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IMMANUEL KANT E A EDUCAÇÃO MORAL: CUIDAR, DISCIPLINAR E INSTRUIR Tércio Inácio Jung 1 Resumo Kant, no livro Sobre a Pedagogia, apresenta a educação como um processo, que inicia com o cuidado na infância, a disciplina na adolescência e a instrução na juventude e vida adulta: 1. na infância a criança precisa apenas ser cuidada, pois a natureza agirá por conta própria fazendo com que o infante se desenvolva até um determinado ponto, quando será necessário uma intervenção maior do adulto; 2. a segunda etapa é caracterizada pela disciplina, isto é, se o adolescente ficar a mercê de suas vontades, provavelmente desenvolverá um caráter vicioso, preocupado apenas em satisfazer seus caprichos egoístas, o que comprometerá o amadurecimento moral, dificultando a vida em sociedade; 3. a terceira etapa é a instrução. Através dessa, Kant quer abarcar o que ele considera como educação positiva, ou seja, enquanto as etapas anteriores tratavam da educação negativa, assim conceituada por tratar da selvageria no homem que precisa ser dominada para que ele progrida até a humanidade, a positiva diz respeito à questão da cultura, isto é, aquilo que deverá ser construído a partir do desenvolvimento da razão. Inclusive, a razão desenvolvida é o pressuposto fundamental para a moralização do homem. Apesar de dedicar poucas páginas ao estágio da disciplina, nota-se claramente sua fundamental importância para passar do cuidado à instrução, ou seja, sem disciplina torna-se muito dificil a moralização das pessoas. 1. Immanuel kant e a educação moral: cuidar, disciplinar e instruir Kant, no escrito Sobre a Pedagogia, distingue o homem do animal. Enquanto o animal nasce predestinado instintivamente, o homem pode criar seu destino através do uso da razão, que por sua vez, precisa ser desenvolvida. Segundo Pinheiro, a passagem da animalidade para a humanidade situa-se em nós mesmos, implicando no estabelecimento de princípios bons, disciplinar nossas tentações e, 1 [email protected] IESA Santo Ângelo / RS

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IMMANUEL KANT E A EDUCAÇÃO MORAL: CUIDAR, DISCIPLINAR E

INSTRUIR

Tércio Inácio Jung1

Resumo

Kant, no livro Sobre a Pedagogia, apresenta a educação como um processo, que

inicia com o cuidado na infância, a disciplina na adolescência e a instrução na juventude e

vida adulta: 1. na infância a criança precisa apenas ser cuidada, pois a natureza agirá por

conta própria fazendo com que o infante se desenvolva até um determinado ponto, quando

será necessário uma intervenção maior do adulto; 2. a segunda etapa é caracterizada pela

disciplina, isto é, se o adolescente ficar a mercê de suas vontades, provavelmente

desenvolverá um caráter vicioso, preocupado apenas em satisfazer seus caprichos egoístas, o

que comprometerá o amadurecimento moral, dificultando a vida em sociedade; 3. a terceira

etapa é a instrução. Através dessa, Kant quer abarcar o que ele considera como educação

positiva, ou seja, enquanto as etapas anteriores tratavam da educação negativa, assim

conceituada por tratar da selvageria no homem que precisa ser dominada para que ele

progrida até a humanidade, a positiva diz respeito à questão da cultura, isto é, aquilo que

deverá ser construído a partir do desenvolvimento da razão. Inclusive, a razão desenvolvida é

o pressuposto fundamental para a moralização do homem. Apesar de dedicar poucas páginas

ao estágio da disciplina, nota-se claramente sua fundamental importância para passar do

cuidado à instrução, ou seja, sem disciplina torna-se muito dificil a moralização das pessoas.

1. Immanuel kant e a educação moral: cuidar, disciplinar e instruir

Kant, no escrito Sobre a Pedagogia, distingue o homem do animal. Enquanto o

animal nasce predestinado instintivamente, o homem pode criar seu destino através do uso da

razão, que por sua vez, precisa ser desenvolvida.

Segundo Pinheiro, a passagem da animalidade para a humanidade situa-se em nós

mesmos, implicando no estabelecimento de princípios bons, disciplinar nossas tentações e,

1 [email protected] – IESA – Santo Ângelo / RS

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sobretudo, desenvolver a razão para que essa atue sobre nossos instintos (PINHEIRO, 2003,

p.139); entretanto, Eidam procura deixar claro que a razão não é simplesmente uma

substituição do instinto, pois aquela é superior qualitativamente. Através da razão própria ele

pode determinar o que é, o que faz de si e o que ainda fará de si, isso evidencia sua posição

particular em relação aos outros seres naturais (EIDAM, 2005, p.105).

Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a

ele tornou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o homem tem

necessidade de sua própria razão [...] e precisa formar por si mesmo o projeto de sua

conduta (Kant, 2006, p.12).

“Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber. O homem, pelo

contrário, é obrigado a tentar conseguir o seu fim” (Kant, 2006, p.18). Fim esse que não é a

morte ou uma velhice feliz, mas é o fim de toda espécie humana: o desenvolvimento das

disposições naturais para alcançar a perfeição da natureza humana.

Na obra Idéias de uma História de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant se propõe a

descobrir um propósito da natureza, um fio condutor para a história de um determinado plano

da natureza (fim).

A natureza não faz verdadeiramente nada supérfluo e não é perdulária no uso dos

meios para atingir seus fins. Tendo dado ao homem a razão e a liberdade da vontade

que nela se funda, a natureza forneceu um claro indício de seu propósito quanto à

maneira de dotá-lo. Ele não deveria ser guiado pelo instinto, ou ser provido e

ensinado pelo conhecimento inato; ele deveria, antes, tirar tudo de si mesmo

(KANT, 2004, p.6).

Evidencia-se, pois, a importância e a necessidade da educação no processo de

desenvolvimento da razão, já que é através do uso da razão (e não de maneira instintiva) que o

homem pode e deve formar o projeto de sua conduta: “O homem não pode se tornar um

verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz” (KANT, 2006,

p.15).

No livro Sobre a Pedagogia ele apresenta a educação como um processo, dividindo-

a, primeiramente, em cuidado e formação. Esta última, ainda é separada em disciplina e

instrução: “Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a

disciplina e a instrução com a formação” ( KANT, 2006, p.11).

O cuidado pode ser entendido como a primeira etapa e estágio da educação, na fase

inicial da vida, ou seja, enquanto criança (infante), ela requer cuidados: “Por cuidados

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entendem-se as precauções que os pais tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo

de suas forças” ( KANT, 2006, p.11). O cuidado com a criança faz parte do desenvolvimento

natural e acontece basicamente, no primeiro estágio da vida humana.

A segunda etapa da educação compreende a formação (disciplina e instrução). Pode-

se afirmar que é a parte mais intensa no processo educativo pelo fato de tratar da disciplina e

da instrução, e por incluir a moralização, fim de todo processo educativo. O segundo

“estágio” refere-se à disciplina. Esse período é muito valorizado e de vital importância para o

estágio seguinte, que é a instrução. Inclusive, a falta de disciplina dificulta e até compromete a

instrução: “A falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura/instrução, pois esta pode

ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um

defeito de disciplina” ( KANT, 2006, p.16). A instrução para ser bem sucedida, necessita do

cuidado e da disciplina enquanto estágios anteriores, ou melhor, o cuidado seria como que o

projeto de uma obra/construção, a disciplina seria os fundamentos e a instrução seria a obra

em si, que será tanto mais perfeita e forte, quanto mais sério e bem feito for o projeto e os

fundamentos.

Apesar de dedicar poucas páginas à disciplina, é possível notar sua função

intermediadora entre o cuidado (princípio e base) e a instrução, que é o fim do processo, ou

seja, a moralização. Não seria muito produtivo semear algo sem antes preparar o terreno.

Disciplinar significa, para Kant, transformar a animalidade no homem em humanidade, ou

seja, o homem nasce em estado bruto e precisa ser polido para que a humanidade nele possa

sobrepor-se aos seus instintos animais.

Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a

ele tornou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o homem

tem necessidade de sua própria razão [...] e precisa formar por si mesmo o projeto de

sua conduta (KANT, 2006, p.12).

Como o homem nasce em estado bruto, ele não pode de imediato construir o seu

destino ou, parafraseando Kant, formar por si mesmo o projeto de sua conduta ( KANT, 2006,

p.12). Primeiro ele precisa desenvolver a razão, com a ajuda dos outros, para depois extrair da

própria espécie humana todas as qualidades naturais que pertencem à humanidade e avançar

em direção da perfeição da natureza humana, através do desenvolvimento - pela educação - de

todas as disposições naturais no homem.

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Incansavelmente, Kant retoma e reforça a idéia de desenvolvimento, que subentende

um processo a ser seguido para que de fato possa haver um crescimento e amadurecimento do

ser humano. Portanto, torna-se vital ao homem o desenvolvimento de sua razão, pois será

através dela que se diferenciará dos animais e poderá construir seu projeto de vida através de

opções e decisões racionais.

Na Metafísica dos Costumes, Kant enfatiza que é dever do homem progredir sempre

mais, desde a incultura, própria da natureza (da animalidade), até a humanidade, que é a única

pela qual é capaz de se propor fins: “suprir sua ignorância pela instrução e corrigir seus erros;

e isto não apenas lhe é aconselhado pela razão tecnicamente prática, em vista de seus outros

projetos (da habilidade), mas é absolutamente ordenado pela razão moralmente prática, e

converte este fim em um dever seu para ser digno da humanidade que habita nele”

(PINHEIRO, 2003, p.143).

A disciplina é a parte negativa da educação, conforme Kant, no sentido em que seu

primeiro emprego é evitar que maus hábitos sejam desenvolvidos como opostos à formação

do pensar. Através da disciplina, a tendência a selvageria do ser humano é mantida sob

controle até não mais prejudicar o agir moral.

Inclusive, o homem precisa usar da razão para dominar sua selvageria. Selvageria que

consiste na independência de qualquer lei, ou seja, como o homem precisa de leis para viver

em sociedade, também precisa habituar-se a elas, o que não impede o questionamento e/ou até

sua mudança para melhor, mas jamais o liberta da observância delas enquanto membro da dita

sociedade.

A disciplina que submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a

força das próprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo. Assim, as crianças são

mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se

acostumem a ficar sentadas tranqüilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes

é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato imediatamente cada um de

seus caprichos (KANT, 2006, p.13).

E, com certeza, depois de disciplinado, para não seguir todos os seus caprichos e

habituado as regras, também se tornará mais fácil a educação para lei que está dentro dele, de

cada ser humano, ou seja, o que Kant chama de lei moral, desenvolvida, sobretudo, no livro

da Fundamentação da Metafísica dos Costumes e da Crítica da Razão Prática.

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As leis morais têm que ter um fundamento. O único fundamento que sobra para elas

é a razão. Esta não mora nem no céu nem na terra. Justificando esta carência de solo

da razão, ele descartou-lhe todo fundamento externo: o mundo, a natureza, o sentido

interno possuem tão pouca autoridade moral quanto Deus. Por esse motivo a ética de

Kant não pode ter outra base que a autonomia, demonstrada na Critica da Razão

Prática a partir da razão (KANT, 2003, p.XIV).

Pinheiro afirma que para Kant a coação dos deveres e a severidade das ordens

servem para formar um caráter na criança, indicando a importância do respeito à Lei. Essa

coação, em um primeiro momento, é exterior a criança, no caso, e deve ser aceita

passivamente, porém, todo trabalho da educação consiste em torná-la uma coação interior, ou

seja, transformar a natureza numa consciência pura, orientada para a ação por dever, ou seja,

para o agir moral (PINHEIRO, 2007, p.30).

Conforme Kant, o homem está naturalmente inclinado para a liberdade, o que pode

ser muito prejudicial quando ele se acostuma a ela e acaba querendo satisfazer todos os seus

caprichos, seguindo geralmente, suas inclinações animais e/ou seu instinto. Por isso, é preciso

recorrer cedo à disciplina para que aprenda a submeter sua vontade aos preceitos da razão.

“Quando se deixou o homem seguir plenamente a sua vontade durante toda a juventude e não

se lhe resistiu em nada, ele conserva uma certa selvageria por toda a vida” (KANT, 2006,

p.14).

Um dos maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao

constrangimento das leis com o exercício da liberdade [...] É preciso habituar o

educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de

outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem essa

condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua

educação, não saberá usar sua liberdade (KANT, 2006, p.32).

Mas a disciplina também não é escravização, isto é, “não tratar as crianças como

escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não

ofender a dos demais” ( KANT, 2006, p.50). Nem escravidão nem libertinagem, mas

consciência das próprias ações, sempre inseridas em um contexto social. “É necessário que ele

sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil

bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se

independente” ( KANT, 2006, p.33).

Cabe à educação buscar, sobretudo, pela disciplina, o meio para formar e possibilitar

à criança a compreensão das regras e prescrições a serem seguidas, pois desse aprendizado

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surgirá a capacidade de o homem aceitar suas próprias leis autônomas e também o conjunto

de leis do Estado (PINHEIRO, 2007, p.77).

Torna-se fácil dar uma disciplina aos movimentos da alma, mas é necessário evitar

uma atitude servil, que é contrária à dignidade do homem, dignidade que deve ser respeitada

também na criança. Kant proíbe os castigos violentos; corre-se o risco da criança fechar-se em

si mesma num estado psíquico de rebeldia ao ouvir o mais sábio conselho que possa

futuramente ser-lhe dirigido, ou então, abandonar-se a uma hipócrita observância exterior de

todo conselho e preceito, mas no íntimo, tem outro desejo que manifestará numa ocasião

propícia, impunemente ao exterior.

Enfim, a disciplina prepara o terreno para a parte positiva da educação que é a

instrução ou a cultura. Kant novamente recorre a termos diversos para a questão da educação

positiva (ou prática, ou moral), ou seja, àquela “que diz respeito à construção do homem, para

que possa viver como um ser livre [...] educação de um ser livre, o qual pode bastar-se a si

mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si mesmo um valor intrínseco” ( KANT,

2006, p.35).

Kant afirma que vive em uma época de disciplina, de cultura e civilização, mas que tal

época não é ainda a da verdadeira moralidade: “nós vivemos em um tempo de treinamento

disciplinar, cultura e civilização, mas de modo algum em um tempo de moralização” ( KANT,

2006, p.28).

Mas, por que a humanidade ainda não está moralizada? A moralização é, para Kant, a

última etapa na educação do homem: “Deve, por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não

basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convém também que ele consiga a

disposição de somente escolher fins bons” ( KANT, 2006, p.26). Bons são aqueles fins

aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.

A pessoa precisa, então, adquirir certa disposição para que possa agir moralmente.

Uma disposição distingue-se de um hábito, no sentido de que ela precisa envolver uma

deliberação consciente, ou seja, racional acerca das máximas da ação e não ser meramente um

reflexo instintivo do comportamento.

A pessoa moralizada adquire uma disposição muito enraizada para escolher somente

os fins bons, fins que precisam ser caracterizados pela aprovação de todos. A pessoa deve ser

educada para escolher somente os fins que podem ser os fins simultâneos de todos. O assim

escolher deve tornar-se um modo de pensar arraigado, inerente, como que uma segunda

natureza, muito mais do que um processo de decisão complicado, que pode ser utilizado em

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tempos de dúvidas e incertezas. Isso porque, para Kant, “a cultura moral deve-se fundar sobre

máximas, não sobre a disciplina. Esta impede os defeitos; aquelas formam a maneira de

pensar. É preciso proceder de tal modo que a criança se acostume a agir segundo máximas” (

KANT, 2006, p.75).

Na educação moral kantiana, é preciso cuidar para que o aluno aja segundo suas

próprias máximas, e não por simples hábito, e que não faça simplesmente o bem, mas o faça

porque é bem em si: “... não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar.

Devem-se observar os princípios dos quais todas as ações derivam” (KANT, 2006, p.27).

Com efeito, todo o valor moral das ações reside nas máximas do bem.

Já para Eidam, educar é muito mais que transmissão de saber. A educação tem um

sentido político: “[...] tomam como tarefa sua a produção de uma consciência correta, e isso

significa a formação e a promoção da capacidade de cada indivíduo à decisão consciente e

autônoma, pois uma democracia que não quer apenas funcionar, senão que deve trabalhar a

favor de seu próprio conceito... (EIDAM, 2005, p.112)

De acordo com Kant, o primeiro esforço da cultura moral é lançar os fundamentos do

caráter. Para ele, o caráter consiste no hábito de agir segundo certas máximas. Estas são, em

princípio, as da escola e, mais tarde, as da humanidade.

Quando se quer formar o caráter das crianças, é preciso mostrar-lhes em todas as

coisas sob certo plano, certas leis, as quais devem seguir fielmente. Assim, por exemplo, se

lhes é estabelecida uma hora para dormir, para trabalhar, para brincar, tais horários não devem

ser dilatados ou abreviados. Isto tudo porque Kant acredita na educação moral como

fomentadora da confiabilidade entre os homens. Para ele, “os homens que não se propuseram

certas regras não podem inspirar confiança; não se sabe como se comportar com eles, e não se

pode saber ao certo se se tem vez com eles” ( KANT, 2006, p.77).

Kant questiona a questão de querer apresentar as coisas às crianças de tal modo que

as cumpram por inclinação, o que até pode ser bom em alguns casos. Entretanto, ele adverte:

muitas coisas devem ser-lhes prescritas como dever, lição que inicia na adolescência, para

quando ingressar no mundo adulto (emprego, impostos, negócios...), não se perder e acabar

revoltando-se contra tudo e todos.

Ele divide a educação em cultura livre e cultura escolástica, ou seja, a primeira seria

mais um divertimento enquanto a escolástica uma obrigação por implicar em trabalho,

empenho, dedicação. Enquanto o divertimento é agradável em si, o trabalho só se torna

agradável conforme o fim proposto, ou seja, em si ele é desagradável e por isso tão evitado.

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Nesse sentido Kant pergunta, se não seria a Escola o melhor espaço para cultivar essa

tendência ao trabalho e as questões sérias? Certamente, aqui, ele não está se referindo aos

infantes, que precisam apenas ser cuidados, mas aos adolescentes e jovens. E, nesse sentido,

precisamos concordar que nossa educação escolar não avançou, pelo contrário, para não dizer

que regrediu ou se perdeu, vamos dizer que ela estacionou perante a cultura escolástica

kantiana.

Conforme o filósofo, querer que as crianças aprendam tudo por diversão pode ser

muito prejudicial, pois também devem ser habituadas desde cedo a ocupações sérias. Ela deve

brincar e se divertir, mas também deve aprender a trabalhar, afinal, um dia deverá ingressar na

vida em sociedade. Kant é incisivo nesse aspecto e afirma que é muito prejudicial querer

acostumar a criança a considerar tudo como um divertimento. “O gosto pela facilidade é para

o homem o mais funesto dos males da vida. Por isso é sobremaneira importante que as

crianças aprendam a trabalhar desde cedo [...] No que diz respeito aos prazeres, não devemos

torná-las ávidas nem deixar a elas a escolha” ( KANT, 2006, p.72).

É preciso dirigir a vontade dos jovens de modo que aprendam a ceder e não querer

dobrar sua vontade. Enquanto infante, a criança deve obedecer cegamente e jamais se deve

ceder aos gritos dela quando pretende alguma coisa, exceto quando se achar alguma razão

importante em contrário, como ter-se machucado. Se elas conseguem tudo através de gritos

podem tornar-se muito más e se obtém tudo com súplicas podem tornar-se suscetíveis no

futuro, segundo Kant.

Ele está certo, entretanto, que o entendimento pleno do indivíduo sobre o agir por

dever somente será possível com o passar dos anos. E, sobre isso, Kant conclui que a

obediência do adolescente é diferente da obediência da criança. Aquela consiste na submissão

às regras do dever e, fazer algo por dever, equivale a obedecer a razão.

As crianças, mesmo não tendo ainda o conceito abstrato do dever, da obrigação, da

conduta boa ou má, entendem que há uma lei do dever e que esta não deve ser

determinada pelo prazer, pelo útil ou semelhante, mas por algo universal que não se

guia conforme os caprichos humanos. (KANT, 2006, p.97).

Falar a respeito do dever às crianças é um trabalho incerto, segundo Kant. Elas

geralmente, concebem o dever como algo cuja transgressão acarreta castigo. A criança

poderia ser guiada apenas por seus instintos, mas na medida em que cresce vai necessitando

da idéia do dever. Nesse sentido, torna-se fundamental o estágio da disciplina , ou seja, para

formar um bom caráter, é preciso antes domar as paixões, o que já inicia com a disciplina. No

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que toca às tendências, os homens não devem deixá-las se tornar paixões, antes devem

aprender a privar-se um pouco quando algo lhes é negado. Para se aprender a se privar de

alguma coisa é necessária a coragem e certa inclinação. É preciso acostumar-se às recusas e à

resistência.

Mas não é só com privações e disciplina que se forma um bom caráter. Kant assegura

que este é formado também na sociabilidade. O educando deve manter relações de amizade e

não viver sempre isolado. Esse é importante no que se refere em conciliar a submissão ao

constrangimento das leis com o exercício da liberdade, isto é, que perceba a própria liberdade

situada num contexto social, que a restringe para o bem de todos. “É necessário que ele sinta

logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil

bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se

independente” ( KANT, 2006, p.33).

Há em nossa alma algo que chamamos de interesse por nós próprios, por aqueles que

conosco cresceram e pelo bem universal ( KANT, 2006, p.106). Enfim, com a educação moral

é preciso fazer os jovens conhecerem tais interesses para que eles possam por eles se animar,

com eles se estimular. Eles devem alegrar-se pelo bem geral mesmo que não seja vantajoso

para si próprio, nem mesmo para a pátria, o que é considerado por Kant como sentimento

cosmopolita.

Para que possamos solidificar firmemente o caráter das crianças, convém ensinar-

lhes, através de exemplos e com regras, os deveres a cumprir. Esses deveres são aqueles do

cotidiano, que as crianças têm em relação a si mesmas e aos demais ( KANT, 2006, p.89).

Os deveres para consigo mesmo consistem em conservar uma certa dignidade interior,

a qual faz do homem a criatura mais nobre de todas; é seu dever não renegar em sua própria

pessoa essa dignidade da natureza. Ora, renegamos esta dignidade quando, por exemplo, nos

entregamos à embriaguez, ou a vícios contra a natureza, ou a qualquer sorte de intemperança.

A educação moral kantiana prevê que o dever para consigo mesmo consiste em que o

homem preserve a dignidade humana em sua própria pessoa. O homem quando tem diante dos

olhos a idéia de humanidade, critica a si mesmo. Nessa idéia ele encontra um modelo, com o

qual compara a si mesmo.

O processo educativo kantiano deve visar sempre a vida em sociedade. Quanto maior a

maturidade moral de cada indivíduo, melhor será a sociedade. Isso não cai do céu, nem é

inspiração divina, mas deve ser tirado de dentro da pessoa. Para tal, não basta treinamento, ou

querer começar na vida adulta, pelo contrário, Kant deixou claro que é preciso iniciar já na

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infância com o cuidado, depois, disciplina na adolescência e início da juventude, e, por fim,

torna-se viável a instrução/esclarecimento na juventude e na vida adulta, quando a moralidade

encontra o terreno preparado para lançar suas raízes profundas.

Parafraseando Kant: a falta de disciplina é a mais difícil de remediar no futuro, ela é

mais difícil que superar a falta de instrução/cultura. Aqui, ele referia-se a possibilidade de

querer reeducar moralmente um adulto, ou seja, uma vez que ele não passou por todo

processo kantiano (cuidado, disciplina e instrução) será muito difícil refazer essas etapas mais

tarde, ainda mais no que se refere à disciplina, pois o indivíduo já terá um caráter vicioso

internalizado. Entretanto, também não ajudará querer deixar de lado esse problema e centrar a

reeducação moral só na etapa da instrução. Tal seria como construir uma casa sem fazer a

base, os fundamentos. Seguindo a analogia, poder-se-ia dizer que o processo educativo

kantiano assemelha-se a construção de uma casa: o projeto equivale a etapa do cuidado, os

fundamentos representam a questão da disciplina e a edificação propriamente dita seria a

etapa da instrução.

Na etapa da disciplina, também temos questões intransferíveis e de enorme

responsabilidade dos pais, como as primeiras relações afetivas com eles, ou seja, segundo

Kant, dependerá da atitude dos pais perante o choro ou outras tentativas de dominação da

criança, o início da formação do caráter, algo que poderá condicionar toda vida futura.

Pressupondo que a disciplina implica no domínio dos instintos e da selvageria

presentes em cada ser humano, e que se refere mais ao período da adolescência, é notável

perceber que nessa fase da vida, a maioria está em Escolas, de forma que a Escola pode

influenciar muito sobre essa etapa. Não se deve esquecer, no entanto, que os pais e várias

outras pessoas também influenciam na construção do caráter, que se destaca nesse período do

desenvolvimento e é tão importante para a moralização quanto a razão segundo Kant.

O ser humano precisa progredir da animalidade à humanidade e para tanto a etapa da

disciplina é vital. O desenvolvimento implica progresso, na medida em que busca a

humanidade/maturidade ou, se não for assim direcionado, automaticamente irá em outra

direção, isto é, manterá o ser humano na animalidade/imaturidade e, por sua vez, se radicará –

criará raízes – no caráter da pessoa, o que, segundo Kant, será mais difícil de reverter do que a

falta da instrução/cultura.

Mas, a questão da disciplina é geralmente apenas tratada enquanto necessidade de bom

comportamento, o que não está errado, mas deveria ser tratada com mais seriedade e

sistematicidade, dando-lhe a devida importância.

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Inúmeras vezes ouve-se falar que a criançada de hoje não tem mais limites e que os

pais e os professores perderam a autoridade para exigir, ao menos, aquele bom

comportamento de antes. Até as instituições repressoras do governo (judiciário, policias,

prisões etc.) são diariamente questionadas quanto a sua competência e autoridade. E sem a

autoridade a disciplina também fica limitada, pois, enquanto o indivíduo não tiver maturidade

para se controlar (de dentro para fora), isso precisa ocorrer de forma inversa, isto é, ser

imposto de fora para dentro. O problema é que essa dependência da autoridade externa durará

até que a autoridade interior (a razão esclarecida) passe a guiar a pessoa. Porém, segundo

Kant, quanto mais tarde se investir na disciplina mais difícil será seu desenvolvimento,

chegando em alguns casos, a não ser mais possível.

É razoável supor que no futuro a sociedade possa enfrentar graves problemas, afinal,

as crianças, adolescentes e jovens indisciplinados de hoje estarão no auge da vida amanhã. E a

falta de autoridade interior, sobre si mesmo, acarretará a necessidade de muita autoridade

externa (polícias, cadeias, câmeras filmadoras e/ou vigilância contínua e em todos os lugares),

tudo necessário para tentar conter aquele ser que não se controla suficientemente para

favorecer a constituição de uma sociedade moralizada, logo, verdadeiramente cosmopolita.

Referência

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_______. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. 2ª ed. São

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_______. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003;

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