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o COLABORAÇÃO INTERNACIONAL IMAGINÁRIO, ADMINISTRAÇÃO E LIDERANÇA • LAURENT LAPIERRE Ph.D. em Administração de Empresas e Professor de Administração e Liderança na Ecole des Hautes Etudes Commerciales, Montreal, Canadá. Tradução de Cecília W. Bergamini e Roberto Coda, professores no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV. RESUMO: Este trabalho aborda a forma pela qual as empresas são administradas pelos indivíduos que nelas ocupam cargos de direção. Tem ficado cada dia mais claro que não se trata de um processo "racionar, conforme preconiza a maioria das obras sobre o assunto. Em realidade, as orientações, Revista de Administração de Empresas decisões e ações assumidas pelos dirigentes levam claramente as marcas individuais que eles têm e nasceram de todo um conjunto de desejos, convicções, gostos e interesses pessoais que muito bem caracterizam as personalidades ímpares de tais executivos. O texto refuta a crença ingênua de que a "boa administração", as "boas decisões" ou os "bons resultados" aos quais chegam as empresas sejam necessariamente decorrências da simples aplicação de processos alheios às características individuais do administrador. PALAVRAS-CHAVE: estilo de liderança, inconsciente, personalidade, executivos. São Paulo, 29(4) 5-16 Out./Dez. 1989 5

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o COLABORAÇÃO INTERNACIONAL

IMAGINÁRIO, ADMINISTRAÇÃO E LIDERANÇA• LAURENT LAPIERREPh.D. em Administração de Empresas e Professor deAdministração e Liderança na Ecole des HautesEtudes Commerciales, Montreal, Canadá.Tradução de Cecília W. Bergamini e Roberto Coda,professores no Departamento de Administração Gerale Recursos Humanos da EAESP/FGV.

RESUMO: Este trabalho aborda a forma pela qual asempresas são administradas pelos indivíduos que nelasocupam cargos de direção.Tem ficado cada dia mais claro que não se trata de umprocesso "racionar, conforme preconiza a maioria dasobras sobre o assunto. Em realidade, as orientações,

Revista de Administração de Empresas

decisões e ações assumidas pelos dirigentes levamclaramente as marcas individuais que eles têm enasceram de todo um conjunto de desejos, convicções,gostos e interesses pessoais que muito bemcaracterizam as personalidades ímpares de taisexecutivos.O texto refuta a crença ingênua de que a "boaadministração", as "boas decisões" ou os "bonsresultados" aos quais chegam as empresas sejamnecessariamente decorrências da simples aplicação deprocessos alheios às características individuais doadministrador.

PALAVRAS-CHAVE: estilo de liderança,inconsciente, personalidade, executivos.

São Paulo, 29(4) 5-16 Out./Dez. 1989 5

o COLABORAÇÃO INTERNACIONAL

INTRODUÇÃO

A personalidade dos indivíduos em cargos dedireção tem uma influência inegável sobre a

forma de administrar empresas. As orientações, asdecisões e as ações que marcam os caminhos per-corridos por essas organizações não se explicamunicamente pelos processos "racionais", como,por exemplo, aqueles que preconizam os enfoquesnormativos ou os princípios de gestão adotados.Elas decorrem igualmente dos desejos, dasconvicções, dos gostos e dos interesses pessoaisdos dirigentes e estão ligadas aos preconceitos ecrenças que possuem. Elas dependem também dasforças ou conflitos intrapsíquicos e dos valoresprofundos que sustentam as ações desses dirigen-tes. Negar essas forças e esses valores ou aindaqualificá-los de irracionais, achando-se assim umpretexto para ignorá-los, em nada ajuda a com-preensão ou a prática da administração. Ao con-trário, poderá ser muito irracional não levar emconta essas realidades tipicamente subjetivas. Se-ria possível mesmo afirmar que certas análises"pseudo-racionais" - que visam a estabelecer aadequação entre, de um lado, a competência quecaracteriza a empresa, baseada na avaliação dasforças e das fraquezas internas e, de outro, a aber-tura de uma fatia de mercado, revelada por umaanálise das ameaças e oportunidades externas -podem fugir à realidade se não consideraremaquilo que impulsiona ou motiva os dirigentes.Não se trata, tão pouco, da crença ingênua de queuma "boa administração", "boas decisões" ou"bons resultados" sejam necessariamente decor-rências da simples aplicação de um processo.

Se - como supomos e como a realidade dasorganizações comprova a cada dia - existe umaligação entre a personalidade dos adminis-tradores e líderes e o tipo de administração desuas 'empresas, todo o conhecimento e toda atomada de consciência da realidade psíquica,enfim da personalidade dos dirigentes, serãoúteis a uma melhor compreensão dos fenômenosligados à administração e à liderança. Convencer-se do caráter determinante da personalidade dosujeito não significa negar a influência de fatoresexternos como condicionantes que podemdeterminar sua existência. Acreditar, então, nocaráter determinante da personalidade doadministrador e de sua força não significa negar aimportância dessas "contingências" ou fatoresambientais, estejam eles situados no interior ouno exterior da organização. É inegável que muitosfatores exteriores ao líder e ao administradorterão efeito sobre as ações empreendidas pelasorganizações. Isso não impede que o líder ou

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administrador seja responsável pelas açõesempreendidas por sua organização.

Neste texto, será abordada a questão relativa àinfluência da personalidade dos dirigentes sobrea administração de suas empresas, levando-se emconta um aspecto crucial da personalidade que éaquele relativo ao viés do imaginário. Depois dedefinir o que se entende por imaginário, será feitoum apanhado das recentes pesquisas queabordam o estudo· da direção e da administraçãodentro dessa perspectiva. Serão examinadosalguns relatos de casos e obras de ficção quecontribuem para a compreensão da influência queo imaginário exerce sobre a administração. Comoconclusão, serão abertas algumas perspectivas dereflexão para o futuro.

Os termos "líder" e "administrador" serãousados para designar aquelas pessoas queexercem o comando. Como será analisado maisadiante, o imaginário fica mais evidente no casoda liderança, uma vez que esta se baseia,sobretudo, na projeção de uma fantasia (aquelarelativa ao líder e a seus subordinados) e na visãoproposta pela pessoa do líder a um grupo. Épossível, no entanto, formular-se a hipótese deque não existe dicotomia entre o administrador eo líder: todo administrador é um líder (e vice-versa), variando consideravelmente os graus deuma pessoa para outra e estando as variáveisinternas de uma pessoa também sujeitas aalterações no decorrer do tempo.

ADMINISTRADOR E LÍDER:UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO

A administração e a liderança são concebidascomo dois pólos de um mesmo contínuo. Umapessoa em posição de direção não é nunca total-mente um líder ou totalmente um administrador.A arte e a prática de direção são sempre uma es-pécie de amálgama entre essas duas tendências.Nos seres humanos, os tipos puros ou ideais nãoexistem. Numa das extremidades do contínuo, oadministrador é caracterizado como uma pessoaque reage, sobretudo, em resposta à situação exte-rior. Trata-se de alguém que dirige uma empresa(aqui considerada na acepção mais ampla do ter-mo) de uma maneira que pretende ser eficiente eeficaz, dentro de uma estruturação interna orde-nada, regulamentada e hierarquizada. A razão deser é identificar as necessidades manifestas ou la-tentes dos consumidores e responder a elas. Oadministrador levará principalmente em conta osrecursos disponíveis dentro da empresa e as opor-tunidades ou ameaças existentes no ambiente ouem um determinado mercado. Na outra extre-

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midade, o líder, no entanto, apresenta-se comouma pessoa que inicia e dirige uma empresa, cen-trado, antes de mais nada, em sua visão pessoal.Esse indivíduo reagirá de acordo com sua reali-dade interior, proagindo posteriormente em umambiente ou em um determinado mercado. Issopode implicar, e geralmente implica, que esselíder acabe levando menos em conta os recursosdisponíveis, ou, então, que não inicie ou não levea efeito as mudanças necessárias no ambiente ouem um determinado mercado. O modo deestruturação é, freqüentemente, mais orgânico,mais centralizado na pessoa do próprio líder,menos regulamentado e hierarquizado. Utilizan-do-se a tipologia elaborada por Reisman, Zaleznike Kets de Vries'", há, de um lado, o dirigenteheterodeterminado (ou extradeterminado) e quecorresponde ao conceito de administrador e, deoutro, o dirigente intradeterminado, represen-tando a definição aqui adotada de líder.

Essa distinção estabelecida entre o administradorprofissional e o líder insere-se, também, na linha deZaleznik'", que propõe quatro dimensões pararessaltar as diferenças entre líder e administrador:

1) o líder propõe-se objetivos ligados a seus de-sejos e preferências pessoais, fato que o leva a in-ventar novos conceitos e a agir sobre o ambiente,enquanto que o administrador profissional temobjetivos que estão ligados ao gosto e às preferên-cias dos consumidores e reage ao ambiente ten-tando manter um equilíbrio;

2) o líder cria uma desordem relativa na suabusca do absoluto, procura esta ligada à realiza-ção das suas próprias fantasias, sonhos e idéias,enquanto que o administrador é um personagemorganizado e racional, que procura um compro-misso com as idéias dos outros para atingir .osobjetivos da empresa;

3) o líder tem, freqüentemente, necessidade detrabalhar só, apostando em sua intuição e emalguns raros e intensos relacionamentos, enquan-to que o administrador prefere trabalhar commuitas pessoas, estabelecendo relações superfi-ciais e distantes, em função dos papéis de cadaum e de uma visão integrada da empresa; e

4) o líder percebe-se como um agente demudança, como alguém independente ou mesmoem rompimento com a situação atual, enquantoque o administrador se vê como um instrumentodo realismo, defensor da ordem que deve sermantida e em harmonia com a situação atual.

o IMAGINÁRIO E O CONHECIMENTO

A palavra imaginário ganhou muita evidênciae credibilidade na língua francesa ao longo das

duas últimas décadas. A utilização desse termopor intelectuais, como Jean Paul Sartre, AndréMalraux, [acques Lacan, Edgard Morin, HenriLaborit, Eugene Enriquez e Jean E. Charron, nãoé, sem dúvida, desassociada da reabilitação e deuma concepção mais ampla do termo. Fala-se hojecom muito prazer do imaginário de um autor, deum artista, de um pesquisador, de um adminis-trador, de um líder ou mesmo de uma coleti-vidade. O termo refere-se não só ao processo e aoproduto da imaginação, mas também a umadimensão mais propriamente cognitiva (as idéias,os pensamentos, as concepções, a criatividadeetc.) do que afetiva (os afetos, as defesas psicoló-gicas, as sublimações, os desejos, as ambições, asconvicções etc.), apesar de estarem essas duasdimensões indubitavelmente ligadas.

O imaginário diz respeito, então, ao conjuntode processos mentais. E constituído de imagensinteriores que guardamos de certas pessoas signi-ficativas, de lembranças ou de informações con-servadas em nossa memória (essa faculdade quenão se esquece) de idéias, de abstrações, de cons-trutos, de visões, de explicações ou de raciona-lizações que são construídas e utilizadas, querestejam relacionadas a informações já interio-rizadas ou à realidade exterior. O imaginárioimplica um trabalho (mais ou menos consciente)de transformação, de mudança e de criação. Apalavra em si, através de sua conotação com ima-gem, magia e imaginação, é o indicador daquiloque designa e significa.

Mesmo que os produtos da imaginação sejamelaborados a partir de informações armazenadasna memória, eles são, sobretudo, o resultado devisões, de projeções ou de construções que osujeito elabora a partir de seus conteúdosmemorizados. Assim, o imaginário é essencial-mente uma realidade subjetiva. Diz respeito, aomesmo tempo, ao conjunto de representações queo sujeito faz ou dá à realidade subjetiva interna eà realidade objetiva externa. O imaginário servede ligação entre a realidade interna da pessoa e arealidade externa. Sob esse título, representa oelemento qualitativo mais importante daquilo queconstitui a personalidade de um indivíduo.

Reconhecendo plenamente que a história daimaginação começa provavelmente com a história

1. REISMAN, David. La foule solitaire. Paris, Arthand,1964; ZALEZNIK, Abraham & KETS DE VRIES,Manfred F.R. Power and the Corporate Mind. Boston,Hoighton MHflin, 1975, 288 páginas.

2. ZALEZNIK, Abraham. "Managers and Leaders:Are They Different?" In: Harvard Business Review. May-June, 1977.

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da humanidade, Altman'" situa em 1709 o come-ço das vicissitudes conhecidas pela imaginaçãopara ganhar suas características de nobreza,quando Giambattista Vico contestou a posiçãodominante da razão na filosofia tradicionalocidental. Para Vico, "a primeira ciência a seraprendida deveria ser a mitologia e a interpretação dasfábulas", porque, nesse caso, não há "verdade'senão nas fantasias (universal fantástico), sendoeste o primeiro modo pelo qual o ser humanotorna o mundo inteligível. Portanto, não existe"verdade" senão dentro de um espírito capaz decompreender-se em sua relação consigo mesmo,As línguas, a história, a literatura e as fábulas sãoa base de uma interpretação humana domundo'", A imaginação e o imaginário, apesar desuas aparências anticientíficas, remetem-nos defato à base e aos fundamentos mesmo da ciência,Até a teoria da relatividade de Einstein tevecomo origem uma fantasia, já que ele próprio,como sábio, imaginava-se como um observador,deslocando-se a diferentes velocidades no tempoe no universo,

Analogamente a Vico, é possível afirmar que oconhecimento e a ciência, assim como toda ação epráticas humanas, encontram de fato seus funda-mentos no imaginário, na "fantasia universal"pela qual o ser humano acha uma (a sua) ver-dade, tornando para si o mundo inteligível. Esseimaginário de natureza fantasiosa, essa visão domundo, não são representados tão somente pelasatividades mentais conscientes, como, por exem-plo, os flashes, as imagens, os sonhos, as concep-ções ou as conceituações; são também compostospor fantasias inconscientes e por estruturas pro-fundas que sustentam a própria existência deuma pessoa".

IMAGINÁRIO, PODERE ADMINISTRAÇÃO

Foi afirmado anteriormente que o imaginário éo elemento qualitativo mais importante daquiloque constitui a personalidade de um indivíduo eque serve de ligação entre a realidade interna dapessoa e a realidade exterior, Compreende-se,então, facilmente a influência que o imaginário doadministrador ou do líder terá sobre sua maneirade agir,

Essa não é, contudo, a primeira vez que sereconhece a influência da personalidade dosdirigentes na vida das empresas, Apoiando-se naconvicção de que a personalidade do sujeitodetermina sua ação, alguns pesquisadoresconseguiram, com efeito, ressaltar a ligação quepode existir entre as diferentes dimensões da

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personalidade dos líderes e dos administradores ea administração das empresas'".

3. ALTMAN, Elizabeth. "Concepts of the Imagina-tion: an Incomplete History". Trabalho apresentado aosimpósio L'imaginaire et le leadership, à Ecole des HautesEtudes Commerciales, Montreal, 5 e 6 de maio de 1986,22 páginas.

4. Idem, ibidem, pp. 2-3.

5. ISAACS,SUSAN. "Nature et fonction du phantas-me". In: Développements de la psychanalyse. Paris, PressesUniversitaires de France, 1966, pp. 64-114.

6. JACQUES, Elliott. The Changing Culture of a Fac-tory. London, Tavistock, 1951; VROOM, Victor H. SomePersonality Determinants of the Effects of Participation.Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1960; MERTON,Robert K. "Structure bureaucratique et personnalité".In: LEVY,André. Psychologic sociale, textes fondamentauxanglais et américains. Paris, Dunod, 1965, pp. 23-35(tradução francesa do capítulo 5, "BureaucraticStructure and Personality". In: Social theory and SocialStructure. Glenco, Illinois, The Free Press, 1949, pp. 151-160); ZALEZNIK, Abraham & KETS DE VRIES,Manfred F.R.Op. cit.; McCLELLAND,David C. Poioer:the Inner Experience.New York, Irvington, 1975;MACCOBY,MichaeI. The Gamesman. New York, Simonand Schuster, 1976,285 páginas; KERNBERG, Otto."Regression in Organizational Leadership". In:Psychiatry, 42, 1979, pp. 29-39; LESAGE,Pierre & RICE,Judith. "Le sens du travail et le gestionnaire". In: RevueGestion, vol. 3, nº 4,1978, pp. 6-16; LARÇON, Jean-Paul& REITTER,Roland. Structure de pouvoir et identité de/'entreprise. Paris, Nathan, 1979, 174 páginas; KETS DEVRIES,Manfred F.R. Organizational Paradoxes: ClinicaIApproaches to Management. London, Tavistock, 1980,214páginas; MILLER, Danny, KETS DE VRIES, ManfredF.R. & TOULOUSE, [ean-Marie, "Top Executive Locusof Control and Its Relationship to Strategy Making.Structure and Environment". In: Academy ofManagement Journal, 25, 1982, pp. 237-253; MILLER,Danny & FREISEN, Peter. Organizations: a QuantumView. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1984; LAPIERRE,Laurent & TOULOUSE, Jean-Marie. "La Graine àMonseigneur". Research paper: 75th AnniversaryCollcquium Series. Division of Research, HarvardBusiness School, 1984, 37 páginas; KETS DE VRIES,Manfred F. R. & MILLER, Danny. The NeuroticOrganization. San Francisco, [ossey Bass, 1984, 241páginas. Versão francesa: L'entreprise nevrosée, McGraw-Hifl, 1985; MILLER,Danny & TOULOUSE,[ean-Marie."Strategy, Structure, CEO Personality and Performancein SmaII Firms". In: American Journal of Small Business,vol. 10, nº 3, Winter 1986, pp. 47-62; LAPIERRE,Laurent. Dépressivité, puissance et pouvoir dans la pratiquede I'enseignement de la direction. Trabalho apresentadoem versão francesa (29 páginas) ao Colóquio Interna-cional Nouvel/es tendances en gestion réflexlOns, bilan etperspectives, Ecole des H.E.C. de Montreal, 9 a 13 dejunho de 1986. Versão inglesa: Depressivity Potency andPouier in Management Practice and Teaching Commu-nicaiion, apresentada ao Symposium on OrganizationalEffectiveness: Psychoanalytic Issues in OrganizationalResearch and Consultation, organizado por TheInternational Society for the Psychoanalytic Study ofOrganizations, Pace University, New YorkCity, 1 e 2 denovembro de 1986, 25 páginas.

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o próprio termo imaginário foi utilizado porum certo número de teóricos das organizações.Enriquez?' utilizou a expressão "imagináriosocial" para reagrupar os fenômenos de rejeição ede repressão nas organizações. Larçon e Reitter'"mencionaram a expressão "imagirtário organi-zacional" para designar as fantasias compar-tilhadas por uma equipe de administração ou porum conjunto de empregados de uma organização,a fim de demonstrar a influência desse imagináriosobre a.identidade da empresa (conceito muitopróximo daquilo que hoje se convencionou cha-mar de cultura organizacional). Nos dois outroscasos citados anteriormente, os autores utilizaramo termo imaginário dentro de uma perspectivapsicológica, fazendo particularmente referência aoconteúdo fantasioso do imaginário e conferindo-lhe, sobretudo, um conteúdo de ordem coletiva. Autilização do conceito de imaginário para estudara influência dos administradores e dos líderessobre a direção das empresas é bastante recente.

O imaginário das pessoas em postos de direçãosempre desempenhou um papel importante na ad-ministração das empresas. O fato de que os teóri-cos e praticantes da administração fazem cada vezmais uma maior referência ao conceito de "visão",por exemplo, é um indicativo da importância que édada ao imaginário. Durante o decorrer dosúltimos anos, muitos estudos ressaltaram como asquestões de poder eram primordiais na gestão dasorganizações. Estudar a administração implicarefletir profundamente sobre a realidade do poder,não somente sob o ponto de vista sociológico, mastambém dentro de uma perspectiva psicológicados administradores. Além da "visão", aadministração implica necessariamente que apessoa em posição de direção utilize e mobilizecertas fontes de autoridade à sua disposição e,dessa forma, exerça o poder. Esse fato tem certasrepercussões não só sobre as pessoas que estãosendo dirigidas, mas também sobre os própriosdirigentes. Apesar de a "imagem" que fazemos dopoder e de seu exercício variar grandemente deuma empresa para outra e de um indivíduo paraoutro, essa questão do poder permanece sempreativa no imaginário dos administradores.

O poder é uma variável que perturbaprofundamente os seres humanos e não é por aca-so que os líderes e os administradores por ele seinteressam. As dificuldades provocadas pelasrealidades do poder são sobretudo de naturezaemotiva. O poder parece, na verdade, mais umaquestão de afetividade, de desejos e denecessidades do que uma questão de conhecimen-tos e de inteligência, mesmo se, em relação a esseponto, for conveniente ser prudente; a afetividade

e a inteligência não são duas dimensões ortogo-nais ou independentes. Sentimos emoções e afetos(amor e ódio) pelos objetos de conhecimento (co-nhece-se e compreende-se bem aquilo que se ama,se detesta ou incomoda, sob a condição de inves-tir o grau requerido de energia), assim comoexperimentamos algum tipo de sentimento emrelação ao que fazemos ou praticamos.

O exercício do poder ativa ou reativa asfantasias mais primitivas ou arcaicas. Os própriosfundamentos do nosso imaginário, tanto em suadimensão cognitiva, é claro, quanto em suadimensão afetiva, sobretudo, é que são acionados:o desejo de ser amado, de ser admirado, o medode ser insuficiente ou indigno (medo do fracasso),o medo de ir longe demais na utilização do poder(medos associados ao sucesso), a ansiedade frenteàs mudanças de status e à competição, a invejaassociada às inevitáveis injustiças, desejo deigualdade e de dependência, o desejo de ser ex-cepcional, único, ímpar, o desejo de criar seu uni-verso, seu mundo, seu nicho, sua competênciaparticular etc. Mesmo que as realidades do podersejam tão antigas quanto a humanidade e mesmoque de maneira intuitiva tenha sido reconhecida ainfluência do imaginário dos líderes, não é senãomuito recentemente que estudos sistemáticosforam consagrados a essas questões.

Nesse sentido, o trabalho de dois pesquisadoresde Montreal, Kets de Vries e Miller'", constitui-senuma contribuição importante. Inspirando-se nu-ma orientação de análise psiquiátrica, os referidosautores mostraram as ligações que podem existirentre as fantasias ou o imaginário dos adminis-tradores, a estratégia de suas organizações, asformas de organização do trabalho implantadas ea própria cultura organizacional em 'vigor,

Depois de terem identificado um certo númerode disfunções organizacionais que conduzem aofracasso, esses dois pesquisadores conseguiramestabelecer até que ponto essas disfunçõespoderiam decorrer de estruturas profundas, dasfantasias dominantes das pessoas em postos dealta direção. No quadro I, é possível visualizar asligações que os autores estabelecem entre apersonalidade do administrador da cúpula, seuuniverso fantasioso (esse aspecto capital de seu

7. ENRIQUEZ, 1 ugene. "Imaginaire social, refouie-ment et répression dans les- organisations". In:Connexions psychologiques science';! humaines, nº 3, 1972,pp.65-93.

8. LARÇON, Jean-Paul & REITTER, Roland, Op. cito

9. KETS DE VRIES, Manfred F.R. & MILLER, Danny,The Neurotic Organization. Op. cit.

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imaginário) e certas tendências observadas emsua maneira de exercer o poder. Dentro docontexto da administração de uma organização, amaneira de exercer o poder toca principalmenteem três aspectos diferentes: a orientaçãoestratégica da empresa, a forma de estruturação aque se dá prioridade e a cultura internadominante. A partir de agora, serão examinadasas relações que os autores puderam estabelecerentre o imaginário e esses três aspectos doexercíciodo poder.

No caso do líder ou administrador descon-fiado, a fantasia subjacente consiste em sentir-seameaçado pelos perigos exteriores. A atitudebásica é estar sempre pronto a atacar e a desafiaros eventuais inimigos. A estratégia resume-se,então, em estar constantemente de sobreaviso, emtentar controlar o ambiente, em estabelecersistemas de informação e reagir às mudanças pelaoposição. A estrutura é geralmente centralizadano topo e a cultura interna retrata um clima desuspeita. Essa suspeita suscita por vezes umagrande coesão contra inimigos "externos",freqüentemente caracterizados como bodesexpiatórios e que se tornam os responsáveis pelasdificuldades da organização.

No caso do administrador meticuloso, afantasia subjacente é aquela de querer controlartudo o que se passa com ele mesmo e à sua voltapara não ficar à mercê dos outros. A estratégiaconsiste em controlar as operações internas demaneira cerrada, com o recurso de um planeja-mento muito rígido. A estrutura é geralmente dotipo burocrática, os procedimentos são formais epadronizados. A cultura é aquela do tipo domi-nação, do dever e da fé. Concentra-se em torno detemas, de crenças e de tradições. As pessoas sãosubmetidas tanto aos preconceitos do líder,quanto às suas fixaçõese rituais.

No caso do líder espetacular (estrela), afantasia subjacente consiste em chamar a atençãoe impressionar por sua grandiosidade. A estraté-gia é muito mais impulsiva, as aventuras arris-cadas são inspiradas pela intuição. A estruturaçãoé muito rudimentar, concentrada no topo, poucosistemática e confusa. A cultura interna daempresa é aquela do espetáculo, onde se reforça onarcisismo do dirigente, através de uma atividadefebril, freqüentemente para o grande descon-tentamento dos outros responsáveis.

Quanto ao administrador deprimido, a suagrande fantasia é feita de sentimentos deimpotência, de incapacidade ou de indignidade.A estratégia consiste, sobretudo, em limitar-se aum trabalho rotineiro, automático, sofrendo assima empresa de inércia e conservadorismo. A

estrutura é do tipo burocrática e submetida a umahierarquização bastante desenvolvida e desin-tegrada, fato que esvazia a alta administração doseu poder. A cultura interna da empresa é aquelada resistência à mudança. A regulamentaçãoserve para evitar o conflito.A organização acha-secentrada em si mesma, os acertos são destinados apreservar o domínio e o poder, determinando ainibição da ação.

Finalmente, no caso do administradordistante, a principal fantasia leva-o a manter-se àdistância, sendo as interações percebidas comopotencialmente perigosas. A estratégia é a dadesorientação ficando a empresa um pouco àderiva e as negociações entre as subcoalisõesrestritas a pequenas mudanças. A estrutura édividida, a ausência de liderança no topo dá lugara feudos independentes e a lutas internas depoder entre as divisões. A cultura interna lembrauma assembléia política, transformando aempresa num palco de intrigas e querelas internasdentro de um clima de suspeita.

Cada uma dessas fantasias dominantes - esseelemento capital do imaginário do dirigente quefundamenta seu estilo de administração -contribui para dar uma orientação, uma direção,um sentido à ação, sem anular a influência deoutros fatores da situação.

Em um outro texto,Kets de Vries?" abordou umoutro aspecto do imaginário dos líderes, falandode sua disposição narcisista. Ele afirma que aqualidade e a intensidade do seu desenvolvimentonarcisista é um dos componentes críticos da açãodesses líderes. A essência do narcisismo consisteem amar uma imagem relativamente idealizadade si, para escapar "imaginariamente" aosentimento de falha, de limite ou de insuficiência.

O autor identifica três tipos de narcisismo, asaber: o narcisismo reativo, o narcisismo auto-enganoso (que se ilude) e o narcisismoconstrutivo. O narcisismo reativo está baseado emsentimento persistente de impotência causadapelo sentimento de não ter sido suficientementeamado ou estimado. Alguns indivíduoscombatem esse sentimento, trabalhando a idéiade que são pessoas ímpares, excepcionais, comose o fato de terem sofrido ou de terem sidosubmetidos a provas lhes desse esses atributosespeciais. Possuídos por uma fantasia de sucessosem limite, querem dominar através de umamaneira fria, implacável, grandiosa eexibicionista.

O narcisismo auto-enganoso está baseado no

10. Idem, ibidem.

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sentimento de que o indivíduo é absolutamenteamado e perfeito. A pessoa não aprendeu amoderar a imagem idealizada que faz de simesma, uma vez que as respostas que a ela foramfornecidas quando criança não estavam suficien-temente adaptadas à realidade. Essas respostassuperestimularam sua autopercepção. Dissoresultam as dificuldades nas relações inter-pessoais, uma hipersensibilidade à crítica, o medodo fracasso, a busca do ideal e uma profundanecessidade de ser amado.

Enfim, os indivíduos narcisistas construtivosnão sentem a necessidade de deformar a realida-de para lidar com as frustrações da vida. Desen-volvem uma sensação de vitalidade positivaderivada da confiança que têm em seu própriovalor. Mostram ambição, ousadia, senso de hu-mor, criatividade, tenacidade e altivez.

Utilizando um nível de análise diferente,Lapierre?" sustentou, então, que o exercício do po-der e da liderança, pelo fato de estar baseado numsentimento de potência relativa e no reconhe-cimento de um potencial humano limitado, masautêntico, poderia reativar sentimentos antigos deplenipotência e de impotência. Assim, de umlado, surgem o imaginário da plenipotência e opensamento mágico (os administradores e oslíderes tomam seus desejos por realidades,querem se mostrar infalíveis no controle total daspessoas à sua volta, na procura da notoriedade ede conquistas notáveis ...) e de outro lado, o ima-ginário da impotência e da desvalorização de si(os administradores se sentem incapazes, indig-nos e inadequados, presos por um intenso senti-mento de culpa ...).

O sentimento de potência relativa traduz-sepor uma confiança baseada no sentimento deliberdade e de responsab il idade, tambéminevitavelmente relativas. E uma maneira deexercício do poder ao mesmo tempo realista ehumanista, baseado na potência humana comume capaz de assumir as responsabilidades e osriscos. Nesse caso, e ao mesmo tempo, o adminis-trador aceita o imaginário com aquilo que eleoferece de possibilidades de criação, de invençãoe de produção, aceitando também o real comtodas as suas restrições. Aceita as realidadeshumana e organizacional com todo o potencialque elas apresentam, mas também com todas as'suas imperfeições e defeitos.

Esses novos arcabouços de análise dos fenôme-nos de direção, baseados no imaginário em termosde seu conteúdo fantasioso e inconsciente, nãoforam concebidos para serem utilizados demaneira mecânica; bem ao contrário, toda pessoa éum condensado daquilo que é profunda e

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universalmente humano. As nossas interrelações eintervenções em todas as nossas atividades reais e,particularmente, no exercício'do poder, represen-tam inteiramente as dimensões de nossapersonalidade que podem entrar em ação e serativadas, sobretudo, as dimensões afetivas, naquiloque elas têm de mais profundo e de inconsciente.O imaginário que corre o risco de receber a maiorinfluência é, então, aquele que corresponde àrealidade psíquica mais profunda, uma vez quedetermina, por sua ignorância, a ação do sujeito.

As realidades psíquicas não são nem boas nemmás em si mesmas, mesmo que se tenhamfreqüentemente examinado suas dimensõespatológicas ou disfuncionais. São realidadesimaginárias ou fantasiosas que existem (mesmoque não se queira ou não se possa semprereconhecê-las), que testemunham nossa humani-dade e que podem ser usadas produtivamentenas práticas de administração e de liderança.Essas práticas devem necessariamente ser o objetode um exame por parte dos dirigentes, levando-seem conta a própria realidade psíquica da situaçãoexterior e dos objetivos da organização tal qualeles os formularam.

A desconfiança (potencial paranóide), porexemplo, é positiva na medida em que permitever os perigos, identificar os possíveis inimigos eproteger-se através de ações preventivas. E omesmo potencial que entra em ação quando sequer mudar a realidade exterior (o ambiente), aíse instaurando uma nova ordem, na qual seprojetará sua p:tópria visão do mundo. Noentanto, se a projeção permite identificar osinimigos exteriores e mobilizar forças no interiorda empresa, ela se encontra também na origem dasuspeita doentia, na fixação dos bodes expiatóriose na caça às bruxas, sendo, nesse sentido, nefasta.

A meticulosidade (obsessão e compulsão) éprodutiva, na medida em que ela fundamenta ocuidado com o detalhe, com a precisão e com osentido do dever. Em contrapartida, é perniciosa,caso impeça a tomada de distância e sufoque aespontaneidade e, caso haja a necessidade de umcontrole dominador, venha a bloquear a iniciativa.

O estrelismo (showmanshipjteatralidade) éprodutivo, na medida em que permite chamar aatenção, .comunicar o entusiasmo e incentivarnovas impulsões. Mas pode também ser a causade incoerências, de improvisações, determinandoque o espetáculo oferecido seja utilizado demaneira narcisista para mesclar uma cena cujopano de fundo é de impotência.

11. LAPIERRE, Laurent. Op. cito

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A capacidade de deprimir (a depressividade) éprodutiva, na medida em que permite não tomaros sonhos como se fossem realidade, sepultar aplenipotência e o pensamento mágico, e recolocaros pés na terra depois das incursões peloimaginário. Representa, então, uma muralhacontra a mania de grandeza e a megalomania. Emcompensação, é nociva quando provoca a falta deação, de dinamismo, conduzindo à apatia e àimpotência?",

Finalmente, a distância (a ruptura e o potencialesquizóide) permite clarear a visão das emoções edas idéias. Permite recuar, emergir do caos dasemoções, colocar ordem nos sentimentos e ver oque é bom e o que é mau para o sujeito, tanto noseu universo interior, quanto no seu mundo exte-rior. Em contrapartida, pode manter o sujeito desli-gado de suas emoções e das emoções dos outros,separando o mundo das emoções de todo o resto eguardando um distanciamento intransponível comtodo o mundo. Pode conduzir a uma visão mani-queísta do mundo, das pessoas, das organizações edas idéias, divididas em boas e más.

Seria difícil pretender que essas realidadespsíquicas, esses processos mentais (quer se tratede defesas, de estilos cognitivos ou afetivos) se-jam bons ou maus em si mesmos. De forma seme-lhante a muitas das realidades fundamentais emadministração, essas realidades ou processosparecem depender também de adaptação a umadada situação e, portanto, ser uma questão demedida e de julgamento.

IMAGINÁRIO E PRÁTICA DAADMINISTRAÇÃO

Recentemente, e aventurando-se a ir maislonge nessa linha já esboçada de estudo -d ainfluência da realidade psíquica sobre aadministração e a liderança, o grupo de pesquisasobre as práticas de liderança e administração?"organizou o simpósio "O Imaginário e a Lide-rança", que aconteceu em maio de 1986na Ecoledes Hautes Etudes Commerciales de Montreal.Dentro do tópico "O imaginário e a Liderança", apalavra imaginário foi tomada na acepçãoadotada no escopo deste trabalho: por de trás domodo de ver, das concepções e das convicções deum líder ou de um administrador, quais são osseus desejos profundos e o seu universo defantasias? O título em inglês do simpósio,"Fantasias e Liderança" (Fantasies andLeadership), mostrava bem a ênfase sobre ouniverso fantástico subjacente à liderança e àadministração.

Tendo a liderança sua origem na realidade

interna da pessoa, no seu imaginário, na sua visãoe no seu universo fantástico, seria principalmenteno caso dos líderes que se esperaria ver a mani-festação mais evidente dessa realidade interior ouescondida. Escolhendo de preferência estudos decaso e obras sobre o imaginário como material emétodo de pesquisa, esse simpósio adotou umaperspectiva de estudo que poderia ser qualificadacomo fenomenológica. Esperava-se apresentarcasos de líderes que se aproximassem o máximopossível do real fenômeno da liderança, nocontexto da administração ou no ambientepolítico. A fenomenologia adota um preconceitobastante claro no plano do conhecimento.

" ... E necessário permanecer (no fenômeno em simesmo), sem fazer pressuposições, descrevê-losomente tal qual ele passa. Assim, delineia-se, ao cen-tro da meditação fenomenológica, um momentocrítico, uma 'negação da ciência' (Merlau-Ponty)que consiste na recusa de passar à explicação, ... porqueexiste sempre uma pré-reflexão, um irrefletido, umantipredicativo sobre o qual se apóia a reflexão, aciência, e que comufla as coisas, sempre quando querdar razão a ela mesma"?",

O simpósio adotou também uma perspectivade pesquisa psicodinâmica de orientaçãofundamentalmente psicanalítica. Os casos, então,tinham que não só mostrar as intenções e oscomportamentos externos, mas igualmentecompreender e revelar o universo interior doslíderes, sentir a finalidade profunda subjacente àsações deles e sentir o seu imaginário e as fantasiasassociadas à ação.

AS OBRAS DO IMAGINÁRIO

As obras do imaginário (filmes, romances,peças de teatro ...) são meios privilegiados deconhecer as práticas de liderança e de sobre elasrefletir. Essas obras são não somenterepresentações mais globais das práticas deliderança, como também o resultado dasprojeções feitas pelos romancistas, dramaturgos,produtores e diretores, sobre as realidades dopoder e da liderança.

Todo o conhecimento revela o imaginário e é,

12. Idem, ibidem.13. GROUPE DE RECHERCHE SUR LES PRATI-

QUES DU LEADERSHIP EN GESTION. L'imaginaire etle leadership. Ecole des Hautes Etudes Commerciales,Montreal, 1986,583 páginas.

14. LYOTARD,[ean-François. "La phénoménologie".In: Que Sais-je? Paris, Presses Universitaires de France,1969,128 páginas.

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então, necessariamente subjetivo pela forte razãode que busca conhecer a subjetividade em simesma. Esse conhecimento, que se adquire pelaprática e pela experiência pessoal, é maisfreqüentemente um conhecimento indutivo,sentido, intuído e inconscientemesmo, do q1}eumconhecimento lógico ou dedutivo. E umconhecimento que se encontra, por vezes, confir-mado assim que se lê um romance, quando se vêum filme ou uma peça de teatro. Algumas obrasditas de ficção (ou do imaginário), ao seremelaboradas e realizadas pelos indivíduos quetinham uma compreensão profunda da personali-dade, permanecem como uma maneira privi-legiada de conhecer a realidade psíquica retra-tada: Macbeth ilustra bem o sentimento de culpada pessoa ambiciosa que eliminou alguém numaposição de mando (na realidade ou na fantasia) eque é assombrado pelo remorso e por visões dotipo pesadelo: Oursgan sur le Caine, no romance deHerman Wouk ou no filme clássico de EdwardDmitryk, põe em cena um escritor covarde quesente bem o medo experimentado por um coman-dante de navio, vítima de uma viva ansiedade deperseguição durante um período crítico de suacarreira e que tenta combater seu sentimento deimpotência, querendo instaurar a perfeição abordo de seu barco por meio de um controlemeticuloso e onipotente.

Inspirando-se em certos aspectos da vida domagnata da imprensa americana, WilliamRandolph Hearst, e aí projetando certoselementos de sua própria personalidade, OrsonWells ilustra no Cidadão Kane a carreiratumultuada de uma pessoa narcisista, queprocura desesperadamente o amor, gastando suafortuna para comprar, para impressionar ou parachamar a atenção. Termina sua existência só, numcastelo cheio de coisas, mas vazio de amor. Essefilme, que foi considerado durante décadas comoo maior filme jamais realizado, retrata umrepórter de atualidades filmadas que parte embusca da "verdade" a respeito desse CharlesFoster Kane, cuja vida foi marcada por todos ostipos de excessos. Descobre-se que quandocriança ele foi confiado por sua mãe, que setornou rica rapidamente, a um banqueiroencarregado de lhe dar uma educação que lheassegurasse sucesso e riqueza. Durante toda a suavida, ele tentou reencontrar sua infância perdida,simbolizada por "Rosebud", a marca de seu trenó.Mais recentemente, Une étrange affaire, do diretorPierre Granier-Deferre, ilustra até que ponto oimaginário da dependência pode conduzir arelação entre duas pessoas. Coloca em cena umchefe cujo poder se exerce de maneira muito

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dependente, exigindo lealdade a todo o momento.Esse chefe termina por destruir literalmente ojovem subordinado, este também ávido pelopoder, mas cuja grande dependência o leva aalienar-se totalmente pelo chefe onipresente.

A lista das obras sobre o imaginário, quepodem contribuir de maneira significativa para oconhecimento dos fenômenos de direção pode serlonga. Essas obras, ditas de ficção, são fruto dagestação daqueles que as concebem e repousam,em grande parte, sobre a projeção do seuimaginário; e, nesse sentido, são capazes de muitoensinar sobre o próprio imaginário daadministração. Ao longo do simpósio, osparticipantes foram convidados a refletir arespeito das realidades da liderança, do modocomo são representadas pelo cineasta RichardAttenborough no filme Gandhi (o assunto Ghandiserá retomado mais adiante) e pelo Teatro doNovo Mundo na peça Otelo, tal qual foi encenadapor Olivier Reichenbach. Otelo é o drama dainveja e da ruptura. lago, por não aceitar ter sidopreterido em relação a Cássio, chega a realizar seupotencial destrutivo, apoiando-se na idealizaçãopor ele suscitada a partir de certos aspectos desua personalidade; com efeito, Shakespeareapresenta Otelo como um personagem glorioso ede prestígio, mas, no entanto, infantil e retardadoafetivamente, fato que o leva a deixar-se enganarpela lucidez fria de lago e que provoca suatragédia final.

TRÊS CASOS DE DIRIGENTES

Nas escolas de administração, é geralmente ométodo do caso que se utiliza como recursodidático. O simpósio apresentou casos escritosdestinados a estudar os fenômenos da direção.São apresentados aqui três deles 'para examinarcomo o imaginário desses três dirigentes está nocentro de suas práticas. Esses exemplos são de umadministrador de Quebec, um alto funcionárioamericano e um líder indiano.

1. Maurice Fortier (nome fictício) é umadministrador de Quebec que conheceu umenorme sucesso na direção de uma grandeempresa, atuante no Canadá, de costa a costa.Sua capacidade de trabalho e sua aptidão para ocontrole contribuiram grandemente para osucesso de sua carreira. Seu desejo de assumiramplas responsabilidades, sua inclinação paraexercer um controle meticuloso e cerrado (handson type of control) levaram-no muito cedo a quererconhecer perfeitamente os produtos de suaorganização e os seus diferentes clientes. Ocontrole preconizado e praticado por Fortier não

era de natureza burocrática, uma vez que nãoatuava por procedimentos e formalidades; erasobretudo um controle direto, de pessoa a pessoa.Seu talento para o controle valeu-lhe aproveitarperíodos de crise que a empresa conheceu, comoacontece freqüentemente aos "administradores decrise" (trouble shooters) (15).

Fortier adquiriu o senso do dever (compulsivi-dade) através da identificação com seus pais.Estava, na verdade, muito identificado com paisexigentes e ambiciosos, mas do quais guardavatambém uma imagem de benevolência, deternura e de calor. E verdade que uma criançaconfrontada com uma figura de pais exigentespode interiorizar as figuras paternais e se tornar,por sua vez, uma figura exigente com os outrosem sua volta, especialmente no exercício dopoder e da liderança. Será possível constatar umacerta imitação moral e física ou uma adoção decertos estilos de poder representada pelas figurasinteriorizadas dos pais. Nesse sentido, pode-sedizer que, de uma certa maneira, Maurice Fortierreproduziu seus pais.

Seu senso de dever pela identificação tevecomo corolário levá-lo a suplantar seus pais ecorrigir a impossibilidade de realizar os sonhosdeles, fato que percebeu como injustiça. Paramostrar como se manifestou essa "reparaçãoimaginária", mencionam-se seus esforços paramelhorar ou desenvolver seus subordinados(consertá-los), o que implica tolerância para comas fraquezas ou mesmo a burrice humana, seudesejo de contribuir pessoalmente para que oscanadenses franceses assumissem o lugar que ostraz de volta ao centro do mundo dos negócios e,enfim, as numerosas sociedades filantrópicas oubeneficentes às quais ele ofereceu sua ajuda deforma desinteressada (empresas que buscavamconsertar a sociedade e melhorá-la). Ainda porcima, toda a carreira profissional e a prática daliderança de Fortier consistiram em assumir aresponsabilidade das empresas que deveriam serreparadas ou restauradas, freqüentementeempresas cujo próprio objetivo era o da correção.Trabalhou em duas empresas que se encontravamem situação difícil, às margens da catástrofe, ondeseu talento para o controle foi explorado, sob ainvestigação dos bancos que o levaram adesempenhar um papel de reformador e dereparador.

Sua liderança, como todas as outras lideranças,portanto, era do tipo transformador da realidadeexterior. Não procurou restituir, de maneira maisou menos lógica, situações idealistas ou estadosanteriores. A partir da realidade tal qual ela seapresentava, quer dizer, defeituosa, deteriorada

ou quebrada (quer se tratasse da realidademecânica, organizacional ou social), foi contra-tado para uma reparação concreta, realista, quepermitia aos veículos, aos motores, às empresas,aos indivíduos ou à sociedade perseguirem maislongamente suas carreiras ou seus verdadeirosdestinos: uma prática devotada à suplantaçãopela reparação. O líder criativo passa inevita-velmente pela reparação daquilo que existiu nopassado e não pela tentação mágica de quererrecomeçar do zero ou fazer como se nada tivessehavido, ou ainda, como se os danos acontecesseminvoluntariamente.

2. J. Edgar Hoover esteve na direção do FBIdurante quase 50 anos. Apesar do segredo queenvolvia sua vida, sabe-se era muito desconfiado,levado a ver inimigos por toda a parte e a secercar-se de colaboradores de lealdade irrestrita.Hoover tornou-se o defensor da "pureza ame-ricana". Como para o puro tudo é impuro, toda aexistência de Hoover era dominada pelo ima-ginário de vigilância dirigida contra os inimigosdo sistema do qual ele queria preservar a pureza.Em si mesmo, Hoover identificava-se com o FBIecuidava de sua imagem. Todos deveriam nutrirseu narcisismo, sua megalomania e seu sen-timento de ser o todo poderoso infalível. Em con-seqüência, estava obcecado pela necessidade demanter a crença de que era capaz de controlartudo à sua volta, tanto no exterior como nointerior da organização. Dentro dessa lógica,montou uma organização muito eficaz, na qual aautoridade estava totalmente centralizada em suapessoa. Dotou a organização de um quadro depessoal profissionalmente formado, cegamentedevotado, minuciosamente controlado eregulamentado.

Mesmo que seja necessário reconhecer que avisão do FBIproposta por Hoover correspondesseao imaginário coletivo do americano da época, éinegável que seu universo fantasioso (narcisista,desconfiado e obcecado) permitiu-lhe reconhecerum sucesso e uma longevidade admiráveis àfrente desse serviço público que havia moldado àsua imagem. "O FBI é Hoover", diz ia-sev", Ébastante interessante ressaltar que, ao dar-se àmissão de defender a Constituição contra todos osseus eventuais inimigos, Hoover rapidamentecomportou-se como um semideus, como se

15. LAPIERRE, Laurent & TOULOUSE, [ean-Maire,Op. cito

16. UCHENICK, [oél J.; HOOVER, Edgar & FBI. "Lerenseigrnent et le pouvoir". In: L' imagina ire et leleadership. Op. cit., pp. 176-210.

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estivesse acima dos simples mortais que eram osprocuradores gerais (serviu sob 16 dentre elesdurante seu reinado) ou mesmo os presidentesdos EEUA, dos quais conheceu oito. Numaretrospectiva, sua atitude não era senão aquelaque lembrava seus inimigos subversivos por eleperseguidos.

3. Gandhi foi um líder que, sem jamais terocupado ~m posto de mando em seu país,libertou alndia da opressão e do colonialismoinglês. Foi o pai de uma estratégia bastanteadmirável que se revelou eficaz e que foiretomada muitas vezes depois: a resistência ativa(militante) e não violenta. Gandhi percebia asnecessidades 1undamentais da vida, particu-larmente o sexo e o alimento, como dando lugaràs paixões violentas e aos excessos. Todos osesforços de controle de Gandhi (sua alimentação,suas vestes, seu celibato, a fidelidade de suaesposa, sua retidão, sua violência, suas paixões ...)parecem ter sido dirigidos contra sua sexuali-dade. Dizia-se obcecado, cego pela sexualidade.Jovem, essa obsessão o havia levado anegligenciar seus deveres frente a seus pais.Experimentava remorsos, vergonha e culpadurante toda a sua vida, o que provocou trêsperíodos depressivos que permitiram sentir onúcleo conflitivo de seu imaginário.

A sexualidade masculina sempre esteve, paraGandhi, associada à violência. A resistência ativa,não violenta, não foi para ele unicamente públicae política; foi sobretudo pessoal e sexual. E essaúltima resistência, essa luta contra a fantasia doerotismo'!", que foi a "verdade" de Candhi?", aprimeira não sendo, senão, uma sublimação ou ocontrapeso da segunda.

CONCLUSÃO

Neste texto, foi levada a efeito uma reflexãosobre os fenômenos de direção e de liderança naadministração, através do viés da influência doimaginário das pessoas em postos de mando. Oimaginário foi apresentado como um componenteimportante da personalidade. Sua utilização paracompreender os fundamentos das práticas deadministração é recente. Apesar da complexidadeque encobre esse conceito, sua utilização épromissora porque ajuda a compreender osprincípios fantasiosos das diversas práticas deliderança e de administração. Foi proposto umconhecimento do imaginário que utiliza estudosde casos e obras de ficção. A utilização dessasduas vias de conhecimento não nega acontribuição de modelos ou de teorias. Quer,

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simplesmente, retratar de modo mais próximo, eem toda a sua profundidade, o fenômenoestudado.

Revalorizar, pelo viés das obras de ficção, oconhecimento de nossa atividade fantasiosa ouimaginária e nosso conhecimento das realidadestanto externas quanto internas, revalorizar pormeio de histórias de casos o conhecimento adqui-rido pela vida, a experiência ou as práticasescritas, não minimizam em nada a contribuiçãodas vias tradicionais do conhecimento. Umagrande parte dos estudos voltados às questões dapersonalidade e do poder consiste em buscar edescobrir o que já se sabia, mas que se guardavaescondido e encoberto. Os bons estudos, mesmoaqueles que nos propõem o imaginário, estãoenraizados na vida, na experiência e na prática?",Não é, então, surpreendente que as boas teorias,mesmo que elas possam ser difíceis de aceitarquando tocam as realidades profundas do ser,confirmem, freqüentemente, um conhecimentointuitivo ou inconsciente que já se tinha sobreesses fenômenos, mas que não se ousava aceitarou reconhecer. (20) O

ABSTRACT: This paper deals with the way orga-nizations are managed by those who work at the topoIt has been clearer each day that it is not a question ofa "rational" process as most of the literature about thissubject claims. Actually the orientations, the decisionsand actions assumed by thoee managers clearly expresstheir personal marks that are born in a whole of desires,convictions, preferences and particular interests thatdescribe quite well their unique personalities asexecutives.The paper refutes the nai"ve belief that "goodadministration", "good decisions" or "good resulte"achieved by the organizations are necessarily theconsequence of the simple use of procedures detachedfrom the personal characteristics of the manager himself.

KEY TERMS: leadership styles, the unconscious,personality, managers.

17. Kakar, Sudhir. "Gandhi et le fantasme de l'erotís-me". In: L'imaginaire et le leadership. Op. cit., pp. 146-174.

18. ERIKSON, Erik. La verité de Gandhi. Paris. Flam-marion, 1974, 432 páginas.

19. GLASER, Sarney & STRAUSS, Anselm. The Dis-covery of Grounded Theory: Strategies for Qualitative Rese-arch. Chicago, Aldine Publ. Co., 1961.

20. Texto publicado originalmente na Revue Interna-tionale de Gestion da Ecole des Hautes Etudes Commer-ciales, Montreal, fevereiro/87.