos a utilização de papel reciclado ou certificado] . Pode incluir trechos desta publicação nos seus documentos, apresentações, blogs e websites desde que a fonte seja mencionada.

A edição dos conteúdos foi feita por Patrícia Magalhães Ferreira. O conteúdo desta publicação é da exclusiva responsabilidade do editor.

Esta publicação é resultado de uma colaboração entre o Instituto Marquês de Valle Flor, a Fundação AIP, o EuroDefense-Portugal

e a AFCEA-Portugal, no quadro do Ciclo de mesas redondas dedicadas ao tema “Estratégia e Segurança vs. Internacionalização e

Investimento”. Esta série de debates tem como objetivo aprofundar o conhecimento e a reflexão sobre várias dinâmicas políticas

e de segurança que condicionam as decisões de investimento e a internacionalização da economia portuguesa.

Saiba mais sobre o IMVF em www.imvf.org

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PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL

3 IMVF DEBATES 2/2013

ÍNDICE

1. RESUMO DA MESA REDONDA 4

2. NOTA BIOGRÁFICA 12

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PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL

4 IMVF DEBATES 2/2013

1. RESUMO DA MESA REDONDA

Na intervenção inicial, o orador traçou os principais

desafios que se colocam a África no âmbito das

dinâmicas políticas e de segurança em vários países

e regiões do continente.

O enfoque principal foi na região do Sahel, cuja

definição é objeto de grande debate uma vez que

não existe consenso sobre qual a sua abrangência

geográfica e os países que a compõem. Assim, cada

organização ou agência internacional poderá ter

uma definição diferente da região, considerando-se

neste caso que o Sahel é toda a faixa entre a costa

ocidental e oriental africana, que forma um corredor

quase ininterrupto do Atlântico ao Mar Vermelho,

em que o Saara e as terras mais férteis a Sul se

encontram. É uma região onde se verificam não

apenas semelhanças geográficas ou físicas, mas

também em termos de composição populacional e

económica. Na análise feita pelo orador, o Sahel foi

utilizado para caracterizar o tipo de desafios de

estabilidade que se colocam aos países africanos,

uma vez que concentra em si muitos dos desafios

políticos, demográficos e outros que são comuns a

vários países africanos

No geral, a região é caracterizada por Estados

frágeis, onde as nações não estão consolidadas. São

países com poucos recursos humanos, financeiros e

logísticos, a que acresce o flagelo da corrupção, o

que se reflete numa incapacidade de dar resposta

aos anseios e às necessidades básicas das

populações, originando descontentamento e

instabilidades que se manifestam amiúde de forma

mais violenta. As tendências recentes têm mostrado

um ressurgimento dos golpes militares e alterações

inconstitucionais de governo (Mali, Guiné-Bissau) e

uma grande interferência das forças armadas nos

processos políticos.

Com efeito, a ausência de Nações consolidadas e um

contexto político marcado pela corrupção, pela

interferência dos militares no domínio político e por

processos pouco inclusivos de governação, em que a

luta política se transforma na luta pela

sobrevivência, são alguns dos problemas comuns a

vários países africanos. Neste quadro, as forças

políticas tendem a ser muitas vezes forças

desagregadoras a Nação e não agregadoras ou

integradoras como seria expectável. As elites

políticas utilizam os instrumentos democráticos –

como a realização de eleições – para perpetuar o seu

jugo e como ferramentas e exclusão e de acesso ao

poder. Muitas vezes, o acesso ao poder é a única

forma de acumulação e alguns recursos. Isto significa

que prevalece uma perspetiva de “winner takes it

all” e a esfera política tende a refletir divisões

regionais, étnicas ou outras, não se verificando

grande experiência nem apetite para formais mais

inclusivas de governação.

Neste contexto, a política transforma-se num jogo

de aparências e o discurso formal perante a

Comunidade Internacional aponta para uma retórica

de construção de democracias estáveis e sólidas,

enquanto na realidade há outras dinâmicas em

curso. No fundo, é a democracia esvaziada do seu

conteúdo, tornando-se num vazio de aparências.

Assim, processos que aparecem aos olhos da

comunidade internacional como uma surpresa,

como o caso do Mali (considerado até um exemplo

de democracia no continente), são manifestações de

situações insustentáveis já existentes e reconhecidas

internamente há algum tempo.

Na zona geopolítica do Sahel, salienta-se também o

domínio das rotas comerciais pela criminalidade

organizada, em que o extremismo, o terrorismo ou a

classificação como “jihadistas” acaba por ser útil

para certos grupos, na medida em que lhes dá

acesso aos financiamentos de que beneficiam os que

efetivamente promovem essa agenda. Antigos

comerciantes de mercadorias ou contrabandistas

são agora apelidados de terroristas.

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PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL

5 IMVF DEBATES 2/2013

Frequentemente, para as autoridades tal

classificação também é útil, na medida em que

podem dizer que a insegurança não se baseia num

conflito interno, mas antes faz parte da luta

internacional contra o terrorismo.

Há, assim, uma aliança de interesses significativos

que transformam grupos de criminosos em

criminosos políticos; e alguns deles transformam-se

mesmo. Não quer isto dizer que não exista um

núcleo duro de jihadistas, mas a maior parte destes

nem sequer é originário da região. Muitos vêm do

Afeganistão ou Paquistão, com tecnologia, treino e

ideologia, sendo que os grupos mais puristas não se

ocupam de atividades de tráfico. Outros são mais

flexíveis, ou seja, defendem que são jihadistas mas

que precisam de sobreviver. Depois existem também

os comerciantes que são jihadistas quando lhes

convém.

Os governos do Mali, do Níger ou da Mauritânia não

têm meios para impedir estes movimentos, desde

logo porque não possuem recursos ou orçamentos

suficientes para contrabalançar os montantes

financeiros que este tipo de atividades envolve. Estas

dinâmicas estão também ligadas a rápidas

transformações ao nível cultural e identitário em

vários destes países, uma vez que a nova geração

consegue gerar mais rendimento pelo recurso a

atividades criminosas ou a fornecer serviços diversos

a esses grupos criminosos, do que os seus

progenitores que se dedicam a atividades

tradicionais. O aspeto financeiro é muito importante

e deteriora a hierarquia familiar vigente, já que, por

exemplo, uma viagem de proteção aos traficantes

pode render mais do que um ano inteiro de trabalho.

Do ponto de vista de alguns líderes comunitários,

esta situação está a acabar com a cultura local. É

uma transformação que está a acontecer num

período de alguns anos e que enfraquece o principal

recurso destas sociedades: o recurso humano. Isto

levanta questões de disrupção familiar, mas também

de mudanças rápidas no plano cultural e das

identidades das comunidades.

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PREOCUPAÇÕES DE SEGURANÇA NAS ÁFRICAS OCIDENTAL, CENTRAL E ORIENTAL

6 IMVF DEBATES 2/2013

As previsões para o futuro não são animadoras, uma

vez que acrescem outros fatores demográficos e

ambientais, em que a explosão populacional está

associada a grandes carências alimentares. Prevê-se

que a população do Sahel mais que duplique nos

próximos 25 anos, enquanto há uma descida da

capacidade de produção de alimentos e o avanço do

deserto para sul, em resultado das alterações

climáticas. Tal origina pressão sobre as terras

produtivas e choques entre populações nómadas e

sedentárias. Com a desertificação e a falta de inputs

produtivos, se nada mudar na configuração da região

o problema no futuro será gigante.

A falta de consolidação nacional é um problema

comum a quase todos os países africanos, sendo

evidente em países com grande peso populacional e

considerados gigantes do continente, como é o caso

da Nigéria ou da África do Sul. Nesta, a ideia de

“rainbow nation” surgiu como ideia que caracteriza

o país, mas a integração de vários grupos continua

por resolver. Já Mbeki falava da existência de duas

realidades distintas - uma África do Sul branca, rica e

influente, e uma África do Sul pobre e negra - que

era necessário aproximar.

Outro problema é o facto de grande parte da

população que deveria ser ativa estar

desempregada. Existe um amplo exército de jovens

desempregados, sem oportunidades e sem

perspetivas, numa economia que está mais

modernizada e que tem cada vez mais necessidades

em termos de tecnologia e de competências, às

quais estes jovens não conseguem corresponder.

Estas são grandes interrogações comuns também a

outros países africanos, onde representam

constrangimentos às possibilidades de crescimento

económico e desenvolvimento humano. No caso da

África do Sul, em que Mandela é uma âncora na

sociedade sul-africana, a preocupação é acrescida,

na medida em que um eventual descarrilamento

coloca em causa todos os outros países da região,

muito dependentes da África do Sul em termos

económicos e de investimento.

Existem alguns países no continente que optaram por seguir uma trajetória de desenvolvimento muito própria – como a Etiópia ou o Ruanda,

caracterizados como “Estados Desenvolvimentistas”

– em que as elites no poder se concentraram em

fazer crescer a economia e ampliar a classe média,

com pouca atenção às liberdades individuais, aos

direitos democráticos e aos direitos humanos. As

elites afirmam a necessidade de garantir que as

pessoas comem, que as crianças vão para a escola e

que há crescimento económico, assegurando as

necessidades básicas e essenciais das populações. De

facto, na Etiópia, as grandes crises de fome com um

caráter cíclico, que nos invadiam com imagens

terríveis todos os anos, desapareceram. Os

dirigentes etíopes afirmam que esse é o seu mérito:

ter salvo milhões de vidas e transformado esta

situação numa situação irreversível. Quanto à

questão da democracia, exprime-se a ideia de que

esta chegará um dia, quando as pessoas já não

morrerem de fome e quando existir uma classe

média pujante. Este é um debate interessante, ou

seja, de saber o que deve vir primeiro, em que

medida os processos devem ser sequenciais ou

simultâneos.

Com base nessa ideia da importância de manter as

populações vivas e alimentadas, até há bem pouco

tempo parecia que tudo seria permitido ao regime

ruandês, desde prisões arbitrárias a excessos

diversos do regime, em que eram destruídas todas

as contestações ao seu poder. No entanto, a atitude

dos parceiros internacionais está a mudar e os

excessos do sistema político começam a ser

escrutinados, com a agenda democratizante a vir ao

de cima. Mas por outro lado, é inegável que Kigali é

uma das cidades mais agradáveis do continente,

uma cidade limpa e onde os transportes públicos,

bancos e serviços funcionam eficazmente, e onde

não se observa uma corrupção generalizada. Se

Kigali reflete a realidade mais geral do país, então há

que reconhecer um certo mérito na forma como o

regime esta a gerir e a transformar o país, sem

desculpar o escasso espaço democrático. É difícil

prever o que o futuro reserva para estes países,

podendo haver em alguns casos um processo de

avanços e recuos.

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DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL

7 IMVF DEBATES 2/2013

No contexto continental, o otimismo gerado em torno de África nos últimos anos deriva, em grande parte, do boom dos recursos. Há uma tendência de pensar que os problemas vão ser resolvidos porque há recursos – como o petróleo e o carvão - e dinheiro. Moçambique é um dos exemplos, onde se fala muito no bom ambiente para os negócios. No entanto, levanta-se a questão essencial da forma como se gerem esses recursos naturais, quem deles beneficia e como são utilizadas as receitas desses recursos.

A História demonstrou que muitos desses proveitos

saíram de África e pouco foi aproveitado em termos

internos. A riqueza verdadeira não chegou à maioria

da população. Este é um risco real que vários países

africanos correm. Para além disso, muitos dos

investimentos nos recuros naturais e em termos

industriais, que até utilizam e transferem tecnologias

avançadas para os países africanos, não se refletem

na geração de emprego (p.ex. indústria de alumínio

em Moçambique). Outros geram problemas

ambientais. Estamos atualmente a viver uma

oportunidade única, uma vez que o interesse pelos

recursos naturais se renovou e a capacidade de

África atrair conhecimento nunca foi tão grande,

mas há também uma grande responsabilidade que

recai sobre as elites africanas.

Por um lado, são necessárias lideranças internas

comprometidas com o futuro dos seus países, que

centrem as suas ações numa visão de longo prazo e

em prol das suas populações. Se a transformação

não chegar à maioria da população e se não

surgirem lideranças visionárias e inspiradores que

implementem essa visão, o futuro de África pode

estar comprometido.

Por outro lado, também os parceiros de África têm responsabilidades, uma vez que temos de analisar como é que os parceiros internacionais/externos se têm envolvido no continente. Tem sido mais numa perspetiva de ajudas e financiamentos a curto-prazo (o que é perfeitamente legítimo e legal no contexto dos quadros legais vigentes), ou com uma visão mais de longo-prazo, em que há uma vontade de transformar o continente e o potencial existente numa realidade sustentável? Queremos que África seja não apenas o sítio onde vamos buscar os recursos ou queremos que seja um parceiro para o futuro? Assim, os parceiros internacionais não deverão olhar o continente apenas na ótica de comércio ou de extração de recursos naturais, mas investir nas infraestruturas, nas indústrias, na criação de emprego e no capital humano, de forma a reforçar capacidades e implementar estratégias de longo prazo.

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DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL

8 IMVF DEBATES 2/2013

Na Guiné-Bissau, à semelhança de outros países, o

problema da qualidade da liderança política exige

um processo de diálogo inclusivo e extensivo à

sociedade. Neste âmbito, foi colocada uma questão

sobre as vantagens e desvantagens dos governos

denominados de inclusivos, por oposição à

realização de eleições, mas ambos têm problemas.

Frequentemente, em África, os governos de unidade

nacional ou de partilha de poder também significam

a distribuição dos recursos e do poder no seio de

uma pequena elite.

No caso da Guiné-Bissau, da Serra Leoa ou da Guiné-

Conakri, as dinâmicas internas, que são complexas,

são ainda agravadas pela influência do tráfico de

droga, na medida em que estes países são portas de

entrada.

Estes negócios – de tráficos diversos, pirataria,

comércio ilegal - movimentam grandes montantes

financeiros, que não conseguem ser

contrabalançados pelos orçamentos dos governos

dos países africanos ou pelo apoio dos doadores. O

que as Nações Unidas podem trazer em termos de

programas de desenvolvimento, ou a União Europeia

com a ajuda ao orçamento, não se compara aos

montantes em termos de volume a valor das drogas

que transitam através do Sahel e da África Ocidental,

desde a América Latina até à Europa. De acordo com

a análise de agências especializadas, a influência que

as redes regionais de trafico tem é

incomparavelmente maior do que a intervenção e o

interesse da comunidade internacional na zona.

Estas redes da droga exercem uma influência

considerável nos círculos de poder politico e militar

na região, nomeadamente na Nigéria. Isto pode

explicar, segundo algumas fontes, a resistência que

se verifica a restruturação das forcas de defesa e

segurança na Guiné-Bissau, o golpe de Março de

2012 e as dinâmicas que se lhe seguiram. Este

argumento carece de verificação, mas é um dos

fatores apontados por algumas pessoas, quando se

debate esta situação.

Durante o debate, foram abordadas com maior

detalhe algumas questões específicas, aqui

resumidas em três grupos:

Guiné-Bissau e Golfo da Guiné

Os problemas na Guiné-Bissau estão, em parte,

ligados a um confronto entre elites urbanas e mundo

rural. Em Bissau existe um pouco de emprego, um

pouco de riqueza e negócios, e é onde se desenrola a

luta política, existindo uma dissociação em que o

resto do país é largamente ignorado pelas elites

urbanas. Os Balanta representam este sentido de

alienação e exclusão do mundo rural, no sentido em

que os Balanta das zonas rurais sentem que foram os

que mais se sacrificaram na luta de libertação

nacional e que não há investimento nessas zonas,

nem em termos de educação e saúde, nem de

infraestruturas, estando a riqueza concentrada em

Bissau. Sentem, assim, que pagaram o preço mais

elevado pela libertação do país, mas que não viram a

sua situação melhorar desde então, ao contrário das

elites urbanas que tiraram benefícios dessa situação.

Assim, usam o facto de terem armas e estarem

presentes nas forças armadas para “se sentarem à

mesa onde os outros comem” (a elite política). Esta

pode ser uma visão simplista da realidade, mas é

uma visão sentida e partilhada por alguns grupos

Balanta na Guiné-Bissau.

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DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL

9 IMVF DEBATES 2/2013

“Primaveras Árabes”

Foram abordadas algumas diferenças nos países que

passam atualmente pelas chamadas “Primaveras

Árabes”, incluindo o Egito, a Tunísia e a Líbia, uma

vez que cada contexto é muito particular.

No Egito, não se coloca tanto a questão de

consolidação da Nação, mas é antes uma questão

mais ideológica. Mesmo que se verifiquem tensões

entre a maioria muçulmana e os cristãos, e mesmo

dentro da maioria muçulmana, o que assistimos é

uma luta pelo poder entre as tendências islamitas e

as forças secularistas. Na Tunísia, verificam-se

tensões muito significativas entre tendências mais

conservadoras, que assumem aspetos religiosos, e

aquilo que se denominava de um excessivo

liberalismo e ocidentalização da Tunísia por parte de

Ben-Ali. O facto de o regime ser corrupto fez com

que o liberalismo e a ocidentalização fossem quase

automaticamente associados à corrupção, o que deu

ainda mais força aos setores mais conservadores da

sociedade tunisina.

Na Líbia não há Estado, na medida em que Kadhaffi

destruiu o Estado através da personalização do

poder e este passou a ser identificado com um

pequeno grupo de pessoas. Não é portanto uma

questão de reconstrução ou reconstituição, mas sim

de aprender a construir e consolidar um Estado, o

que torna o desafio mais complicado. Ser líbio tem

significados diferentes para quem vem do leste de

Benghazi, para quem é de Trípoli, para quem é

nómada/tuareg, etc. A Líbia encontra-se

fragmentada em tribos, há tendências irredentistas

no leste, e existem grandes recursos financeiros mas

não há uma visão unificadora do país. As autoridades

líbias parecem estar a cometer o erro de pensar que

se atirarem dinheiro para os problemas, estes se

resolverão. Para além disso, os grupos de Benghazi,

que tiveram um enorme protagonismo na queda de

Kadhaffi, sentem que não estão suficientemente

representados nas estruturas de poder do Estado

que estão a ser criadas. Outro fator que torna a

situação mais complexa é o facto de ter sido

aprovada uma lei em que, quem estava ligado a

Kadhaffi, não podia assumir cargos públicos ou

É nesta combinação entre os problemas internos,

que são sérios e graves, e este novo fenómeno, que

são o poder das organizações criminais, que deve

residir a resposta aos problemas destes países e do

Golfo da Guiné. Com efeito, isto deve ser abordado

ao mais alto nível mas, neste momento, não se

debate profundamente nem se tem em conta estes

fatores nas organizações internacionais, e estamos a

tentar matar um cancro com uma aspirina.

Na Somália houve uma intervenção massiva e um investimento considerável, particularmente em termos de poder militar – e especialmente através de missões e contingentes da Marinha, de diversos países. Houve também investimentos importantes na própria Somália, uma vez que o fenómeno da pirataria tem origem em terra, e portanto seria necessário criar condições locais em termos de desenvolvimento e de emprego. Gastaram-se grandes montantes financeiros e a realidade é que as ações de pirataria estão hoje muito reduzidas naquela zona. No entanto, o Golfo da Guiné até agora não parece ter sido capaz de atrair o mesmo nível de atenção da parte da comunidade internacional. Para além disso, a pirataria no Golfo da Guiné constitui um desafio que ultrapassa as capacidades de resposta do continente. Enquanto não houver o mesmo empenhamento da comunidade internacional nessa zona – com presença militar, patrulhamento das águas, etc. – o problema não se resolverá.

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DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL

10 IMVF DEBATES 2/2013

Sem exagerar na responsabilidade dos atores

externos, estes tiveram também um papel

importante nas formas diferentes como estas

revoluções se desenvolveram. Tanto na Tunísia como

no Egito, houve muita hesitação por parte dos

parceiros do Ocidente, sem saberem o que fazer

relativamente a antigos aliados e como gerir a queda

de Mubarak ou de Ben Ali. Já na Líbia houve uma

confrontação militar mais séria, e havia um interesse

óbvio em fazer a mudança de regime, pelo que não

houve hesitação em armar, equipar e ajudar as

forças milicianas que se levantaram contra o regime.

Agora temos o problema de gerir essas mesmas

forças e tentar controlar a situação, sem saber muito

bem como. Na Síria verifica-se também este tipo de

problemas, mas de uma forma mais alargada: quem

é que estamos a apoiar? Quem são estas forças?

Serão aqueles que depois se vão virar contra nós? O

que é que está na agenda destes grupos? É só uma

mudança de regime e depois a implementação da

democracia ou haverá uma inflexão para regimes

islamitas radicais? Há muitos cenários possíveis que

se desenham para o futuro, pelo que são naturais as

preocupações que dominaram a política americana e

dos parceiros ocidentais em relação à Síria.

trabalhar na administração do Estado; isto não só

limita a disponibilidade de recursos humanos, como

torna mais difícil a criação de estruturas inclusivas.

Foi ainda questionado o motivo de as revoltas no

Norte de África não terem alastrado à África

Subsaariana. Tal poderá estar relacionado com uma

multiplicidade de fatores, entre os quais se contam o

acesso a redes sociais – que foi fundamental para

mobilização dos jovens através da internet –, o apoio

dos atores externos, ou por exemplo o papel das

forças armadas (no caso tunisino). Em várias destas

“primaveras”, e particularmente no Egito, o que se

verificou foi um nível de desespero e/ou de

convicção que ultrapassou o receio, ou seja, as

pessoas perderam o medo a partir de determinado

momento. Muitos jovens afirmavam que, mesmo

que os militares carregassem sobre eles e alguns

deles morressem, outros jovens haveriam de vir

atrás deles, e os soldados não os poderiam matar a

todos. Este tipo de momento psicológico foi

extremamente importante para tornar a mudança

apenas uma questão de tempo, e explica a forma

como aqueles jovens permaneceram na Praça Tahir

até à queda de Mubarak.

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DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL

11 IMVF DEBATES 2/2013

No entanto, se estas organizações por um lado têm a

vantagem do conhecimento intimo dos problemas

que a proximidade com os mesmos lhes dá, elas

também refletem, por outro lado, as insuficiências

estruturais dos estados membros e ainda não

conseguiram fazer que o todo fosse mais do que a

soma das partes. As parcerias com organizações das

sub-regiões não são muitas vezes fáceis, mas são

fundamentais.

É interessante falarmos sobre cooperação entre as

organizações da comunidade internacional, quando

vemos que os atores do crime organizado estão

muito mais avançados em termos de ligações e de

colaboração. Enquanto nós falamos de cooperação,

eles executam-na de forma extremamente eficaz.

Estamos constantemente a debater e a afirmar que é

preciso agir, mas o que e necessário é agir mesmo,

de forma coordenada, eficaz e clara. Se calhar é

preciso usar estes desafios como oportunidades para

impor certas dinâmicas e fazer avançar algumas

agendas que são muito queridas da comunidade

internacional, principalmente as agendas normativas

(democracia, desenvolvimento, etc.) Ao nível micro,

muitos dos fenómenos de criminalidade organizada

assentam em indivíduos e grupos que estão

descontentes e foram excluídos dos processos,

sendo estes que constituem os “exércitos” dos

agentes criminais. É preciso responder a isso, e quem

o deve fazer em primeiro lugar são as autoridades

dos próprios países. Assim, é necessário realizar

ações de cooperação, mas também no sentido de

melhorar as condições em que as pessoas vivem nos

países africanos.

As soluções para os problemas abordados passam muito por um investimento de longo prazo nas forças sociais e nas capacidades das sociedades, porque a interação entre os governos e cidadãos bem informados, organizados e responsáveis é crítica para promover o progresso almejado. Por outro lado, é também preciso promover o interesse em África e manter o continente nos radares da comunidade internacional e dos parceiros externos. Existem vários fatores que para isso contribuem, como é o caso dos interesses económicos e nos recursos naturais. Para além disso, a perceção de ameaça da “grande imigração africana para a Europa”, sendo um argumento pelo lado negativo, também pode ajudar a promover o interesse no desenvolvimento dos países africanos.

Papel das organizações internacionais

Foram debatidas algumas das falhas das

organizações internacionais, particularmente das

Nações Unidas e da União Europeia, em termos de

alerta precoce (early warning) e de identificação dos

problemas na sua profundidade e complexidade.

Com efeito, há vários mecanismos de alerta no

terreno, há embaixadas, há agentes especiais, há

colaboração entre várias organizações, há uma

presença através da ajuda ao desenvolvimento, mas

os acontecimentos no Mali e os eventos no Norte de

África foram considerados uma surpresa. Isto

significa que os mecanismos de early warning

falharam, porque não se viu o que se estava a

passar, ou porque não se deu a devida importância

aos sinais do terreno. É questionável a possibilidade

de prevenir os acontecimentos, mas pelo menos a

surpresa não deveria ter existido. É necessário

efetuar uma reflexão sobre esse falhanço, mas esta

ainda não está a ser feita.

Frequentemente, a Comunidade Internacional tende

a cometer o erro de investir em soluções militares

para problemas de natureza política. Ao adotar uma

postura militar ofensiva com mandatos robustos,

como no caso da RDC e no Mali, o ONU arrisca-se a

criar a perceção de estar a deixar de ser uma

organização principalmente preocupada com a

construção, manutenção e consolidação da paz, para

ser um instrumento de fazer a guerra. A prazo, isto

pode ter a consequência de alterar profundamente a

identidade, o lugar e o papel da organização no

mundo. Uma tal transformação deveria ser objeto de

aturado estudo e deliberação estratégica, não

apenas de decisões táticas ditadas por necessidades

imediatas.

Referiu-se também que, por vezes, a ONU é parte do

problema, a convite dos próprios responsáveis pelo

problema. Por exemplo, as autoridades malianas são

as primeiras a solicitar a força de peacekeeping/

enforcement internacional, na medida em que isso

contribui para desviar atenções e energia dos vários

atores relativamente ao processo necessário de

reformulação do Estado e de diálogo político.

As organizações regionais e sub-regionais vão

certamente ter um papel crescente nesta equação.

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DINÂMICAS POLÍTICAS E MILITARES NO SAHEL

12 IMVF DEBATES 2/2013

2. NOTA BIOGRÁFICA About the Speaker João Bernardo Honwana, from Mozambique, is the director of the Africa II Division in the UN Department of Political Affairs since May 2012.

He has served the United Nations as director of the

Africa I Division (Southern & Eastern Africa), chief of

staff of the UN Mission in Sudan, representative of

the secretary-general and head of the UN

Peacebuilding Support Office in Guinea-Bissau

(UNOGBIS), and chief of the Conventional Arms

Branch in the Department for Disarmament Affairs

(UNODA).

Prior to joining the UN, Honwana was a senior

researcher and project coordinator at the Centre for

Conflict Resolution, University of Cape Town, South

Africa, from June 1993 to January 2000. He has also

been a fellow at the Instituto de Estudos Estratégicos

e Internacionais in Lisbon.

He participated in Mozambique’s national liberation

struggle and, after independence, served in various

capacities in the armed forces, including as

commander of the Mozambican Air Force and Air

Defence from 1986 to 1993. Honwana trained as a

fighter pilot and military aviation tactical

commander in the former Soviet Union (1977–80,

1982–83), graduated from the UK Royal College of

Defence Studies (1990), and holds an MA in war

studies (1992) from Kings College, London.

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SOBRE O IMVF O Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) é uma fundação de direito privado e uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) que realiza ações de ajuda humanitária, de cooperação e educação para o desenvolvimento económico, cultural e social, realiza estudos e trabalhos científicos nos vários domínios do conhecimento, bem como fomenta e divulga a cultura dos países de expressão oficial portuguesa.

ABOUT IMVF Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) is a private foundation and a Non-Governmental Development Organization (NGDO) that carries out humanitarian aid and economic, cultural and social development cooperation and education. It also conducts studies and produces scientific papers on several fields of knowledge, and promotes and disseminates the culture of countries whose official language is Portuguese.