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Ilustração de capa: Áxel Sande

P E D R O B A N D E I R A

ROCCO

JOVENS LEITORES

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Capítulo 1

Olha lá o Caramujo... Sempre na dele, né? É... Esse garoto não está nem aí... Ele é assim... Ao passar pelo corredor do colégio, Caramujo não ouviu a conversa sussurrada entre duas alunas. Mesmo que tivesse ouvido, fingiria não ouvir. Ele era assim. Caramujo... Esse apelido é bem do jeitinho dele. Quem foi que inventou? Sei lá... Acho que já veio pra essa escola com o apelido junto. Quieto, sempre no seu canto, o rapaz nem se importava que o chamassem de Caramujo. Seu pensamento era difícil de compreender. Isolava-se, fechado dentro de si. - Feito caramujo mesmo. Mas eu acho essa casca bem bonitinha... Fechado sim, mas, o que as duas meninas não sabiam é que, nos fins de semana, Caramujo era diferente. Aprendera com a mãe a gostar de cavalos. Mãe Mariana nascera numa fazenda, no cerrado goiano, e mudara-se para São Paulo para casar-se, trazendo consigo a paixão pelos cavalos. Sempre que podia, a mãe arranjava um jeito de levar o filho para algum sítio ou clube hípico que alugasse bons cavalos e não cobrasse muito das visitas. Nesses dias, os dois passavam o tempo montados, com o vento a bater no rosto, ouvindo apenas a respiração ruidosa ou o patear dos animais. Para mãe

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e filho, era muito mais fácil compreender as manhas e os caprichos dos cavalos do que das pessoas. Uns quinze anos, né? Acho que catorze. Ele aparenta uns dezesseis...

Pode ser...

- Gozado... Nunca vi o Caramujo batendo papo com ninguém. Ele tem algum amigo?

- Acho que não. Acho que não tem nenhum.

Os colegas eram colegas, apenas conhecidos, e nenhum deles jamais pudera aprofundar-se na vida dele a ponto de tornar-se algo parecido com um amigo.

- Hum... - fez a colega, com ar maroto. - E namorada?

Nem pensar!

Eu queria saber quem é esse garoto na verdade... Quem ele era de verdade era um problema só dele.

Ninguém tinha nada com isso. Sempre isolado, ele nada fazia para mudar o que pensavam a seu respeito.

Você sabe o que ele fez no começo do semestre?

Não...

- Foi na prova de matemática da oitava. Me contaram. Uma prova daquelas lascadas. Um garoto sentado na frente do Caramujo trouxe uma cola. Um papelzinho pequeno, bem-feito, com todas as fórmulas anotadas. Mas pelo jeito estava nervoso e deixou a cola cair no chão, bem à vista do professor.

- Ai, já imagino o desastre!

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- Pois foi. É claro que o professor percebeu. E veio lá do seu estrado, triunfante!

- Eu conheço esse professor. É um sádico.

Se é! Veio disposto a acabar com a vida do dono da cola. Mas o papelzinho tinha caído do lado de um outro aluno e o professor já veio acusando o colega inocente. O coitado se defendeu, protestou, mas acabou fora da classe e com um belo zero na prova.

Mas, e o que tem o Caramujo a ver com essa história?

É que, além do verdadeiro culpado, só Caramujo sabia de quem era a cola!

Quem te disse? Ele mesmo? Ele disse que tinha visto a cola cair?

Ora, o Caramujo nunca diz nada! Mas ele só podia saber! O dono da cola se sentava bem na frente dele!

Mas ele podia estar envolvido na prova e não ter percebido nada!

Ah, você não conhece o Caramujo... É claro que ele sabia. Mas, como um caramujo, fechou-se na casca. E foi isso que ele fez, quer dizer, que ele não fez: deixou de fazer o que devia ter feito.

Tá bom, talvez ele tenha visto tudo mesmo. Mas vai ver ele não queria delatar ninguém...

O Caramujo? Nada disso. O que ele não queria era meter-se em confusão. Como sempre, ele fingiu que não tinha nada com aquilo. Ele sempre foi desse jeito. Pra falar a verdade, o Caramujo nunca mostrou que tinha nada a ver com qualquer coisa.

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Eu acho que mais culpado que ele foi o que estava colando. O que estava colando é que devia ter confessado e assumido a culpa.

É. Mas, além da covardia do culpado, só tinha o Caramujo pra salvar o pescoço do inocente.

Você está dizendo que o Caramujo é covarde?

Sei lá. Os caramujos são covardes? Acho que não. São é fechados mesmo.

Pode ser. Mas, se eu achasse um caramujo desses na praia, não jogava de volta pro mar...

Capítulo 2

- O Caramujo nem é muito bom de bola! Na hora do racha no recreio, acaba ficando em um dos times, só pra completar...

O garoto ficava lá pela lateral, entrando nas jogadas quando dava. Preenchia seu espaço calado, fazendo seu papel sem gritar com os outros, sem pedir a bola nem reclamar aos berros, como fazem todos os garotos.

E lá veio o ponta do outro time, gingando, ciscando, rápido e confiante em sua própria malandragem. Olhava com o canto dos olhos para o Caramujo, provocando e esperando o momento certo para o drible.

Caramujo entrou de leve e, sabe-se lá se por querer ou não, puxou a bola com a ponta do tênis e, ato contínuo, a bola escapou e milagrosamente passou por entre as pernas do adversário. Desequilibrado, o ponta caiu

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sentado na quadra. Uma jogada involuntária mas, para quem o presenciou, foi um drible espetacular, desmoralizante, que levantou uma onda de gargalhadas entre os alunos que assistiam à partida.

Mal ouvindo as risadas, Caramujo já tinha dado a volta no adversário caído e erguia os olhos para descobrir em direção a quem ia livrar-se da bola conquistada com aquela jogada que jamais fizera na vida, quando, por trás, veio a vingança. O ponta erguia-se do chão onde estatelara-se humilhado e girava a perna no ar, num pontapé traiçoeiro.

Logo após a agressão, ouviu-se um gritinho de susto e de pena, feminino.

Doeu. Doeu como fogo. Caramujo caiu de lado, surpreso, agarrando o joelho ferido, e já o agressor pulava em cima dele.

Do chão, o agredido girou a perna boa e acertou violenta sarrafada no agressor.

- Sarrafada!

O ponta dobrou-se de dor e tombou de novo, com um gemido surdo.

- Ahn...

E seus companheiros caíram em cima do Caramujo:

- Pega! Pega o Caramujo!

Antes que pudesse esboçar qualquer gesto de defesa, outro incêndio explodia-lhe no rosto, esmurrado.

Se fosse possível, naquele momento teria lembrado do que lhe dizia a mãe:

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- Quando um cavalo fica agressivo, escoiceia, não adianta gritar nem bater nele. Ele está com medo, está nervoso. Você tem de acalmá-lo, senão ele fica mais nervoso e agressivo ainda...

Com os cavalos, bastava treinamento, compreensão e carinho. Não era como no futebol da vida.

A fúria adolescente perdia o controle, e Caramujo defendia-se, agitando os braços às cegas, quando apa-receu o bedel:

- Parem com isso! Cadê o Eduardo? "Caramujo" no colégio, "Dudu" para a Mãe Mariana, "Eduardo" só na hora da chamada.

O Caramujo?

É. O da oitava B.

Lá. No meio da confusão.

O bedel enfiou-se quadra adentro apartando a briga e arrancando Caramujo do agarramento, um amontoado de pernas, de braços e de raiva.

Parem com isso, moleques! Meio tonto, Caramujo pôs-se de pé.

Eduardo, para a Diretoria, já!

Caramujo não disse nada. A culpa não era dele, mas nenhum dos outros jogadores erguia a voz acusando a deslealdade do ponta. De que adiantaria argumentar? Agora seria a bronca do diretor e na certa uma suspensão. Levantou-se, cerrando os punhos para não chorar de dor.

Talvez a mesma voz do gritinho agora murmurava,

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penalizada, vendo o garoto manquitolar na direção do prédio da escola:

- Tadinho...

Quem seria? Alguma das meninas bonitas da sala? Não ousou olhar. Para ele era mais fácil enfrentar o moleque agressor do que encarar a garota. Depois, talvez, ele sonhasse com ela, à noite, na solidão do quarto. Com ela, com qualquer uma delas.

E em casa? Um castigo a mais por ter sido suspenso? Mas nem para a Mãe Mariana ou para o pai ele iria queixar-se da sarrafada desleal do ponta. Sofreria os dois castigos e pronto.

Caramujo era assim.

Por que o bedel não mandava também o outro para a Diretoria? Mas não perguntou. Ele era assim.

Capítulo 3

O olho esmurrado estava roxo e já se fechara pelo inchaço quando Caramujo entrou na sala do diretor.

Eduardo! O que houve com seu olho?

Nada. Eu caí.

Está doendo?

Não.

Naturalmente o diretor sabia o que significava olho roxo em cara de moleque, mas não esticou o assunto. Passou o braço pelos ombros do Caramujo e o conduziu

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delicadamente até uma cadeira.

- Meu filho, sente-se. Precisamos conversar. Meu

filho?! Que história era aquela? Tudo o que aquele diretor costumava dizer a quem era enviado à Diretoria era "moleque incorrigível!". Agora ele vinha com meu

filho? Havia algo de estranho no ar...

- Meu filho, eu pedi que você viesse aqui porque... bem...

Pelo jeito Caramujo não havia sido mandado pelo bedel à Diretoria por causa da briga. A razão devia ser outra. Caramujo esperou.

- Para mim não vai ser fácil dizer o que eu tenho de dizer. Sabe, Eduardo, os seus pais... eles...

O diretor calou-se, como se tivesse esquecido o assunto que tinha a tratar.

O rapazinho ergueu o rosto e falou, num fio de voz:

Meus pais? Eles não estão em casa. Foram a Santos, assinar não sei o quê.

Pois é... Foram a Santos. Eles foram juntos... de carro, não é? Sabe, Eduardo, é difícil...

A frente do olho são do Caramujo, a figura do diretor parecia insegura, algo trêmula, como em um filme desfocado.

- Eduardo, é terrível...

Por dentro do olho fechado, dolorido, uma imagem começou a formar-se e foi ficando nítida aos poucos.

- ... um acidente...

Asfalto. Ferros retorcidos. Estilhaços de vidro. Sangue...

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-... uma tragédia...

Caramujo quase pôde ouvir a freada longa como o guincho de um porco ao ser sacrificado. O asfalto ia se tingindo de vermelho. Um rio vermelho. Uma cachoeira vermelha. Um mar vermelho cobrindo a estrada, descendo pela encosta, escorrendo pela Mata Atlântica e indo tingir de sangue as águas poluídas do Gonzaga.

Trombada. Tromba-trombada. Sarrafada. Sarra-sarrafada, sarra-trombada, tromba-sarrafada... Morte.

Agora ele estava só.

Capítulo4

Quem era aquela gorda que o abraçava tanto e chorava como quem assiste a final de novela? E aquele que apertava uma barriga imensa contra a sua? E o outro, fedendo a cigarro, que ainda lhe sapecara um beijo babado no rosto?

Caramujo não se mexia nem respondia aos votos de pesar que toda aquela gente se achava obrigada a lhe oferecer.

Seus olhos, ou melhor, seu único olho aberto estava fixo nos dois caixões, lado a lado, iluminados por velas como num duplo aniversário.

Nenhum dos olhos chorava. O garoto estava vazio por dentro. Estava sem a Mãe Mariana, estava sem o pai, estava sem tudo. Onde ir buscar as lágrimas?

Se alguém pudesse procurar algo dentro daquele

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garoto, ele estava certo de que nada seria encontrado. Na aparência, ele estava vivo. Mas estava agonizante por dentro.

Mamãe... Mariana... Mãe Mariana... A habilidade para montar, a paixão pelos cavalos... Estava tudo acabado.

O pai... Papai... Sempre sem tempo para conhecer melhor o filho. E ele, sem oportunidade de revelar-se para o pai. Agora não haveria mais nada. Nem tempo, nem oportunidade.

Caixões separados. Seus pais iriam dormir para sempre em caixões separados. A morte era uma espécie de divórcio.

Os caixões. Eram do mesmo tamanho. Pretos, retintos, brilhantes. Tinham os mesmos enfeites prateados. Pareciam a caixa de jóias da mãe, onde o pouco dinheiro só deixava guardar bijuterias. Mas Caramujo nunca tinha visto flores na caixa de jóias. Nem cadáveres.

Caramujo ficou imaginando a caixa de jóias cheia de flores pequenas para dar proporção. Violetas ou margaridinhas? E, dentro, o quê? O que caberia na caixa de jóias, toda com enfeites prateados como um caixão? Um rato, talvez?

Olhou para o perfil do rosto da mãe, destacando-se só um tantinho acima da borda do caixão. E pensou:

"Mãe, levanta daí! Vamos cavalgar, mamãe..."

O perfil imóvel, pálido, respondia com o silêncio eterno ao desespero do filho.

"Respira, mãe... Faz um esforço! Eu estou aqui... Estou sozinho, mãe..."

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Naquele instante, a dor e o desespero foram invadidos como se uma revoada de gralhas cobrisse o céu de negro para saquear o interior de sua alma:

- Meu queridinho! O que aconteceu com seu olho? Queridinho! Coitadinho de você!

Ai, aquela voz irritante só podia ser da tia Alzira, a irmã mais velha de seu pai! Ai, por que ela sempre se enchia tanto de perfume? Por que se perfumar tanto para vir a um velório? E logo o velório do irmão e da cunhada?

- Meu queridinho! O que vai ser de você agora, sem papai, sem mamãe?

O ambiente estava na penumbra. Caramujo só podia ver silhuetas de pessoas dançando pelas paredes à medida que a brisa da noite balançava a chama das velas. Todas cochichando, que era para não acordar o casal de cadáveres.

- Eu adoraria que você viesse morar com a gente, queridinho. Mas o meu marido... Você sabe, não é? Sabe o jeito do Arnaldo...

Estava abafado. Lá fora, alguns homens contavam piadas, que é o que fazem todos os homens em todos os velórios. Uma gargalhada externa juntou-se a um soluço fingido ao lado dos caixões.

Estava abafado. O cheiro de dezenas de axilas suadas misturava-se ao cheiro de velas, ao perfume da tia Alzira, ao cheiro de flores murchando e a um vago odor ácido que vinha dos caixões.

- Acho que você ficará muito melhor com a sua avó.

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Você sabe, a sua avó Ana, lá no Encantado, lá em Goiás, na Fazenda do Encantado. Que nome lindo, não acha? Você vai ficar "encantado"! Ih, ih, ih...

Os cheiros entravam-lhe pelo nariz e a voz irritante pelos ouvidos. Tudo ia juntar-se no estômago, formando um bolo. Sem uma palavra, o rapaz apertava as mãos com tal força, que haveria de ferir as palmas, se as unhas estivessem compridas.

- Eu já passei um telegrama para a sua avó. Ih, ih! Você sabe, não é? Naquele lugar atrasado não tem nem telefone! Mas o correio chega na vila próxima. A essa hora, sua vovó já deve ter recebido meu telegra-minha. Sua vovó vai cuidar muito bem de você. Esteja sossegadinho, queridinho...

Caramujo deixou tia Alzira falando sozinha e correu para fora, nauseado, à procura de ar puro e isolamento.

Escondido sob a escuridão de uma árvore nos jardins do velório, o garoto enfim conseguiu transformar a náusea em lágrimas.

Chorou baixinho, sozinho, tão sozinho...

Capítulo5

"Atenção, passageiros do vôo 5123 com destino a Curitiba, Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires: queiram dirigir-se ao portão 12 para embarque e boa viagem..."

No saguão de espera do aeroporto, uma palmeira

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raquítica e duas dúzias de pontas de cigarro estavam enterradas numa floreira ao lado do banco onde se sentava Caramujo. À sua frente, um homenzinho não sabia se lia um jornal ou cuidava da malinha de executivo que trazia sobre os joelhos.

"Se essa malinha fosse um bebê", pensou Caramujo, "acho que esse sujeito não se preocuparia tanto..."

E com ele? Quem haveria de preocupar-se? Ele tivera pai e mãe. Agora não tinha mais nada. Não sobrara nada. Ele estava indo para onde tinham mandado que ele fosse. Mas nada esperava desse porvir desconhecido. Naquele momento, Caramujo não tinha futuro.

"Your attention, please, ladies and gentlemen,

passengers of the flight 5123..."

Estava sozinho no imenso salão de espera do aeroporto de Cumbica. Ele e mais algumas centenas de pessoas estavam sozinhos, cada uma cuidando de sua vida como se não houvesse ninguém em um raio de dez quilômetros.

O motorista do táxi que o trouxera ao aeroporto entregara-lhe um papel:

- Você é o Eduardo? A corrida já está paga. Mandaram que eu lhe entregasse este bilhete.

Caro rapaz, sua tia irá encontrá-lo no guiché da Varig

com a passagem e a autorização para a viagem.

Arnaldo

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A tia não estava no guiché da companhia aérea mas, logo que se identificou, uma funcionária solícita entregou-lhe a passagem e a autorização junto com o segundo bilhete:

Queridinho, infelizmente não pude esperá-lo no

aeroporto. Mas fique descansado que tudo está em

ordem. Sua tia providenciou tudinho. Obedeça à sua

avó Ana e não esqueça de escrever de vez em quando

para a sua titia, hein? Beijos.

Tia Alzira

"Até o bilhete fede a perfume!", pensou Caramujo ao amassar os dois papéis e enfiá-los na floreira junto com as pontas de cigarro.

Uma gargalhada feminina, clara como champanhe derramando em cristal, ressoou atrás dele. Voltou-se, esperançoso, aguardando a chegada calorosa da Mãe Mariana, para o preenchimento do vazio em que se encontrava.

Não havia ninguém. Apenas um grupo de passageiros em alegre despedida. Ninguém que lhe dissesse respeito. Ninguém que preenchesse aquilo que pela primeira vez ele sentia. O que era aquele sentimento? Solidão? Para ele, a existência de Mãe Mariana nunca permitira que ele percebesse a própria solidão. Talvez solidão fosse mesmo aquela nova sensação. Talvez fosse...

"Atenção, passageiros do vôo 3502 com destino a Belo

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Horizonte, Brasília e Manaus: queiram dirigir-se ao portão 9 para embarque e boa viagem..."

Caramujo pegou sua bagagem de mão, levantou-se e disse para si mesmo, olhando para um dos alto-falantes:

"Para onde eu vou? Para o inferno? Então, adeus..."

Foi o avião, foi uma refeição com gosto de plástico, foi uma escala, foi Brasília.

Foi um táxi, foi aquela arquitetura de concreto, asfalto e desolação, foi o calor sem oxigênio do Planalto Central.

Foi um ônibus, foi a secura vermelha do cerrado, foi o pó que emplastra o cabelo, seca a boca, resseca a alma.

Seco, tudo seco, tudo vazio do modo que Caramujo se sentia antes de ser trazido àquele destino. Seco, vazio, árvores retorcidas e esturricadas que mal faziam sombra. Parecia que o Sol estava ao mesmo tempo no nascente, no poente, no Norte e no Sul.

Mesmo sacolejando, mesmo com sede, mesmo com pó, mesmo com todo aquele nada em que sua vida tinha se transformado, Caramujo adormeceu.

Capítulo6

Rapaz, acorde. Chegamos.

Hein? Chegamos onde?

Não sei - respondeu o motorista. - Acho que a lugar nenhum. Mas o bilhete que me entregaram na última

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parada mandava que você desembarcasse aqui.

Caramujo não discutiu. Sua vida estava sendo comandada por bilhetinhos. Desceu e aceitou a ajuda do motorista para desembarcar a pequena bagagem.

O barulho do ônibus afastou-se até desaparecer, mas a nuvem de poeira vermelha continuou suspensa no ar.

Em torno, com a visão meio encoberta pela poeira, Caramujo via uma paisagem única, diferente de tudo o que conhecia. Pequenas árvores de troncos retorcidos e recurvados, de folhas grossas, espalhavam-se esparsas sobre uma vegetação rala e rasteira. Alvoroços de pássaros coloridos sacudiam as copas. Tudo seco e escaldante, manchas de verde pintalgavam moitas e arbustos descorados, como se a natureza só fornecesse água para alguns privilegiados. Ao longe, divisava-se uma mata toda verde, mais extensa, de árvores não muito altas. Além, por todos os lados, áreas imensas sem árvores, cobertas pela mesma vegetação rala e seca, exibiam o gado que ali pastava livre, como inúmeros pontinhos escuros na desolação amarelada.

Uma rajada de vento quente levantou mais poeira e entrou-lhe nos olhos.

O joelho quase já não doía. O pontapé não pegara tão em cheio quanto o agressor gostaria. E o garoto ficou ali, de pé, com suas bagagens cobrindo-se de poeira, à espera.

À espera de quê? Será que ele tinha sido abandonado naquele semideserto para morrer de sede antes de morrer de fome? Que lugar seria aquele? Que vida seria a sua, agora?

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Mas medo ele não teve. Nem chorou. Ainda que uma lágrima pudesse ser uma bênção líquida no meio daquela secura, daquela desolação.

Um vento quente mantinha no ar a poeira que o ônibus levantara ao perder-se na distância, e um zumbido incessante parecia envolver o garoto.

Caramujo procurou descobrir de onde vinha aquele zumbido.

A poucos metros, viu uma caveira de boi, com seus chifres, meio enterrada no pó. A caveira zumbia.

Uma colmeia havia se instalado dentro da caveira, fabricando o mel da morte.

O garoto sentiu-se subitamente preso em uma cela imensa, envolvido por um zumbido torturante, sufocado por uma poeira seca que parecia não baixar nunca.

E a poeira riu.

Bem, dizer que riu seria dizer pouco, porque a poeira gargalhou.

O garoto olhou em volta. Aquilo não era só um deserto infernal. Era o verdadeiro inferno, e os demônios já tinham chegado para atormentar-lhe a vida.

Só que aquela não tinha sido uma gargalhada demoníaca. Tinha sido a risada mais alegre, mais gos-tosa e franca que Caramujo já tinha ouvido.

Aos poucos, a poeira começou a tomar forma, e a sombra escura de um cavalo com sua charrete destacou-se do pó, como se o mais fabuloso dos mágicos resolvesse apresentar seu espetáculo àquela platéia, lotada de vazio, poeira, urubus e carcaças ressecadas.

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Mas havia também um garoto para assistir à função. E a mágica revelou um velho. O velho do cavalo, o velho da charrete, o velho da gargalhada.

De punhos cerrados, ele contra-atacou.

- Quem é você? O que quer? Está rindo de quê? De mim?

A enxurrada de perguntas jorrou contra o velho como se Caramujo quisesse construir uma barreira de palavras afiadas e atrás dela esconder-se das ameaças que estavam por vir.

O velho estava de pé, na boléia da charrete, segurando as rédeas com uma das mãos e batendo com a outra na coxa, para marcar o ritmo incessante de suas gargalhadas.

- Ora, vejam só! Teso e tinhoso feito um garrote! E esse olhinho roxo? Ah, invocado e brigão! Eu só queria ver o jeito que ficou o outro que te roxeou desse jeito!

- Quem é você? - repetiu Caramujo.

- Eu sou aquele que veio para levá-lo ao seu des-tino. É logo ali. Suba, Garrote!

De um dia para outro, Eduardo tinha passado de Caramujo a Garrote.

Capítulo7

O "logo ali" que o velho tinha dito quando o garoto perguntou onde ficava o Encantado era muito mais

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longe do que qualquer além que ele pudesse ter imaginado.

Por isso, enquanto o cavalinho trotava em direção à Fazenda do Encantado, onde sabia poder encontrar água e algumas espigas de milho para mastigar, aquela estranha dupla tinha todo o tempo que quisesse para aprender a se gostar. Ou a se odiar.

- Então é você, não é? - ria-se o velho. - Um garrote, o Garrote! Olhe que não aparecia ninguém da família de Nhá Nana aqui no Encantado desde que Nhazinha Mariana foi pra São Paulo. E novidade, novidade e tanto! Quem diria! Xucro e invocado feito um garrote. Macho e brigão. Ah! Um garrote, o Garrote!

Caramujo sentia como se ele fosse um castelo e estivesse sendo invadido por uma horda de hunos às gargalhadas. Por que aquele velho não o deixava em paz?

- Meu nome é Eduardo, não é Garrote. Pode me chamar de Caramujo, se quiser.

O velho largou as rédeas e fez um ruído com os lábios:

- Ptuí! Cara-sujo? Isso não serve pra um machinho como você. Vai ser Garrote mesmo. Pode crer: nome que o Velho Santinho batiza nem o Canhoto consegue mudar. Aqui no Encantado, os touros, os cavalos e as galinhas de botar têm nome inventado e registrado pela língua do Velho Santinho. Só não dou nome no que não vale a pena chamar.

O garoto baixou os olhos, percebendo que não adiantava lutar contra a teimosia daquele velho. Ele não sabia

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como esconder-se de uma gargalhada. Era preciso dizer alguma coisa, desviar a conversa daquela história de Garrote.

E você? Quem lhe botou o apelido de Velho Santinho?

Ah, de Velho, foi o tempo. De Santinho, acho que já nasci assim, embora meu nome, por gosto de mãe e decisão de pai, seja Santelmo Braz Martim de Oliveira. Nome comprido, não é? Comprido como a minha vida. Mas eu vou viver além do Oliveira. Hei de durar até o último sobrenome da Terra. Hei de acabar no Z e começar tudo de novo pelo A!

Passavam ao lado de árvores que protegiam, sob sua sombra, um tipo de capim robusto, que crescia além da altura de um homem.

O trote do cavalinho levantava uma poeira vermelha que fazia coçar os olhos do garoto.

- Ah! Danada de poeira, não é? Aqui é sempre assim. Isso é o inverno no cerrado. Tudo seco e Sol queimando a cabeça da gente. Nem no verão a chuva adianta. E só ela dar uma estiadazinha que lá vem a poeira de novo! Isso é o talco que Belzebu usa depois do seu banho de enxofre. Você há de se acostumar com a poeira do cerrado do jeito que eu já me acostumei com os meus calos! Ah, ah!

O velho falava demais, o garoto ansiava agora pelo silêncio que havia antes de aquele tagarela ter-se materializado à sua frente.

- Essa poeira faz parte dos meus ossos, Garrote. Faz parte da minha vida. E há de fazer parte da sua

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também. A vida de um boiadeiro é isso: poeira e campo aberto. Já comi desse vermelhão pastoreando zebu na Ilha de Bananal e até contrabandeando gado na divisa do Rio Grande. Só não conheço duas coisas na vida: o casamento e o mar. De casamento, ninguém me fale! Filhos eu já tenho alguns, até na Argentina.

Mas, casamento! Já pensou, viver ao lado de uma mulher que não fecha a boca um só minuto?

A gargalhada soltou-se forte, mas logo virou sorriso e os olhos do Velho Santinho fixaram-se à frente, enquanto as narinas tremiam como se uma brisa marinha subitamente invadisse o cerrado.

- Mas o mar... ah, o mar! Eu não hei de morrer antes de ver o mar!

Voltou-se para o rapaz e perguntou:

- Você já viu o mar, não viu, Garrote?

Antes que houvesse uma resposta, continuou:

- Você devia conhecer o Rio Grande. Não o Rio Grande de hoje, que está virando um deserto, que está desaparecendo o pampa, que está sumindo o gado, que agora só tem soja.

Fez uma pausa, como se pensasse em algo desprezível, e continuou:

- Soja! Deixaram de criar comida, deixaram de plantar comida pra plantar soja...

- Mas a soja...

- É comida? É nada! Soja é comida de cachorro lá na América. Não é comida de gente. Comida de gente é

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carne e feijão. O boi come de um lado e esterca a terra do outro. A soja come o leite da terra e só descome a miséria das gentes. Nada disso. Você precisava ter conhecido o Rio Grande em que eu vivi. É isso mesmo, já fui boiadeiro da fronteira, já fui boiadeiro de São Borja. Já trabalhei até na fazenda do Homem, sabia?

- Do homem? Que homem?

- Pois nunca ouviu falar? O Homem de São Borja só tem um, é feito Deus no céu e pai na terra. Getúlio Dornelles Vargas!

O velho riu novamente, fazendo com que sua lembrança de um passado histórico se transformasse numa reminiscência fabulosa, divertida.

- Você é novo demais, Garrote. Do Homem você só ouviu falar nos livros, não é? Mas eu já tenho o tempo que é preciso pra ter servido à História que você aprende hoje. Sou velho, não sou? Sou mais, sou eterno como o meu nome. Eterno como o fogo-de-santelmo, aquela ilumiúra que o demônio bafeja dos infernos e faz sair pelas covas dos cemitérios nas noites de lua cheia!

A risada explodiu de novo e espalhou-se pelo cerrado sem encosta ou parede onde ecoar.

- Para todo o mundo eu sou o Velho Santinho. Santinho, o maior de todos os cavaleiros que este país já viu, desde as barrancas do Uruguai até onde o Planalto Goiano vai misturar vermelho com verde na beira da

Floresta Amazônica. Se falassem de vaquejada do jeito que falam de futebol, Velho Santinho seria tão conhecido quanto Leônidas da Silva, o Diamante Negro!

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Aquela voz e aquele entusiasmo eram ingredientes estranhos à vida do Caramujo, que agora era Garrote.

- Quem é esse Leônidas?

Dessa vez, a gargalhada do Velho Santinho foi ainda mais aberta, mais divertida que todas as outras.

Você não sabe nada do passado, não é, Garrote? E está com medo do seu próprio futuro, não é, menino? Você tem muito que aprender com o Velho Santinho. Não te ensinaram nada na escola? De que mundo você veio? Em que ano você estava lá na escola?

Quase no fim do primeiro grau. Eu ia para o segundo grau no ano que vem.

Segundo degrau? Aqui você não precisa de escada, Garrote! O cerrado é todo plano. Não tem pra onde subir nem pra onde descer!

Surpreendendo-se com a própria piada, desta vez, a gargalhada do Velho Santinho soltou-se para estourar os tímpanos empoeirados do cerrado goiano.

- Veja, Garrote, estamos chegando. Logo ali é o Encantado!

O recém-chegado não riu.

Capítulo 8

Pesado de frutos que o garoto jamais havia visto antes e com um tronco que parecia ter sido torcido pelas mãos de um gigante, um copado pequizeiro erguia-se

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formando o marco de uma nova paisagem. A partir da árvore de pequi, começava uma espécie de rua larga, poeirenta, ladeada por uma fileira de buritis pejados de flores amarelas e por casinhas humildes na certa ocupadas pelo pessoal de serviço de uma casa-grande, que se espalhava como um enorme sapo sobre a terra vermelha.

O Sol se punha além desse cenário, ofuscando o velho e o garoto que se aproximavam no trote macio do cavalo.

Isso tudo é o Encantado?

É só o lugar onde dorme quem não tem de passar a noite cuidando do gado, Garrote. O Encantado é muito mais. Todo esse tempo, o cavalinho nos arrastou por cima do Encantado. Aqui o Sol nasce e se põe sem alumiar qualquer outra fazenda!

O cavalo ultrapassou o pequizeiro e começou a conduzi-los pela avenida de terra.

De cada porta, de cada janela, primeiro cabeças, depois corpos inteiros apareciam para recepcionar o passageiro da charrete. Na certa aquela era uma chegada mais do que anunciada. Uma quantidade inumerável de cães magros misturava-se por todos os lados com galinhas, patos e até uma cabra que, com o úbere estourando de leite, badalava monotonamente um cincerro atado ao pescoço.

A charrete avançava contra o Sol em direção à casa. Com os olhos cheios de pó e de luz, Garrote mal conseguia distinguir algumas sombras na varanda. Mas, obedecendo à marcação de uma peça de teatro, as sombras coadjuvantes dispunham-se de modo a

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destacar a sombra principal.

Vestida de negro, lá estava ela. Alta e seca, empertigada e rígida, soberana e altiva como a abelha-rainha daquela colmeia do inferno, coroada por uma cabeleira branca disciplinadamente esticada e amarrada atrás da cabeça.

Garrote lembrou-se da caveira que zumbia na desolação do cerrado. De repente, sentiu que o estavam enfiando à força naquela caveira de boi, dentro da colmeia, para ser recebido pela abelha-rainha.

E a abelha-rainha só podia ser sua avó Ana. Nhá Nana, do modo que o velho da gargalhada havia falado nela.

O Velho Santinho puxou as rédeas e deteve a charrete a poucos metros da varanda. O garoto voltou-se para ele. O velho não parecia com vontade de rir. Seus olhos estavam fixos na cena à frente da varanda.

Garrote seguiu-lhe o olhar. O Sol estava por trás da cena e ele só percebia silhuetas imóveis em cima e à frente da varanda.

Embaixo, dentro de um semicírculo formado por um grupo de pessoas sem rosto, sem gestos e sem voz, estavam duas silhuetas. Uma mulher, segurando carinhosamente o braço de um menino. Pequeno, bem pequeno, mais pela subalimentação do que pela pouca idade.

Uma figurinha montada em uma égua castanha, todo vestido em couro, falou. Voz submissa, mas afiada como um alfanje:

- Esse é o Tiãozinho, Nhá Nana. E o filho da Barbina.

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Foi ele que roubou o doce de abóbora da despensa...

A mulher chamada Barbina tremia. O menino Tiãozinho choramingava um choro mudo, cheio de água.

- Perdão, Nhá Nana - balbuciou a mãe. - O Tião-zinho é danado. Mas eu posso com ele. Juro que ele nunca mais...

A voz da sombra principal despencou da varanda, interrompendo e intimidando:

- Você jura? Então está jurado. E o que vamos fazer com ele, mulher?

Os lábios de Barbina tremiam, prejudicando a dicção:

Eu... ele... a senhora pode dar o castigo agora... juro que ele...

Eu? Dar o castigo? Eu não sou a mãe dele, mulher. Cria nova recebe educação é da mãe. Adulto que rouba é problema meu. Cria que rouba é problema da mãe. E você quem deve decidir qual o castigo da sua cria.

A pobre mulher olhou para o filho, apertou um pouco mais o bracinho magro e voltou os olhos para a sombra principal:

É, Nhá Nana... pode deixar que eu... ele não vai mais...

Carne-Seca! - cortou a sombra, dirigindo-se ao cavaleiro. - Ajude a mulher a educar a própria cria! Empreste seu chicote para ela!

Garrote olhou com mais atenção para a figurinha montada que falara antes e a quem Nhã Nana agora chamava de Carne-Seca. Era miúdo, com o corpo todo vestido de couro. Apenas as mãos pequenas e a cara

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ficavam de fora daquela armadura. Seu rosto era exatamente a sua caveira, apenas com dois olhos pequenos e falsos como os de uma boneca, e uma pele fina como um velho pergaminho a cobrir-lhe os ossos. Era tudo ressecado e repuxado, dando a impressão de que aquela figura sinistra estava sempre a rir, a rir de alguém, a rir de todos que, se escapassem da rigidez de Nhá Nana, cairiam no sadismo de Carne-Seca, o ca-pataz do Encantado. Do jeito que tinha caído o menino Tiãozinho, o pobre ladrão de doce de abóbora.

A autoridade do Carne-Seca estava no poder que lhe conferia Nhá Nana, e no chicote que nunca lhe saía das mãos: uma tira grossa de uns três palmos de couro, atada a uma tíbia de porco. Mansamente, do alto da égua, estendeu a mão, oferecendo o chicote à mulher, como se lhe fizesse uma gentileza.

Barbina tremeu do modo que se arrepiaria se uma lufada de vento gelado tivesse subitamente perturbado a secura do poente no cerrado.

Pegou o chicote como se fosse um ferro em brasa.

Hesitante, olhou para a varanda.

- Estamos esperando, mulher - a voz de Nhá Nana estava carregada de uma cruel suavidade. - Queremos ver se você sabe educar a sua cria...

O coração do garoto Garrote acelerou e ele levantou-se na charrete. No meio do círculo, com as lágrimas a escorrer fartas pelo rosto, a mãe começou a chicotear o próprio filho, à frente de todos.

Lept, lept...

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A voz da sombra principal não parecia satisfeita:

- Mais forte, mulher! Lept, lept...

O molequinho franzino não gritava nem se debatia, como se compreendesse que não era a mãe quem o torturava. A cada chicotada, correspondia apenas um gemido, um gemido doído, baixo, que não vinha da garganta de Tiãozinho, mas do desespero da mãe, que chicoteava a própria alma.

Mais forte! Ou prefere que Carne-Seca a ajude a educar direitinho a sua cria?

Upa! - fez o Velho Santinho, estalando as rédeas sobre o dorso do cavalinho, que retomou a marcha na direção da varanda.

A charrete chegou ao lado da mulher, e o Velho Santinho estendeu o braço, tomando-lhe o chicote e jogando-o de volta para Carne-Seca. Barbina abraçou o filho e os dois desapareceram silenciosamente no meio da pequena multidão.

O velho deteve o cavalinho e pôs-se de pé sobre a charrete. Ria alto, como se aquela brutalidade nem tivesse ocorrido, e exibia o garoto que trouxera através do cerrado. Apresentava o rapaz e parecia um mascate apregoando sua mercadoria:

- Povo do Encantado, aqui está o Garrote, filho de Nhazinha Mariana. Parece até que a própria Nhazinha Mariana está de volta para o Encantado, não é? Hein? Ninguém vai tirar o chapéu para o Garrote? Hein?

A ordem era perfeitamente dispensável. Nenhum dos homens tinha o chapéu sobre a cabeça, mas não era

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pelo Garrote. Era pela presença da sombra principal. O único que continuava com o chapéu na cabeça era o Velho Santinho. Ao Garrote, pareceu que só o velho tinha esse direito. Parecia ter mais. Parecia ter o direito de interromper uma sessão de tortura ordenada pela sombra principal do Encantado.

- Nhá Nana, aqui está o seu neto. Aqui está o Garrote!

O garoto desceu da charrete, confuso com a cena brutal que presenciara, aturdido com tantas mudanças, tonto de tantas palavras, e agora também sentindo uma nova emoção: frente àquela sombra, ofuscado pelo Sol, Garrote sentiu medo.

A sombra falava e, naquele momento, nenhum outro som se ouviu no cerrado.

- Vem cá.

A ordem seca como o pó ressoou por todos os lados: vem cá... vem cá... vem cá...

O rapaz, sacudindo a poeira das roupas, caminhou até a sombra.

Garrote... - murmurou a sombra depois de uma pausa, avaliando o peso do novo apelido do seu neto, que ela nunca conhecera. - Garrote...

É claro que fui eu que batizei assim, Nhá Nana -riu-se o Velho Santinho.

A voz da sombra endureceu-se.

- Pois se é Garrote, vai ser Garrote mesmo. Ouçam todos: este é o Garrote. É o meu neto. Não importa de quem ele seja filho. Não quero mais ouvir o nome de

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Mariana no Encantado. E isso serve também para você, Santinho!

Ao dizer isso, o rosto da sombra virou-se para o velho. Garrote, abaixo da varanda, pôde ver o perfil de cobre da avó recortado contra o céu que, àquela hora, tingia-se da cor da terra do cerrado.

Capítulo 9

Não viu mais a avó naquela noite. Foi levado para dentro da casa-grande por uma cabocla magra, vestida com um tecido de algodão branco imaculado.

Logo depois da porta muito alta, por onde passaria um gigante sem abaixar-se, havia uma sala ampla, na frente ocupada por sofás e poltronas de vime e ao fundo por uma mesa comprida onde se sentariam vinte pessoas. Atrás da mesa, uma vasta janela envidraçada revelava a amplidão do cerrado, já mergulhando na escuridão. Entre os dois espaços, o que sobrava do chão de tábuas caprichosamente enceradas daria para fazer um baile. Só que teria de ser com música ao vivo, pois o rapaz notou que não havia energia elétrica. A casa inteira estava vagamente iluminada por vários lampiões a querosene, espalhados por todos os lados.

O ar era tão pesado que ninguém poderia imaginar uma banda ali.

"Só se for para tocar música fúnebre...", pensou o

Garoto.

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No meio da sala, à esquerda, outra porta grande deveria dar para a cozinha, mas a moça guiou-o para a porta da direita, que se abria para um corredor, ladeado de mais portas.

A moça abriu uma delas e estirou o braço com um lampião, iluminando o interior. Era um quarto amplo, no qual poderiam dormir várias pessoas.

- Entre, Nhozinho Garrote. Este é o seu quarto. Acho que primeiro o senhor vai querer tirar a poeira dos ossos, não é? O banheiro fica ao lado, aquela porta ali. E água fria, viu? Não é feito água quente da cidade. Mas... com esse calor... não é? Até que é bom, não é? Se quiser, posso preparar um banho de bacia, com água esquentada no fogão...

- Pode deixar. Eu tomo frio mesmo. A moça pareceu aliviada:

- Os homens já vão trazer a sua bagagem. Logo eu trago o seu jantar. Nhá Nana disse que é melhor o senhor comer no quarto, hoje.

Na amplidão do quarto, uma mesinha já estava posta. Toalha, prato, talheres, copo e uma moringa. Um vasinho de porcelana, com uma flor amarela, coroava a arrumação.

- Se precisar de alguma coisa, é só chamar pela Dita. Meu nome é Madalena, mas pode me chamar de Dita.

O olhar de Garrote pareceu de espanto.

Achou estranho? Mas não ligue, não. Nhá Nana gosta assim. A cozinheira é sempre Dita, a arrumadeira é

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sempre Antônia, a copeira é sempre Maria. Não importa o nome que elas tenham recebido quando nasceram.

Mas qual é o nome delas de verdade? Se vou ficar aqui, preciso saber.

O nome da Antônia é Amélia e o da Maria é Jurema. Mas o Nhozinho não precisa saber disso, não. Pra todo mundo, elas são Antônia e Maria, assim como eu sou Dita, porque é assim que Nhá Nana quer.

Garrote sacudiu a cabeça:

- Quer dizer que minha avó é como o Velho San-tinho? Gosta de mudar o nome das pessoas?

Dita sorriu.

- Não. Nhá Nana só manda na vida e na morte da gente. No nome quem manda mesmo é o Velho Santinho.

Depois do jantar, estranhando a cama, começava a primeira noite da nova vida do garoto. O que ela lhe reservava?

A noite no Encantado pareceu-lhe muito mais barulhenta do que qualquer noite na cidade. Os grilos e os sapos, junto com os latidos incessantes daquela matilha de cães vagabundos que rondavam a fazenda, eram muito mais irritantes do que as buzinas e brecadas da cidade grande, às quais Garrote já estava acostumado.

"Não sou Garrote... Sou Caramujo...", pensava o rapaz, estendido na cama. "Sou Caramujo, ninguém vai mudar o que eu sou. Eu sou eu, eu sou eu, sou Caramujo..."

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Onde estava ele? Que fazenda era aquela? Quem era aquela velha que forçava uma mulher a chicotear o próprio filho? Que velha era aquela que fazia açoitar uma criança faminta que tinha roubado apenas um pouco de doce? E por que, por que o nome de Mariana, de sua Mãe Mariana, não mais podia ser pronunciado no Encantado? Sem a mãe, Mariana, e sem o pai, ele tinha ficado só. Sentia até saudade da escola, dos colegas, que ele não tentara transformar em amigos.

A solidão doera no seu peito. Mas, agora, naquela fazenda, naquela colmeia do inferno comandada por cruel abelha-rainha, ele começou a sentir que poderia haver algo ainda pior do que a solidão.

"O que vai ser de mim nessa fazenda? Eu tenho de dar um jeito de fugir daqui..."

Mas como? Pegar um dos cavalos e sair cavalgando na direção de onde? Um pouco de dinheiro para um ônibus ele tinha, mas como pagar uma passagem de avião? Como viajar de avião sem a autorização de algum adulto? E, se conseguisse voltar para São Paulo, para onde iria? Para a casa de tia Alzira, que tinha deixado tão claro que não queria saber dele? Para onde ir?

"Como se faz para fugir do inferno?"

Pela janela aberta, a noite de lua crescente enchia o quarto de estrelas. Parecia que eram elas que cricrilavam em lugar dos grilos, que coaxavam em lugar dos sapos, que uivavam em lugar dos cães.

"Sou Caramujo!", balbuciou o garoto para os grilos, para os sapos, para os cães e para as estrelas antes de adormecer.

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Capítulo 10

Lá estava o Velho Santinho, iluminado pelas primeiras luzes da manhã que ainda não nascera por completo.

A vida no Encantado começava de madrugada, e Garrote logo percebeu que não era possível fugir àquela regra, assim como a todas as outras regras daquela fazenda, implantadas pela natureza, pela tradição, mas principalmente pela vontade férrea de Nhá Nana. A prestimosa Dita-Madalena já o havia acordado e oferecido uma farta refeição da manhã, que o rapaz pouco provou.

- O que me diz, Garrote? - ria-se o velho, meio sentado na sela de um alazão recém-escovado. - Vai deixar que o Sol te pegue de cueca? A essa hora todo o povo do Encantado já está de chapéu na cabeça e traseiro na sela, garoto. Venha. Nhá Nana mandou te levar pra conhecer a fazenda. Trouxe aqui a sua montaria. Não tenha medo, é um cavalinho maneiro, que não derruba ninguém.

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Velho Santinho segurava pela rédea um cavalo pequeno, fosco, de cor e idade indefinidas. Garrote lembrou-se da mãe, que levara para a cidade a paixão por cavalos adquirida no Encantado. Nhazinha Mariana. Mariana. Mãe Mariana. Mãe. Morta agora, mas em vida transmitindo ao filho a paixão pelos cavalos, levando-o ainda pequeno para aprender a montar, a não ter medo, a amar os cavalos. Ora, aquele Garrote não era para cavalos pequenos, velhos, foscos e sem cor.

Apeie.

O que disse? - espantou-se o Velho Santinho.

Por favor, Velho Santinho. Apeie.

O velho desceu lentamente do cavalo. Com um salto, Garrote agarrou as rédeas e cavalgou o alazão. Meteu os calcanhares dos tênis na barriga do cavalo, puxando ao mesmo tempo as rédeas. O alazão empinou e pateou o ar, relinchando.

- Cuidado, Garrote! Tá maluco? Esse bicho te der-ruba!

Garrote fincou novamente os calcanhares no cavalo, manobrou habilmente as rédeas, fez o alazão voltear e deu um galope curto em direção ao cerrado.

- Ei! Aonde vai, Garrote?

O garoto fez uma curva e galopou de volta, travando as rédeas quase em cima do velho.

- Velho Santinho, a minha montaria é esta. Se

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quiser, monte o outro.

O velho riu tão alto que teria acordado qualquer um, se ainda houvesse algum preguiçoso no Encantado.

- Quem diria! O Garrote sabe montar feito gente grande! Parece até a Nhazi...

Calou-se, como se a proibição de citar o nome da mãe do Garrote fosse uma mordaça.

- Pareço quem, Velho Santinho?

O velho fez que não ouviu a pergunta. Ainda rindo, abraçou-se ao pescoço do cavalinho fosco.

- Meu coitado! Te enjeitaram, cavalinho! Pois vai ser sua a honra de conduzir o maior cavaleiro do mundo!

Montou e apontou para a frente.

- Vamos lá, Garrote. Tenho muito pra mostrar, e você tem muito pra aprender. Venha!

Lá se foram os dois. Se Garrote desse uma olhada por sobre o ombro para a casa-grande, veria um vulto muito atento por trás das cortinas de uma janela.

Capítulo 11

- Por que você não quis falar o nome de minha mãe?

Os dois cavaleiros já estavam em plena manhã, levantando a poeira da imensidão do Encantado.

A vegetação, às vezes verde e exuberante, às vezes pardacenta e seca, repetia-se o tempo todo. Numa área

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extensa, a floresta erguia-se mais alta e toda verde.

- Isso é o Cerradão, Garrote. Aí tem mais água e a floresta cresce que é uma beleza!

Por todos os lados, áreas desmatadas sucediam-se, com incontáveis cabeças de gado pastando as gramíneas gordas, um capim tão delicioso para os bois quanto uma torta de morangos para o garoto.

Outras áreas apresentavam extensões degradadas, com um aspecto sujo.

- Veja, Garrote. Nesta parte nem mais mato cresce. Não serve nem pra pastagem. É terra esgotada. É voçoroca. A erosão é pior que praga! O pessoal tem de levar o gado pra longe e...

Garrote viu o peão preparar um cigarro de palha com todo o carinho. Enrolar cuidadosamente e lamber a borda da palha com uma língua sarrenta de fumo.

O cigarro foi-lhe estendido em silêncio. Um silêncio carregado pela expectativa da diversão.

Era uma prova? Garrote olhou para o Velho Santinho, que desviou a vista, subitamente preocupado com uma nuvem inexistente.

Uma prova! Os boiadeiros queriam descobrir se um rapaz com ares de garoto mimado de cidade tinha a coragem de enfrentar um fumo forte daqueles. E se levaria aos lábios uma palha lambida pela língua de um peão desdentado.

Uma prova? Pois que fosse. O garoto não haveria de dar parte de melindroso. Pegou o cigarro, aceitou a chama de um fósforo estendida por duas mãos em concha e

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sorveu longamente a fumaça. Foi como se um punhado de farelos de vidro lhe escorresse traqueia abaixo, indo incendiar-lhe os pulmões. Tudo voltou explodindo, exigindo um acesso de tosse. Mas Garrote cerrou os dentes, e tudo que se permitiu foi uma grossa lágrima que ficou parada na beira da pálpebra, a brilhar.

- Você não pode desobedecer uma ordem, mas pôde interromper o castigo brutal que Nhá Nana tinha ordenado. Por que essa diferença?

O Velho Santinho balançou a cabeça:

- Garrote, Garrote, você precisa aprender o jeito que é o mundo do Encantado. É um mundo com as suas regras, com a sua organização. Um mundo que todos nós já aprendemos a entender...

Não. Garrote não podia entender aquele mundo. Mas largou as rédeas do cavalinho e os dois retomaram a marcha. Agora mais lenta, mais ressabiada, mais encabulada até.

A paisagem sucedia-se quase sempre plana como um disco, e os cavalos só vez por outra subiam elevações leves, quase imperceptíveis. Volta e meia, o velho fazia uma parada para que os dois bebessem água dos cantis, sem desmontar, enquanto suas montarias aproveitavam para enfiar as cabeças na gramínea, para um rápido lanchinho.

- Você é um bom menino, Garrote. - Velho Santinho retomou a conversa, algum tempo depois: - Você está roído por dentro sem saber por que a sua avó renegou a própria filha, não é?

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Garrote apertou os lábios e não respondeu.

- Nhazinha Mariana! - o velho pronunciou lentamente cada sílaba. - Eu não tenho medo de dizer o nome dela. Eu só tenho prazer em dizer o nome dela. Foi uma... uma filha para mim. Foi uma mãezinha para o povo do Encantado. Eu a ajudei a montar o seu primeiro cavalinho. Ah, era um coitadinho como este aqui. Eu me lembro...

Garrote olhava, tentando compreender. O velho riu da seriedade do garoto.

- Com quem você aprendeu a montar do jeito que você monta, Garrote? Com a sua mãe? Então foi com o Velho Santinho que você aprendeu, porque tudo que ela sabia fui eu que ensinei!

Suspirou. Pensou um pouco, calado, procurando palavras para dizer o que tinha de ser dito, e continuou:

- Acho que você nunca vai saber direito por que Nhá Nana quer esquecer a filha. Nunca ninguém saberá. Um dia, a menina... Ah, que mocinha linda que ela estava! Apaixonou-se pelo seu pai, um moço de estudo, da cidade, e foi-se com ele. Nunca mais ouvimos falar dela. No começo chegavam cartas, que Nhá Nana mandava queimar sem abrir...

Queimar cartas, proibir, mandar a própria mãe chicotear o filhinho, na frente de todo o mundo! Que espécie de mulher é Nhá Nana, Velho Santinho?

Nhá Nana não é uma espécie de mulher, Garrote. Nhá Nana é o chefe!

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Capítulo 12

Um grupo de boiadeiros descansava procurando as raras sombras das árvores retorcidas do cerrado.

- Vamos falar com aquela gente, Garrote. Eles vão ficar contentes de conhecer o neto de Nhá Nana.

Garrote segurou o braço do velho.

- Não, Velho Santinho. Não diga que eu sou neto dela. Diga apenas que sou um sobrinho seu que veio visitá-lo. Quero falar com eles sem a sombra da velha a nos perseguir.

- Seja do seu jeito, Garrote. Ah, seja do seu jeito... Quando os dois chegaram junto do grupo, um naco de fumo de rolo passava de mão em mão entre os homens. Cada boiadeiro cortava um pedacinho, alisava uma tirinha de palha de milho com a lâmina de um canivete, picava o fumo bem miudinho, espalhava na palha, enrolava e selava com a língua como se fosse um envelope.

- Eh, Velho Santinho! Chegou bem na hora da paradinha pra um palheiro!

O Velho Santinho sempre chega na hora, pessoal! - riu-se o velho, apeando do cavalo.

E onde foi arranjar essa montaria? - troçou um deles. - Ou o Velho Santinho não agüenta mais cavalo novo?

O velho cavaleiro rebateu a brincadeira, fingindo seriedade, mas com um ar de troça:

- Está pra nascer o cavalo que possa comigo. Do

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jeito que não botou barba o homem que me enfrentará!

Todos os boiadeiros riram, exibindo um verdadeiro desfile de dentes solitários e cacos amarelecidos. Havia muita simpatia pelo velho, e logo a dupla viajante estava entre os homens, que riam de tudo o que o Velho Santinho dizia.

Emprestei o alazão aqui para o meu sobrinho. Quero ver se ele se acostuma com cavalo de homem.

Seu sobrinho? Ouvi dizer que o senhor tem muitos filhos espalhados pelo mundo, mas sobrinho eu não sabia de nenhum. Ainda mais um garotão de cidade como esse aí! - riu-se um dos peões.

Pois agora está sabendo - respondeu rápido o velho, baixando os olhos para esconder a mentira.

Então puxe uma palhinha com a gente, Velho Santinho. E o garoto aí, aceita um palheiro?

Garrote viu o peão preparar um cigarro de palha com todo o carinho. Enrolar cuidadosamente e lamber a borda da palha com uma língua sarrenta de fumo.

O cigarro foi-lhe estendido em silêncio. Um silêncio carregado pela expectativa da diversão.

Era uma prova? Garrote olhou para o Velho Santinho, que desviou a vista, subitamente preocupado com uma nuvem inexistente.

Uma prova! Os boiadeiros queriam descobrir se um rapaz com ares de garoto mimado de cidade tinha a coragem de enfrentar um fumo forte daqueles. E se levaria aos lábios uma palha lambida pela língua de um peão desdentado.

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Uma prova? Pois que fosse. O garoto não haveria de dar parte de melindroso. Pegou o cigarro, aceitou a chama de um fósforo estendida por duas mãos em concha e sorveu longamente a fumaça. Foi como se um punhado de farelos de vidro lhe escorresse traqueia abaixo, indo incendiar-lhe os pulmões. Tudo voltou explodindo, exigindo um acesso de tosse. Mas Garrote cerrou os dentes, e tudo que se permitiu foi uma grossa lágrima que ficou parada na beira da pálpebra, a brilhar.

Ninguém riu, porque a expressão do rapaz não convidava à gozação.

- Já mostrou seu sobrinho pra Nhá Nana? - perguntou um boiadeiro quase tão baixote quanto um menino.

Lutando contra o engasgo, Garrote não perdeu a deixa:

- Nhá Nana? Quem é Nhá Nana?

Por um segundo, ninguém respondeu, pois para eles aquela era uma pergunta sem cabimento. Não lhes passava pela cabeça a existência de alguém que nunca tivesse ouvido falar em Nhá Nana. Quem conseguiu inspirar-se primeiro para uma resposta foi um boiadeiro que usava óculos, acessório estranho para um peão.

- Nhá Nana? Eh, garoto, você deve ter vindo de muito longe. Nhá Nana é Nhá Nana. É tudo isso, é muito mais. É essa terra onde se pisa, é a farinha que se come, é esse gado que se engorda. É tudo. É a nossa vida. E também há de ser a sua, se você ficar por aqui.

Garrote insistiu:

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- Mas de que jeito é ela? Ela é má? Ela é boa?

O boiadeiro, acocorado, com a palha entre os lábios, pegou um punhado de terra e foi deixando que o pó vermelho escorresse lentamente por entre os dedos.

- Nhá Nana é igual a esta terra. É boa quando ali-menta uma roça de mandioca que a família da gente vai comer. É boa quando deixa o capim fresco crescer pra engordar o gado. Mas é também ruim quando entra pelo nosso peito soprada pelo vento. É ruim quando esconde a jararaca pronta pra matar...

O boiadeiro baixinho deu uma risada silenciosa. Boca aberta, poucos dentes e nenhum som. No fim da risada muda, comentou:

- Depende do jeito que se olha...

- Eu nasci e me criei aqui, garoto - continuou o de óculos. - O vento já soprou um bom pedaço do En-cantado pra dentro do meu pulmão, e eu já escarrei outro tanto. Mas nesse tempo todo eu não precisei entender o que é essa fazenda, ou quem é Nhá Nana. Isso tudo é a minha vida, e eu tenho de vivê-la do jeito que ela é.

Garrote, fazendo-se de distraído, soltou outra provocação:

- Então Nhá Nana é como uma mãe?

O boiadeiro levantou subitamente a cabeça e olhou fixamente para o rapaz, parecendo ter ouvido uma heresia. Através das lentes grossas que mais pareciam fundo de garrafa quebrada, seus olhos pareciam surpresos.

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- Como uma mãe? Não. Como uma mãe, não. Nhá Nana é Nhá Nana. Nada tem a ver com mãe.

O baixote, com uma alegria desdentada, mudou o rumo da conversa:

- Eh, Velho Santinho. Sabe por que a gente deu essa parada?

- Pra puxar um palheiro?

Também. Mas eu disse aqui pra eles que tinha uma surpresa.

É mesmo - ajudou o boiadeiro míope. - E quando é que a gente vai conhecer essa surpresa?

- Agorinha mesmo. Vejam só.

O baixinho foi até um dos cavalos e abriu um embornal. Com cuidado, tirou lá de dentro a tal surpresa. Era um rádio. Um radinho de pilha comum, desses bem baratos.

- Fui buscar ontem mesmo, na loja do Nhonofre, lá na vila. Ele disse que eu posso pagar mês que vem. Não é uma beleza? As crianças vão adorar, lá em casa! E a mulher, então, nem se fala!

Lentamente, como se manipulasse uma bandeja de cristais, volteou-se e suspendeu o radinho, exibindo-o com orgulho. Seu dedo destreinado lidou um pouco com os controles e logo o grupo todo sorria ouvindo os acordes de uma música sertaneja, uma letra triste, que falava de um boiadeiro abandonado pela mulher amada.

... eeume casei com ela, na lei, na religião...

Para aquele grupo, porém, o som do radinho era uma

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novidade alegre, e eles riram feito crianças em um circo.

- Eh, eh! - comemorou um deles. - Isso merece mais que um palheiro!

Levantou-se, abriu um alforje pendurado ao lado da sela e tirou de lá uma garrafa. Arrancou a rolha e serviu-se de um gole farto, que fez subir e descer três vezes um pomo-de-adão muito grande para aquele pescoço magro.

- Eeeh! - brincou o baixinho, depositando o rádio sobre uma pedra, ainda ligado. - Faça rodar a cachaça, que a gente também é filho de Deus!

... e a mulher que eu tanto amava, com ardor e emoção...

A garrafa passou de mão em mão até voltar para o boiadeiro que a oferecera. O homem estendeu-a na direção do Garrote:

- É a sua vez, sobrinho do velho. Sirva-se. Velho Santinho estivera calado o tempo todo.

Coisa difícil de acontecer. Olhou para o falso sobrinho e riu sua gargalhada:

- Ah, Garrote! Será que já está teso pra mandar uma lambada dessa pela goela?

O garoto ficou vermelho. A fumaça do fumo de rolo ainda lhe queimava os pulmões, mas ele não haveria de arrepiar, do mesmo modo que não arrepiara há pouco. Levou o gargalo aos lábios e jogou a cabeça para trás, empinando a garrafa como uma corneta. Mas, com a língua, arrolhou o gargalo e fingiu que bebia.

... e a marvada me enganava justo com o meu irmão!

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Devolveu a garrafa com um fingido ah de satisfação, e passou o braço enxugando a boca, como se tomar cachaça fosse para ele um costume corriqueiro.

- Seu sobrinho vai longe, Velho Santinho - riu-se o boiadeiro de óculos, retomando a garrafa.

O velho riu, balançando a cabeça:

Vai longe? Pra onde é que ele vai? Virar homem? Quer dizer que pra virar homem precisa atochar o pulmão de fumaça e cair de bêbado pelas estradas?

Modo de dizer, Velho Santinho... - desculpou-se o peão. - Ah, modo de dizer...

O velho e o menino já estavam de novo montados quando uma nuvem de poeira trouxe outro cavaleiro para unir-se ao grupo. Era um peão que Garrote vira na noite anterior, em frente à casa-grande do Encantado.

- Bom-dia, Nhozinho Garrote - cumprimentou o peão, tirando o chapéu.

O boiadeiro baixinho estranhou toda aquela cerimônia com o sobrinho do velho:

- Nhozinho?! Esse sobrinho seu está merecendo todo esse respeito, Velho Santinho?

O boiadeiro recém-chegado arregalou os olhos:

- Sobrinho do velho? E nada. Esse é o menino Garrote, o neto de Nhá Nana.

O sangue subiu à cabeça do baixinho. Transfigurado, correu para o cavalo do Velho Santinho, agarrando-lhe as rédeas:

- Que brincadeira é essa, velho? Está mangando

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com a gente? Fazendo a gente falar, pra depois tudo ser soprado no ouvido de Nhá Nana?

... à nossa mamãe querida tenho de pedir perdão...

Quem respondeu foi Garrote, lá do alto do alazão:

Ninguém está brincando com ninguém. Foi minha a idéia de me passar por sobrinho de quem eu não sou. O Velho Santinho não tem nada com isso. E ninguém vai falar nada pra Nhá Nana.

Mas, Nhozinho - protestou o de óculos -, o senhor é neto dela!

Garrote fez o alazão girar, impaciente.

- Eu não sou senhor. E não sou neto de ninguém. Não sou nem mais filho de ninguém. Não tenho nada com Nhá Nana, nem com o Encantado, nem com vocês. Eu sou eu e não tenho nada com nada, nem com ninguém!

Saiu a galope. O Velho Santinho olhou sério para os boiadeiros, balançou a cabeça e tocou o cavalinho na direção do garoto.

... pois sem nem pensar na vida, garrei firme do facão, e

cravei no peito dele bem fundo no coração!

Atrás, ficou o grupo surpreso e mudo, sem saber o que pensar. A modinha se encerrava com caprichados acordes de viola, enquanto a dupla cantora repetia o estribilho.

...e cravei no peito dele bem fundo no coração!

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Capítulo 13

Galoparam em silêncio por um bom tempo. Mas logo o velho guia retomou a tagarelice como se tivesse esquecido a ousadia do rapaz ao encerrar a discussão com os boiadeiros. Velho Santinho liderava a marcha e fazia Garrote conhecer um pouco mais da fazenda. A cada novo córrego, a cada nova pastagem, a cada grupo de habitações humildes dos agregados, Garrote era apresentado pela língua do velho, mas as imagens falavam por si sós.

Na beira de uma área de cerradão, um alvoroço chamou a atenção do Garrote e deu para o garoto ver de relance um grupo de porcos grandes, peludos, correndo entre as árvores retorcidas e raramente reve-lando-se no meio do capim muito alto.

- São os queixadas, Garrote. Eta, porções brabos! Mal dá pra ver no meio do capim-flecha. Estão correndo pra água. Isso do Chapadão é molhado de rio que não acaba mais! Olha lá, naquele meio. Veja como a mata fica mais bonita. Aquilo é um brejo só! Se duvidar, um desses daí vai acabar no bucho de uma jibóia!

Mais adiante, Garrote avistou um grupo de peões cortando uma cerca de arame, derrubando os mourões e tangendo uma manada de cavalos para dentro de um viçoso milharal.

Nhá Nana acabou de comprar essa terra, Garrote - explicou o Velho Santinho. - Olha o Encantado crescendo!

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Ela quer comprar todas as terras do mundo? - perguntou o rapaz, com ácido na voz.

Não - riu-se o velho. - Ela só quer comprar as terras do vizinho! Ah, ah! E sempre vai ter alguma terra de vizinho pra comprar, não é? Ah!

De repente, o alazão mancou e, mesmo sem olhar, os dois já sabiam que o cavalo havia perdido uma ferradura.

- Ora, veja - riu-se o velho. - A sua cavalgadura perdeu o tamanco. Vamos até à casa do Cipriano, que é logo ali. Você precisa ver o jeito com que ele sabe cuidar das vacas de leite! Parece que são filhas dele, de tanto mimo! Ele deve estar no trabalho, mas lá tem tudo o que eu preciso pra consertar o seu alazão. Monte no meu cavalo que eu vou a pé, levando o seu pela rédea.

- Não, Velho Santinho. Eu levo o cavalo e vou a pé.

- Então vamos a pé os dois. Ah, você conhece aquela história do velho e do menino que iam levando um burro pra vender na feira? Pra que o burro não chegasse cansado e perdesse preço, os dois foram a pé, levando o burro pela rédea. Daí passou um homem que veio logo palpitando e dizendo...

A língua solta do velho surpreendeu o rapaz ao ouvir que uma fábula criada há mais de dois mil anos estivesse impregnada até no cerrado goiano:

Eu já conheço essa história, Velho Santinho.

Menino sabido...

O velho cavaleiro desmontou e os dois foram caminhando sobre o barro seco do cerrado, cada um com

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sua montaria pela rédea.

- Está vendo que mundão, Garrote? - continuou o Velho Santinho. - Não é de dar orgulho? Isso tudo está na sua família há gerações! Você não é só neto de Nhá Nana: é neto desse cerrado inteiro!

Garrote nada respondeu. Ia mudo, de cabeça baixa e com as sobrancelhas franzidas, pelo brilho do Sol e por seus pensamentos. O que era o Encantado? Que vida seria a sua, perdido naquela fazenda que parecia não acabar mais?

- Eta, Garrote enfezado! - gozou o Velho Santinho. - Perdeu a língua?

O passo do rapaz apressou-se e ele não desviou a vista do chão.

- Eu não quero ser neto de ninguém. Eu não pedi pra ser neto de ninguém.

O velho riu gostosamente:

- Tem um monte de coisas que a gente não pede pra acontecer, mas acontecem do mesmo jeito, Garrote. A gente não pede pra nascer, mas nasce. A gente não pede pra morrer, mas morre. Todas as coisas importantes da vida acontecem porque querem acontecer. A gente só controla as coisas miúdas. E o destino, é assim mesmo.

Garrote parou e cravou os olhos no velho:

Eu não quero isso, Velho Santinho. Eu não quero essas coisas que já vêm prontas. Eu vou fazer o meu destino do jeito que eu quero que ele seja!

Ora, ora! Isso é que é um Garrote dos bons. E olhe que muita gente daria um olho pra ter o seu destino:

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herdeiro do Encantado, o maior pedaço de chão do Planalto Central!

- Herdeiro?! Disso aqui?

- É claro, Garrote. Você nunca pensou nisso? Nhá Nana era filha única e teve só uma filha também, a Nhazinha Mariana, sua mãe. E você não tem irmãos, não é? Por isso, o Encantado está esperando pra ser seu. O Garrote do Encantado, o Encantado do Garrote!

Garrote não havia pensado nisso. Desde que chegara ao Encantado, toda a atenção do garoto estava voltada para um enorme esforço de sobrevivência, de resistência, sem saber direito a que, nem para quê. Só o que ele sabia é que, de algum modo, estavam querendo mudá-lo, transformá-lo, forçá-lo a alguma coisa que ele desconhecia, mas detestava mesmo sem conhecer.

- Lá está, Garrote. A morada do Cipriano.

Capítulo 14

Ao contrário do que previra o velho, Garrote percebeu que havia não só um, mas dois homens adultos no grupo que os recebia. Além desses, uma mulher, muitas crianças, muitos cachorros, muita festa. A acolhida era tão gentil, tão efusiva, que o fazia sentir que aquelas pessoas poderiam ser uma pausa para suas preocupações.

Uma garota, com um sorriso cândido, centrou o olhar do rapaz. Na certa era a mais velha do grupo da filharada,

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talvez pouco mais nova do que o rapaz da cidade grande.

Velho Santinho! Mas que honra, receber o senhor nesta casa de pobre! - cumprimentou um dos homens, um boiadeiro que trazia no olhar a pureza de uma criança.

Este é o Garrote, menino de São Paulo - apresentou o velho, sem dizer de quem o apresentado era neto. - Este é o Cipriano, esta é a Nhá Zeza...

Apesar de tantos filhos, o casal residente não era velho, embora sua aparência fosse bem castigada pela vida dura de agregados daquela fazenda sem fim.

Este é o... ora se não é o Valdomiro, lá da Fazenda da Ponte Lavrada!

Bom ver o senhor com saúde, Velho Santinho -cumprimentou o homem com cara de desânimo, tirando

respeitosamente um chapéu surradíssimo.

O Cipriano e a Nhá Zeza estão recebendo muitas visitas, hoje, Garrote! - e continuava a desfiar apresentações e apelidos. - ... este pulando ali é o Cabrito, aquela é a Ritinha...

"Ritinha? O nome dela é Ritinha?", pensava Garrote, sem desviar o olhar da menina. "Um nome simples... um nome com o jeitinho dela..."

... o de dedo no nariz é o Caroço. De tão miudinho e tinhoso, o pessoal cismava de chamar essa cria de Piolho. Mas piolho só serve pra coçar e pra matar com a unha - comentou o velho, rindo e esmagando um ácaro invisível entre as unhas dos polegares. - Mas esse menino vive fazendo caroço com o que tira do nariz e foi

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assim que eu batizei ele. Caroço está mais do jeito, não está?

Tira o dedo do nariz, Caroço! - advertiu Nhá Zeza, confirmando a aceitação do apelido.

- ... aquela menorzinha é a Desaparecida. Por vontade de Nhá Zeza o padre batizou a menina de Aparecida, mas ela é tão magrinha que o melhor mesmo é chamar de Desaparecida! Ah, ah!

Velho Santinho desfiava os nomes e apelidos daquela penca de crianças como se todos fossem seus afilhados.

- A casa é sua, Velho Santinho - oferecia Cipriano. - O alazão perdeu a ferradura? Pode deixar que eu tenho uma do jeitinho que ele precisa. É só um minu-tinho, um minutinho...

Acompanhado por Garrote, pelo velho e pelo homem apresentado como Valdomiro, Cipriano remexeu no meio das tralhas de um paiol logo ao lado da casa e encontrou a ferradura certa para o casco do alazão. Dobrou a pata do animal, apoiou-a na coxa e começou a pregar os cravos com muita habilidade.

Que vagabundagem é essa? - troçou Velho Santinho. - Isso lá é hora de um peão do Encantado estar em casa, no meio das mulheres, dos pirralhos e das galinhas?

Não troce comigo, Velho Santinho - respondeu Cipriano, reforçando as palavras com marteladas na ferradura. - Estou no campo desde as quatro da manhã. Voltei mais cedo pra esperar o Valdomiro aqui, que veio pra levar a Manchinha pra Ponte Lavrada. Naquele fazendão terá muita serventia uma vaca igual a essa. E eu decidi

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vender...

- A Manchinha? - espantou-se o velho. - Você vai vender a Manchinha? Mas não foi você mesmo quem disse que aquela bezerra ia mudar sua vida? E, agora que ela virou uma leiteira dessas, você vai se livrar dela?

Cipriano soltou a pata ja ferrada do cavalo e limpou o suor com o braço. O alazão bateu a pata várias vezes no chão duro, como a experimentar o novo calçado.

- Disse sim, Velho Santinho - respondeu o homem com uma expressão desalentada. - Eu disse que a vaca ia mudar minha vida e tinha certeza disso. Mas, depois...

Os três adultos acocoraram-se no terreiro.

- Pra comprar a Manchinha, eu e a velha sacrificamos tudo que a gente tinha. As crianças passaram ainda mais pobreza do que já vinham passando. Mas eu consegui juntar o necessário pra comprar essa bezerra.

Os olhos inocentes do peão brilharam:

- E ela cresceu, engordou, ficou essa beleza que é a Manchinha. E o meu sonho cresceu junto com ela.

Eu achava que ela era um começo, que era só mais um pouco de sacrifício e eu podia ter uma criação só minha. E que depois... Ah! Depois eu ia conseguir comprar uma terra!

Voltou os olhos molhados para os amigos:

- Eu não queria muito. Uma terra pequena, longe, onde as crianças pudessem crescer com a plantação e eu

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pudesse acabar a vida trabalhando. Será que é pedir muito? Será que é sonhar muito? Um palmo de chão que a gente molha com o suor da vida e onde a gente se enterra feliz depois de morto?

Com o seu ar de desânimo, o boiadeiro Valdomiro falou, revirando o chapéu nas mãos:

- Vai ver é mesmo... Esse é o sonho de todos os peões, de todos os agregados do mundo inteiro. Um pedaço de terra! Qual o quê! Por mais longe que seja essa terra, por mais miúda que seja, esse é um sonho sem jeito...

Velho Santinho não admitiu o rumo derrotado para onde a conversa ia sendo levada:

- Que é isso, gente? O que é que é sem jeito?

- Nossa situação... - explicou Valdomiro. - Isso não tem jeito mesmo. É tudo sempre a mesma coisa: trabalho e mais nada. Nada muda...

Velho Santinho rebateu alto, rindo como sempre:

- Ora, se não mudou até agora, não quer dizer que não vá mudar nunca. Quer dizer que não mudou ainda!

Cipriano passava a mão pela cara, enxugando o sonho e acreditando no futuro, apesar de tudo.

E... não há de ser nada. Com o dinheiro da Manchinha, pago tudo o que devo e vou dar uma alegria das grandes pra velha e pras crianças: vou comprar uma televisão!

Uma televisão?! - Velho Santinho dobrou-se, às gargalhadas, batendo com as mãos nas coxas. - Isso sim é coisa sem jeito, Cipriano! Pois você não sabe que precisa eletricidade pra fazer funcionar a televisão?

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Nem na casa-grande do Encantado tem eletricidade. Ou você vai pedir a Nhá Nana que puxe eletricidade só pra sua casa?

Precisa de eletricidade? - a decepção deixou lívida a face do peão. - Precisa mesmo? Quer dizer que eu não posso comprar uma televisão?

Capítulo15

Garrote afastou-se da conversa dos três homens. Com a garganta seca da poeira do passeio, sentiu sede e caminhou lentamente para a sela do cavalo onde estavam os cantis.

Sentiu um toque de levinho em seu braço:

- Quer água?

Era a voz da menina mais velha, que o Velho Santinho havia chamado de Ritinha. Olhou sisudo para ela e assentiu com a cabeça.

- Quero sim. Obrigado.

Delicadamente, a menina conduziu o rapaz para um poço coberto por tábuas enegrecidas. Levantou duas delas e manejou habilmente uma corda, içando um balde de madeira todo calafetado com betume. Uma cuia estava pendurada por uma cordinha à beira do poço. Ritinha encheu-a e ofereceu-a a Garrote.

Beba. É fresquinha.

Obrigado.

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Garrote bebeu de olhos baixos, fugindo ao calor do olhar da menina, que o fitava, curiosa.

Obrigado - disse sério, devolvendo a cuia.

Obrigado, obrigado, obrigado - remedou a menina sorrindo, e como era lindo aquele sorriso! - Você só sabe dizer obrigado?

Hã... desculpe...

A menina levantou a mãozinha e tocou-lhe o rosto:

- O que é isto no seu olho? Está roxo...

- Nada... eu machuquei. Mas já está sarando... Garrote se sentiu perturbado pela intimidade do

toque da menina e desviou a conversa.

- Seu pai vai vender a vaca, não vai?

Ritinha começou a andar lentamente para longe da casa. Sem se dar conta, Garrote a seguiu.

Vai sim.

E você? Não fica triste com isso?

Claro que não. O pai sabe o que faz.

O que o perturbava tanto naquela menina? Garrote comparou-a com as meninas do seu colégio. Todas tratadas, cabelos sedosos, peles delicadas, dentes perfeitos, cheias de perfumes e roupas da moda. Ele tinha aprendido que aquelas eram lindas. Mas Ritinha... Seu vestido era um pano sem forma e sem cor, seus cabelos eram endurecidos pelo vento do cerrado, sua altura era pequena, seus olhos...

Ah, os olhos negros de Ritinha! Tinham vida, tinham

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troça, tinham tudo dentro deles. E eram eles que olhavam confiantes para Garrote. Como ela podia ter tanta confiança, se ele não tinha nenhuma?

- O pai sabe o que faz. Ele trabalha muito e a gente ajuda no que pode. Logo ele vai tirar a gente daqui.

- E pra onde vocês vão?

- Não sei. O pai que sabe. Pra longe. Uma terra longe. Lá, a gente vai ter muitas vacas como a manchinha, vai poder plantar. A gente vai ter até uma televisão, sabia?

Garrote desviou o olhar dos olhos negros da menina. Lembrou-se do peão Valdomiro dizendo que aquele era um sonho impossível. À frente dos dois, a imensidão do cerrado pareceu uma penitenciária sem grades, que mantinha todos os peões condenados à prisão perpétua. E a trabalhos forçados. Uma condenação eterna, sem alternativas, sem amanhã, sem esperanças.

- Me fale de São Paulo.

A menina colocou sua mãozinha miúda sobre a mão do Garrote. Uma onda morna emanava daquele corpinho moreno. A menina fazia parte do cerrado tanto quanto aquelas árvores retorcidas e aquela terra vermelha. Só que, nela, o cerrado sorria.

- São Paulo? - respondeu ele, evasivo. - É aquilo mesmo. Uma cidade igual às outras.

- Ah, você não quer me contar!

- Desculpe. Conto sim. O que você quer saber?

- Aqueles prédios todos. Me conte. Eu vi numa revista.

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- Contar o quê?

- As pessoas moram lá dentro mesmo?

- É claro que moram.

- Uma casa em cima da outra?

- É, acho que é isso mesmo. Uma casa em cima da outra.

- E fica todo mundo lá dentro? As gentes, os porcos, os cachorros e as galinhas?

- É claro que não. Só as pessoas.

- Ué! E onde fica a criação?

- Não fica. Não pode ter criação em apartamentos. Ritinha ficou decepcionada. Não podia admitir a possibilidade de que alguém pudesse viver sem pelo menos um galinheiro e alguns cachorros.

- Diga uma coisa: de que jeito é que as pessoas que moram nas casas de cima sobem até lá?

- Sobem pelo elevador.

- O que é isso?

- É igual àquele balde que você puxou lá do poço. É uma caixa grande onde as pessoas entram e um motor puxa para cima por uma corda de aço.

Ritinha sorriu de novo:

- Ah, você está caçoando comigo. Gente não é que nem água de poço!

- Não é brincadeira não, Ritinha. É assim mesmo.

A menina calou-se por um momento. No horizonte do cerrado, seus olhos construíam arranha-céus

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imaginários, cheios de gente sendo içada por enormes baldes.

- Você nunca foi à cidade? Nunca viu um prédio? - perguntou Garrote.

- Não. A gente só vai à vila, de vez em quando. Eu gosto de ir. Principalmente quando tem festa na igreja.

Deu uma risadinha travessa, mostrando que lhe vinha à memória alguma gostosa lembrança das quermesses da vila. Depois, retornou à confiança que tinha no pai:

- Mas o pai vai tirar a gente daqui. E as festas do lugar pra onde a gente vai vão ser mais divertidas ainda. O pai trabalha muito, ele é muito esperto, sabia? Não tem doença de gado que ele não saiba cuidar. E é valente, ainda por cima! Imagine que ele é capaz de tirar berne até de touro bravo! O bicho fica tentando chifrar, mas depois sai bem satisfeito sem a chupação dos bernes e dos carrapatos...

Garrote podia imaginar, sim. Imaginava e mal podia acreditar que um peão analfabeto, que nem sabia que televisão precisa de eletricidade, pudesse agir como um verdadeiro veterinário.

- Seu pai é esperto sim, Ritinha...

- Se é! Ele sempre fala que um dia a gente vai ter uma terra só nossa. Aí a gente vai poder passear, conhecer outros lugares. Eu quero conhecer Brasília e viajar de avião. E você?

O garoto tomou um susto ao ver-se incluído no rol daquelas pobres criaturas, para quem a vida se resumia ao pó do Encantado e à vastidão daquelas paisagens.

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- Eu? E-eu também...

- Eu não vou ter medo, sabia? - afirmou a menina naquele seu jeitinho delicado.

- Medo de quê?

- De viajar de avião. Minha mãe diz que tem medo, que o avião pode cair. Mas não cai, não. Avião é feito pássaro, e pássaro não cai.

Garrote sorriu com a comparação e trouxe o assunto para a terra:

O Encantado deve ser muito longe da escola, não é? Como é que você vai à escola?

À escola? - espantou-se a menina, arregalando os grandes olhos negros para ele. - Que escola? Aqui ninguém vai a escola nenhuma!

- Não? Nem você, nem seus irmãos?

- Não.

- Mas por quê?

A menina não respondeu. Em vez disso, abaixou-se, pegou um graveto e desenhou na terra.

- Mas eu sei escrever meu nome. Olhe só.

O rapaz leu RITA escrito no chão, em letras de fôrma.

- Agora você - convidou ela, estendendo-lhe o graveto.

- Eu o quê?

- Agora você escreve o seu nome.

- Meu nome?

- É. Por quê? Você não sabe escrever o seu nome?

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Os lábios de Garrote tremeram. Sem nada responder, apontou a varinha para o chão. Mas deteve-se por um instante. O que iria escrever? Eduardo? Caramujo? Ou... Garrote? Bom, ele havia sido apresentado como Garrote à família de Cipriano. Até àquele momento, o garoto havia odiado a imposição do apelido, mas de que adiantaria lutar contra isso naquele momento?

Usando também letras de fôrma, escreveu seu nome na terra.

- Puxa, que nome grande o seu! - observou Riti-nha. - Maior do que o meu. O que está escrito?

- Está escrito... GARROTE.

- Garrote... - falou a menina, saboreando o nome. - Garrote... Igual bezerro de três anos. São danados esses garrotes. Loucos pra atacar a gente. Depois viram touros. E você? Vai virar touro também?

Riu-se cristalinamente da própria piada. Acompanhando a risada, naquele momento uma revoada de periquitos passou por eles, fazendo alarido.

- São os tuins. Vão pra água. Tuim gosta das sementes de tudo o que nasce na água. Venha. Vamos lá.

Garrote seguiu a menina, que corria como uma corça, volteando as pedras e seguindo um caminho que levava ao rio, na rota dos periquitos.

A corrida dos dois era ladeada por uma vereda de buritis, tão florados de amarelo que fazia o rapaz sentir-se em um corredor de algum palácio de sonhos, forrado de ouro. Seus tênis afundavam em uma relva verde

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forte, fofa como um tapete real.

Capítulo 16

Era um braço pequeno de rio mas, protegido por pedras grandes, lisas como lajes, formava um recanto fresco, úmido, cheio de verdes, de musgos e samambaias, uma bênção em meio à secura do cerrado. Correndo pelas pedras, a água livrava-se do pó vermelho e ficava mais clara que água de piscina. Era um ambiente totalmente diverso dos chapadões do cerrado. Uma densa floresta, com árvores muito mais altas, mas que, humildemente, só erguiam suas copas para o céu depois de seus galhos curvarem-se como saca-rolhas, como se fizessem mesuras e salamaleques aos jovens visitantes.

- Vamos! - convidou a menina. - Você vai gostar dessa água!

Garrote parou, hesitante. Ia dizer que não tinha roupa de banho, ia dizer que...

Não houve tempo. Rindo, arrulhando junto aos periquitos por entre as taboas, Ritinha arrancou o ves-tido e jogou-se nuinha no rio.

Sem pensar, Garrote despiu-se também e mergulhou atrás dela.

A água fresca envolveu-o em um abraço, dissolvendo o pó que o rapaz acumulara cavalgando toda a manhã.

Garrote sentiu-se limpo, de um modo que jamais se sentira antes.

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A água chegava-lhe aos ombros. Para Ritinha, não dava pé. Mas a menina nadava em volta do convidado, como um cachorrinho, rindo, mergulhando e aparecendo logo em seguida, em outro ponto do rio.

Veio por trás e empurrou a cabeça do Garrote para baixo. O rapaz mergulhou, deu uma cambalhota dentro d'água e agarrou a menina pelos ombros.

A pele que suas mãos tocavam estava fresca como as águas.

Garrote abraçou-a, apertado, por um momento, e em seguida empurrou-a também para dentro da água.

A menina ressurgiu ainda rindo, gargalhando, brincando, fazendo troça, distribuindo alegria, tentando plantar esperança no coração de Garrote.

Ritinha deu duas braçadas em direção à margem. Sentindo a terra sob os pés, foi saindo do rio.

O Sol a iluminava em cheio. O cabelo negro, escorrendo pelas costas, pingando, chegava quase à cintura.

Garrote olhava aquele corpinho nu, dourado pelo Sol, como se jamais tivesse visto algo tão lindo na vida.

Saiu também lentamente da água. Só então deu-se conta de que também estava nu. Deveria sentir-se envergonhado, deveria correr para cobrir-se. Só que não sentia nada disso. Parecia-lhe a coisa mais natural do mundo estarem ali os dois, ele e Ritinha, nus sob o Sol do Planalto Central.

Pela primeira vez, desde que fora chamado ao gabinete do diretor do colégio para saber da morte dos pais, Garrote sentiu-se relaxado. Nesse mundo maluco, no

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meio de tanta pobreza, será que havia uma esperança? Uma esperança morena, bronzeada, dourada, que sorria para ele e que agora rodava em corrupio, secando-se ao Sol, girando a farta cabeleira negra, espalhando confiança, tentando mostrar que a vida pode ter sentido?

A menina parou de girar, arquejante. Calada agora, olhou o rosto do rapaz.

Garrote aproximou-se dela.

Muito perto. A água do rio, evaporando-se da pele de Ritinha, perfumou-lhe o olfato.

Muito perto. Colocou as palmas das mãos delicadamente nos ombros da menina.

Muito perto. Puxou-a para si. O rosto de Ritinha elevou-se e os olhos negros o encararam com um narizinho empinado para a frente. Haveria uma ponta de sorriso ainda?

Muito perto. Garrote dilatou as narinas, sorvendo profundamente o perfume do corpo de Ritinha.

Muito perto. Envolveu-a suavemente num abraço. Sentiu seu corpinho nu junto ao seu. Os pequeninos seios de encontro a seu peito.

O envolvimento o impedia de pensar em seus problemas, em seus medos, em sua ansiedade. Naquele instante, Ritinha ocupava cada pedacinho do seu pensamento. E deixava o resto de fora.

Beijou-a. Primeiro a pontinha do nariz, depois o rosto, a testa, os olhos. Beijou com ternura os lábios molhados.

Ritinha desvencilhou-se delicadamente. Correu para o

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vestidinho e vestiu-o com um só movimento, por cima da cabeça. Com graça, enfiou os dedos das duas mãos atrás da nuca, puxando os cabelos molhados para fora da gola do vestido.

Sem conseguir desviar o olhar, Garrote vestiu-se também.

Nada mais disseram. Ritinha pegou o garoto pela mão e os dois caminharam lentamente de volta.

Garrote lembrou-se das palavras da menina: "Avião não cai não. Avião é feito pássaro. “E pássaro não cai.”

De mãos dadas com ela, ergueu os olhos para o céu. Para o céu do Sol, para o céu dos aviões, para o céu dos pássaros, para o céu dos anjos chamados Ritinha...

Ritinha e Garrote, Garrote e Ritinha. De mãos dadas, olharam juntos para o céu do Planalto Central, como a contemplar enormes pássaros de prata, cujo destino era permanecer para sempre voando. Sem cair jamais. Como os sonhos. Como a esperança.

Capítulo 17

O Sol já estava alto quando os dois voltaram para a morada de Cipriano.

Dona de casa diligente e organizada, Nhá Zeza tinha arrastado uma mesa tosca para o terreiro e não podia permitir que os visitantes continuassem viagem sem almoçar.

Faço questão, Velho Santinho. O que a gente tem de

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comer é de pobre, mas nem Cipriano nem eu nunca deixamos ninguém montar a cavalo de barriga vazia. O que é da gente é do senhor.

Ah, não precisava se incomodar, Nhá Zeza... - e o velho

fez a cerimônia de praxe.

Garrote sabia que o velho trouxera um farnel para os dois almoçarem no campo, durante o passeio. Mas, como o Velho Santinho, percebeu que qualquer recusa seria uma ofensa.

- Imagine, sair sem almoço! - encerrou a anfitriã, como era de se esperar.

O velho olhou para os cabelos molhados do rapaz e depois seus olhos foram até à cabeleira da Ritinha, que umedecia as costas do vestido. Não disse nada.

Nhã Zeza trouxe para a mesa pratos de barro com um angu de farinha de peixe, milho torrado e um tipo de pão pesado, ainda quente do forno à lenha. Uma moringa continha água quase tão fresca quanto se tivesse saído de uma geladeira, e uma jarra de barro mostrava a brancura de um leite cheiroso, espumante, talvez o último presente da Manchinha.

Foram distribuídos pratos de plástico e canecas de alumínio, quase todas já bem amassadas.

Tudo estava muito limpo e cheirava bem. O ar cheirava bem e, em suas narinas, ainda morava o perfume natural da pele molhada de Ritinha. O que estava acontecendo? Será que ele podia deixar que aquela visita o fizesse esquecer-se de sua única saída, que era fugir daquela colmeia infernal na primeira

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oportunidade?

Não. Era preciso manter a cabeça no lugar. E sentou-se em um caixote do outro lado da mesa onde estava Ritinha. A menina ficou com as crianças, ajudando-as a comer.

A refeição que Dita lhe oferecera pela manhã já estava longe, e Garrote comeu com vontade.

Esvaziados os pratos, Velho Santinho trouxe os cavalos pela rédea. O dia de trabalho continuaria para os donos da casa e Valdomiro tinha de levar a Manchinha embora. E ele tinha de continuar apresentando o Encantado para Garrote.

Obrigado, Cipriano - despediu-se o velho. - Isso foi almoço de rei!

De rei não foi - respondeu modestamente o caboclo. - Mas foi de coração.

Volte sempre, Velho Santinho - convidou Nhá Zeza. - O senhor sabe que a casa é sua.

Garrote montou e deu uma última olhada para a casinha de Cipriano. No meio do grupo que acenava, lá estava a menina. Ritinha, sorrindo feito criança, recheada de esperanças e fé no futuro.

Sentiu-se um velho. A menina esperava muito mais da vida do que ele. Tinha amigos, tinha pais, tinha esperança.

Ele não tinha nada.

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Capítulo 18

Garrote atiçou o alazão, procurando distanciar-se logo do calor do olhar de Ritinha. Voltou os olhos para trás e ainda viu a figurinha da menina, já distante, a acenar para ele.

Voltou-se para o companheiro:

Velho Santinho, a filha do Cipriano disse que nunca foi à escola. Nem seus irmãos. Por quê?

Nenhuma criança do Encantado vai à escola, Garrote - respondeu o velho, muito sério.

- Por quê?

- Porque Nhá Nana não quer. Quem nasce no Encantado só tem um destino: trabalhar no Encantado. Pra que precisam saber ler? Pra que aprender a

escrever?

O lábio inferior do Garrote tremia. O garoto não podia entender um absurdo daqueles.

- E você acha isso certo, Velho Santinho?

Sem responder, o velho picou o cavalinho e galopou, à frente do Garrote.

O rapaz havia aprendido mais um pouco como viviam aquelas pessoas na fazenda de Nhá Nana. Sem escola! E ocorreu-lhe que ele, o novo Garrote, ficaria também sem escola. Como ele iria continuar os estudos? A morte dos pais havia interrompido até mesmo a conclusão de sua oitava série. E em seguida? Ah, pelo jeito só lhe

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restava a universidade empoeirada do Encantado para cursar! E a reitora era uma velha demente, especialista na pedagogia do açoite...

"Tenho de fugir daqui..."

Cavalgaram durante toda a tarde. Aos poucos, Garrote percebeu que o velho cavaleiro liderava uma cavalgada em espiral, que havia começado próxima aos limites da fazenda e cujo vértice seria o retorno à casa-grande. Papagaios, araras e capivaras, veados-campeiros e tamanduás, rios e arroios, matagãos intocados e terra pelada, pastagens e voçorocas, bois e cavalos, carneiros e cabras, pequizeiros retorcidos, palmitais sem fim e moitas de flores tantas que Garrote nem mais perguntava o nome. Mas o velho fazia questão de nomear:

- Este é o barbatimão, ali é o pau-santo. Veja que lenho forte! Isso dali é a sucupira, madeira cara, que está se acabando de tanta mobília que os estrangeiros adoram ter em casa. Ali é o pau-terra... Olha aquela moita de indaiá! Todo mundo gosta de indaiá num jardim, não é? Me disseram que até nas ruas da cidade grande eles plantam esses indaiás pra enfeitar... Olha ali a catuaba... Veja só: esses araçazeiros estão carregados. Quer comer araçá? Nunca comeu? Ei, olha lá o caracará! Eh, gavião esganado! Já, já vai mergulhar e levar um curiango desses pro papo dos filhotes. Ah!

Plantações só uma ou outra hortinha para consumo próprio em volta dos casebres dos boiadeiros, olhos verdes perdidos no vermelho sem fim.

Não se planta nada no Encantado? - perguntou o

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garoto.

Claro que se planta! - riu-se o Velho Santinho. -O milho, a mandioca, o feijão e até o arroz que você come brota aqui, nesta terra, Garrote!

Não. Eu digo plantação pra vender. Todo este Estado está enriquecendo com uma porção de produtos agrícolas como a soja, o milho e o algodão!

Ufa! Você aprendeu bastante coisa na escola lá da cidade grande, hein, Garrote?

Estou falando em agricultura, Velho Santinho! -insistiu o rapaz.

O velho desfez a risada.

- Isso não. Nhã Nana sempre diz que plantação só dá dor de cabeça e bedelho estranho enfiado no Encantado. Tem de chamar gente pra botar produtos na terra, tem de espalhar veneno pra perseguir a saúva, o cupim e o gafanhoto, tem de comprar máquinas que só teimam em encrencar. Logo, isso tudo aqui ia ficar cheio de gente metida a sabichona, querendo dar palpite na vida do Encantado. E isso Nhá Nana nunca ia permitir, Garrote!

O rapaz balançou a cabeça, desolado:

- O que ela não iria permitir, Velho Santinho? O progresso, é?

O velho cuspiu de lado, com desprezo, desviando a conversa da determinação da senhora do Encantado para sua própria pessoa:

- Disso eu nunca precisei. Com o gado não precisa ninguém de fora com idéias destrambelhadas, que

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ninguém entende. Minha mãe dizia que eu aprendi a montar antes de aprender a andar. Afinal, andar pra quê? Andar e correr é trabalho de cavalo, menino! Upa!

E cutucou o cavalinho, à frente do rapaz, retomando o passeio e encerrando a conversa.

Capítulo 19

Terminada a longa apresentação dos domínios de Nhá Nana para o rapaz, a noite já se apresentava colorida quando os dois cavaleiros chegaram de volta à avenida de terra que separava as casas dos agregados e conduzia à casa-grande do Encantado, logo após o majestoso pequizeiro.

Cavalgando a trote, sem pressa, foram ultrapassados por um galope apressado. Era a figurinha encou-raçada do Carne-Seca, que travou as rédeas da égua castanha ao chegar à varanda onde Nhá Nana já estava de pé, imponente, à espera do capataz.

Garrote e Velho Santinho logo se aproximaram.

- E então? - perguntou a voz seca de Nhá Nana. O homenzinho desmontou e encolhia-se dentro

de sua armadura de couro ao aproximar-se humilde, mas triunfante, do sopé da varanda.

- É claro que fiz do jeito que a senhora mandou, Nhá Nana. Trouxe comigo.

O rapaz viu que Carne-Seca estendia alguma coisa para a velha. O capataz percebeu que era observado e, por

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sobre o ombro, virou a caveira sorridente para o rapaz:

- Hoje de manhã passei na venda do Nhonofre e ele me contou que o Tampinha tinha comprado isso aqui, Nhozinho Garrote. Contei pra Nhá Nana e ela me mandou buscar.

Velho Santinho e Garrote agora sabiam o que era aquele objeto estendido para a senhora do Encantado: o rádio de pilha do baixinho.

Nhá Nana, impassível, continuou:

- E deu-lhe o dinheiro?

A cabeça escaveirada voltou-se pressurosa para a mulher:

- Dei sim. Disse que a senhora tinha mandado, e dei pra ele direitinho o que ele tinha de pagar pra Nhonofre. Mas nem precisava, me desculpe o palpite...

Nhá Nana não se alterou:

- Não pedi nem preciso de sua opinião. Faça o que mandei fazer com isso aí.

Aceitando a ordem como se fosse um garotinho convidado para uma brincadeira excitante, Carne-Seca ergueu o braço e jogou o radinho no chão, com força. Em seguida, com o tacão da botina, passou a pisoteá-lo, alegremente. Mesmo depois que a caixinha frágil já não passava de cacos de plástico e metal, Carne-Seca ainda saltitava sobre os destroços, como se dançasse.

O rosto de Garrote empalideceu. O que era aquilo? O que estava acontecendo?

Lentamente, Nhá Nana rodeou todo o terreiro com o

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olhar. Além do menino, do velho e do capataz, havia mais algumas curiosidades em volta. E a mulher falou:

- Aí está. Ninguém aqui no Encantado precisa de notícias. Aqui nada acontece de novo. Nada muda. Tudo é do jeito que sempre foi. Tudo é e continuará sendo do jeito que é.

Garrote olhou para o Velho Santinho. O companheiro estava imóvel sobre o cavalo e sua expressão, recortada na contraluz do entardecer, nada dizia. A boca do rapaz abriu-se, ia falar, mas a sombra autoritária falou primeiro:

- Santinho, espero que você tenha mostrado um pouco do Encantado para o meu neto. Ele terá tempo para conhecer tudo. A vida inteira. Antônia, prepare um banho quente para o Garrote. Logo mais, ele e eu vamos jantar juntos na sala grande.

Com um repelão, voltou o corpo e desapareceu pela grande porta da casa.

Antes que a curiosidade dos agregados se dispersasse, Carne-Seca levantou a voz, ameaçador, de chicote apontado como uma espada, girando o corpo para que todos ouvissem:

- E se alguém precisar de música, que cante, mas longe dos ouvidos de Nhá Nana! Ou, se preferir, vai ouvir aqui a minha música...

E - chlept! - deu uma lambada no couro da calça com o chicote.

... e cravei no peito dele, bem fundo no coração...

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Capítulo 20

O rapaz não comentou as ordens da avó, que, desde que ele havia chegado ao Encantado, só falava dele sem lhe dirigir a palavra.

Entrou na casa-grande e, sem esperar pela água que deveria estar sendo esquentada pela pobre Amélia, que tinha de ser chamada de Antônia, tomou um longo banho na água fria do chuveiro. Vestiu-se, atravessou a imensa sala e entrou na cozinha. Era quase tão grande quanto a sala e um fogão à lenha acrescentava alguns graus ao calor do cerrado.

Lá estava a boa Madalena, a que deveria ser chamada de Dita, ultimando um farto jantar.

Nhozinho Garrote! - surpreendeu-se a cozinheira. - A janta já está quase pronta. Nhá Nana espera o senhor lá na sala grande.

Não vou jantar lá, Ma-da-le-na. - Garrote escandia as sílabas, como se pronunciar o verdadeiro nome da cozinheira fosse uma espécie de desaforo para a avó. -Diga a ela que vou comer aqui mesmo, na cozinha.

Assustada, a mulher desapareceu na direção da sala. Logo voltava, com os olhos arregalados, sem compreender a possibilidade de alguém descumprir uma ordem da chefe, mesmo que esse alguém fosse o neto, o herdeiro do Encantado. Silenciosamente, preparou a mesa da cozinha para o jantar do rapaz.

Madalena-Dita cozinhava bem, é claro que cozinhava bem. Mas Garrote olhou para o imenso bife de filé

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mignon, bistecas de porco, arroz, feijão, e sua mente desviou-se, retornando à casa de Cipriano e ao angu de farinha de peixe oferecido por Nhá Zeza. Para ele, a perícia culinária da cozinheira do Encantado perdia para o tempero simples da mulher do peão. O que faltava no tempero do Encantado? Amor, talvez?

Como é possível viver aqui, Madalena? - perguntou ele.

Desculpe, Nhozinho... Não entendi... - respondeu ela.

- O que está acontecendo no Encantado?

- Acontecendo? Nada está acontecendo, Nhozinho. Como Nhá Nana disse, tudo aqui é do jeito que sempre foi...

Mais tarde, na cama, olhando as estrelas num céu escuro que cobria de beleza aquela terra da loucura, Garrote murmurava para si mesmo:

- Como vou escapar daqui? Eu não tenho nada com isso... Quero sair daqui... Não tenho nada com esse Encantado, não tenho nada com coisa nenhuma... Eu sou eu. Não quero ser mais nada... Eu sou eu... sou eu...

Capítulo 21

A noite tinha começado em pesadelos e Garrote sonhou com um castelo assombrado por uma abelha-rainha e um demônio encouraçado que açoitava crianças e destruía brinquedos. Mas, à medida que se aprofundava, o sono foi levando a imaginação adormecida do Garrote para um sonho colorido, onde

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havia um velho alegre, às gargalhadas, sempre preo-cupado com ele, e uma pequena fada morena que desenhava letras na areia com sua varinha de condão. Um cocoricó mais alto perturbou o devaneio. O garoto acordou. Estava escuro como breu. Olhou no relógio e viu que ainda estava longe a madrugada que haveria de arrancar da cama todos os empregados daquela fazenda.

Fugir...

Para escapar dali, ele precisava aprender as trilhas invisíveis daquela fazenda. Talvez fosse possível cavalgar até o ponto por onde passava o ônibus e alcançar Brasília. Mas, o que seria dele em Brasília, sozinho?

Balançou a cabeça, desolado. Mas logo sacudiu novamente a cabeça, desta vez com decisão. Mesmo que seu plano fosse impossível, apegar-se a ele, planejar, poderia mantê-lo alerta. Ou, pelo menos, poderia manter sua cabeça erguida.

"Preciso resistir..."

Decidiu sair sozinho, sob a proteção do Encantado adormecido.

Para não fazer qualquer ruído pela casa, pulou a janela do quarto para o terreiro e caminhou sorrateiramente para o curral.

Com o olhar já acostumado à escuridão, conseguiu distinguir a sombra do valente alazão que o levara no passeio da véspera. Não dava para buscar a sela na cocheira sem despertar alguém. Mas aquele rapaz tinha

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sido ensinado pela mãe a cavalgar em qualquer circunstância. O cabresto e as rédeas estavam pendurados no mourão do curral. Foi só enfiar o arreio pelo focinho do animal, ajustar o cabresto entre seus dentes, abrir a porteira, montar em pêlo e sair a trote cauteloso pelo terreiro.

Atrás de si, pareceu-lhe ouvir o ruído de um outro trote, mas devia ser dos outros cavalos que haviam ficado no curral, nervosos pela saída do alazão.

Agachou-se sobre o pescoço do cavalo e ficou murmurando carinhos para acalmá-lo e impedir que ele relinchasse. Bastava atravessar a rua que separava as casinhas dos empregados da casa-grande, ladeada pela longa vereda de buritis, e ultrapassar o grande pequizeiro retorcido da entrada, e ele poderia galopar à vontade. Só faltava mais um pouquinho...

- Aonde vai, Garrote?

Da escuridão maior causada pela copa pesada da árvore, vinha a voz gostosa do Velho Santinho. Garrote sofreou o animal. Danado de velho!

Você não dorme, é, Velho Santinho? - perguntou irritado o rapaz.

Pelo jeito, quem está sem sono é você. Eta Garrote tinhoso! O pessoal do Encantado ainda está pegado no ronco e lá vai você, o cavaleiro da escuridão! Nessa hora nem quem tem de tirar leite das vacas acordou ainda, menino!

Mas eu e você acordamos, não é, Velho Santinho? Pois saiba que eu quero cavalgar um pouco sozinho - disse

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Garrote, quando notou que, sob a sombra do pequizeiro, havia também um cavalo enci-lhado. Não era mais o cavalinho fosco da véspera. Era um baio novo e arisco, bom de corrida, pelo jeito. -Por favor, não quero que venha comigo.

Pois então não vou, Garrote. Pode deixar. Hoje não estou com vontade de sair sem café da manhã pra tomar banho de regato...

Banho de regato?! Do que está falando, Velho Santinho?

Nada... Não estou falando nada. Bom passeio, Garrote. Cuidado pra não se afogar. Tem homem que se afoga nesse tipo de banho... Ainda mais homenzinhos tinhosos feito algum que eu conheço...

O rapaz açulou o alazão e saiu a galope. Velho danado!

Capítulo 22

Como se fosse um motorista de táxi ao qual o passageiro informa o endereço, o alazão conduzia o garoto cerrado afora, na direção da casa humilde de Cipriano.

"Talvez Cipriano me ensine o caminho para fora daqui... Ou mesmo a Ritinha..."

Aquele destino ficava longe da casa-grande e quase duas horas tinham de ser gastas até lá. Assim, a luz do Sol já banhava o cerrado quando o rapaz ouviu mais um cumprimento:

- Oi, Garrote!

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Era Ritinha, com outro vestido de fazenda simples, mas menos desbotado do que o da véspera. Uma fita cor-de-rosa adornava-lhe os cabelos negros.

- Oi...

Apeou. A menina iluminou ainda mais a manhã com uma risadinha leve como porcelana, troçando:

- Ah, eu sabia que você vinha...

A escapada em segredo do rapaz pelo jeito tinha sido prevista por mais de uma pessoa. O que dizer? Nada respondeu.

A menina pegou-o pela mão:

Vem cá. Quero te mostrar uma coisa.

Ei, espere aí! E o cavalo?

A menina aproximou-se do alazão. Pôs a mãozinha em seu pêlo.

Está suado... Você galopou bastante até aqui, né?

Eu não. Quem galopou foi o cavalo.

Rindo da brincadeira, Ritinha pegou um galho caído, ainda cheio de pequenos ramos, e o amarrou na ponta de uma das rédeas do alazão.

- Pronto. Agora ele pode ficar pastando e descansando quanto quiser. Fugir, não foge, porque os galhos se enredam no mato e ele não vai longe não. Agora venha.

Retomou a mão do rapaz e o conduziu.

Garrote percebeu que o caminho era familiar. Estavam na mesma trilha que levava ao regato e ele pensou que

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a adivinhação do tal banho por parte do Velho Santinho agora não parecia tão descabida assim.

A menina parou. Num ponto onde haviam estado no dia anterior, havia uma espécie de cabaninha para gnomos. Uma série de gravetos espetados formava uma pequena paliçada, tudo coberto por folhas largas de sapezeiro. Ritinha foi tirando as folhas, uma a uma, e apontou para o chão, entre os gravetos:

- Veja. Eu cobri tudinho para o vento não apagar os nomes da gente.

No meio da pequena paliçada, na terra ainda estava escrito RITA e GARROTE.

Ritinha exibia um ar de triunfo:

E você nem adivinha o que eu descobri.

Descobriu? O que você descobriu, Ritinha?

- Descobri que o meu nome e o seu são bem pare-cidos.

Garrote estranhou:

- Parecidos? Não são nem um pouco parecidos.

- São sim. Você não vê. Pois eu vi tudo sozinha. Olhe bem: o meu nome tem quatro coisas e três dessas coisas têm no seu nome também - e apontava o R, o T e o A, que se repetiam nos dois nomes. - Viu? Eu não disse? Sou mais esperta que você!

A vivacidade da menina fazia com que Garrote por um momento deixasse de pensar em veredas de fuga:

- Hum... é isso mesmo. Estas coisas são letras.

- É claro que são letras. Isso eu sei!

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- A gente pode escrever tudo o que quiser mudando as letras de lugar. É isso que se aprende na escola. Vou mostrar pra você. Senta aqui.

A menina sentou-se ao seu lado, na terra. Garrote pegou um graveto e ficou mostrando como aquelas letras se combinavam. Explicou que era possível formar outros nomes, usando as mesmas letras.

- Veja: com as letras do seu nome dá pra escrever TIRA, como esta de pano, que você amarrou na cintura do vestido.

- É assim que escreve?

- É, sim. E se eu tirar este R do começo de RITA e puser esta letra, que se chama F, fica FITA, igual à que você está usando no cabelo.

- Entendi. E com o seu nome? Que brincadeira que dá?

- Com o meu nome, se eu tirar este OTE e puser outro A no fim do que sobrou, dá GARRA. Veja.

- Feito garra de onça?

-É.

- Que horror!

- E olhe: se eu pegar esse ROTE do fim do meu nome, e puser outro T na frente, dá pra escrever TROTE.

- Que nem trote de cavalo?

- Isso mesmo.

A menina riu, feliz:

- Isso é um brinquedo gostoso!

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- Um brinquedo, Ritinha? Isso é escrever. Você quer aprender a escrever? Quer aprender a ler?

- Pra quê?

- Ora, pra poder ler tudo o que quiser!

- E onde eu vou ler tudo o que eu quiser? Não tem nada escrito nas nuvens, nem nas árvores, nem nos bichos...

Pelo jeito, o humor de Ritinha não ficava nada a dever ao do Velho Santinho.

- É bom saber ler, Ritinha. Venha cá.

O rapaz ajoelhou-se na terra e esticou a mão para a pequena cerca de gravetos que circundava os nomes escritos na véspera. Com o graveto, Garrote escreveu mais duas palavras entre os dois nomes.

- Sabe o que eu escrevi?

- Eu não. Você está caçoando de mim.

- Está vendo? Se você soubesse ler, ia saber o que eu escrevi.

- Pois não sei.

- Tá vendo?

- Num tô! - E a menina cruzou os braços, fazendo-se de ofendida.

Antes que o fingimento virasse mágoa de verdade, o garoto revelou:

- Deixa disso, Ritinha. Eu escrevi GOSTA DE.

- Gosta de? O que é isso? O que gosta de quê?

- Você já sabe que os nossos nomes estão escritos aí, não sabe? Então, se eu escrevi GOSTA DE no meio...

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Ritinha olhou para as letras na terra. Franziu as sobrancelhas, pensativa. De repente, seu rosto iluminou-se:

- É fácil. Aqui, RITA. Aqui, GARROTE. Aqui, GOSTA DE. Então... RITA-GOSTA-DE-GARROTE! Viva! Eu já sei ler!

Sua conquista aumentou-lhe a alegria e ela gargalhou alto. Mas parou de repente a risada, levantou-se e apontou para ele, com o dedinho em riste:

- E quem é que te disse que Rita gosta de Garrote? Ainda sentado na terra, ele recuou, fingindo-se ameaçado pelo dedinho da menina:

- Ninguém. Ora, só estou mostrando como se escrevem as coisas...

Ritinha ficou um instante imóvel, com as mãos na cintura. Olhou para as letras no chão, pensou um pouco e decidiu-se:

- Se eu já aprendi a ler, vou mostrar que também já aprendi a escrever. Olhe só.

Retomou o graveto e ajoelhou-se na terra. Com capricho, copiou uma a uma as letras de GARROTE. Em seguida, esforçou-se e copiou mais ou menos GOSTA DE. Por fim, escreveu RITA.

- E agora? Você sabe ler isto que eu escrevi? Garrote olhou, fingiu que se esforçava para ler e, por fim, disse:

- Hum... aí está escrito GARROTE GOSTA DE RITA. E quem te disse isso?

A menina calou-se. Com dengo, tímida, baixou um

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pouco a cabeça, encostando uma das faces no ombro, revirou os olhos e sussurrou:

- Ninguém... eu pensei que... podia ser que o Garrote gostasse um pouquinho da Rita, né?

Uma caboclinha analfabeta! Mas tinha um feitiço que ele não se lembrava jamais de ter visto em outra menina da cidade grande! Garrote, nos tempos de Caramujo, jamais tivera uma namorada. Sentia uma atração solitária e generalizada por quase todas as garotas de sua escola, mas não se lembrava de sonhar duas vezes com a mesma colega. No entanto, aquela Ritinha... Ora, uma menina ignorante, sem escola... Por que ele sentia uma necessidade tão urgente de abraçá-la?

Seus pensamentos foram interrompidos por um movimento entre as árvores do bosque. Seria o Velho Santinho que, rompendo a promessa de deixá-lo sozinho, viera sorrateiramente atrás dele para espioná-lo?

No meio das árvores, pareceu-lhe perceber uma massa mais escura, como um cavalo a distanciar-se.

- Ritinha...

- Que foi?

- Ora, nada. Achei que tinha ouvido alguma coisa. Vai ver não foi nada. Pensei que era o Velho Santinho, metendo mais uma vez o nariz na minha vida. Vai ver foi um bicho grande, desses que tem por aqui - e resolveu brincar com ela. - Será que era uma onça?

A menina, olhos treinados no cerrado, rebateu:

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- Não. Aquilo que passou parece a égua castanha do Carne-Seca.

Garrote voltou com o Encantado já anoitecido e foi para a cozinha, à procura da boa Madalena. Naquele dia, ele e Ritinha não tinham ido almoçar na casa dos pais da menina. Passaram o tempo soltos na liberdade do cerrado, sem pensar em nada, longe de ameaças e de proibições. Almoçaram as frutas que o cerrado oferecia para quem o conhecesse. E a menina conhecia tudo. Naquelas circunstâncias, de nada valia a sabedoria que Garrote aprendera na escola. O que valia era o que Ritinha sabia. O que valia era Ritinha.

Madalena já tinha preparado um jantar, à espera dele.

Quando se levantou, finda a refeição, a cozinheira despediu-se:

- Durma bem, Nhozinho...

Mas Garrote foi para o quarto sabendo que seria impossível dormir bem em qualquer noite na casa-grande daquela fazenda. Ritinha dera-lhe um dia de intervalo em seus problemas mas, de volta para a col-meia presidida pela avó, a necessidade premente de livrar-se do destino que lhe havia sido imposto há tão poucos dias retornava a seus pensamentos.

"Eu tenho de mudar este destino... Não sou daqui. Não vou ficar aqui!"

Adormeceu chorando, mas sonhou com Ritinha.

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Capítulo 23

O Encantado amanhecia com um verdadeiro alarido. Garrote vestiu-se rapidamente e correu para fora.

A agitação rondava o terreiro, e os agregados formavam uma roda na frente da varanda, sobre a qual imperava a figura de Nhá Nana.

Do meio daquela pequena multidão destacava-se a cabeça de um cavalo. Era mais que isso. Era a cabeça de um demônio negro, a morder o cabresto e a fuzilar a todos com um olhar enfurecido.

- Eh, chegou o Asa Negra! - riu-se o Velho Santinho.

Cavalos tinham sido a paixão de sua Mãe Mariana, e os olhos de Garrote admiravam o animal. O velho apoiou a mão no ombro do rapaz e explicou:

O Asa Negra é um presente que Nhô Tadeu prometeu a Nhá Nana. Dizem que é o melhor cavalo que já nasceu no cerrado.

Esse Nhô Tadeu é um amigo de Nhá Nana? -perguntou Garrote.

Velho Santinho riu-se novamente.

- Nhô Tadeu é um fazendeiro igual a Nhá Nana. Sua terra não é tão grande quanto o Encantado, mas ele é um homem muito poderoso. Não, Garrote, Nhô Tadeu não é amigo de Nhá Nana. Fazendeiros não são amigos. Ou são aliados ou são inimigos. Um pode batizar o filho do outro num domingo e mandar matar o

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compadre na segunda-feira. O Asa Negra deve ser a paga de algum favor que Nhá Nana fez pra Nhô Tadeu, ou pode ser o selo de alguma nova aliança. Seja o que for, não há de ser nada de bom para o povo do Encantado.

Quando os dois se aproximaram, o povo respeitosamente abriu passagem para o neto de Nhá Nana. Garrote avançou até o pé da varanda. Velho Santinho sussurrou-lhe ao ouvido:

- Suba, Garrote. Acostume-se a ser o senhorzinho do Encantado. Lugar de povo é aqui embaixo. Lugar de senhor é lá em cima, com a sua avó.

Nhá Nana estava calada e imóvel como uma estátua. Nada dizia, mas era claro que a peça estava suspensa até que seu neto assumisse o lugar que lhe estava reservado naquele palco. Garrote desviou o olhar e deu-lhe as costas, ficando ao lado do Velho Santinho.

Ninguém podia prever onde daria aquela tensão, se o cavalo negro não resolvesse intervir.

- Eh, cuidado! - alguém gritou.

Asa Negra empinava, arrastando consigo o peão que o havia trazido da fazenda de Nhô Tadeu e que agora estava de pé à seu lado, ousando agarrá-lo pelo cabresto. Quando suas patas dianteiras voltaram ao chão, o pobre cavaleiro caiu espalhafatosamente. Ao mesmo tempo, o cavalo levantou o enorme traseiro negro, escoiceando e espantando os curiosos.

Quatro peões do Encantado agarraram-se às rédeas do animal, tentando dominá-lo. O cavalo bufava,

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escoiceava e movia a enorme cabeça negra furio-samente, tentando agarrar o cabresto com os dentes.

- Eh, gente sem jeito! - riu-se o Velho Santinho, jogando seu blusão sobre a cabeça do cavalo.

Cego, Asa Negra aquietou.

O peão derrubado levantou-se, sacudindo ataba-lhoadamente o pó e o vexame.

A senhora me desculpe, Nhá Nana. O Asa Negra é brabo mesmo. Até hoje ninguém conseguiu montar esse diabo. Até o Juvenal ficou descadeirado depois que tentou.

O Juvenal? - perguntou o Velho Santinho. - Aquele que ganhou a vaquejada ano passado?

- Ele mesmo. Asa Negra desancou com ele pra baixo e lhe quebrou os quadris. Está no gesso, e o médico disse que ele não vai mais poder montar nem em mula velha...

Garrote olhou para o cavalo, agora quieto, com a cara coberta pelo blusão de couro. Era enorme, maior e mais bonito do que qualquer outro cavalo que ele vira nos haras de São Paulo. Aqueles eram animais caríssimos, de raças cuidadíssimas, mas nenhum seria páreo para aquela fera negra de quatro patas.

De todo o seu corpo emanava uma energia bruta, poderosa, que afastava até as moscas-varejeiras. Pelas veias saltadas, grossas, nas patas e no pescoço, via-se correr uma energia assassina, incontrolável. A crina brilhava ao Sol, longa e limpa, sem gravetos nem carrapichos. A pele, coberta de pêlos lustrosos e

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brilhantes, tremia, com os músculos a postos para uma batalha sem quartel contra o mundo inteiro.

Exatamente como Garrote. Exatamente como Caramujo. Exatamente como Caramujo-Garrote. Era um animal sozinho contra o mundo e o menino sentiu-se irmão daquela fera. Irmão na fúria, irmão na sarrafada, irmão na resistência. - Diga a Nhô Tadeu que agradeço - encerrou a voz firme de Nhá Nana. - Maria, mande Dita dar almoço para esse homem.

A jovem copeira Maria, que não tinha o direito de ser chamada de Jurema, acompanhou o peão de Nhô Tadeu em volta da casa-grande, na direção da cozinha.

Capítulo 24

Asa Negra estava parado, cego pelos olhos tapados, tremendo pela energia represada.

Uma figura pequena, mesquinha, moveu-se sobre sua montaria. Era a caveira recoberta do Carne-Seca que sorria e falava alto, para Nhá Nana, mas para que todos ouvissem claramente:

- E o cavalo, Nhá Nana? Será que não há cavaleiro no Encantado que o dome?

O capataz ergueu o chicote e apontou para os homens que o cercavam. Lentamente, vagou de um em um até chegar ao Velho Santinho. Fez sua égua aproximar-se lentamente do velho e encostou-lhe o cabo do chicote no

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peito:

- E o senhor, Velho Santinho? Não diz que é o melhor cavaleiro do mundo?

Em volta, o silêncio era total. Velho Santinho levantou o olhar, duro, encarando aquela caveira amarelecida e sorridente.

- Ainda não nasceu cavalo ou homem que possa com o Velho Santinho. Nem o Asa Negra, nem você, Carne-Seca!

Outra pausa longa. O sorriso continuou na cara do Carne-Seca e o chicote permaneceu colado ao peito do Velho Santinho.

- Então monte, velho. Queremos ver...

Garrote levantou o olhar para a avó. Nhá Nana continuava impassível, sem partido nem interferência. O garoto avaliou aquele animal jovem e feroz e imaginou o corpo envelhecido do amigo tentando montá-lo e controlá-lo. Imaginou e pôde até ver aquele demônio negro jogando o Velho Santinho para o alto como um boneco recheado de palha.

Mas ele viu também o Velho Santinho sendo desafiado e humilhado na frente de todo mundo. Viu que a ponta do chicote no peito era um punhal cravado em sua honra de cavaleiro. E viu a boca do velho pronta para se abrir, para aceitar o desafio, para morrer...

E o garoto arrancou o chicote da mão do Carne- Seca com um puxão. Antes que o capataz pudesse se recobrar do susto, o chicote riscou o ar, indo ferir, com uma lambada certeira, o focinho da égua que montava.

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Surpresa, a égua saltou para trás, derrubando a caveirinha encourada.

- Eu monto! - gritou Garrote, jogando o chicote de volta sobre o corpo caído do Carne-Seca.

Todos riam. Riam com prazer da humilhação a que fora submetido aquele capataz cruel para com todos eles. Riam tanto que a maioria não ouviu a decisão do garoto.

Na varanda, quem olhasse com cuidado haveria de ver uma leve sombra de expressão orgulhosa na face de Nhá Nana.

Caído no chão, Carne-Seca estava lívido, surpreso.

Foi aí que um peão jovem, cheio de si, deu um passo à frente:

- Nhozinho Garrote me desculpe, mas quem vai montar o Asa Negra sou eu.

As risadas diminuíram até se calarem por completo.

- Com a licença de Nhá Nana - continuou o peão -, vou mostrar que aqui no Encantado tem cavaleiro melhor do que na fazenda de Nhô Tadeu. Meu nome também é Juvenal, igual o outro que o Asa Negra estropiou. Na vaquejada que ele ganhou eu vim em segundo, mas agora eu vou provar que foi injustiça. Não sou de cair de bunda como o outro Juvenal. Vou deixar esse Asa Negra mansinho feito cavalo de moça.

Amassou o chapéu nas mãos e olhou para a patroa. A mulher pensou um pouco e decidiu:

- Está bem, Juvenal. O cavalo é seu. Levem o Asa Negra para o curral.

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Capítulo 25

De pé, com a mesma autoridade que mostrara na varanda, Nhá Nana erguia-se, agora sobre a charrete que trouxera Garrote ao Encantado. Transformando-se em um púlpito móvel, a charrete estava encostada à cerca do curral, todo cercado pelo povo da fazenda.

Ainda agarrado por quatro homens, com a cabeça ainda coberta pelo blusão do Velho Santinho, Asa Negra bufava no meio do curral.

Já estava selado, e Juvenal montou-o sorrindo. Agarrou-se ao arção da sela e deu o sinal para os quatro homens.

Os peões largaram o cavalo.

Sentindo-se livre, a fera negra sacudiu a cabeça, lançando longe o blusão que a impedia de enxergar. Por um momento ficou imóvel, a avaliar o que estava acontecendo.

Mas foi apenas por um momento.

Como se explodisse, Asa Negra empinou e corco-veou com tal ímpeto que deu a impressão de voar. Juvenal foi arremessado para cima e caiu como um fruto podre. Asa Negra investiu sobre ele e caiu com as duas ferraduras dianteiras sobre sua cabeça.

Ouviu-se um ruído semelhante ao de um ovo esmagando-se ao ser pisado.

O grande cavalo negro então empinou, ficando vários segundos de pé, gigante, exibindo os cascos gotejantes

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do sangue escuro e dos miolos do jovem cavaleiro.

Um laço cortou o ar e enrolou-se em torno do pescoço do cavalo assassino.

Na outra ponta da corda estava o Velho Santinho, que esticou o laço e conseguiu afastar o Asa Negra, que ainda parecia sedento de sangue.

Garrote correu para o corpo estendido de Juvenal. A cabeça era uma massa informe, ensangüentada, que logo foi coberta pelo blusão do Velho Santinho.

- Levem o cavalo para a cocheira - a ordem vinha de Nhá Nana. - Ele não serve para montar. Vamos usá-lo só como reprodutor.

Nenhuma palavra sobre o cavaleiro assassinado.

Enquanto alguém o afastava dali, Garrote deu uma última olhada no corpo estendido do jovem cavaleiro, que agora não era mais jovem, que agora não era mais nada, apenas mais uma vítima da valentia selvagem do cerrado.

Capítulo 26

O resto daquele dia foi tenso, mas a morte de Juvenal não tinha alterado em nada a rotina do Encantado. O garoto esperava a presença da polícia, uma investigação, perguntas. Mas aquele jovem peão, vencedor de vaquejadas, foi esquecido e ninguém mais falou nele, como se nunca tivesse existido um Juvenal naquela fazenda.

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Garrote não pôde dormir. Apoiado na janela do quarto, olhava a paisagem intensamente iluminada pela lua cheia.

Ninguém chorava por Juvenal. Talvez tivesse deixado uma viúva, ou uma namorada. De qualquer forma, o pranto de nenhuma delas seria capaz de arrancar o jovem cavaleiro de volta à vida, nem de eternizar sua lembrança.

Devia estar sendo velado em uma das casinhas espalhadas pela fazenda, com sua família lamentando-se baixinho, e seria enterrado no dia seguinte, sem que ninguém no Encantado assumisse a responsabilidade por aquela morte tão inútil.

Garrote pulou a janela e saiu, andando descalço sob o luar.

Sentia-se desorientado. Com a morte do pai e da Mãe Mariana ele ficara sozinho, mas os seus problemas agora pareciam maiores do que a solidão, do que a falta dos pais. Seus pequenos problemas, como a deslealdade do colega que o atacara por trás, ele sempre soubera resolver, às sarrafadas ou fechando-se em si mesmo. Mas, agora, fechar-se em si só reavivava a confusão mental que tomava conta de seus pensamentos e perturbava seus conceitos desde que havia chegado ao Encantado. E como enfrentar a maldição daquele lugar às sarrafadas?

O que seria dele nessa nova vida? O que queriam dele? Em que ele estava se transformando? De Caramujo em Garrote? De garoto de São Paulo em herdeiro do Encantado? Em herdeiro das loucuras de Nhá Nana?

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As lembranças do pai e da mãe eram agora para ele algo distante, meio sem sentido, como se ele tivesse nascido naquela fazenda, sem pai nem mãe, apenas neto de uma mulher de pedra que nunca havia trocado uma palavra com ele.

Pai, para ele, sempre tinha sido alguém muito ocupado, sempre sem tempo, sempre tenso com problemas de trabalho. Mãe... bem, mãe era Mariana. E Mariana não existia mais.

Mas, e o Velho Santinho? Garrote sentia algo dentro do peito quando pensava naquele homem. Algo indefinido, uma opressão, um sentimento que não se lembrava de ter percebido antes.

Havia tanta coisa que ele tinha conhecido naqueles cinco dias, havia um mundo novo, seco, cruel, que ele não era capaz de controlar. Mas havia também a outra face do mesmo mundo, uma face doce, pura, cheia de esperança, que ele não era capaz de compreender. Além do velho cavaleiro, havia Ritinha... Ah, sim, havia Ritinha, e mais um novo sentimento a pulsar-lhe no peito. Algo novo, perturbador...

Sua cabeça vagava, mas seus passos o guiavam num rumo certo. Estava agora encostado na cerca do curral.

No meio do pasto, uma sombra negra reluzia à luz do luar. Asa Negra. O cavalo assassino. A fera da sarrafada que não permitia nenhuma intromissão em sua vida. Nenhum cavaleiro em seu lombo virgem.

O cavalo percebeu a presença do garoto e aproximou-se lentamente da cerca do curral. A um metro distância, parou. E os dois indomados olharam-se bem dentro dos

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olhos, como se quisessem vasculhar a alma um do outro.

Garrote estava hipnotizado por aquele olhar. Eram duas contas negras refletindo uma lua cheia em cada uma delas.

Talvez pelo friozinho da madrugada, talvez por aquele encontro solitário, o garoto tremeu.

- Asa Negra... quem é você? O que fazemos nós dois neste lugar?

Não estavam mais sós. Uma terceira presença, surgida do nada ao lado de Garrote, respondeu à pergunta:

- Vieram continuar o Encantado, meu neto.

O rapaz voltou-se num susto. Lá estava Nhá Nana.

Mas era outra Nhá Nana. Era um fantasma de camisolão branco, com uma longa cabeleira grisalha, solta, a cobrir-lhe os ombros.

Aquela era a primeira frase diretamente dirigida a ele que o garoto ouvia da avó.

- Garrote... Garrote do Encantado! Eu esperei esses anos todos, até que você viesse para cá, a fim de aprender a assumir o lugar que é seu.

O garoto pôs-se em guarda:

Eu não vim assumir nada. Eu não vim aprender nada. Eu não tive escolha.

Você não tem escolha - cortou Nhá Nana com voz mansa, calma, totalmente diferente daquela fala autoritária para uso durante o dia. - Você é quem é, e vai cumprir o seu destino, do mesmo modo que eu

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cumpri o meu.

Se os meus pais não tivessem...

Os seus pais! O seu pai pensava que podia conquistar o Encantado roubando Mariana daqui. Sei que ele só esperava a minha morte para vender a fazenda. E com o consentimento da sua mãe! Ah, mas o Encantado é maior do que a cobiça de um imbecil. O cretino morreu antes de mim e ainda me deu um neto homem para continuar o meu trabalho, que foi o trabalho do meu pai, do meu avô, do meu bisavô, e há de ser o do seu filho e do seu neto, até à última geração.

A voz continuava calma, mas o tom se elevava, como se discursasse para os mortos do Encantado, que não descansariam em paz enquanto não houvesse um herdeiro.

- Era isso que o Encantado queria: um herdeiro homem. Ele teve de esperar duas gerações, pois meu irmão morreu criança e o meu marido era um fraco que nem soube fazer um homem em mim.

Garrote estava atônito com aquele discurso feito para um garoto desorientado e um cavalo assassino. Ambos, a oradora e o cavalo, não tiravam os olhos de cima dele, examinando cada uma de suas reações, avaliando que tipo de comandante haveria de dirigir o Encantado.

Nhã Nana falava dos mortos só na medida da sua importância ou da sua insignificância em relação ao Encantado. Falava do seu próprio marido do modo que uma abelha-rainha falaria do zangão, que morre depois de ter assegurado a continuação da espécie. Da espécie dos ditadores daquela colmeia do inferno, daquela

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fazenda-prisão, desligada do mundo, do progresso, da razão, do futuro.

- O futuro só tem valor se nele pudermos garantir a perpetuação do passado, Garrote. O Encantado não tem tempo. Aqui convivem indivisíveis o passado, o presente e o futuro. Aqui estão as memórias, os sonhos e as alucinações. Eu preciso ensinar tudo isso a você. Logo. Já não tenho muito tempo, e o Encantado tem pressa. A terra do Encantado tem pressa de engolir o meu corpo, assim como engoliu a minha vida...

Louca! Aquela mulher era louca! Garrote não sabia o que fazer. Onde tinha caído? O que seria dele? O que seria de todos os habitantes da fazenda nas mãos dementes daquela mulher? Ah, se Mãe Mariana não tivesse morrido!

- Mariana! Eu a criei para ser a nova rainha do Encantado. Haveria de aprender do modo que eu aprendi. E ela ia muito bem. Cavalgava igual ao melhor dos cavaleiros, ensinada pelo Velho Santinho, o maior de todos. Mas começou a sonhar com um outro mundo, o mundo que está lá fora do Encantado. Um mundo sempre ansioso por engolir esta fazenda...

Falava do mundo exterior ao Encantado como se todo o planeta fosse seu inimigo. Um inimigo que tinha de ser derrotado.

- Não! Esse mundo não conseguiu nem jamais conseguirá conquistar o Encantado. Mas conquistou a minha filha. Mariana... Felizmente esse mesmo mundo que me levou Mariana me devolveu você. Agora você está nas mesmas mãos que ensinaram Mariana. Nas

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mãos do Velho Santinho.

Asa Negra continuava imóvel, como um cavalo empalhado, ouvindo aquele discurso. A brisa da madruga já não era mais uma brisa. Transformara- se num vento suave mas, aos poucos, já era quase uma ventania.

A crina negra do animal era jogada de um lado para outro pelo vento. Acompanhando o ritmo, a cabeleira branca da rainha do Encantado armava-se no contorno de uma bandeira fantasmagórica.

- Asa Negra! Assassino indomável! Fosse na mocidade do Velho Santinho e você já seria um carneiro. Aquele sim foi o cavaleiro do Encantado! Aprenda com ele, Garrote. Aprenda a ser um homem. Cresça. Case-se. Não importa com quem. Pode até mesmo ser uma cria do Encantado, como a Ritinha do Cipriano.

Garrote levou um susto:

- O quê?! Quem contou para a senhora que...

- Dirigir o Encantado é saber de tudo, meu neto. Case-se, mas tenha só um filho, para manter imutável e indivisível esta fazenda. O Encantado é o mundo, Garrote! Aprenda a dirigir o mundo, meu neto!

O garoto recuou assombrado, de costas, sem poder desviar os olhos daquela visão fantasmagórica. De repente, voltou-se e saiu correndo, com a poeira levantada pelo vento entrando-lhe pelos olhos, pelo nariz, pela boca. Correu de pânico, de medo, sem direção.

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Lá atrás, com a camisola enfunada como um veleiro em alto-mar, com os cabelos tremulando, a figura da velha, à frente do enorme cavalo, à luz da lua cheia, continuava aquele discurso louco, como se os demônios tivessem vindo com o vento anunciar o fim de tudo:

- Este é o mundo, Garrote! E o seu mundo, meu neto!

Capítulo 27

Acordou na cocheira, sobre um monte de palha. Havia um cobertor por cima de seu corpo, e Garrote sentiu a presença de mais alguém naquele lugar.

- Eh, Garrote! Acordou, menino? - era a risada familiar do Velho Santinho. - E então? Trocou a cama macia pela palha da cocheira?

O rapaz esfregou os olhos. Ali estava o velho, sentado na palha, recostado no madeirame de uma das baias. Teria passado a noite ali, velando seu sono?

Você dormiu aqui, Velho Santinho?

Que nada! Cheguei ainda agorinha...

O garoto viu que o velho mentia. Tinha a roupa cheia de

fios de palha, tanto quanto a do Garrote.

E esse cobertor? Foi você que me cobriu?

Eu? Que nada! Eu não tenho cobertor. Meu cobertor são as nuvens e este velho blusão de couro.

Garrote pegou o blusão das mãos do velho.

- Que horror! Ainda está sujo com o sangue do

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Juvenal!

- Deixe ele aí - falou sério o Velho Santinho, retomando o blusão. - Isso é sangue de macho. Sangue de macho igual ao que corre nas tuas veias, meu menino Garrote enfezado. Enquanto esse sangue estiver aqui eu vou me lembrar da coragem do Juvenal.

Saíram da cocheira, e a imagem do crânio de Juvenal sendo quebrado como um ovo pelas patas do Asa Negra voltou à memória do Garrote.

- O Juvenal morreu no seu lugar, Velho Santinho... O velho respondeu depois de uma pausa, lembrando-se de que o primeiro a aceitar o desafio não fora Juvenal, fora o Garrote.

- Não. Ele morreu no lugar dele. Quando chegar a minha vez, ninguém vai aparecer para morrer por mim.

Garrote deteve o velho pelo braço e olhou fixamente para ele.

- Por que você não impediu, Velho Santinho? Por que deixou o rapaz morrer?

O velho colocou as duas mãos nos ombros do rapaz.

- Garrote, não havia força no mundo que pudesse impedir o Juvenal de montar o Asa Negra. Era a vez dele. Se conseguisse domar aquela fera, o Juvenal seria o maior herói do Encantado. Era domar ou morrer. E ele morreu. Só isso.

- Ele seria o maior herói do Encantado? O maior cavaleiro do mundo? Maior que você, Velho Santinho?

O velho sorriu.

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- Eu fui o maior porque venci todos os cavalos que apareceram. Mas um dia sempre aparece um cavalo mais poderoso. Um dia, esse cavalo vai me vencer. Será a minha hora, e não haverá cavaleiro que possa morrer por mim.

- E esse cavalo é o Asa Negra, Velho Santinho?

- O Asa Negra?

O velho calou-se. Perto dali, no curral, dava para ver o Asa Negra correndo, empinando, corcoveando, exercitando sua musculatura selvagem e limpando no pó os últimos vestígios dos miolos de Juvenal que ainda houvesse em suas ferraduras.

- O Asa Negra? Pode ser...

- Ontem o Carne-Seca o desafiou a montar o Asa Negra. Aquela não era a sua hora, Velho Santinho?

O velho olhou sério para o garoto.

- Cuidado com o Carne-Seca, Garrote. Ontem você o humilhou na frente de todo mundo. Ele não esquece. Cuidado com ele. Ele é perigoso...

Capítulo 28

Nhá Nana não estava na casa-grande.

- Foi à vila, Nhozinho Garrote - informou Amélia, a arrumadeira. - Mandaram recado pra ela assinar uns papéis lá no cartório. Só volta tardezinha...

De que modo estaria sendo planejada sua existência

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naquela fazenda? Se nem pudesse voltar aos estudos, o que ele faria ali o dia inteiro? Passaria o tempo todo cavalgando com o Velho Santinho?

Livre da presença da avó, o rapaz explorou a sala da casa-grande. Talvez encontrasse alguma coisa para ler.

Havia trazido pouca bagagem de São Paulo. A maior parte de seus pertences ficara encaixotada na casa de tia Alzira. Consigo havia trazido apenas um livrinho policial. Todo o resto estaria agora dentro de algum caixote e pelo jeito acabaria mofando abandonado, antes que a tia se lembrasse de cumprir a promessa de enviar suas coisas para o Encantado.

Numa das paredes da sala, havia uma estante. Um trabalho bonito, todo com entalhes de marchetaria e com portas de vidro bisotado. Nas prateleiras, alguns livros encadernados em couro estavam separados por bibelôs antigos, camponesas européias com seus carneirinhos, e até uma imagem de um fauno com seus pés de bode e sua flauta. Examinou as lombadas. Quase nada havia que o interessasse.

Toda a metade inferior da estante era fechada por portas sólidas, também em madeira ricamente trabalhada. Experimentou-as. Estavam trancadas.

O que haveria ali dentro?

Foi à cozinha e pegou uma faca fina, de ponta.

A fechadura era antiga e não foi difícil forçar a lingüeta e soltar a porta.

Abriu-a.

Uma rica baixela de prata e um serviço de louça

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finíssima ocupavam quase todo o espaço. Num canto, deitado sobre uma caixa de papelão, havia um livro grande e fino. Garrote pegou-o. Era uma edição colorida da história de Branca de Neve.

Um livro da infância de sua Mãe Mariana! Uma história infantil que devia ter alegrado sua mãe. Lembrou-se do carinho dela para com os livrinhos que comprava para ele. Ela os guardava cuidadosamente consigo, muito depois do tempo em que as histórias de fadas e bruxas deixaram de interessá-lo. Mãe Mariana guardara seus livros do mesmo modo que sua avó Ana conservara naquele armário aquela recordação da infância de sua mãe...

Com o livro na mão, lembrou-se da menina Ritinha. Aquela caboclinha analfabeta tinha sido realmente uma pausa refrigerada no sufoco que a fazenda do Encantado tinha lhe trazido desde que, há quase uma semana, seus pais tinham desaparecido tragicamente de sua vida. A garotinha tinha-se demonstrado interessada na brincadeira das letras que ele havia proposto no dia anterior. Talvez ele pudesse alfabetizá-la. Por que não? Ele poderia ler para ela aquele conto de fadas, não poderia? Mas como ele conseguiria explicar o que era "neve" para alguém que jamais havia visto nada senão poeira vermelha?

Seus olhos voltaram-se para a caixa grande de papelão, amarrada por uma fita já muito descorada. Pegou-a e desatou a fita.

No alto, um maço de cartas. Cartas! Olhou o remetente. Eram cartas da Mãe Mariana para a avó!

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Queria dizer então que Nhá Nana afinal de contas não havia queimado as cartas de sua mãe sem abri-las? Quer dizer que ela as guardava todas, como um tesouro?

O envelopes tinham sido cuidadosamente abertos com uma espátula. Garrote pegou a primeira carta e pôs-se a lê-la. Com os olhos cobertos de lágrimas, leu uma a uma. Sua mãe, mesmo sem jamais ter recebido uma resposta, havia escrito regularmente para Nhá Nana, todos os meses! Lá estava sua querida Mãe Mariana, inteirinha, tentando fazer Nhá Nana compreender o amor de um homem que a fizera abandonar o Encantado. Lá estava a descrição do nascimento de seu filho, dele, o agora Garrote, seu crescimento, a descrição de seus primeiros passos, de suas primeiras palavras, de suas primeiras conquistas. Em todas as cartas, Mãe Mariana perguntava pelo Velho Santinho, com um amor que realmente correspondia ao que ele havia demonstrado ao falar com Garrote sobre a menina de quem ele cuidara tão bem. As cartas perguntavam de tudo sobre o Encantado. Mãe Mariana queria saber se a égua Crespinha já tinha dado cria e se um certo cachorro fujão já tinha sido encontrado. Numa delas, a mãe lembrava da canoinha em que passeava no rio e propunha que ela fosse pintada de azul. De azul!

Dentro da caixa, havia duas caixinhas pequenas, lado a lado. Numa, um cacho de cabelinhos estava amarrado por uma fita cor-de-rosa com uma etiqueta colada à ponta, onde estava escrito com letra caprichada: MARIANA. A outra continha outro cacho enviado para a avó por Mãe Mariana. E nele, na ponta de uma

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fitinha azul, uma etiqueta com a mesma letra dizia que aquele cabelo era do bebê EDUARDO...

Quando chegou à última carta, datada de apenas um mês antes do acidente fatal, Garrote fazia o possível para que seu choro não se transformasse em soluços e atraísse a atenção de alguma das empregadas da casa-grande.

De coração, sua mãe jamais havia abandonado aquela fazenda... As cartas mostravam que ali estavam suas raízes, fincadas solidamente na terra, naquela mesma terra para onde sua morte enviava agora seu único filho, como uma tentativa de semear novamente a vida no Encantado.

Passou o braço pelos olhos, enxugando-se, e des- cobriu no fundo da caixa uma pasta grande, de elásti- cos, estufada por seu conteúdo. O que haveria ali?

Estava cheia de fotografias.

Capítulo 29

Emocionado, Garrote via desenrolar-se ante seus olhos os registros fotográficos do Encantado.

Havia três fotos com ares de registro imperial, aristocrático. Eram antigas, amarelecidas, de homens sisudos e de grandes bigodes, soberbamente sentados em cadeiras de braço, no centro de grupos compostos por uma mulher de pé, com cara de submissão, e crianças em vestidos rendados ou em terninhos que

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tentavam dar ares de adulto a meninos que não deviam ter mais de dez anos. Essas três fotos podiam ser ordenadas por suas condições de conservação e deviam corresponder à família do bisavô, do avô e do pai de Nhá Nana. Na última, a menos deteriorada, as figuras sentadas do pai sisudo e da mãe submissa eram acompanhadas de apenas duas crianças. O menino vestido de marinheiro devia ser o irmão de sua avó, que morrera cedo, e a linda menina que completava a foto só podia ser... era Nhá Nana!

Foi examinando as outras fotos. Muitas eram de um lindo bebê, logo de uma linda menina, depois de uma mocinha alegre, cujas feições lembravam muito ele mesmo, o Garrote. Mãe Mariana! Ali estavam os registros do crescimento de sua querida mãe. Em bebê, ela aparecia no colo de uma mulher bonita e altiva como uma rainha de cinema. Como sua avó tinha sido bela! Em muitas poses, aparecia um rapaz alto, de chapéu de vaqueiro, exibindo dentes grandes e brancos, sempre a sorrir. Era um jovem forte, garboso, que muitas vezes estava com o bebê no colo e com a mulher-rainha a olhar enternecidamente para os dois.

"Velho Santinho! Este com cara de mocinho de faroeste é o Velho Santinho!"

Algumas fotos mostravam o bebê Mariana, depois a menina Mariana no colo de um homem magro, com um olhar perdido. Devia ser o pai da menina, seu avô. Não havia nenhuma foto imperial daquela família. Garrote não encontrou nenhuma que mostrasse o marido de Nhá Nana sentado em uma cadeira de braços com a mulher ao lado e com a filha a rematar o registro

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fotográfico.

Havia muitas fotos de rodeios, algumas com o jovem Santinho erguendo taças de campeão. Nelas, sua alegria estava sempre acompanhada pela menina Mariana, ou em seu colo ou a seu lado, quando maiorzinha, e pela avó, muito linda a completar o quadro.

E Garrote foi conferindo os registros de Mãe Mariana a cavalo, pulando cercas, posando sorridente. Em várias, havia a companhia orgulhosa do cavaleiro elegante. Uma mostrava uma cena surpreendente, em que o cavaleiro e a linda mocinha cavalgavam de pé sobre as selas!

Por último, havia um maço de fotos amarradas por outra fitinha. Desatou a fita. Ali, em ordem, foi vendo suas próprias fotos, desde bebê, até outra bem recente. Atrás de cada uma, reconheceu a letra de sua mãe: "Para a vovó Ana, do seu neto Eduardo".

Garrote enxugou mais lágrimas que teimavam em correr e, cuidadosamente, amarrou as fitas e recolocou a pasta, as caixinhas e o maço de cartas dentro da caixa grande. Devolveu-a a seu lugar e fechou as portas da estante, forçando novamente a lingüeta da fechadura, que se reajustou perfeitamente.

Voltou para o quarto trazendo apenas um dos itens que não havia devolvido ao armário. Era a história de Branca de Neve, que haveria de contar para Ritinha.

Deitou-se na cama e abriu o livro.

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Capítulo 30

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Na manhã seguinte, o circo em frente à varanda da casa-grande estava montado outra vez.

De pé no estrado imperial, presidindo sua colméia, respeitosamente cercada pelas abelhas-operárias, a abelha-rainha do Encantado estava novamente composta. Não mais lembrava aquele fantasma alucinado que discursara à noite para as estrelas, para um cavalo e para um menino. Estava outra vez no seu vestido negro e com o cabelo impecavelmente armado num coque atrás da nuca.

Abrindo passagem por entre os curiosos, Garrote viu o motivo daquela nova agitação. Lá estava Carne-Seca, com seu sorriso de múmia amarela, brandindo o chicote em uma das mãos e, com a outra, segurando o cabelo de um homem caído de joelhos e com os pulsos amarrados às costas. Carne-Seca agarrava a cabeleira do homem e obrigava que sua cabeça se mantivesse erguida para encarar Nhá Nana de frente.

- Aqui está ele - sibilou a voz cínica do Carne-

Seca. - Aqui está o homem, Nhá Nana. Eu trouxe ele direitinho do jeito que a senhora mandou.

Nhá Nana, impassível, olhava para o homem caído, encarnando um juiz de algum tribunal do inferno. Ao lado do réu, Carne-Seca era o algoz, brandindo o chicote como se ele fosse um machado pronto a degolar aquele homem, que já estava condenado antes mesmo de começar o julgamento.

- Quer dizer que o senhor vendeu a vaquinha...

Vaquinha? O que era aquilo? Garrote abriu caminho na

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cerca humana formada pelos agregados até ver o perfil do homem ajoelhado, com a expressão repuxada pela brutalidade com que Carne-Seca o agarrava pelos cabelos.

- Meu Deus, é Cipriano!

Era Cipriano. O Cipriano da esperança, o Cipriano da Ritinha, o Cipriano dos sonhos, o Cipriano daquela televisão que haveria de comprar para a sua família, ainda que não houvesse eletricidade para fazê-la funcionar. O Cipriano da Manchinha, o Cipriano da vaca.

A voz saiu estrangulada pela tensão e pelo aperto:

- Vendi sim, Nhá Nana... com a sua licença... Os olhos da velha fuzilaram o homem:

- Com a minha licença não! Sem a minha licença! Carne-Seca agarrou ainda mais fortemente os cabelos de Cipriano e desferiu-lhe um golpe seco na boca, com o cabo do chicote.

Cipriano não gritou, mas um grito agudo foi ouvido por todos. Garrote olhou. Era Ritinha que corria para o pai.

- Pai! Pai! Soltem o meu pai!

A menina correu direto para o chicote do Carne-Seca, que sorria mais feliz, à espera daquela carne fresca para malhar.

Garrote foi mais rápido. O braço do carrasco foi detido pelo pulso do rapaz, que o desarmou e jogou longe o chicote.

Era a segunda vez em dois dias que Carne-Seca era rebaixado por Garrote na frente de todos.

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Os dois se olharam nos olhos. Eram agora inimigos de morte.

Sem parar de sorrir, a mão pequena do Carne-Seca já tinha desembainhado o punhal.

- Pode desamarrar o homem, Carne-Seca.

Ao ouvir a ordem da patroa, o capataz abaixou-se e usou o punhal para cortar as cordas que prendiam Cipriano. Ao mesmo tempo, porém, olhava para

Garrote e imaginava-se a cortar-lhe as veias, as artérias, os músculos e os tendões que lhe prendiam a cabeça sobre os ombros.

Ritinha chorava, abraçada ao pai, que se levantava a custo.

- Quitéria - ordenou Nhá Nana -, leve essa menina daqui.

Uma das mulheres da casa pegou Ritinha pelos ombros. A menina debateu-se, mas a mulher era forte e conseguiu arrastá-la dali, rompendo caminho no meio do povo. Aos poucos, não dava mais para ouvir os soluços da menina.

- Belmiro! Geromão! Cuidem para que o meu neto não se meta mais na conversa.

Dois boiadeiros fortes ladearam Garrote.

- Desculpe, Nhozinho Garrote...

Garrote olhou para trás. Lá estava o Velho Santinho, sério, de um modo que o rapaz nunca tinha visto antes.

Cipriano limpou o sangue que lhe escorria pelo canto da boca de um corte feito pela pancada do Carne-Seca.

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Bateu desajeitadamente as mãos na roupa, tirando-lhe o pó, e olhou em volta, apalermado, como se procurasse o chapéu.

- Voltemos à vaca, Cipriano. - Nhá Nana retomava a conversa como se ela tivesse sido interrompida para um cafezinho. - Você vendeu a vaca sem a minha licença, não é?

Com o seu olhar de criança, o homem não sabia o que dizer, nem o que fazer:

- E... eu... vendi sim, Nhá Nana. Me desculpe, é que a vaca era minha e...

- Sua?! - cortou Nhá Nana. - Mas é claro que a vaca era sua...

Aí Garrote entendeu. Nhá Nana não acusava Cipriano de ladrão. Ela reconhecia que a vaca pertencia a Cipriano. O que não pertencia a Cipriano era a própria vida.

- E desde quando, Cipriano, alguma coisa é vendida no Encantado sem a minha ordem?

Apavorado, atabalhoadamente, Cipriano começou a remexer nos bolsos.

- Desculpe, Nhá Nana... Eu... pensei... mas aqui está o dinheiro que eu recebi pela vaca.

Desamarrou um lenço e estendeu-o para Nhá Nana, mostrando algumas notas que estavam embrulhadas dentro dele.

- Dinheiro, Cipriano? Mas a vaca não era sua? 154

Então o dinheiro deve ser seu também.

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Cipriano olhou em volta, sem entender o que estava acontecendo.

Nhá Nana continuou, duramente:

- Esse dinheiro é seu, e você vai sair daqui levando tudo aquilo que lhe pertence. Cada nota.

Falou para o capataz, sem desviar o olhar de Cipriano:

- Carne-Seca! Pegue o homem. O dinheiro é dele e ele vai levá-lo. Dentro dele! Faça o homem comer o dinheiro que é dele! Nota por nota!

Garrote tentou correr em direção àquela bruxa, para arrancar-lhe a pele, fosse avó ou fosse quem fosse. Mas as mãos dos dois boiadeiros agarraram-no como cordas, e tudo o que pôde fazer foi debater-se.

Velho Santinho deu um passo para a frente. Nhá Nana deteve-o com a voz:

- Velho Santinho, não se meta!

O velho cavaleiro parou e ficou estático, paralisado entre a ação e a ordem.

Com o punhal do Carne-Seca encostado na garganta, Cipriano comia o dinheiro, nota a nota, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto...

- Quando ele terminar a refeição ponha-o para fora do Encantado, Carne-Seca. Ele e toda a sua maldita raça. Se amanhã de manhã ele ainda estiver por aqui, toque fogo em tudo. Na casa, nas tralhas, nos cães e nas galinhas.

Olhou triunfante para a pequena multidão.

- Alguém ainda tem alguma dúvida sobre quem manda

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no Encantado?

Garrote deu um chute para trás, com o calcanhar, e conseguiu acertar o meio das pernas de um dos boiadeiros. O homem dobrou-se, gemendo, e a surpresa do ataque permitiu que o garoto se livrasse também das mãos do outro.

Arrancou furiosamente em direção à casa. Mas parou a meio caminho. Parou e olhou para a figura vencedora de Nhá Nana. Não. Decididamente aquele não era o seu lugar.

No grande silêncio que então se fez, Garrote tomou uma decisão. Correu para o primeiro cavalo que encontrou, pulou em cima dele e saiu num galope desenfreado, rumo ao desconhecido deserto do Planalto Central.

Capítulo 31

Cavalgou sem destino nem direção. Queria fugir, queria aumentar cada vez mais a distância entre ele e aquela colmeia do inferno, aquele pesadelo que tinha o nome de Encantado.

Garrote não conhecia nada daquela região, e se deixava levar pelo galope do cavalo.

A paisagem não mudava. Cada vez que ele cavalgava através de uma pastagem aberta e enfiava-se através de um bosque, acabava voltando a um campo aberto que parecia ser o mesmo do qual havia saído.

Só encontrava o mesmo pó do cerrado, as mesmas

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árvores tortas e a mesma vegetação verde-escura. E atrás, e dos lados, sempre as mesmas árvores, sempre o mesmo pó, sempre a mesma vegetação às vezes verde, às vezes ressecada.

Não sabia em que direção estava galopando, só tinha certeza de que lugar estava fugindo. Puxou as rédeas, tentando orientar-se no meio da nuvem de poeira levantada pelo cavalo. Olhou para o Sol. Ele estava às suas costas quando começou a fugir? Ou à sua direita? Estaria galopando em círculos?

E a nuvem de poeira riu outra vez.

Antes que a figura montada do Velho Santinho ficasse nítida, aquela voz gozadora chegou aos ouvidos do garoto:

- Eh, Garrote atrapalhado! Aonde pensa que vai?

- Velho Santinho! Como conseguiu me alcançar? O velho aproximou-se, emparelhando seu cavalo com o do Garrote.

- Não foi difícil. Até uma lesma o alcançaria. Você está cavalgando feito um doido, sem saber para onde vai. Agora mesmo, você estava voltando para o Encantado...

Garrote abaixou a cabeça. Sentia-se fraco, sem saber de que maneira fugir de tudo aquilo que tinha de ser deixado para trás.

- Olha o Sol, Garrote, olha o Sol. O Sol de dia e as estrelas de noite são sinais de luz que guiam os cava-leiros. Veja. Lá está ele, lá em cima, rindo do menino que brinca de roda montado num cavalo. Ah, está

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pensando que esse bicho é cavalinho de parque?

- Por que você me seguiu, Velho Santinho?

O velho sentou-se na sela e falou carinhosamente, do jeito que se fala com um filho:

- Porque você está fugindo. Não está, menino?

- Estou. E ninguém tem nada com isso. Eu não pertenço a ninguém e cuido sozinho da minha vida.

- Isso! Eh, Garrote tinhoso! Isso mesmo. Foi o que eu pensei. Eu disse pra mim mesmo: Velho Santinho, o Garrote está com a razão. Pra que tentar mudar as coisas erradas, se ele não tem nada com isso? Pra que resistir a uma injustiça, se ele não tem nada com isso? Pra que sentir-se parte do Encantado, se ele não tem nada com isso? Não, Velho Santinho, o Garrote é que tem razão. Por que ficar no Encantado esses anos todos, pensando que você podia melhorar a vida daquela gente? Aí o Velho Santinho teve de concordar com o Velho Santinho. O certo mesmo é fugir pra longe, cavalgar rumo ao mar e esquecer essa fazenda maluca...

Fez uma pausa e olhou para Garrote com o rabo do olho:

- O Velho Santinho lembrou até que o Garrote saiu às pressas, sem tempo nem de pegar um cantil de água e um pouco de provisões de boca. Trouxe o que dá para nós dois. Um par de cantis, fósforos, um quilo de farinha, um pouco de carne salgada...

Garrote ficou de pé nos estribos e jogou a vista ao longe.

- Para onde vamos, Velho Santinho?

O velho fez o cavalo mover-se lentamente, volteando o

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garoto.

Podemos ir para o mar, que é onde o Sol nasce desde que eu era menino. Podemos deixar que o Sol queime nossa cara esquerda de manhã, e a cara direita de tarde. Mas aí eu acho que você não vai querer, pois estaríamos voltando para o Encantado. Podemos dar a cara direita ao Sol de manhã e a esquerda a queimar de tarde, e vamos rumo ao Tocantins, procurar a floresta grande. Ou podemos ainda cavalgar para onde dorme o Sol, para o Mato Grosso, atravessar o Pantanal e dar com os burros na Argentina.

Mas para lá não fica a Argentina. Fica a Bolívia.

Eles falam todos do mesmo jeito arrevesado. Pra mim é tudo Argentina!

Garrote balançou a cabeça. Como resistir àquele velho?

- Então, menino? Se é para fugir, vamos escolher pra onde.

Garrote não respondeu, mas tocou seu cavalo a passo lento na direção leste.

- O mar! - suspirou o Velho Santinho. - Há muito tempo que eu devia ter fugido para conhecer o mar. Ah! Você vai me mostrar o mar, e eu vou meter estes pés de pó naquelas águas. Haveremos de viver lá, nós dois, sem ter nada com isto aqui, sem depender de ninguém. Podemos até pescar, não é, Garrote? E cozinhar o pescado na praia, salgando com a água do mar. Já pensou? Um boiadeiro pescador! Ah, sou capaz de montar uma baleia e domar um rebanho de golfinhos!

- Não é rebanho que se diz, é cardume.

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- Pois na mão do Velho Santinho cardume vira rebanho, tudo mansinho feito vaca de leite!

Esporeou a montaria e passou a galope, tomando a frente do garoto:

- Para o mar, Garrote! Para o mar!

Cavalgaram o dia inteiro, e a noite veio encontrá-los à beira de um braço de rio barrento. Banharam-se os dois, nus, o velho e o menino, à luz da lua cheia.

Velho Santinho fez fogo e os dois comeram um bom pedaço de carne abrasada na ponta do facão do velho.

- Eh, Garrote, que falta faz o Rio Grande! Lá, numa hora dessas, a gente carneava um boi inteiro e puxava um canto até...

A prosa miúda do velho embalou o garoto como uma canção de ninar.

Capítulo 32

Primeiro, foi o ruído das águas do rio que se intrometeu pelos ouvidos do Garrote. Depois, foi o Sol do cerrado que lhe incomodou as pálpebras com seus primeiros raios.

Com a cabeça apoiada na sela que usara como travesseiro, Garrote preguiçou, procurando um último restinho de sono. Tinha o corpo moído por um dia de galope, e na boca sentia um gosto amargo e seco, como se tivesse sido ele, e não Cipriano, a mastigar o dinheiro da venda da Manchinha.

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Ajoelhou-se no pó e viu o Velho Santinho recolher a água barrenta do rio com o chapéu e coá-la através de um lenço vermelho, para encher os cantis.

Ajoelhado ficou um pouco mais, pensando, procurando o sentido daquela nova manhã. Para onde iam os dois? Em direção a quê? O que faria ele com aquele velho doido, cheio de frases e risadas? Atravessariam a cavalo todo o estado de Minas em direção a São Paulo? Para quê? Para encontrar o quê?

Sorriu levemente ao imaginar aquele velho caipira nas praias do Guarujá, no meio de toda aquela nudez, no meio de tanta coisa desconhecida para ele. Coitado! Seria preso ou colocado num hospício!

E ele, o Garrote? A que mundo pertencia entrando na praia a cavalo? Era o Caramujo de São Paulo ou o Garrote do Encantado? Em poucos dias, sua vida mudara de tal modo que ele tinha deixado de ser o que fora sem ter conseguido tornar-se o que deveria ser.

Não sabia mais de nada. A única certeza que tinha era de que não queria a herança de pó vermelho daquela fazenda. A única certeza que tinha é de que não queria tornar-se o Garrote do Encantado. Queria voltar a ser o Caramujo de São Paulo, o Caramujo da escola, o Caramujo da briga na quadra. Mas de que maneira voltar atrás? De que modo voltar a vida para trás, como se, atrasando um relógio, fosse possível apagar as dúvidas do presente?

- Bom dia, Garrote! - era a voz do Velho Santinho que vinha do rio. - Já era hora de acordar. Temos dois dias de lombo de cavalo até chegar em algum canto qualquer

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onde a gente possa comprar comida. A carne e a farinha que temos dá justinho para mais dois dias. Você trouxe dinheiro? Não trouxe, não é? Ah, mas eu tenho um pouco, não se preocupe...

O garoto interrompeu bruscamente:

- Foi Nhá Nana que mandou me buscar?

- Hã?

- Você veio atrás de mim mandado por minha avó?

O velho caiu na risada.

- Ora, vejam só! O Velho Santinho tem mais o que fazer do que perseguir garotos fujões cerrado afora. Nada disso. O caso é que, já que eu queria mesmo fugir há mais de quarenta anos, e já que você estava fugindo para o mesmo lado, resolvi aproveitar a companhia.

Garrote se enfezou. Sentiu-se feito de palhaço ou pior: feito de criança. Correu para o cavalo, decidido a apostar a maior corrida de sua vida para escapar daquele velho gozador.

Mas, à frente do cavalo, lá estava ela.

Ele e o cavalo perceberam-na ao mesmo tempo. O animal relinchou, empinou e procurou livrar-se da rédea amarrada a um tronco.

Lá estava ela, toda enrodilhada, lembrando um maço de cordas, cabeça em pé, movendo a língua e encarando o garoto.

Os dois se olharam, e os dois quiseram a morte um do outro.

Garrote olhou para ela como se olha para o inimigo. Era

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o inimigo, o adversário a ser driblado, o covarde que queria agredi-lo à traição. Ah, desta vez ele não daria as costas ao inimigo! Não seria ele a levar o pontapé.

- Garrote, não! - era o Velho Santinho que corria em sua direção.

O chute foi o mais violento que jamais desferiu, mas parece que aquele ponta tinha agulhas no corpo. Garrote sentiu a alfinetada no tornozelo.

No momento seguinte, através da névoa que imediatamente lhe toldava os olhos, viu o Velho Santinho agarrar a cobra pelo rabo e surrar com ela violentamente o chão, como se o pó fosse o responsável pelo terrível ferimento do Garrote. A cabeça da cobra esfacelou-se nas pedras.

Sentiu a dor começar forte. Aos poucos, doía toda a perna.

O Velho Santinho ajoelhou-se, pegou-lhe o pé ferido e pôs-se a sugar fortemente o local da picada. A sugar e a cuspir, a sugar e a cuspir, a sugar e a cuspir...

Pela picada ou pelo susto, um borrão negro espalhou-se na frente da vista do Garrote.

Desmaiou.

Capítulo 33

Velho Santinho Velho Santinho

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A cobra quer me pegar

Não deixa Velho Santinho

Vem correndo a cavalo vem de carro vem de

Não

Não vem de carro

De carro não

De Santos não

Olha a curva olha a estrada olha o desastre

Por que o Velho Santinho está sendo velado em dois caixões

E por que os dois caixões são tão pequenos quanto a caixa de jóias da mamãe

Oi mamãe olha eu de volta

Saí só um pouquinho pra conhecer o mar

Vou levar o Velho Santinho pra conhecer o mar

Vou de avião porque os aviões não caem nunca igual aos pássaros igual aos sonhos igual às esperanças

Vou a pé vou a cavalo senão o carro me pega senão a cobra me pega

Olha mãe lá está a cobra

Tem a cara da Nhá Nana Nhá Nana é a cobra quer me pegar vai me picar vai me obrigar a comer dinheiro

Ritinha não olha

Vira a cara pra lá Ritinha.

Eu engulo o dinheiro

Eu engulo quieto esse dinheiro tem gosto de pó tem

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gosto de cobra esse dinheiro tem gosto de sangue

Olha o sangue do Juvenal escorrendo pela estrada é o sangue da mamãe é o sangue do papai

Pega o chapéu pega o chapéu Velho Santinho pra recolher todo esse sangue

Vamos guardar no cantil faltam dois dias para a próxima vila

Lá a gente compra mais sangue

Sangue é o que não falta todo mundo está cheio de sangue no corpo é preciso botar pra fora

Olha o punhal do Carne-Seca olha os punhais da cobra

O Carne-Seca furou o meu pé com os punhais olha o ponta lá vem o ponta vai me dar um pontapé vai me dar uma picada ninguém vai ver

Pensa que vai se vingar pensa que vai me humilhar

Sou Caramujo Sou Caramujo Sarrafada sarrafo-sarrafada cobra danada Velho Santinho

Nhá Nana vem chegando Lá vem a abelha-rainha para incendiar essa colméia do inferno

Traz uma cobra de fogo traz uma cobra de sangue

Olha a cobra Cuspindo veneno cuspindo dinheiro eu não quero comer sangue eu não quero comer dinheiro eu não quero o veneno

Me deixa fugir Velho Santinho

Não me encontre não me acompanhe

Vou montar no Asa Negra vou correr pra São Paulo

Não

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Ele vai me derrubar

Ele também quer fugir do Encantado

Eu lhe escrevo Velho Santinho prometo que escrevo

Vou levar a Ritinha vou levar o Cipriano vou levar também você Velho Santinho

Não se ria na poeira não se ria no vermelho desses campos

Essa cor é o sangue do Juvenal é o sangue da mãe é o sangue do pai é o sangue de todos os que morreram por causa da Nhã Nana

Me salve Velho Santinho me salve de Nhã Nana salve a Ritinha salve todos das mãos da minha avó

Eu não sou desse cerrado eu não sou dessa poeira eu não sou de parte alguma

Quero ir embora pra casa quero ir pra nenhum lugar mas que não seja a morte

Lá vem ela lá vem ela com a cabeleira ao vento com a camisola ao vento é Nhá Nana

Eu tenho medo Velho Santinho eu tenho medo

Não quero morrer não me deixe morrer

Deixa eu fugir me sele o Asa Negra eu quero fugir pra nenhum lugar é lá que eu moro é lá que eu vou viver lá não tem sangue lá não tem cabeças esmagadas lá não tem poeira lá não tem

Nhá Nana lá não tem o Carne-Seca

O sangue o sangue no blusão

Tira esse sangue de cima de mim isso não é sangue isso

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é veneno é o veneno de Nhá Nana é o punhal do Carne-Seca é a cobra é a pata do Asa Negra

Me dê esse cavalo e me leve pra longe

Olha o Asa Negra ele está me olhando

Lá vai ele lá vai longe cadê o cavalo

Roubaram o Asa Negra roubaram o Asa Negra...

Capítulo 34

- Roubaram o Asa Negra!

O alerta percorreu todo o Encantado em plena madrugada. Entrou pela casa-grande e foi bater nos ouvidos do Garrote.

O rapaz abriu os olhos e viu o teto de tábuas largas de seu quarto na casa-grande do Encantado. Estava coberto de suor, tonto pelo delírio de não sabia quanto tempo.

- Roubaram o Asa Negra! - repetia a voz, em meio ao burburinho externo que o garoto ouvia, sem ainda perceber todo o significado do que estava acontecendo.

Como viera parar ali? O que acontecera lá no riozinho no meio do cerrado? O que tinha acontecido depois que a cobra...?

A custo, o mundo foi formando algum sentido dentro de sua cabeça. Ele estava na cama, em seu quarto do Encantado, coberto de suor. Antes, tudo de que lembrava era da dor e da dormência no tornoze-lo,

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do próprio corpo caído na terra vermelha, do sangue que o Velho Santinho sugava e cuspia, sugava e cuspia...

Viu tudo num repente, misturado em sua frente como num painel de amostras. Lembrou-se da cobra, da fuga, de Cipriano, de Carne-Seca, de Ritinha, de Nhá Nana. E do Velho Santinho.

O Velho Santinho! Lá estava ele, sentado em uma cadeira. Sempre a seu lado, em todos os momentos difíceis.

- Roubaram o Asa Negra! - ouviu-se de novo aquela voz assustada.

A confusão parecia ter ocupado a rua poeirenta na frente da casa-grande. Uma confusão que certamente não seria maior se o Encantado tivesse sido atingido por uma bomba.

Aos poucos, o significado daquele alerta foi se tornando claro em sua cabeça:

- Velho Santinho... Roubaram o Asa Negra, Velho Santinho...

O velho sorriu, e seus olhos ficaram vermelhos como se alguém lhe tivesse espremido uma cebola na frente do rosto.

- Oh, Garrote! Voltou ao mundo dos conhecidos, menino!

Velho Santinho... a cobra, eu me lembro...

Já está morta, e não pica mais ninguém. O que eu quero é saber se a baba peçonhenta da danada já saiu todinha das veias do Garrote...

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Você me trouxe para cá... me salvou, Velho Santinho. Eu dormi... desmaiei, eu acho. Estou dormindo desde ontem, não é?

O velho riu seu riso gostoso, aliviado.

- Desde ontem? Você está de molho há três dias e três noites, Garrote!

Três dias! Aquele velho salvara sua vida. Ele estava morto, e o velho o fizera renascer. Agora, o Velho Santinho era o seu pai nessa nova vida.

Me ajude a levantar, Velho Santinho.

Acha que deve? Deve sim! É bom mexer o corpo e afastar a sombra da morte que a cobra tentou enfiar em você.

Garrote pôs-se de pé. A perna direita estava dormente, insensível, como se não fosse sua. Ele firmou-se no chão e, aos poucos, o sangue voltou a fluir por todas as veias e artérias. A perna estava toda enrolada por largas faixas de gaze.

Sentiu-se imundo pelos três dias de cama e suor. Só conseguia pensar num banho.

Velho Santinho, me ajude a chegar ao chuveiro.

Roubaram o Asa Negra! - repetia lá fora outra voz excitada.

O velho apoiou o garoto no banho, como uma mãe que banha o filho pequeno. Acabou quase tão molhado quanto Garrote.

Mas o convalescente não precisou de ninguém para ajudá-lo em sua primeira refeição na nova vida. Comeu

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com apetite, enquanto o velho ia buscar mais informações sobre o roubo do Asa Negra.

Garrote estava na cozinha, devorando o segundo prato e a terceira espiga de milho, quando o Velho Santinho voltou. Sentou-se num tamborete e sorriu largo para o garoto.

Eh, vai precisar mais do que uma cobra pra acabar com um Garrote bom desses! Se aparecesse uma agora, acho que ia acabar sendo comida junto com o feijão!

- E o Asa Negra? - perguntou Garrote de boca cheia.

- Sumiu do pasto esta manhã. Ninguém sabe nem viu nada.

- Mas ele podia ter pulado a cerca e fugido, não é?

- Lá isso podia. A cerca é alta, mas um demônio daqueles é capaz de tudo. Só não podia ter cortado com uma faca a corda que amarrava a tramela da porteira. Lá isso não podia, não.

Garrote limpou o prato com um pedaço de pão e ajudou tudo a descer com um copo grande de leite.

- Então foi roubo mesmo?

Uma sombra apareceu na moldura da porta.

- Foi roubo, sim. E eu vou pegar o ladrão.

Era Carne-Seca. O mesmo sorriso paralítico, os mesmos olhos de boneca, a mesma maldade no rosto, o mesmo chicote nas mãos.

Madalena pôs as mãos na cabeça:

- Um roubo de cavalo no Encantado! Nunca ouvi falar de uma coisa dessas!

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Nunca houve uma coisa dessas no Encantado, Dita - reforçou Carne-Seca, chamando a cozinheira de acordo com a vontade da patroa. - Nunca houve e nunca mais vai haver. Estou indo agora mesmo na pista do ladrão de cavalos. Não volto sem ele.

- Nhá Nana já sabe? - perguntou a cozinheira.

- Eu mesmo contei. Foi ela que me mandou reunir um grupo e caçar o danado.

Carne-Seca passava a mão levemente pelo punhal, como se os dedos pudessem afiá-lo. Olhou para o garoto e abriu um pouco mais o sorriso amarelo.

- Está melhor, Nhozinho Garrote?

Garrote não respondeu. Num relance, veio-lhe a lembrança do chicote duas vezes arrancado por ele das mãos do capataz. Duas vezes. Duas humilhações. Nos olhos do Carne-Seca, Garrote viu a sede de desforra. Compreendeu que uma terceira vez seria a última.

- Vou buscar o homem que pensa poder roubar uma propriedade do Encantado. Vem com a gente, Velho Santinho?

O velho respondeu, sério:

- Não vou. O papel de polícia do Encantado é seu, Carne-Seca.

O capataz sorriu mais uma vez. Olhou novamente para todos, um por um, bateu o chicote na coxa e saiu.

Garrote, Madalena e Velho Santinho entreolharam-se. Temiam pelo destino do pobre ladrão do Asa Negra.

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Capítulo 35

Quase a imitar o cavalo arisco que tinha sido roubado do Encantado, Garrote andava pelo terreiro, de ponta a ponta, batendo o pé na terra para forçar a circulação.

- Eh, Garrote dos bons! - incentivava o Velho Santinho. - Não há cobra que te derrube, hein? Acho que eu devia ter deixado a danada viva pra contar pras outras que é melhor não se meter com um Garrote macho como esse!

O rapazinho deu pequenas corridas. O entorpecimento não era mais sentido. O veneno da cobra já tinha se dissipado.

De repente, uma voz forte interrompeu o exercício:

- Meu neto já está bom, Santinho?

Nhá Nana lá estava, no seu púlpito, de pé no estrado da varanda da casa-grande, cabeleira arrumada, olhar fixo e sério.

Garrote levantou os olhos para a avó.

- Por que não pergunta para mim? Eu sou o dono de mim, eu sei o que sinto.

Os olhos da avó não se desviaram do Velho Santinho nem os dele baixaram. Os dois velhos fitavam-se, olhos nos olhos, ignorando a presença do rapaz.

- O senhor sabe que meu neto é sua responsabilidade, Santinho - continuou Nhã Nana. -

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Como pode ter permitido que um acidente desses acontecesse com ele?

O olhar do velho peão endureceu-se, mostrando que nunca, em toda a sua vida, recebera a crítica de um patrão na frente de ninguém. Mas calou-se, apertando os lábios.

Garrote avançou, colocando-se entre os dois, num ímpeto não de apartar uma briga que se anunciava, mas de participar dela:

- Eu não sou responsabilidade de ninguém. Eu cuido de mim. Velho Santinho não tem nada a ver com a cobra que me picou. Ele não é meu guia, não é meu pai, não é meu avô. Quem sabe de mim sou eu!

Por um instante, um leve titubeio nos olhares ferozes dos dois velhos, um piscar de dúvida, ou de surpresa, poderia ter sido percebido pelo garoto, se ele não estivesse tão furioso por ser tratado como um bebê cuja babá estivesse levando bronca por tê-lo deixado cair do berço.

Nhá Nana, lentamente, trouxe o olhar para o rosto do neto. Falou, desta vez num tom mais baixo, menos duro, não com a voz terna de uma avó, mas com a música necessária para baixar a guarda de um adversário:

- Santinho salvou sua vida, meu neto. Você não pode, ao menos, aceitá-lo como um amigo?

A estratégia deu certo. De que modo Garrote poderia recusar a amizade de um homem como aquele? Nada respondeu, mas seu silêncio garantiu a vitória da avó.

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Nhá Nana, ainda que não sorrisse, voltou-se de novo para o velho peão:

- Então, Santinho, trate de cuidar do seu amigo. Girou o corpo e desapareceu pela porta.

Capítulo 36

- A pé! Esse miserável pensou que podia fugir de mim a pé, puxando o Asa Negra pela rédea!

O dia havia transcorrido sob tensão para todos naquela fazenda. E a tensão ficou a ponto de explodir quando o capataz chegou com sua missão cumprida.

Carne-Seca estava triunfante. Uma corda amarrada ao arção de sua sela arrastava o ladrão, em cujo rosto, e por baixo da camisa rasgada, viam-se as marcas do chicote do capataz do Encantado.

O homem não falava. Mantinha o olho no chão e a dignidade de um nobre de filme de cinema que vai ser levado ao carrasco.

O homem era Cipriano.

Cipriano. O Cipriano cuspido, humilhado na frente da filha, obrigado a comer o dinheiro que era seu, expulso como um cachorro da terra onde nascera e na qual trabalhara toda a sua vida miserável. O Cipriano desesperado, que procurara vingar toda a sua vergonha roubando o orgulho animal do Encantado:Asa Negra.

O Cipriano agora capturado, entregue, esquecido da

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família desterrada e condenada à miséria pela sua falta. O Cipriano para quem a vida já não tinha mais nenhum valor.

E não haveria, em todo o Encantado, alguém que quisesse apostar um níquel na sua vida.

A noite caía estrelada, trazendo uma lua gloriosa que iluminava a cena como o mais estupendo dos holofotes.

O palco de todas as batalhas do Encantado estava agora repleto, com os agregados formando um semicírculo na frente do estrado da rainha.

De pé, na varanda, lá estava Nhá Nana em todo o esplendor de seu reinado. Dentro do semicírculo, apenas dois homens e dois cavalos.

Montado em sua égua castanha, Carne-Seca controlava com uma das mãos as rédeas do Asa Negra, enquanto com a outra chicoteava Cipriano na direção de Nhá Nana.

- Levanta a cabeça, diabo! - ordenou o capataz, erguendo o queixo de Cipriano com o cabo do chicote. - O que faço com ele, Nhá Nana?

O silêncio se impôs de um modo tão completo que nem as dezenas de cães vagabundos ousavam latir.

Garrote abriu caminho por entre as gentes e postou-se na primeira linha, mas bem longe da varanda.

- Posso levar para a cidade e entregar à polícia -propôs Carne-Seca sorrindo. - E só falar para o delegado que a senhora mandou e ele desanca esse safado de cacete.

Nhá Nana só olhava e ouvia. Nem uma palavra, nem

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um músculo movia.

- Mas podia ser feito como nos velhos tempos, Nhá Nana - continuou Carne-Seca. - Sei que não se usa mais isso, mas também não se usa roubar cavalos do Encantado, não é? Ninguém vai ficar sabendo...

E a sua mão pequena escorregou à procura do cabo do punhal.

Todos os olhos voltaram-se para Nhá Nana, esperando a decisão.

Garrote comparou de novo aquela reunião com a caveira de boi que encontrara no cerrado com uma colméia. Só que, na colmeia de Nhá Nana, não se ouviam zumbidos.

A decisão da abelha-rainha foi uma surpresa:

- Não vamos fazer nada disso, Carne-Seca. Nem uma coisa, nem outra. Vamos soltar o homem.

A colmeia inteira zumbiu. Um murmúrio percorreu a pequena multidão como uma escala de piano.

- O quê?! - Quem falou foi Carne-Seca. - Soltar o homem? Mas, Nhá Nana...

O olhar da velha foi o que bastou para calar o capataz. Ele baixou a cabeça.

- Sim, Nhá Nana.

A abelha-rainha, em seu momento de triunfo, deu um passo em direção à beira da varanda.

- Desamarre o homem, Carne-Seca. E que ele saia daqui levando o que veio buscar.

Sem compreender aquela generosidade, todos olhavam

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Nhá Nana, prendendo a respiração.

- Se ele veio buscar o Asa Negra, que leve. Mas montado!

A compreensão do castigo foi penetrando lentamente em todas as cabeças, foi crescendo, até empalidecer todas as faces. Devagar, a roda de gente foi se abrindo para dar espaço ao novo carrasco nomeado: o grande cavalo negro.

- Agora! Faça-o montar, Carne-Seca!

O capataz voltara a sorrir. Aquela era a linguagem que ele entendia. A morte, mas a morte lenta, sofrida, saboreada como o último bombom.

Cipriano também tinha compreendido. Era um peão de fazenda, um homem de enxada, um tratador de vacas e de porcos. Não era um cavaleiro. Mas, ainda que fosse o maior cavaleiro do mundo, jamais conseguiria montar aquela fera.

- Monte!

Com a ajuda de dois homens, Carne-Seca jogou o corpo de Cipriano sobre o lombo sem sela do Asa Negra.

Tremendo, Cipriano tentou agarrar-lhe a crina, mas nem tempo para isso conseguiu. Num repelão, o cavalo livrou-se de sua carga incômoda. Cipriano estendeu-se no chão.

Ninguém riu.

A voz de comando foi repetida do alto da varanda:

- Monte!

O condenado ergueu-se, tonto, e as mãos dos três

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algozes jogaram-no novamente sobre o cavalo. Cipriano, desesperado, abraçou-se ao pescoço do animal. Asa Negra, num número de circo, deu uma volta sobre si mesmo e escoiceou o ar. Cipriano foi cuspido três metros para a frente.

- Monte!

Os três correram até Cipriano e o puseram de pé. Um filete de sangue saía do seu couro cabeludo e as pernas estavam frouxas, como se ele tivesse bebido um litro de cachaça. Foi jogado em cima do Asa Negra, mas nem teve forças para segurar-se. Ficou ali, abandonado, até o cavalo empinar e jogá-lo de costas no chão.

- Monte!

O cavalo esperava, imóvel, cumprindo resignadamente o papel de carrasco. Quando Carne-Seca e os dois capangas foram levantar Cipriano, as pernas do coitado bambearam. Mas o homem não soltou um suspiro. Estava desmaiado.

- Continuem! - ordenou Nhá Nana. - Coloquem o homem em cima do cavalo!

Aquilo era demais! Garrote deu um passo para a frente mas, nesse momento, detrás do Garrote, alguém pulou para o terreiro, qual um jovem peão de vinte anos.

- Eu monto!

Quem falava era o Velho Santinho.

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Capítulo 37

A roda de gente que cercava a varanda abriu-se mais um pouco. Dezenas de olhos arregalaram-se e dezenas de pulmões retiveram a respiração.

Nhã Nana não moveu um músculo.

Um grupo avançou timidamente. Vendo que a atenção da patroa nem ligava para o homem caído, levantaram Cipriano cuidadosamente. Um gemido saía da boca do coitado enquanto era carregado para a casa da curandeira do Encantado, especialista em mezinhas e unguentos.

Velho Santinho rodeava o cavalo, com respeito.

- Esta fera é especial... Eh, Asa Negra! Está brincando com todo mundo, não é? Feito um gato numa colônia de ratinhos... Um gato negro. Eh, bichano! Mas nós dois sabemos qual é o nosso destino, não é?

O cavalo olhava o velho, numa imobilidade que se assemelhava à compreensão.

Velho Santinho sorria. Suas mãos pousaram no focinho do cavalo e o acariciaram. Asa Negra não se moveu.

- Nós dois sabemos... Nosso destino é o mesmo, não é? Nascemos um para o outro. Ah! Mas nós dois estávamos nos evitando um ao outro, achando que dava pra fugir ao nosso destino... Só que a nossa hora tinha de chegar, não é? O maior cavalo do mundo para o maior cavaleiro do mundo!

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As mãos do Velho Santinho percorriam a cabeça, o pescoço, a crina e o lombo do enorme animal. Chegou às orelhas, segurou-as e puxou a cabeça do Asa Negra até sua boca. Falou com o cavalo. Um tempo longo, sussurrante, de onde só se podiam ouvir algumas risadas do velho, bem baixinho.

Sem parar de falar, Velho Santinho manteve uma das mãos na orelha do Asa Negra e, com a outra, abraçou-lhe o pescoço. Igual a um ginasta, ergueu lentamente uma das pernas e montou, ajeitando-se sobre o colchão negro do pelame do animal.

Asa Negra permaneceu imóvel, hipnotizado. O velho ergueu o corpo e emitiu uma série de ruídos parecidos com beijos estalados. Manteve as rédeas em uma das mãos e continuou acariciando o cavalo com a outra. Lentamente, Asa Negra começou a passear, uma pata depois da outra, balançando a cabeça, num ritmo suave e obediente.

- É um gatinho bom - sorriu o Velho Santinho. -Sabe quem é o chefe, não é, Asa Negra?

O cavalo passeava cuidadosamente, quase cari-nhosamente, obedientemente, como se carregasse um santo de barro em uma procissão.

Passeou em círculos, bordejando a roda de agregados que estavam pasmos com o que viam.

- Estão vendo? Só mesmo o Velho Santinho pra domar um demônio desses! Venha, Asa Negra. Venha voar com o Velho Santinho. Venha mostrar pra todo mundo quem é o maior cavaleiro da Terra!

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Sem que ninguém percebesse, a pequena mão do Carne-Seca desceu para a cintura e empunhou um revólver. Rapidamente, ergueu a mão e atirou para o céu.

Um tiro, no silêncio daquele espetáculo e naquele começo de noite, assustou a todos. Mas, dentre todos, quem mais se assustou foi o grande cavalo negro.

Asa Negra relinchou, ficou de pé sobre as patas traseiras e voltou ao solo, escoiceando.

No meio da gritaria, com os agregados correndo para todos os lados, o Velho Santinho gargalhava. Asa Negra sacudia-se, corcoveava, endemoninhado, mas o velho continuava em seu lombo, sem sela, como se fizesse parte do corpo do cavalo.

- Pula, danado! Pula, demônio! Está pra nascer o cavalo que há de derrubar o Velho Santinho!

Asa Negra disparou num galope enlouquecido rumo ao cerrado, carregando aquelas gargalhadas para longe.

O braço do Carne-Seca estendeu-se, mirando dessa vez não mais o alto, mas as costas do cavaleiro vencedor que se distanciava.

Não teve tempo. Garrote jogou-se sobre ele, batendo, mordendo, arranhando, arrancando-lhe o revólver, que foi parar na varanda, aos pés de Nhá Nana.

- Maldito moleque! - grunhiu enfurecido o capataz, sacando o punhal. - Esta foi a última vez que você me desarmou!

Agarraram-se. O garoto estava enlouquecido pela febre da razão, mas era um garoto. O outro era um adulto. Um adulto assassino, que facilmente jogou-o no chão.

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Garrote debateu-se, vendo a mão do Carne-Seca, montado sobre si, descer armada pelo punhal.

Outro tiro branqueou a noite. Se o primeiro quebrara o silêncio e instalara o pânico entre todos, este trouxe o silêncio de volta. Um silêncio de cemitério. Um silêncio de morte.

Aquele sorriso amarelo estava gravado na cara do capataz, ajoelhado sobre o Garrote, subitamente imobilizado, com a mão erguida para a punhalada. Mas, aos poucos, o vermelho foi tingindo aquele sorriso, e o sangue escorreu farto, pingando no peito do garoto.

Garrote olhou para a varanda. Lá estava Nhá Nana, os dois braços estendidos para a frente, empunhando o revólver do Carne-Seca, que ainda fumegava.

- Desgraçado! O que está pensando? Esse é o meu neto!

O garoto desvencilhou-se do cadáver, que teimava em não cair, e correu para a égua do Carne-Seca.

Montou em um pulo e galopou desesperadamente para dentro da noite, à procura do Velho Santinho.

Capítulo 38

Galopou por entre as árvores retorcidas, com o capim-flecha fustigando-lhe o rosto, e fazendo com que a égua saltasse as moitas raquíticas. Aquele animal não era páreo para o Asa Negra, mas Garrote tinha a esperança de que a fera negra não corresse em linha reta. Talvez ainda pudesse chegar a tempo, talvez...

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Nem sabia direito o que fazer. Talvez pudesse emparelhar com o Asa Negra e permitir que o velho saltasse para a garupa da égua, talvez pudesse... Só tinha certeza de que era necessário impedir que o Velho Santinho fosse derrubado.

A lua cheia ajudava, espalhando sua luz. Era possível escolher o caminho e guiar a égua castanha para... Para onde? Não estaria cavalgando para longe da trilha do Asa Negra?

A água. O animal devia estar correndo para a água.

Garrote lembrou-se do riozinho onde havia sido picado pela cobra. Para que lado ficava aquele riozinho? O garoto puxou as rédeas e olhou em volta. Tudo era igual, a paisagem não mudava.

Não. Nem tudo era igual. Uma sombra...

Forçou a vista.

Desenhada contra a escuridão, percebeu a silhueta luzidia de uma escuridão maior do que a noite, recortada contra o negrume do céu.

Era Asa Negra. E sem cavaleiro.

Cavalgou esbaforido na direção daquela sombra e desmontou.

Não precisou procurar muito.

Caído bem ao lado do cavalo negro, lá estava o...

- Velho Santinho!

Ajoelhou-se ao lado do velho e abraçou-lhe a cabeça.

Velho! Velho Santinho!

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Garrote... Eh, Garrote bom! Teso e tinhoso!

Seu corpo não se movia. Só sua língua indomável não parava, agora que tinha platéia.

- Você me encontrou, Garrote. Mas não precisava ter todo esse trabalho. Estou só descansando um pouco. Já, já eu ia voltar para o Encantado. Só as pernas é que estão meio esquecidas. Também, para acompanhar o galope desse demônio, não há perna que agüente... Vou só descansar um pouquinho. O povo do Encantado há de me ver voltar montando o Asa Negra! Você vai me ajudar, Garrote?

Vou, é claro que vou!

Você promete?

Prometo, juro...

- Ah, todos viram quem é o maior cavaleiro do mundo, não é, Garrote?

- É você, Velho Santinho! É você! O velho riu, feliz.

- Não sou? Está pra nascer o cavalo que vai me vencer. E só passar essa dorzinha nas costas e melhorar um pouquinho estas pernas adormecidas e eu vou mostrar a eles de novo. Não é, Garrote?

- É sim, Velho Santinho. É sim!

- E depois nós vamos embora do Encantado, Garrote. Nós dois, só nós dois. Ah, vamos ver o mar! Você vai me levar pra ver o mar, não vai, Garrote?

- Vou, Velho Santinho. E claro!

- Me fale do mar, Garrote. Me conte de que jeito é o mar...

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O rapaz abraçou a cabeça do velho, molhando de lágrimas os cabelos brancos, e falou, com a boca colada na testa do Velho Santinho:

- É grande, Velho Santinho, é muito grande. É igual ao cerrado, só que não tem árvores, só que não é vermelho. A gente perde a vista ao longe, olhando o mar...

Enquanto o garoto falava, ansiosamente, procurando palavras que pudessem afastar o espectro que se aproximava, o Velho Santinho recomeçou a falar, com o olhar fixo na noite luminosa do cerrado:

Vamos embora do Encantado, Garrote. Vamos para o mar. Vamos deixar para trás a loucura dessa vida...

Ele não é vermelho. E verde, é azul, é roxo. Às vezes está tão calmo que parece uma planície. Parece até que dá para andar em cima dele...

... deixar Nhá Nana pra trás! Esquecer que um dia conhecemos a rainha da loucura...

... às vezes, o mar fica furioso e se encrespa, e joga as águas pra cima, para o. céu, fazendo virar os barcos e engolindo os marinheiros...

... a rainha do Encantado! A abelha-rainha dessa colmeia do inferno! Não, Garrote, a abelha-rainha não poderia gerar um herdeiro qualquer para o Encantado. Não, esse herdeiro não poderia ser filho de um zangão qualquer!

... o mar é bonito da praia, quando as ondas vêm mansas morrer aos nossos pés...

... não um zangão qualquer! Tinha de escolher o melhor

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zangão da colmeia, o maior cavaleiro do Encantado!

Garrote soluçou ante a surpresa da revelação e, chorando de desespero, continuou:

... a gente entra com os pés descalços no rasinho e fica sentindo as ondas pequenas como tapinhas fracos nas canelas...

... mas Mariana nasceu com a cabecinha livre e alegre do zangão. Não com a cabeça louca da abelha-rainha!

... depois a gente vai entrando aos poucos, deixando as ondas maiorzinhas baterem no peito e borrifarem a nossa boca com sal...

... eu tinha de mandar aquele anjinho embora do Encantado, embora de Nhã Nana, embora da loucura...

Garrote calou-se. As lágrimas que lhe escorriam pelo rosto chegavam-lhe à boca com gosto de mar.

- ... e Mariana me devolveu o Garrote. Minha Mariana... Um Garrote teso e tinhoso como eu! Um Garrote que vai me levar pra conhecer o mar!

Sim, o mar, Velho Santinho. Vamos conhecer o mar...

Eu estou vendo, Garrote! Já chegamos! Olha o mar! Olha as ondas! Estou vendo o mar, Garrote! Agora não me falta mais nada! Lá está o mar. Veja que lindo! Olha o mar, Garrote!

Os olhos do velho brilharam, e ele soltou aquela gargalhada gostosa, franca, aberta, que percorreu o cerrado como o vento, e com o vento foi levada para longe, para leste, vencendo cidades, matas e montanhas, até sepultar-se nas águas do Oceano Atlântico...

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Capítulo 39

Garrote beijou demoradamente a testa do velho e fechou-lhe os olhos, que ainda fitavam o mar naqueles céus do Planalto Central.

- Vovô, nós vamos voltar para o Encantado.

Seu rosto estava encharcado de lágrimas. Chorando, encarou aquela beleza negra que ficara imóvel, à espera.

- E você vai voltar montado no Asa Negra. Palavra de Garrote!

Era a primeira vez que pronunciava sem raiva o apelido com que o Velho Santinho o batizara. Agora ele sentia orgulho do apelido.

Avançou até o cavalo e tocou-lhe o focinho. Asa Negra arrancou a cabeça, repelindo o carinho.

O garoto insistiu. Os dois suavam. O cavalo de fúria, o Garrote de vontade. Aproximou-se novamente do Asa Negra e segurou-lhe a crina. Antes que o cavalo reagisse, saltou-lhe no lombo.

Asa Negra pulou como se lhe tivessem aplicado um choque elétrico. Garrote, agarrado à crina negra, fincava os calcanhares contra a barriga do animal e resistia com quantas forças era possível reunir.

O cavalo estava enlouquecido. Era o demônio de pêlo negro que queria derrubar, pisotear, matar aquele insolente que ousava pretender o controle daquela vontade livre, selvagem e indomável como o vento.

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- Salta, Asa Negra! Pula, demônio! Eu não sei falar manso igual ao Velho Santinho, mas você vai entender a minha língua!

Asa Negra empinou e saltou para a frente, escoiceando. Garrote foi cuspido e caiu no chão ainda com alguns pêlos da crina do animal agarrados entre os dedos.

Levantou-se. O rosto vermelho, suando, os olhos injetados de sangue. Avançou para o Asa Negra e saltou-lhe de novo no lombo.

O cavalo volteou, desorientado. Novamente relinchou, corcoveou, saltou, bufou.

E novamente Garrote caiu.

- Asa Negra! Demônio! Você já matou dois e estropiou outros dois. Mas você vai levar o Velho Santinho de volta ao Encantado!

Agarrou-se àquela crina negra e ficou arrastando o cavalo em círculos, esperando o melhor momento para montar.

Asa Negra girava, respirando quente contra o rosto do garoto. Era muito mais poderoso que o jovem cavaleiro, mas parecia desorientado, compreendendo que aquela não era uma luta entre forças físicas, mas entre vontades.

Garrote montou de novo, quase sobre o pescoço do Asa Negra. Agarrou-se cravando as unhas naquela musculatura suada.

Caiu de novo.

O cavalo não fugia depois de cada queda. Imobilizava-se à espera do novo desafio.

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Garrote montou novamente. Montou e caiu, montou e caiu...

Capítulo 40

A grande lua transformava a meia-noite em quase dia quando o povo do Encantado viu entrar o Asa Negra montado por um cadáver, surgindo do cerrado como saído dos infernos.

Lentamente, o grande cavalo negro desfilou entre as gentes que se persignavam apavoradas. Estava selado com os arreios da égua castanha que pertencera ao Carne-Seca e levava o corpo do Velho Santinho ereto, de chapéu na cabeça, apoiado e amarrado entre dois galhos firmemente atados à sela.

Atrás, Garrote montava a égua em pêlo. Vinha sujo, arranhado, rasgado, o rosto vermelho de sangue, os olhos arregalados de decisão.

Asa Negra parou na frente da varanda da casa-grande, como se obedecesse a uma ordem muda do cadáver que o montava.

Garrote agarrou-lhe as rédeas e fez sua montaria saltar para cima da varanda. Asa Negra, arrastado, o seguiu. O patear dos dois animais nas tábuas da varanda acordaria qualquer um.

- Nhá Nana! - chamou Garrote.

À sua frente, surgiu a figura chamada. Já não trazia o uniforme e a autoridade da abelha-rainha. Estava do

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mesmo modo que Garrote a vira naquela noite louca, ao lado do cavalo. De camisolão, os cabelos soltos e o olhar enlouquecido.

Meu neto. Você voltou. Você voltou para o Encantado!

Não. Nós voltamos. Eu e o melhor homem desta colmeia do inferno: o Velho Santinho. A única pessoa que me importava neste mundo. O velho zangão. O meu avô!

- Meu neto... Você já sabe!

Garrote fez a égua avançar sobre a avó, empurrando-a de volta para a grande porta da casa-grande.

Meu neto! Não! O que está fazendo?

Vou fazer o funeral do meu avô!

Não! Pare!

O rapaz abaixou-se e fez os dois animais entrarem na sala, atravessando a porta alta como se ali fosse a cocheira. Desmontou e deu um tapa na anca da égua, enxotando-a para fora, e amarrou a rédea do Asa Ne gra na maçaneta da porta de entrada. Agia frenetica- mente, inflamado por uma determinação desesperada.

Meu neto, você não compreende. O Encantado...

O Encantado tem sido o túmulo de muitas pessoas, minha avó. Agora vai morrer junto com a melhor delas!

Desamarrou o cadáver do Velho Santinho da sela e estendeu-o carinhosamente sobre a mesa da sala, como se temesse machucá-lo. Beijou suavemente a testa do avô. Arrancou uma cortina grossa e jogou-a sobre o corpo estendido.

Você não entende, meu neto. O Encantado é o mundo. É

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a vida. Sempre foi toda a minha vida e agora vai ser a sua. Para manter essa fazenda grande e forte, é preciso força. Força contra tudo e contra todos que possam ameaçar o Encantado. Eu tive essa força, meu pai, meu avô e meu bisavô a tiveram e você a terá. Às vezes, é preciso usar essa força, mesmo que isso arranhe alguém!

Ou mate alguém! - cortou Garrote.

Garrote avançou para a estante e chutou a porta do armário inferior com violência. A porta estilhaçou-se. Ele pegou a caixa com as recordações do Encantado e enfiou-a no bornal da sela que agora estava encilhada no cavalo negro.

Garrote agarrou um lampião a querosene que anacronicamente ainda era usado para iluminar aquela fazenda.

Os inimigos do Encantado têm de morrer, meu neto, para que o Encantado sobreviva!

Não, minha avó. É o Encantado que tem de morrer!

Quebrou a manga do lampião e espalhou o querosene pelo chão de tábuas largas. Apanhou outro lampião aceso e ergueu o braço.

Meu neto, não! Não faça isso! - Nhá Nana agarrou-se ao braço do Garrote, desesperada. - O Encantado é seu! Eu o guardei para você. Não destrua o que é seu!

Não. Não quero o que você construiu, minha avó. Meu é o futuro que eu mesmo vou fazer. Saia! Saia! Para fora!

Empurrou a avó pela porta. Voltou e jogou o lampião aceso no piso encharcado de combustível.

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Na mesma hora, as labaredas levantaram-se altas, espalhando-se pelas tábuas do assoalho, escalando as paredes na direção do forro de madeira seca, devorando as pernas da mesa e procurando consumir o corpo do Velho Santinho.

Nhá Nana tentava voltar, falando para o cadáver, que começava a arder no meio da mesa:

- Santinho! Eu te amei, Santinho! Você foi a única pessoa que eu amei! Diga, Santinho, diga que também me amou! Eu quero morrer com você, Santinho, meu amor!

Garrote retomou as rédeas do cavalo assustado com o fogo, agarrou a avó e arrastou os dois para a varanda e empurrou Nhá Nana para o terreiro.

A mulher caiu de joelhos na terra, chorando, desesperada, desgrenhada, louca...

- Por favor, deixe-me voltar pra lá! Deixe-me mor-rer com o meu homem! Deixe-me morrer, deixe-me morrer com o Encantado!

O garoto cercou-a firmemente.

- Nada disso, minha avó. Você vai viver. Vamos viver juntos no novo Encantado!

Montou o Asa Negra, que agora se comportava como um humilde criado da vontade daquele garoto.

- Conheça o novo Encantado, minha avó! O Encantado que o Velho Santinho construiria e que eu vou construir com toda a família do Cipriano, que vai viver aqui até a morte, sem nunca mais ser humilhado por ninguém. Com o amor da Ritinha a meu lado.

Page 155: Ilustração de capa: Áxel Sandephoto.goodreads.com/documents/1358362841books/17254232.pdf · 2013. 1. 16. · - Pois foi. É claro que o professor percebeu. E vei o lá do seu estrado,

Juntos, vamos construir esse novo Encantado. O Encantado do Garrote!

Nhá Nana espojava-se no pó, agarrando a terra com as mãos.

- Esta terra é minha! Minha! Você não entende? Isto é o mundo, Eduardo, meu neto...

De cima do cavalo negro, a voz do garoto era a voz de um homem.

- Eduardo? Eu não sou Eduardo. E também não sou mais Caramujo. Eu sou Garrote! O Garrote teso e tinhoso. O Garrote do Velho Santinho. Sou Garrote!

As chamas altas que engoliam o Encantado iluminavam de vermelho aquele vulto branco que se agarrava à terra e aquele cavalo negro que empinava, com o rapaz à sela, como se quisesse alçar vôo.

- Sou Garrote!

Ele sabia que iniciava uma nova vida. Um novo mundo para todos do Encantado. Um novo mundo em que teria Ritinha a seu lado, em que teria a cruel avó, domada como o Asa Negra, envelhecendo neste novo mundo. Um mundo sem mortes. Um mundo que ele dirigiria numa firme cavalgada em direção à vida.

A lua abria-se cheia, azulando a noite e o pêlo do cavalo que empinava com o garoto de pé nos estribos, com a sela como palanque: - Sou Garrote!