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1 Pesquisa e organização: Prof. Coord. Elizabete Herling Ilustração: Ionit Ziberma

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Pesquisa e organização: Prof. Coord. Elizabete Herling

Ilustração: Ionit Ziberma

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Caixinha Mágica

Roseana Murray

Fabrico uma caixa mágica

para guardar o que não

cabe em nenhum lugar:

a minha sombra

em dias de muito sol,

o amarelo que sobra

do girassol,

um suspiro de beija-flor,

invisíveis lágrimas de amor.

Fabrico a caixa com vento,

palavras e desequilíbrio

e, para fechá-la

com tudo o que leva dentro,

basta uma gota de tempo.

O que é que você quer

esconder na minha caixa?

Roseana Murray, autora deste poema, já

escreveu mais de 40 livros, entre eles Receitas de

Olhar (Ed. FTD) e Kira (Ed. Abacatte).

Vampi & O Presente Mágico

Regina Drummond

Vampi, a vampira chique e cheia de imaginação, morava numa casinha em cima de uma árvore. Um dia, ela

ganhou de presente um carro conversível rosa-choque.

Vampi montou, acelerou com força e buzinou forte - Fon-fon!

O carro furou o ar e sumiu pelo mundo afora.

Vampi viu um trem grande e comprido, viu ônibus pequenos e curtos.

Viu prédios cinzentos, viu casas coloridas.

Viu ruas com gente apressada e becos onde só tinha fantasma, uh...

Viu gente, bicho, planta.

Redondo, quadrado, oval e retangular.

Viu o céu, viu o mar, viu a montanha.

Azul e violeta, laranja e vermelho, verde em mil tons.

Viu nuvens brancas, apertou um botão e voou.

Os pássaros passavam pertinho e tudo era pequenininho, lá embaixo...

Vampi só ria, fazendo bi-bi, fon-fon e pedalando, pedindo passagem para as estrelas, que eram maiores do

que ela, vejam só!

De olho na volta, procurou um lugar para aterrissar, mas, ao ajeitar o cabelo, errou o alvo e caiu no mar.

Opa! Apertou outro botão, o carrinhoavião virou navio, flutuou, começou a afundar e já era um submarino,

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quase um peixe, nadando no meio das algas e dos corais...

Um peixe olhou para ela, dois peixes, três, quatro, cinco, mil, um cardume inteiro, quantos peixes são?

Nem deu tempo de contar. Devagarinho, o submarino subiu, virou navio, flutuou, virou avião, pousou e

virou carrinho outra vez, parando ao pé da sua árvore. Na mesma hora, nasceram seis patas no lugar das

rodas, e ele virou uma aranha, que subiu pelo tronco até alcançar os altos galhos cheios de folhas...

Atravessando-os como se fosse um fantasma, levou Vampi de volta para casa.

"Puxa, meu carro é mágico!" - disse ela, encantada, saindo por cima, sem abrir a porta. Mas logo mudou de

ideia: sentando-se outra vez no seu carrinho rosa-choque, Vampi riu, sonhando com a próxima aventura.

Regina Drummond, autora deste conto, é escritora de livros infanto-juvenis, tradutora e contadora de

histórias. Escreveu Sete Histórias do Mundo Mágico (Ed. Devir), Eu, Bruxa (Ed. Saraiva) e Andersen e Suas

Estórias (Ed. Ave Maria), entre outras obras.

Dona Cotinha, Tom e Gato Joca

Cléo Busatto

Em frente à minha casa tem outra casa, pequena, de madeira, azul com janelas brancas. Está no fim de um

terreno enorme com muitas árvores. Para mim aquilo é o que chamam de floresta. Tom diz que é um quintal.

Ali mora dona Cotinha, uma velhinha que tem cabelos lilás e dirige um Fusquinha vermelho. Esse passou a

ser meu esconderijo. Dona Cotinha sempre aparece com um prato de comida. Diz:

- Vem, gatinho. Olha só o que eu trouxe para você.

Sou premiado com sardinha fresca, atum, macarrão. Tenho engordado além da conta. Dia desses estava

tomando sol e ouvi o Tom me chamar. O danado sentiu meu cheiro e descobriu meu segredo. Ele estava no

portão quando chegou dona Cotinha, no seu Fusquinha.

- Bom dia, menino - disse ela. Já que está em frente à minha casa, faça uma gentileza e abra o portão.

Tom obedeceu. Dona Cotinha afagou minha cabeça e perguntou:

- Este gatinho é seu?

- Sim, senhora.

- Ele é muito educado.

- Obrigado - disse eu, na minha voz de gato.

- No primeiro dia que o vi por aqui, ele entrou na casa e cheirou tudo. Agora, sempre deixo uma comidinha

para ele!

- Ah! Mas o Joca não come comida de gente, não, senhora. Só come ração - disse o Tom.

- Come, sim, meu filho. E come de tudo.

Dona Cotinha acabava de denunciar minha gula e o aumento de peso. Continuou:

- Passe aqui no fim da tarde. Faço um bolo de fubá com cobertura de chocolate que é de dar água na boca.

Com água na boca fiquei eu. Naquela tarde voltamos à casa de dona Cotinha. Ela foi logo mostrando pro

Tom uma coleção de carrinhos antigos. Era do filho dela, que morreu bem pequeno. Depois nos levou para

uma sala repleta de livros. Tom ficou de boca aberta e perguntou:

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- A senhora já leu todos esses livros?

- Praticamente todos. Ler foi minha diversão, meu bom vício. Infelizmente meus olhos não ajudam mais.

Essa pilha que você está vendo aqui ainda nem foi tocada.

Tom começou a ler em voz alta, e sua voz encheu a sala de seres fantásticos. O tempo parou.

Desse dia em diante, à tardinha, eu e Tom tínhamos uma missão. Abrir os livros de dona Cotinha e deixar os

personagens passearem pela casa mágica, no meio da floresta da cidade de pedra.

Cléo Busatto, autora deste conto, é escritora e contadora de histórias.

Viva a Paz!

Tatiana Belinky

Dois gatinhos assanhados

se atracaram, enfezados.

A dona se irritou

e a vassoura agarrou!

E apesar do frio, na hora,

os varreu porta afora,

bem no meio do inverno,

com um frio "do inferno"!

Os gatinhos, assustados,

se encolheram, já gelados,

junto à porta, no jardim,

aguardando o triste fim!

De terror acovardados,

os dois gatinhos, coitados,

não puderam nem miar,

lamentando tanto azar!

Sem ouvir nenhum miado,

a dona, por seu lado,

dos gatinhos teve dó,

e a porta abriu de uma vez só!

Mesmo estando tão gelados,

os dois gatinhos arrepiados

Zás! Bem junto do fogão

surgem, sem reclamação!

E a dona comentou:

tanto faz quem começou!

Uma encrenca boba assim

bom é que tenha logo um fim!

E ela acrescentou, então,

não querem brigar mais, não?

E os gatinhos, enroscados,

esqueceram da briga, aliviados.

Confortados, no quentinho,

com sossego e com carinho,

dormem bem, bichos queridos,

já da briga esquecidos.

Tatiana Belinky, adaptadora desta cancão

popular inglesa, é escritora e tradutora. Tem mais

de 100 livros publicados. Em 1989, ganhou o

Prêmio Jabuti por sua trajetória literária.

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Bruxas não existem

Moacyr Scliar

Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando

coisas perversas. Os meus amigos também acreditavam nisso. A prova para nós era uma mulher muito

velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua. Seu nome era Ana

Custódio, mas nós só a chamávamos de "bruxa".

Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme

verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tínhamos entrado na casa, mas tínhamos a

certeza de que, se fizéssemos isso, nós a encontraríamos preparando venenos num grande caldeirão.

Nossa diversão predileta era incomodá-la. Volta e meia invadíamos o pequeno pátio para dali roubar frutas e

quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos atrás dela

gritando "bruxa, bruxa!".

Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal nós não sabíamos,

mas logo descobrimos o que fazer com ele: jogá-lo na casa da bruxa. O que seria fácil. Ao contrário do que

sempre acontecia, naquela manhã, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob

comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com

muito esforço nós o levamos até a janela. Tentamos empurrá-lo para dentro, mas aí os chifres ficaram presos

na cortina.

- Vamos logo - gritava o João Pedro -, antes que a bruxa apareça. E ela apareceu. No momento exato em

que, finalmente, conseguíamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa,

empunhando um cabo de vassoura. Rindo, saímos correndo. Eu, gordinho, era o último.

E então aconteceu. De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na perna e

não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui. E a bruxa, caminhando

com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mão, aproximava-se. Àquela altura a turma estava longe,

ninguém poderia me ajudar. E a mulher sem dúvida descarregaria em mim sua fúria.

Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas aí viu a minha perna, e

instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e começou a examiná-la com uma habilidade

surpreendente.

- Está quebrada - disse por fim. - Mas podemos dar um jeito. Não se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira

muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim.

Dividiu o cabo de vassoura em três pedaços e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala,

imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui até minha casa. "Chame uma

ambulância", disse a mulher à minha mãe. Sorriu.

Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o médico engessou minha perna e em poucas semanas eu

estava recuperado. Desde então, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora

que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custódio.

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Moacyr Scliar, autor desta crônica, é escritor e tem mais de 70 livros publicados. Ganhou o Prêmio Jabuti

quatro vezes e é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Um problema difícil

Pedro Bandeira

Era um problema dos grandes. A turminha reuniu-se para discuti-lo e Xexéu voltou para casa preocupado.

Por mais que pensas se, não atinava com uma solução. Afinal, o que poderia ele fazer para resolver aquilo?

Era apenas um menino!

Xexéu decidiu falar com o pai e explicar direitinho o que estava acontecendo. O pai ouviu calado, muito

sério, compreendendo a gravidade da questão. Depois que o garoto saiu da sala, o pai pensou um longo

tempo. Era mesmo preciso enfrentar o problema. Não estava em suas mãos, porém, resolver um caso tão

difícil.

Procurou o guarda do quarteirão, um sujeito muito amigo que já era conhecido de todos e costumava sempre

dar uma paradinha para aceitar um cafezinho oferecido por algum dos moradores.

O guarda ouviu com a maior das atenções. Correu depois para a delegacia e expôs ao delegado tudo o que

estava acontecendo.

O delegado balançou a cabeça, concordando. Sim, alguma coisa precisava ser feita, e logo! Na mesma hora,

o delegado passou a mão no telefone e ligou para um vereador, que costumava sensibilizar-se com os

problemas da comunidade.

Do outro lado da linha, o vereador ouviu sem interromper um só instante. Foi para a prefeitura e pediu uma

audiência ao prefeito. Contou tudo, tintim por tintim. O prefeito ouviu todos os tintins e foi procurar um

deputado estadual do mesmo partido para contar o que havia.

O deputado estadual não era desses políticos que só se lembram dos problemas da comunidade na hora de

pedir votos. Ligou para um deputado federal, pedindo uma providência urgente. O deputado federal ligou

para o governador do estado, que interrompeu uma conferência para ouvi-lo.

O problema era mesmo grave, e o governador voou até Brasília para pedir uma audiência ao ministro.

O ministro ouviu tudinho e, como já tinha reunião marcada com o presidente, aproveitou e relatou-lhe o

problema.

O presidente compreendeu a gravidade da situação e convocou uma reunião ministerial. O assunto foi

debatido e, depois de ouvir todos os argumentos, o presidente baixou um decreto para resolver a questão de

uma vez por todas.

Aliviado, o ministro procurou o governador e contou-lhe a solução. O governador então ligou para o

deputado federal, que ficou muito satisfeito. Falou com o deputado estadual, que, na mesma hora, contou

tudo para o prefeito. O prefeito mandou chamar o vereador e mostrou-lhe que a solução já tinha sido

encontrada.

O vereador foi até a delegacia e disse a providência ao delegado. O delegado, contente com aquilo, chamou

o guarda e expôs a solução do problema. O guarda, na mesma hora, voltou para a casa do pai do Xexéu e,

depois de aceitar um café, relatou-lhe satisfeito que o problema estava resolvido.

O pai do Xexéu ficou alegríssimo e chamou o filho.

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Depois de ouvir tudo, o menino arregalou os olhos:

- Aquele problema? Ora, papai, a gente já resolveu há muito tempo!

Pedro Bandeira, autor deste conto, é escritor. Ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro Infantil

em 1986 com O Fantástico Mistério de Feiurinha (Ed. FTD).

Se Eu Fosse Esqueleto

Ricardo Azevedo

Se eu fosse esqueleto não ia poder tomar água nem suco porque ia vazar tudo e molhar a casa inteira.

Tirando isso, ia acordar e pular da cama feliz como um passarinho.

É que ser uma caveira de verdade deve ser muito divertido.

Por exemplo. Faz de conta que um banco está sendo assaltado. Aqueles bandidões nojentões, mauzões,

armados até os dentões, berrando:

- Na moral! Cadê a grana?

Se eu fosse esqueleto, entrava no banco e gritava: bu!

Bastaria um simples bu e aquela bandidagem ia cair dura no chão, com as calças molhadas de úmido pavor.

O gerente e os clientes do banco iam agradecer e até me abraçar, só um pouco, mas tenho certeza de que

iam.

Se eu fosse caveira, de repente vai ver que eu ia ser considerado um grande herói.

Fora isso, um esqueleto perambulando na rua em plena luz do dia causaria uma baita confusão. O povo

correndo sem saber para onde, sirenes gemendo, gente que nunca rezou rezando, o Exército batendo em

retirada, aquele mundaréu desesperado e eu lá, todo contente, assobiando na calçada.

Um repórter de TV, segurando o microfone, até podia chegar para me entrevistar:

- Quem é você?

E eu:

- Sou um esqueleto.

E o repórter:

- O senhor fugiu do cemitério?

Aí eu fingia que era surdo:

- Ser mistério?

E o repórter, de novo, mais alto:

- O senhor fugiu do cemitério?

- Assumiu no magistério?

- Cemitério!

- Fala sério? Quem?

Aí o repórter perdia a paciência:

- O senhor é surdo?

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E eu:

- Claro que sou! Não está vendo que não tenho nem orelha?

Se eu fosse esqueleto talvez me levassem para a aula de Biologia de alguma escola. Já imagino eu lá parado

e o professor tentando me explicar osso por osso, dente por dente, dizendo que os esqueletos são uma

espécie de estrutura que segura nossas carnes, órgãos, nervos e músculos.

Fico pensando nas perguntas e nos comentários dos alunos:

- Como ele se chamava?

- É macho ou fêmea?

- Quantos anos ele tem?

- Tem ou tinha?

- Magrinho, não?

- O cara sabia ler ou era analfabeto?

- E a família dele?

- Era rico ou pobre?

- O coitado está rindo de quê?

E ainda:

- Professor, ele era careca?

Enquanto isso, eu lá, no meio da aula, com aquela cara de caveira, sem falar nada para não assustar os

alunos e matar o professor do coração.

Uma coisa é certa. Deve ser muito bom ser esqueleto quando chega o Carnaval. Aí a gente nem precisa se

fantasiar. Pode sair de casa numa boa, cair no samba, virar folião e seguir pela rua dançando, brincando e

sacudindo os ossos. Parece mentira, mas, no Carnaval, porque é tudo brincadeira, a gente sempre acaba

sendo do jeito que a gente é de verdade.

Se eu fosse esqueleto, quando chegasse o Carnaval, ia sair cantando:

Quando eu morrer

Não quero choro nem vela

Quero uma fita amarela

Gravada com o nome dela

Todo mundo sabe que o maior amigo do homem é o cachorro.

O que a maioria infelizmente desconhece e a ciência moderna esqueceu de pesquisar é que o pior inimigo do

esqueleto late, morde, abana o rabo, carrega pulgas e aprecia fazer xixi no poste.

E se eu fosse esqueleto e por acaso um vira-lata me visse na rua, corresse atrás de mim e fugisse com algum

osso dos meus?

Ricardo Azevedo, autor deste conto, é escritor e ilustrador. Já escreveu mais de 100 livros para crianças e

jovens, entre eles Trezentos Parafusos a Menos (Ed. Companhia das Letrinhas) e Contos de Espanto e

Alumbramento (Ed. Scipione). É ganhador de vários prêmios, entre eles o Jabuti, que venceu cinco vezes.

Acontece para quem acredita - Edy Lima

Ilustração: Joana Lira

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Era um jovem pescador muito pobre, que vivia sozinho numa praia distante. Tinha um pequeno barco em

que saía à noite para pescar e, no dia seguinte, vendia os peixes no povoado mais próximo. Certa vez uma

onda enorme tragou o barquinho, mas, na manhã seguinte, acordou em sua cabana miserável e viu que tudo

era como sempre tinha sido. Veio à sua lembrança uma bela moça que o socorrera em meio às águas e o

carregara para seu palácio no fundo do mar. Nesse momento, riu de si mesmo e disse alto:

- Você sonhou com a Mãe D’Água. Foi só.

Levantou-se para ir tomar água, sua garganta queimava de sede. Quando ergueu a caneca para beber viu um

anel brilhando em seu dedo.

- Que é isso?

De repente se lembrou de uma cerimônia em que ele recebera aquele anel, no palácio no fundo do mar.

Uma coisa dessas não podia ter acontecido. Mas o anel continuava um mistério.

Em seguida sentiu uma dúvida terrível: e se estivesse morto?

O jeito era se olhar no espelho, pois ouvira contar que fantasmas não refletem imagem. Claro que era tão

pobre que nem tinha espelho em casa.

E se quando fosse vender o peixe no povoado, se olhasse no espelho da barbearia?

Será que tinha pescado alguma coisa? Só se lembrava daquela onda gigante que engolira seu barco. Correu

até a praia e não viu o barco. Quem estava lá era a linda moça que o salvara na hora do naufrágio.

Ela sorriu e disse:

- Você não quis ficar na minha casa, vim morar na sua, afinal agora somos casados. Disse isso e estendeu a

mão para ele.

Ele viu então que ela usava um anel igual ao que brilhava em seu dedo.

Respondeu:

- Venha.

Caminharam abraçados e, ao chegarem ao lugar onde ficava a cabana, ela não existia mais. Lá, agora,

erguia-se um palácio e havia gente entrando e saindo.

A moça disse:

- É o meu povo das águas.

De repente, ele notou que estava vestido com roupas luxuosas em vez dos trapos de antes.

Sem dúvida a Mãe D’Água o escolhera para marido e não havia força humana que pudesse mudar isso.

Viveram felizes por algum tempo. Mas, se ele não tinha gostado de morar no palácio no fundo do mar, ela

começou a se cansar de viver em terra firme.

Ficava horas diante do mar rodeada por seu povo das águas. O palácio permanecia abandonado. Ninguém

cuidava de nada, tudo era deixado na maior desordem.

Um dia ele pronunciou as palavras fatais que ela o proibira de dizer em qualquer circunstância.

- Arrenego o povo do mar!

Era o que todos esperavam para voltar às profundezas do oceano. Suas palavras valeram como sinal para a

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debandada.

A moça e todos os serviçais foram cantando para dentro do mar e sumiram nas águas.

O pescador olhou para si mesmo e viu que suas roupas de luxo também tinham sumido. Estava outra vez

vestido de trapos. Quando voltou para casa, só encontrou o casebre de antes, não havia nem rastro de algum

palácio.

Ao entardecer, sentiu saudades da Mãe D’Água e foi até a beira da praia. Lá estava seu velho barquinho,

antes desaparecido. O pescador entrou nele e tomou o rumo do quebra-mar.

De repente uma grande onda o envolveu e seu pensamento foi:

- Será que tudo vai acontecer de novo?

Conto de Edy Lima, ilustrado por Joana Lira

Aconteceu na caatinga

Clotilde Tavares

Ilustração: Flavio Morais

Era meio-dia e a caatinga brilhava à luz incandescente do Sol. O pequeno Calango deslizou rápido sobre o

solo seco, cheio de gravetos e pedras, parando na frente do majestoso Mandacaru, que apontava para o céu

seus espinhos, os grandes braços abertos em cruz.

- Mandacaru! Mandacaru! Eu ouvi os homens conversando lá adiante e eles estavam dizendo que, como a

caatinga está muito seca e cor de cinza, vão trazer do estrangeiro umas árvores que ficam sempre verdes

quando crescem e estão sempre cheias de folhas.

- Mas que novidade é essa? - falou a Jurema.

- Coisa de gente besta - disse o Cardeiro, fazendo um muxoxo irritado e atirando espinhos para todo lado.

- Eu é que não acredito nessas novidades - sussurrou o pequeno e tímido Preá.

A velha Cobra, cheia de escamas de vidro e da idade do mundo, só fez balançar a cabeça de um lado para o

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outro e, como se achasse que não valia a pena falar, ficou em silêncio.

E no outro dia, bem cedinho, os homens já haviam plantado centenas de arvorezinhas muito agitadas,

serelepes e faceiras, que falavam todas ao mesmo tempo na língua lá delas, reclamando de tudo: do Sol, da

poeira, dos bichos e das plantas nativas, que elas achavam pobres, feias e espinhentas. Enquanto falavam,

farfalhavam e balançavam os pequenos galhos, que iam crescendo, ganhando folhas e ficando cada vez mais

fortes.

Enquanto isso, as plantas da caatinga, acostumadas a viver com pouca água, começaram a notar que essa

água estava cada vez mais difícil de encontrar. As raízes do Mandacaru, da Jurema e do Cardeiro cavavam,

cavavam e só encontravam a terra seca e esturricada.

O Calango então se reuniu com os outros bichos e plantas para encontrar uma solução. E foi a velha Cobra

quem matou a charada:

- Quem está causando a seca são essas plantinhas importadas e metidas a besta! Eu me arrastei por debaixo

da terra e vi o que elas fazem: bebem toda a nossa água e não deixam nada para a gente.

- Oxente! - gritou o Calango. - Então vou contar isso aos homens e pedir uma solução.

Mas logo o Calango voltou, triste e decepcionado.

- Os homens não me deram atenção - disse. - Falaram que eu não tenho instrução, não fiz universidade e que

eu estou atrapalhando o progresso da caatinga.

E todos os bichos e plantas ficaram tristes, mas estavam com tanta sede que nem sequer puderam chorar:

não havia água para fabricar as lágrimas. Por muitos dias ficaram assim e quando estavam à beira da morte

houve um movimento: era o Preá, que levantou o narizinho, farejou o ar e, esquecendo a timidez, gritou:

- Estou sentindo cheiro de água!

- É mesmo! - gritaram todos.

- O que será que aconteceu? - perguntou a Jurema.

- Eu vou ver o que foi - e o Calango saiu veloz, espalhando poeira para todos os lados.

O Mandacaru estirou os braços, espreguiçou-se e sorriu:

- Estou recebendo água de novo! Hum... É muito bom! Mas vejam! O Calango está de volta com novidades!

E espichando meio palmo de língua de fora, morto de cansado pela carreira, o Calango contou tudo.

- As pequenas bandidas verdes, depois de beber quase toda a água da caatinga, estavam ameaçando a água

dos rios e dos açudes perto das cidades. Os homens então viram o perigo e deram fim a todas elas. Estamos

salvos!

E todos ficaram alegres, sentindo a água subir pelas raízes. Olharam para o céu azul da caatinga, aquele céu

claro, o Sol brilhante, olharam uns para os outros e viram que eram irmãos, na mesma natureza, no mesmo

tempo, na mesma Terra.

E a velha Cobra, desenroscando-se toda lentamente, piscou o olho e concluiu:

- É como dizia minha avó: cada macaco no seu galho!

Conto de Clotilde Tavares, ilustrado por Flavio Morais

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A gata apaixonada

Ivan Jaf

Ilustração: Andrea Ebert

Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir

Martins. O pintor famoso.

Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro. Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.

A mãe morreu há uns quatro anos. O pai é superciumento, não a deixa satir de casa nunca.

- Oi, Rodrigo... Você tem um gato grande, malhado?

- Tenho. O nome dele é Sorvete.

- Sorvete?

- Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.

- Ele briga com a minha gata, a Tati. Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.

- De outro gato?

- Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.

Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.

- Você vai ver - ela disse.

- É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?

- Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.

- Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros,

revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...

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- Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho...

- Minha mãe comprava tudo que podia. A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes,

cortina de banheiro...

Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir

Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme,

mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.

- Minha mãe adorava esse quadro.

Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.

Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado.

Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete. O gato mais

descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto e não

gostou nada do que viu.

Carla segurou no meu braço.

Sorvete pulou pro beiral.

Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim,

com o Sorvete atrás.

- Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas

acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo. Não gostei daquilo.

- Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... têm

de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.

- Mas o Sorvete é meio selvagem...

- Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço? Eu como o tomate

inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!

Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como

eu era selvagem, mas a cortina se abriu de repente e o pai dela apareceu.

O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até

deixando a filha sair comigo.

Eu e a Carla estamos namorando. Juro.

Conto de Ivan Jaf, ilustrado por Andrea Ebert

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A luva

Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das

festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em

volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte,

ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e

formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro

Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.

Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu,

majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a

segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-

se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual

saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e

aumentando a tensão do ambiente.

Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro

monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do

balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um

sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:

"Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a

minha luva."

O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos

pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou

a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e

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admiração de todo o público presente.

A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de

promessas, falou:

"Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges."

Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa:

"Dispenso a vossa gratidão, senhora!", ele disse.

E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

Recontado de um poema de Schiller por Tatiana Belinky

Ilustrado por Maria Eliana Delarissa

A menina e o sapo

Marcia Paganini Cavéquia

Ilustração: Renato Ventura.

Nina, menina airosa, formosa como ela só.

Bonito era ver Nina correr.

Ora corria rápido, feito tufão, ora devagar, parecendo brisa.

Nina corria pelo jardim.

Nina caía no gramado.

Nina fazia folia. E ria.

À noite, cansada das travessuras do dia, a menina dormia.

Certa vez, enquanto passeava pelo jardim, Nina viu um sapo.

Sapo também viu Nina.

"Será que, se Nina beijar o sapo, sapo vira príncipe?"

Nina não sabia, mas ficava imaginando como isso seria.

Nina beijou o sapo.

Sapo continuou sapo.

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Não virou príncipe.

Mas se apaixonou por Nina.

Agora, onde Nina está, lá se vê o sapo apaixonado suspirando pela menina.

Na cabeça do sapo, Nina é uma princesa-sapa, transformada em menina por uma terrível feiticeira.

Marcia Paganini Cavéquia, autora deste conto, é pós-graduada em Metodologia do Ensino pela

Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Amplexo

Mãe, me dá um amplexo?

A pergunta pega Cinira desprevenida. Antes que possa retrucar, ela nota o dicionário na

mão do filho, que completa o pedido:

- E um ósculo também.

Ainda surpresa, a mulher procura no livro a definição das duas estranhas palavras. E encontra. Mateus quer

apenas um abraço e um beijo.

Conversa vai, conversa vem, Cinira finalmente se dá conta de que o garoto, recém-apresentado às classes

gramaticais nas aulas de Português, brinca com os sinônimos. "O que vai ser de mim quando esse tiquinho

de gente cismar com parônimos, homônimos, heterônimos e pseudônimos?", pensa ela, misturando as

estações. "Valha-me, Santo Antônimo!" E emenda:

- Pára com essa bobagem, menino!

- Ah, mãe, o que é que tem? Você nunca chamou cachorro de cão? E casa de residência? E carro de

automóvel?

- É verdade, mas...

Mas a verdade é que Cinira não tem uma boa resposta.

- E meu nome é Mateus - continua o rapaz. - Só que você me chama de Matusquela.

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- Ei, isso não vale. Matusquela é apelido carinhoso.

- Sei, sei. Tudo bem se eu usar nosocômio e cogitabundo em vez de hospital e pensativo?

E criptobrânquio no lugar de mutabílio?

- Mutabílio? O que é que é isso?

- O mesmo que derotremado, ora. Tá aqui no Aurélio.

Está mesmo. É um bichinho. Mas pouco importa. A mãe questiona a opção do menino por vocábulos

incomuns. Mateus sai-se com esta:

- A professora disse que aprender palavras é como ganhar roupas e guardar numa gaveta. Quando a gente

precisa delas, tira de lá e usa. Cada uma serve para uma ocasião, por mais esquisita que pareça. Igual à

querê-querê roxa que você me deu no último aniversário. Lembra?

Como esquecer? Cinira nem se dá ao trabalho de consultar o dicionário. Sabe que a explicação para essa

última provocação está no verbete camiseta.

Quem é quem

Marcelo Alencar, autor deste conto, já trabalhou como cartunista e editor de

histórias em quadrinhos. Jornalista, é editor de NOVA ESCOLA

Marcelo Cipis, pintor e desenhista que ilustrou estas páginas, é autor de

O Livro do Alfabeto, Era uma Vez um Livro e 530 Gramas de Ilustrações.

A Origem das Revespécies - Maria Amália Camargo

Ilustração: Renato Faccini

Você já deve ter quebrado muito a cabeça pra responder aquela velha pergunta sobre o ovo e a galinha...

Ora, convenhamos, desde que os cientistas anunciaram o parentesco entre a dita cuja e os dinossauros, não é

preciso ser nenhum Charles Darwin pra matar essa charada...

Por um capricho da natureza, ficou decidido que os dinossauros pulariam de grandalhões para a categoria

peso-pena, passariam a acordar com as galinhas e seriam bichos muito bons de bico. Daí, foi só uma

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tiranossauro botar um ovo com um pintinho dentro, para dar início à era das galináceas no planeta. Pronto, o

ovo veio primeiro!

E já que estamos falando sobre as transformações no reino animal, é bom lembrar que a evolução não é

privilégio apenas das cocoriquentas. Tempos depois de um cavalo amarelo-malhado ter tomado chá de

trepadeira e ficado com as folhas entaladas na garganta, transformou-se numa girafa. Quando um

camundongo gigante cansou de levar seus filhos a tiracolo e amarrou uma bolsa na barriga, virou um

canguru. Já a gelatina, que teve a sorte de ser resgatada do mar Morto por um salva-vidas, ah, virou uma

água-viva!

E os reveses nas espécies não param por aí. Tem exemplo de revespécie pra dar e vender. Veja só:

Quem já era devagar quase parando virou preguiça.

Quem tinha samba no pé, uma cuíca.

Virou solitária quem vivia jogada às traças.

Um tremendo furão, quem nunca dava o ar da graça.

Quem era bicho-papão ficou barrigudo.

Quem era cheio de pneuzinhos, borrachudo.

Quem não conseguiu pegar jacaré virou mergulhão.

Quem era nervosinho pacas, um zangão!

Quem gostava de madeira virou bicho-carpinteiro.

Quem dirigia mal pra burro, barbeiro!

Quem não comprava no atacado, virou varejeira.

Quem lavava roupa suja em casa, lavadeira.

Virou quero-quero quem era pidão.

E serelepe, um mexilhão.

Virou maria-fedida quem vivia cheia de craca.

Quem não entrava em barca furada, uma fragata.

O calombo na cachola virou galo.

E quem vivia enrabichado, namorado.

Virou beija-flor quem namorou a rosa no quintal.

Quem pisou na concha acústica, um coral.

Virou truta aquele camarada, grande amigo.

Quem soltava fogo pelas ventas, maçarico.

Virou centopeia o cheio de dedos.

Mas quem vivia pregado continuou percevejo!

Maria Amália Camargo, autora deste conto, é formada em Letras.

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Apenas uma ponte

Chegara, enfim, o último dia de aula. Havia sido uma longa trajetória até ali. Mas, agora, o professor

observava com ternura os alunos à sua frente, cada um voltado para seu caderno, fazendo a lição que

colocaria ponto final no ano letivo. Então, agarrado à calmaria daquela hora, ele se recordou do primeiro

encontro com o grupo. Todos o miravam com curiosidade, ansiosos por apanhar, como uma fruta, o

conhecimento que imaginavam lhe pertencia. Nem tinham idéia de que aprenderiam por si mesmos, e que

ele, mestre, não era a árvore da sabedoria, mas apenas uma ponte que os levaria à sua copa frondosa.

Naquele dia, experimentara outra vez a emoção de se deparar com uma nova turma, e o que o motivava a

ensinar, com tanta generosidade, era justamente o desafio de enfrentar esse mistério. Sim, uma ponte. Uma

ponte por onde transitassem os sonhos daquelas crianças, o movimento incessante de seus desejos, o ir e vir

de suas dúvidas, o vaivém do aprendizado em constante algaravia.

Lembrou-se da dificuldade da Julinha nas operações de multiplicar. O resultado correto era um território que

ela nem sempre conseguia atingir. Mas, agora, a garota estava lá, segura da direção que deveria tomar. Ele

fizera a ponte. O que dizer da distância entre o José e o Augusto no início do ano, ambos se temendo em

silêncio, deixando de desfrutar da aventura de uma grande amizade? Com paciência, ele os unira. Desde

então, não se desgrudavam. Podia vê-los dali, de sua mesa, um ao lado do outro, concentrados em fazer a

tarefa. Já a Maria Sílvia, dona de uma letra redondinha, ainda há pouco lhe dera um sorriso. Antes, contudo,

vivia irritada, a letra sem apuro, só garranchos. Fizera a ponte para ela. Mateus, à sua frente, detestava

Ciências e fugia das aulas no laboratório. Talvez porque só via dificuldade na travessia e não as maravilhas

que o esperavam no outro extremo. O professor estendera-lhe a mão e o conduzira, até que, subitamente, ele

se tornara o melhor aluno naquela matéria. Tinha também a Alessandra, tão silenciosa e tímida. Ia bem nos

primeiros meses e, depois, o rendimento caíra. Ele descobrira que os pais dela viviam em conflito. Alertara-

os para que dessem mais afeto à filha, e eis que ela florescera, voltando a ser uma boa aluna.

E lá estava, nas últimas fileiras, o Luís Fábio. Notara suas limitações e construíra uma ponte especial para

ele, mas o menino não conseguira atravessá-la. Era assim: para alguns, bastavam uns passos; para outros, o

percurso se encompridava.

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O professor suspirou. Fizera o seu melhor. Lembrou-se das palavras de Guimarães Rosa: "Ensinar é, de

repente, aprender".

Sim, aprendera muito com seus alunos. Inclusive aprendera sobre si mesmo. Aquelas crianças haviam,

igualmente, ligado pontos em sua vida. Agora, seguiriam novos rumos. Haveriam de encontrar

outras pontes para superar os abismos do caminho.

Ele permaneceria ali, pronto para levar uma nova classe até a outra margem. E o tempo, como um viaduto,

haveria de conduzi-lo à emoção desse novo mistério.

Conto de João Anzanello Carrascoza

Ilustrado por Milton Trajano

Casa de Vô

Beatriz Vichessi

Ilustração: Mateus Rios

Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não.

Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura? Isso ele usa. Mas, de

resto, é diferente.

Minha avó também não é igual as outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate, ela só costura

para fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana. E quase nunca está em casa. De calça

comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia), sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.

Daí, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vovô encostar

as portas e, como ascensorista, anunciar:

- Primeiro andar! Roupas e bonecas. Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas...

A parede da sala é transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em

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tablado de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.

Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos

e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do Pisei.

- Hã? Como assim?, pergunto. Essa é nova.

Vovô explica sua invenção:

- Memorize onde estão os papéis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir

perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaços.

Eu começo.

- Pisei?, pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos.

- Não!

- Pisei?, insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho.

- Não!

Ouço um barulho de chaves. Vovó chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que é para mim, mas não

posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra.

- Tudo bem, vó? Quer brincar de Pisei?, convido.

- Agora, não, minha riqueza. Vovó vai descansar.

Vovô continua a me guiar, já sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei o barulho dela

sendo armada e das folhas nas mãos dele.

Sigo.

- Pisei?

- Pisei?

- Pisei?

E nada.

Sinto meus pés tropeçarem em algo. Abro os olhos. Vovô, a minha frente, de braços abertos, pronto para um

abraço de vitória.

- Mas eu não pisei em nenhum papelzinho, vô, digo, meio desanimada, mas já engalfinhada e feliz, nos

braços dele.

- O vento foi levando tudo para o cantinho do portão, ele explica, sorrindo.

- E por que o senhor não me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado...

- Porque eu queria que a brincadeira terminasse com você perto de mim.

Beatriz Vichessi, autora deste conto, é editora-assistente de NOVA ESCOLA.

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Aprendizagem

- Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer?

- Hã?

- Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo?

- Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha.

A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas.

- Todo dia, mãe?

- É, só que a gente não repara.

- Por quê?

- Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha?

A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente

ouve e pronto. Prefere não responder.

- Você é muito ocupada, não é, mãe?

- Hã?

- Nada, não.

A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário.

Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da

boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe,

mas a verdade é que ficou meio torto.

"Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana!

Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis.

- Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer?

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- Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura?

Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder.

A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está

pronto ainda.

- Mãe!

- O que foi?

- É que eu estava aqui pensando.

- Pensando o quê?

Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas.

- Vai, fala logo.

- Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu?

- Não, não entendi.

Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar:

- Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo?

- Ai, meu Deus!

Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca.

Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela:

- Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu?

E com um carinho:

- Foi minha mãe que me ensinou.

Flávio Carneiro, autor deste conto, é roteirista, ensaísta e professor de Literatura. Tem 11 livros publicados,

dentre eles, A Distância das Coisas (Editora SM), vencedor do III Prêmio Barco a Vapor.

Ilustração: Eva Uviedo

Dona Licinha

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A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e

roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé...

Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra

diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da

série B...

Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um

enorme silêncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela

e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde,

telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a

redonda contenteza dos alunos.

A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas

bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela

seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior

maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar

brincando. Na descoberta! Na contenteza!

Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora

dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a

diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo...

Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou

professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe,

seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o

desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu

jeito abraçante.

Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar

numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que

dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora.

Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas.

Um abraço apertado, cheinho de gostosuras, da Ciça

Conto de fanny Abramovich

Ilustrado por Carlo Giovani

Foto de Leo Feltran

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É Siri, É Bebê, É Corda

Milu Leite

Ilustração Yumi Fujita

Lá em casa mora um siri. Não fui eu que trouxe, não.

Ele veio me seguindo pela praia. Atravessou a rua, desviou dos carros. Eu só espiava. Ele vinha atrás.

O siri não tem cama. Dorme na tigela de comida do cachorro.

E o cachorro tem medo do siri porque já levou um beliscão no focinho.

Eu não sei o que o siri come, nem o que ele bebe.

Mas ele continua vivo e mora nessa casa faz tempo. Acho até que engordou.

Minha mãe também engordou.

Eu perguntei para minha mãe:

- O que tem aí dentro da sua barriga?

Ela respondeu com uma cara toda feliz:

- Um bebê. Seu irmão.

Eu fiquei lembrando do siri e fiz outra pergunta:

- Será que o siri também tem um bebê na barriga?

Minha mãe fez cara de quem não sabia o que dizer. Mas disse:

- Ah, siri não. Siri põe ovo.

- E você não põe?

- Claro que não!

- Você tem certeza que o bebê tá dentro da sua barriga, mãe?

- Tenho, filho.

- E por que você comeu ele?

Minha mãe deu uma gargalhada. Me abraçou bem comprido e disse que ia me explicar tudo, tintim por

tintim, mais tarde.

Ela falou assim: tintim por tintim.

Então, eu me esqueci do siri, do bebê e só pensei:

"Tintim é o barulho que os copos fazem quando os adultos batem um contra o outro em dia de festa!" Aí

comecei a lembrar do meu aniversário...

Por que será que meu pensamento pensa desse jeito?

Quer dizer, por que ele fica pulando de uma idéia para outra sem parar?

Aliás, por falar em pular...

Alguém quer pular corda comigo?

Quem é quem

Milu Leite, autora deste conto, é jornalista. Nasceu em São Paulo e mora em Florianópolis desde 1999.

Estreou na literatura com o livro O Dia em Que Felipe Sumiu (80 págs., Ed. CosacNaify, tel. [11] 3218-

1444, 30 reais), que lhe valeu o terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2006 na categoria juvenil.

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Yumi Fujita Taminato, que ilustrou esta página, nasceu em Itatiaiuçu (MG) e mora em São Paulo há sete

anos. Formada em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, cursou especialização em escultura na

Universidade de São Paulo.

E vem o Sol

João Anzanello Carrascoza

Ilustração: Odilon Moraes

Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo

dia, o homem foi trabalhar, a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para não ficar só num espaço que

ainda não sentia seu, a acompanhou.

Entrou na casa atrás da mãe, sem esperança de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros.

Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o

relógio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-

se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do pêlo agradando. E a mão desceu numa carícia.

O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. Já se sentia menos solitário.

Não vigorava mais nele, unicamente, a satisfação do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o

começo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na árvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas

ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o

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momento da jogada emocionante. Vinha lá do fundo da casa o convite. O gato continuava afofando-se nas

suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pássaro, o menino se desprendeu da mãe. Ela

não percebeu, nem a dona da casa. Só ele sabia que avançava, tanta a sua lentidão: assim é o imperceptível

dos milagres.

Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O ruído lúdico novamente

atraiu o menino. A voz o chamava sem saber seu nome.

Então chegou à porta do quarto - e lá estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presença.

Miraram-se, os olhos secos da diferença. Mas já se molhando por dentro, se amolecendo. O outro não lhe

perguntou quem era nem de onde vinha. Disse apenas: quer brincar? Queria. O Sol renasceu nele. Há tanto

tempo precisava desse novo amigo.

Conto de João Anzanello Carrascoza, ilustrado por Odilon Moraes

Folhas Secas

Francisco Marques (Chico dos Bonecos)

Ilustração: Ivan Zigg

Eu estava dando uma aula de Matemática e todos os alunos acompanhavam atentamente.

Todos?

Quase. Carolina equilibrava o apontador na ponta da régua, Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e

construía um prédio, Renata conferia as canetas e os lápis do seu estojo vermelhíssimo e Hélder olhava para

o pátio.

O pátio? O que acontecia no pátio?

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Após o recreio, dona Natália varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um

enorme saco plástico azul. Terminando o varre-varre, dona Natália amarrou a boca do saco plástico e

estacionou aquele bafuá de folhas secas perto do portão. Hélder observava atentamente. E eu observava a

observação de Hélder - sem descuidar

da minha aula de Matemática. De repente, Hélder foi arregalando os olhos e franzindo a testa.

Qual o motivo do espanto?

Hélder percebeu alguma coisa no meio das folhas movendo-se deseperadamente, com aflição, sufoco, falta

de ar. Hélder buscava interpretações para a cena, analisava possibilidades, mas o perfil do passarinho já se

delineava na transparência azul do plástico.

Um pássaro novo caiu do ninho e foi confundido com as folhas secas e foi varrido e agora lutava pela

liberdade.

- Ele tá preso!

O grito de Hélder interrompeu o final da multiplicação de 15 por 127. Todos os alunos olharam para o pátio.

E todos nós concordamos, sem palavras: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul.

Hélder saiu da sala e nós fomos atrás. E antes

que eu pudesse pronunciar a primeira sílaba da palavra "calma", o saco plástico simplesmente explodiu, as

folhas voaram e as crianças pularam de alegria.

Alguns alunos dizem que havia dois passarinhos presos. Outros viram três passarinhos voando felizes e

agradecidos. Lucas diz que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Eu, sinceramente, só vi

folhas secas voando.

Para concluir esta inesquecível aula de Matemática, pegamos vassouras, pás e sacos plásticos e fomos varrer

novamente o pátio.

Conto de Francisco Marques (Chico dos Bonecos), ilustrado por Ivan Zigg.

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Lado a lado, bem bolado

Pedro Bandeira

Ilustração: Daniel Bueno

Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes

seguidas, perderia todas.

O caso é que ele tinha aprendido que "em cima" se escreve separado e "embaixo" se escreve junto. Mas, na

hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.

Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de

todas as coisas.

- É fácil, Ricardinho - ensinou a Vovó. - Levante a mão esquerda, bem aberta.

- Assim?

- Não. Essa é a direita.

- Então é essa?

- É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.

- E de que lado fica o coração?

- Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.

- Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com "em cima" e "embaixo"?

- Veja, querido: seus dedos, "em cima", estão separados e, "embaixo", eles estão juntos, grudados na palma,

não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! "Em

cima" é sempre separado e "embaixo" é sempre junto!

Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque

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para o Adriano, seu melhor amigo na 1ª série.

- Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e...

- Não vai dar certo - respondeu o amigo.

- Por que não?

- Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!

- Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.

- E como é que eu sei qual é a direita?

- É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho

na cara.

- Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara - discordou o Adriano.

Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou

achando mais fácil saber que a mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era...

bom, era a outra!

Conto de Pedro Bandeira, ilustrado por Daniel Bueno

Lépida

Carla Caruso

Ilustração: Beto e Andréa

Tudo lento, parado, paralisado.

- Maldição! - dizia um homem que tinha sido o melhor corredor daquele lugar.

- Que tristeza a minha - lamentava uma pequena bailarina, olhando para as suas sapatilhas cor-de-rosa.

Assim estava Lépida, uma cidade muito alegre que no passado fora reconhecida pela leveza e agilidade de

seus habitantes. Todos muito fortes, andavam, corriam e nadavam pelos seus limpos canais.

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Até que chegou um terrível pirata à procura da riqueza do lugar. Para dominar Lépida, roubou de um mago

um elixir paralisante e despejou no principal rio. Após beberem a água, os habitantes ficaram muito lentos,

tão lentos que não conseguiram impedir a maldade do terrível pirata. Seu povo nunca mais foi o mesmo.

Lépida foi roubada em seu maior tesouro e permaneceu estagnada por muitos anos.

Um dia nasceu um menino, que foi chamado de Zim. O único entre tantos que ficou livre da maldição que

passara de geração em geração. Diferente de todos, era muito ágil e, ao crescer, saiu em busca de uma

solução. Encontrou pelo caminho bruxas de olhar feroz, gigantes de três, cinco e sete cabeças, noites

escuras, dias de chuva, sol intenso. Zim tudo enfrentou.

E numa noite morna, ao deitar-se em sua cama de folhas, viu ao seu lado um velho de olhos amarelos e

brilhantes. Era o mago que havia sido roubado pelo pirata muitos anos antes. Zim ficou apreensivo. Mas o

velho mago (que tudo sabia) deu-lhe um frasco. Nele havia um antídoto e Zim compreendeu o que deveria

fazer. Despejou o líquido no rio de sua cidade.

Lépida despertou diferente naquela manhã. Um copo de água aqui, um banho ali e eram novamente braços

que se mexiam, pernas que corriam, saltos e sorrisos. E a dança das sapatilhas cor-de-rosa.

Conto de Carla Caruso, ilustrado por Beto e Andréa

Memórias de uma infância química

Oliver Sacks

Ilustração: Marcelo Hardt

Muitas das minhas lembranças da infância têm relação com metais: eles parecem ter exercido poder sobre

mim desde o início. Destacavam-se em meio à heterogeneidade do mundo por seu brilho e cintilação, pelos

tons prateados, pela uniformidade e peso. Eram frios ao toque, retiniam quando golpeados.

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Eu adorava o amarelo do ouro, seu peso. Minha mãe tirava a aliança do dedo e me deixava pegá-la um

pouco, comentando que aquele material se mantinha sempre puro e nunca perdia o brilho. "Está sentindo

como é pesado?", ela acrescentava. "Mais pesado até do que o chumbo". Eu sabia o que era chumbo, pois já

segurara os canos pesados e maleáveis que o encanador uma vez esquecera lá em casa. O ouro também era

maleável, minha mãe explicou, por isso, em geral, o combinavam com outro material para torná-lo mais

duro.

O mesmo acontecia com o bronze. Bronze! - a palavra em si já me soava como um clarim, pois uma batalha

era o choque valente de bronze contra bronze, espadas de bronze em escudos de bronze, o grande escudo de

Aquiles. O cobre também podia ser combinado com zinco para produzir latão, acrescentou minha mãe.

Todos nós - minha mãe, meus irmãos e eu - tínhamos nosso menorá de bronze para o Hanucá. (O de meu pai

era de prata.)

Eu conhecia o cobre - a reluzente cor rósea do grande caldeirão em nossa cozinha era cobre; o caldeirão era

tirado do armário só uma vez por ano, quando os marmelos e as maçãs ácidas amadureciam no pomar e

minha mãe fazia geléias com eles.

Eu conhecia o zinco - o pequeno chafariz fosco e levemente azulado onde os pássaros se banhavam no

jardim era feito de zinco; e o estanho - a pesada folha-deflandres em que eram embalados os sanduíches para

piquenique. Minha mãe me mostrou que, quando se dobrava estanho ou zinco, eles emitiam um "grito"

espacial". "Isso é devido à deformação da estrutura cristalina", ela explicou, esquecendo que eu tinha 5 anos

e por isso não a compreendia - mas ainda assim suas palavras me fascinavam, faziam-me querer saber mais.

Havia um enorme rolo compressor de ferro fundido no jardim - pesava mais de 200 quilos, meu pai contou.

Nós, crianças, mal conseguíamos movê-lo, mas meu pai era fortíssimo e conseguia erguê-lo do chão. O rolo

estava sempre um pouco enferrujado, e isso me afligia - a ferrugem descascava, deixando pequenas

cavidades e escamas -, porque eu temia que o rolo inteiro algum dia se esfarelasse pela corrosão, se

reduzisse a uma massa de pó e flocos avermelhados. Eu tinha necessidade de ver os metais como estáveis,

como é o ouro - capazes de resistir aos danos e estragos do tempo.

Trecho do livro Tio Tungstênio - Memórias de uma Infância Química, de Oliver Sacks (Ed. Companhia

das Letras, 2002), ilustrado por Marcelo Hardt

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Minha chupeta virou estrela

Januária Alves

Ilustração: Ionit Ziberman

Eu me chamo Pedro e tenho 7 anos. Eu tenho uma estrela, sabe?

Uma estrelona, linda, que está lá no céu, brilhando, todos os dias.

Quando eu tinha 3 anos, para salvar meu dente da frente que ficou mole porque eu caí de boca brincando na

gangorra da escola, minha dentista me disse que... EU TERIA QUE PARAR DE USAR A MINHA

QUERIDA CHUPETA VERDE!

- A chupeta ou o dente! - ela me mandou escolher.

Bom, eu nem quis ouvir direito essa proposta tão maluca! A doutora Virgínia e a minha mãe tentaram

conversar comigo, explicar por que era importante eu não perder um dente tão cedo e... nada. Eu só olhava

com o olho mais comprido do mundo para a chupeta verde, minha companheira do sono mais gostoso do

mundo! Como dormir sem ela?

Na primeira noite em que fiquei sem a minha querida chupeta, só lembro de sentir o cheiro da minha mãe,

que me carregou no colo enquanto papai dirigia nosso carro, passeando em frente ao meu parque preferido

pra ver se eu enfim conseguia pegar no sono...

No dia seguinte fui com minha mãe e meu irmão ao parque e levei pão para dar aos patos que moram num

lago bem bonito que tem lá. Um pato maior e mais cinza que os outros me chamou a atenção. Ele veio várias

vezes comer pão na minha mão e eu gostei dele. Parecia o patinho feio da história que meu pai sempre

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contava antes de eu dormir.

Mamãe chegou perto de nós e disse que aquele era mesmo um pato especial. Ele costumava tomar conta das

chupetas de alguns meninos. E fazia isso muito bem: ele transformava todas em estrelas! Superlegal!

Pus o nome naquele pato de Pato Pão. Eu não queria perder nem o meu dente nem a minha chupeta... Talvez

o Pato Pão fosse a solução para o meu problema! Então... resolvi dar a minha chupeta verde para ele. Ele

pegou minha chupeta verde com o bico e atirou longe, no lago. Eu fiquei olhando para ela boiando,

boiando... até desaparecer... Na hora de entregar a minha chupeta verde, mesmo para um pato tão especial

como o Pato Pão, eu segurei bem forte a mão da minha mãe e a do meu irmão!

Enquanto a minha chupeta verde ia embora no lago, pensei que naquela noite ela não ia estar embaixo do

meu travesseiro. Eu teria que ir até a janela se quisesse dar uma espiada nela.

Quando a noite apareceu, meu pai chegou do trabalho e se deitou na cama comigo, olhando pro céu,

procurando a minha estrela-chupeta verde. Eu vi primeiro e nós dois batemos palmas pra ela! Aí eu só me

lembro de adormecer com aquele brilho de estrela no meu olho e a sensação do abraço enorme do meu pai.

Todas as vezes em que penso na minha chupeta, olho pro céu, procurando a estrela-chupeta verde. Agora, a

saudade, em vez de crescer como eu, fica menor a cada noite. Deve ser porque meninos grandes gostam

mais de estrelas no céu do que de chupetas, eu acho.

Conto de Januária Alves, ilustrado por Ionit Ziberman

Moinho de Sonhos

João Anzanello Carrascoza

Ilustração: Martha Werneck.

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A mulher e o menino iam montados no cavalo; o homem ia ao lado, a pé. Andavam sem rumo havia

semanas, até que deram numa aldeia à beira de um rio, onde as oliveiras vicejavam.

Fizeram uma pausa e, como a gente ali era hospitaleira e a oferta de serviço abundante, resolveram ficar. O

homem arranjou emprego num moinho próximo à aldeia. A mulher se juntou a outras que colhiam azeitonas

em terras ao redor de um castelo. Levou consigo o menino que, no meio do caminho, achou um velho cabo

de vassoura e fez dele o seu cavalo. Deu-lhe o nome de Rocinante.

Ao chegar aos olivais, o pequeno encontrou o filho de outra colhedeira - um garoto que se exibia com um

escudo e uma espada de pau.

Os dois se observaram à distância. Cada um se manteve junto à sua mãe, sem saber como se libertar dela.

Vigiavam-se. Era preciso coragem para se acercar. Mas meninos são assim: se há abismos, inventam pontes.

De súbito, estavam frente a frente. Puseram-se a conversar, embora um e outro continuassem na sua. Logo

esse já sabia o nome daquele: o menino recém-chegado se chamava Alonso; o outro, Sancho.

Começaram a se misturar:

- Deixa eu brincar com seu cavalo?, pediu Sancho.

- Só se você me emprestar sua espada, respondeu Alonso.

Iam se entendendo, apesar de assustados com a felicidade da nova companhia.

Avançaram na entrega:

- Tá vendo aquele moinho gigante?, apontou Alonso. Meu pai sozinho é que faz ele girar.

- Seu pai deve ter braços enormes, disse Sancho.

- Tem! Mas nem precisava, respondeu Alonso. Ele move o moinho com um sopro.

Sancho achou graça. Também tinha uma proeza a contar:

- Tá vendo o castelo ali?, apontou. Meu pai disse que o dono tem tanta terra que o céu não dá para cobrir ela

toda.

- E se a gente esticasse o céu como uma lona e cobrisse o que está faltando?, propôs Alonso.

- Seria legal, disse Sancho. Mas ia dar um trabalhão.

- Temos de crescer primeiro.

- Bom, enquanto a gente cresce, vamos pensar num jeito de subir até o céu! - disse Alonso.

- Vamos!, concordou Sancho.

Sentaram-se na relva. O cavalo, a espada e o escudo entre os dois. Um sopro de vento passou por eles.

Já eram amigos: moviam juntos o mesmo sonho.

João Anzanello Carrascoza

Autor deste conto, é publicitário, professor da Universidade de São Paulo (USP)

e autor de livros infantis, entre eles, Aprendiz de Inventor (Ed. Ática).

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Não somos figurinhas

Claudia Werneck

Ilustração: Orlando

Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhos e

professores não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais.

"Mas o problema é justamente esse", gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pêlo macio de seu

gato magro, branco e preto - o Bandidão. "Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para

a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças."

Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicações. "Como diferentes, minha filha? Somos

seres humanos, gente igual a você, iguais entre nós: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um

cérebro, dez dedos na mão, dez no pé..."

Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote, abandonando

o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança,

ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: "E quem não tem

duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos, mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para

ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que

somos iguais? Gente não é como figurinha, que nós arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as

rasgadas para decidir o que fazer com elas depois".

Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada,

sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos.

Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para os pais, ela experimentou uma sensação

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nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou

um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua.

Conto de Claudia Werneck, ilustrado por Orlando

Nem Tudo O Que Seu Mestre Mandar!

Rosane Pamplona

Ilustração: Cris Burger.

Xang era um sábio chinês. Seus alunos aceitavam seus ensinamentos sem pestanejar:

- Sim, mestre!

- Eu ouço e obedeço, mestre!

Um dia, Xang resolveu fazer uma viagem com três dos seus fiéis alunos. Instalaram-se numa carroça puxada

por dois burrinhos e lá se foram: nhec, nhec. Xang, já velhinho, logo sentiu sono. Tirou as sandálias e pediu

aos jovens:

- Por favor, me deixem dormir! Fiquem bem quietos!

Dali a pouco roncava. Na primeira curva do caminho, as sandálias dele rolaram pela estrada. Os discípulos

nem se mexeram. Quando o mestre acordou, logo as procurou.

- Rolaram pela estrada - disseram.

- E vocês não pararam a carroça? Não fizeram nada?

- Fizemos sim, senhor. Obedecemos: ficamos bem quietos.

- Ai, está bem - conformou-se o mestre. Mas se eu cochilar de novo prestem atenção se alguma coisa cair da

carroça, ouviram?

- Ouvimos e obedecemos!

Xang cobriu os pés com uma coberta e adormeceu. Entretanto, no balançar da carroça, a coberta deslizou e

lá se foi. O mestre acordou com frio. Mas cadê a coberta? Será que...

- Escorregou pela estrada - confirmaram os três.

- E o que vocês fizeram?

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- Fizemos só que o mestre mandou. Prestamos atenção.

- Não! - esbravejou Xang. Vocês tinham de pegar a coberta de volta! Atenção: se eu dormir e alguma coisa

cair da carroça, peçam para parar e PONHAM-O-QUE-CAIU-DE-VOLTA-NA-CARROÇA, entendido?

- PERFEITAMENTE!

E a viagem continuou: nhec, nhec. O mestre foi cabeceando e cochilou. Dali a pouco, os jumentos sentiram

necessidade de fazer... suas necessidades. Ploft, ploft, ploft, caíram os cocozinhos pelo caminho. Os

discípulos mandaram parar a carroça e, com muito cuidado, foram pondo os fedidos pelotinhos para dentro.

Aquela agitação fez Xang acordar. Nossa, que cheirinho!

- Esperem! O que estão fazendo?

- Apenas obedecendo! - juraramos três. - Pondo de volta o que caiu da carroça.

- Não, mas isso não!

Ai, com aqueles cabeças-duras, só mesmo muita paciência:

- Está bem, vamos começar de novo. Vou fazer uma lista de tudo o que há na carroça. Se algo cair,

verifiquem se está nela. Se não estiver, não peguem de volta, certo?

- Somos pura obediência, ó, mestre!

Xang escreveu a lista. Que canseira! Mas agora podia dormir tranquilo... E a carroça subiu uma estradinha

íngreme. Numa curva mais fechada, ops, quem é que caiu dessa vez? O mestre! Ele escorregou e se foi

ribanceira abaixo.

- Socorro! - gritou - Venham me pegar!

Graças aos céus ele conseguiu se agarrar numa raiz do barranco.

- Ei, o que estão esperando? Me ajudem! - chamou.

Mas os discípulos, imperturbáveis, consultavam a lista.

- Seu nome não está escrito aqui - explicaram. - Não podemos pegá-lo, ó, mestre!

Não teve jeito: Xang, com muito esforço, subiu o barranco e voltou para a carroça. Mas não dormiu mais...

Rosane Pamplona, autora deste conto, é contadora de histórias e professora de Língua Portuguesa.

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O amigo de Juliana

Eva Furnari

Ilustração: Eva Furnari

Juliana tinha um amigo chamado Fungo. Ele morava na casa de bonecas

e conseguia até ajeitar-se bem nas pequenas cadeiras e na caminha azul, apesar de ser mais gordo que elas.

Fungo era talentoso. Escrevia poemas, histórias e desejava ser um grande escritor, porém sentia falta de um

mestre. Juliana, definitivamente, não podia ser esse mestre, pois prendera a escrever havia pouco tempo.

Além do mais, ultimamente a amizade deles andava estremecida, porque Juliana dava mais atenção às

bonecas que a ele. Fungo não entendia qual era a graça que ela via naquelas bonecas mudas, sem cultura e

sem entimentos. Fungo suspeitava que fossem mesmo burras, principalmente aquele boneco Tob, que

parecia uma montanha de músculos inúteis, pois nem se trocar sozinho ele sabia. Era uma dependência total,

um vexame, e Juliana é que precisava trocá-lo toda vez.

Numa certa madrugada, em que Fungo estava sem sono, viu jogado no chão o caderno de Juliana com uma

redação assim:

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Fungo leu e achou pobre, mal escrito, com cinco erros de português, além da falta de estilo. Num ato de

ousadia arrancou a página e reescreveu a redação do jeito que ele achava que ficava melhor:

Fungo foi dormir orgulhosíssimo de sua redação, feliz com a chance de receber comentários da professora

de Português de Juliana, essa, sim, uma verdadeira mestra.

No dia seguinte, a amiga voltou furiosa da escola e proibiu Fungo de escrever uma linha que fosse em seus

cadernos, pois os colegas da classe tinham achado que ela estava maluca por escrever tais bobagens.

Chateado, Fungo recolheu-se à sua casinha e esperou anoitecer.

Quando Juliana finalmente adormeceu, ele foi silenciosamente até a mochila, apanhou o caderno da menina

e leu o comentário da professora:

Redação muito criativa, cheia de imaginação e bem escrita, precisa apenas caprichar mais na letra. Nota dez.

Fungo adorou, achou o máximo e pensou até em entrar para a escola. Claro, só quando a Juliana se

acalmasse. Talvez pudesse ficar na classe dentro da mochila, já que os adultos com certeza não iriam

entender um monstro culto como ele querendo assistir aula.

Conto de Eva Furnari, ilustrado pela autora.

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Nino quer um amigo

Katia Canton

Ilustração: Sérgio Ramos

Nino, por que você está sempre tão sério e cabisbaixo?

Nino vivia triste. Ele se sentia sozinho. Ninguém queria ser amigo dele.

Pobre Nino.

Um dia, na praia, ele ficou esperançoso de encontrar um amigo.

- Ah, um menino. Quem sabe..., e tentou chegar perto dele.

Mas o menino virou para o lado, cavou um buraco.

E ainda jogou areia no Nino.

Coitado dele.

Outro dia, na escola, ele tentou puxar conversa com uma colega de turma. Olhou para a menina, que era toda

sardenta, uma graça. Esboçou um sorriso e tentou puxar assunto.

Mas estava tão acostumado a ficar calado e sério que as palavras demoraram a sair de sua boca.

A menina bonitinha desistiu de esperar que ele dissesse alguma coisa. Virou-se de costas e foi brincar com

uma amiga.

Tadinho do Nino.

Nem os animais pareciam querer ser seus amigos.

Uma tarde, Nino viu um menino com um cão passeando na praça.

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Ficou com vontade de agradar o cachorro, mas ficou com medo de que ele mordesse.

Fez um agrado bem tímido.

O cão nem aí para ele.

Que pena, Nino.

Até que um dia, ele tinha desistido de procurar.

Pensando em por que, quanto mais tentava encontrar um amigo, mais sozinho se sentia...

Ficou distraído, pensando, e adormeceu.

Quando acordou, olhou-se no espelho.

Enquanto escovava os dentes, percebeu que fazia muitas caretas.

Achou engraçado. Enxaguou a boca e continuou brincando com o espelho.

Era riso daqui, riso de lá. Era língua do Nino e língua do espelho. Piscadela aqui, piscadela ali. Começou ali

uma verdadeira folia. Era um jogo de reconhecimento entre Nino e sua imagem no espelho. E não é que

Nino era bem engraçadinho? Ele mesmo nunca tinha reparado nisso antes.

Que cara legal era o Nino.

Que garoto charmoso, bem-humorado!

Nino ficou encantado com seu espelho.

Fez-se ali uma grande amizade.

E depois dessa amizade surgiram muitas outras.

Nino hoje é um cara cheio de grandes amigos. Incluindo ele mesmo.

Valeu, Nino.

Conto de Katia Canton, ilustrado por Sérgio Ramos

O amigo secreto - Regina Chamlian

Ilustração: Alexandre Dubiela

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A turma reuniu-se na sala enfeitada. Martinha carregava um pacote enorme, cheio de laços. Suzana e

Antônio conversavam animados. Mariana pediu para Juju começar a brincadeira. Cada um devia explicar

antes por que escolhera o presente para seu amigo secreto.

Quando Juju terminou de falar, um tênis, que mais parecia uma nave espacial, foi parar nas mãos de Felipe.

Este contou por que comprou o CD importado para o Luís. Que explicou por que escolheu a bermuda de

surfista para o Bruno.

— Bruno! — a turma gritou. — Agora é você!

Bruno pôs-se a falar:

— Bom, pessoal, é o seguinte: na primeira semana de dezembro, já tarde da noite, lá em casa, ouvimos um

grito de filme de terror.

Todo mundo saltou da cama: "O que foi? O que foi?"

Minha mãe apontou, soluçando: "A ge-la-de-dei-ra! Ela que-que-brou!"

"O técnico avisou que, se ela enguiçasse de novo, já era", disse meu pai.

"Não faço questão de geladeira", minha irmã falou. "O que não dá é ficar sem computador."

Aí, minha mãe disse: "Se a gente fosse esquimó, jogava a caça sobre a neve, cobria com gravetos pros lobos

não roubarem e pronto. Mas, em pleno verão brasileiro, geladeira é prioridade. Precisamos comprar uma

nova imediatamente".

"E daí?", minha irmã perguntou.

"E daí que o mesmo dinheiro não sai da mesma carteira duas vezes", disse meu pai.

"Então o computador dançou?!", eu perguntei.

Meu pai respondeu: "O computador e outras coisinhas. Nossa geladeira é dúplex, custa mais".

"E o presente do amigo secreto", minha irmã lembrou mais que depressa.

"Bolem um presente criativo e que não custe nada", falou meu pai.

— Foi aí que eu tive a idéia — continuou Bruno, abrindo a mochila e tirando de lá um pequeno pacote.

— Espero que meu amigo secreto goste. Ele é o Rafa.

— Aí, Rafa! Vai lá! — gritou a turma.

Rafa começou a abrir o pacote. O silêncio era total.

— Não acredito que você guardou esta foto, cara! Que idade a gente tinha?

— Mostra! Mostra!

E a foto emoldurada de Bruno e de Rafa, quando tinham 6 anos de idade, foi passando de mão em mão. O

maior sucesso.

— Puxa, Bruno. Só faltou uma coisa — disse Rafa.

— O quê?

— Um abraço, cara. Gosto de você! Bom fim de ano!

Conto de Regina Chamlian, ilustrado por Alexandre Dubiela

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O baú secreto da vovó

Heloisa Prieto

Ilustração: Daniel Bueno

Quando eu era menina e sentia medo, no lugar de chorar, ficava com raiva.

Na noite em que descobri o baú de minha avó, eu estava em Santos. Trovejava muito. Apavorada, comecei a

gritar que odiava o mar. Foi quando minha avó me chamou e disse.

- Minha neta, você sabia que eu tenho um baú cheio de segredos?

- Como assim? Onde?

- Lá no fundo da garagem.

Pronto. Nada como a curiosidade para espantar o medo. Na garagem, vovó o abriu e retirou de dentro dele

uma espécie de régua.

- Você sabe o que é isso?

- Uma régua esquisita - respondi.

- Não, isso é uma palmatória. Quem errasse na escola levava uma batida na palma da mão.

- Não acredito! E por que a senhora guardou este treco horrível?

- Pra lembrar que a gente precisa ser mais forte do que as injustiças. Olhe... meu dedal preferido. Foi com

ele que eu costurei esta roupa - e ela me mostrou um vestidinho com uma espécie de short por baixo.

- Você jogava tênis, vovó?

- Não, isso é um maiô!

- Você nadava de vestido?

- Sim, e era considerada atrevida. Mas foi assim que conquistei seu avô.

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- Nadando de roupa?

- Eu vinha de uma família pobre. Seu avô, não. Ele lia, gostava de dançar.

- E de nadar também?

- Sim, e por isso fiz este maiozinho. Corri até a praia de chapéu. Seu avô estava tomando sol. Fingi que tinha

perdido o chapéu no mar. Ele, como era um cavalheiro, veio me ajudar. O chapéu foi parar no fundo. Então

apostamos uma corrida para ver quem o apanhava. Ele gostou da minha ousadia.

- Foi assim que vocês começaram a namorar?

- E logo me casei. Guardei o dedal pra lembrar que a gente precisa tecer a felicidade, e o maiô, porque um

pouco de coragem não faz mal a ninguém. Olhe esta caixinha de música. Seu avô me deu quando você

nasceu. Não é linda?

Vovó mostrou para mim outros objetos e assim fui descobrindo que se não fosse o mar, que eu temia, não

haveria o encontro de meus avós e que viver é saber perder o medo de tudo o que a gente nunca espera e

nunca vai conseguir controlar.

Conto de Heloisa Prieto, ilustrado por Daniel Bueno

O caso do espelho

Ilustração: Alarcão

Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da

mata.

Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O

homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:

- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?

- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.

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- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.

Os olhos do homem ficaram molhados.

- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.

O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de

madeira.

- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o

cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?

O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho

Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o

espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.

A mulher ficou só olhando.

No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira,

desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em

seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.

- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de

mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes

mais bonita e mais moça do que eu!

- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no

chão, não tinha feito nem a comida.

- Que foi isso, mulher?

- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?

- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.

- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!

O homem não estava entendendo nada.

- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:

- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma

jabiraca safada e horrorosa?

A discussão fervia feito água na chaleira.

- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.

A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha

chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.

- Que é isso, menina?

- Aquele cafajeste arranjou outra!

- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.

- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o

que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!

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A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.

Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo.

Soltou uma sonora gargalhada.

- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha,

arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!

E completou, feliz, abraçando a filha:

- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!

Conto popular recontado por Ricardo Azevedo, ilustrado por Alarcão

O dicionário de formas

Ilustração: Patricia Lima. Foto: Eduardo Delfim

Era uma vez eu, Zé Sorveteiro, que me apaixonei por uma princesa que acabara de chegar do outro lado da

Terra. Bolei para ela um dicionário de quatro palavras: bola, quadrado, retângulo, triângulo. Japonês se

escreve com desenhos. Com desenhos a princesa aprenderia português!

Não demorou, ela estava arrasando. Ia até meu carrinho e pedia, desenhando no ar:

- Triângulo-bola.

Sorvete na casquinha! O dicionário funcionava às maravilhas.

Eu? Mandava bilhetes. Desenhava um quadrado com um triângulo em cima e escrevia: casa!!! Caprichava

nos pontos de exclamação. Casa!!! Casa!!! Fácil de entender: casa comigo.

Mas toda princesa tem uma fera para encontrar bilhetes. Uma hora a fera mandou me chamar. Aí…

Aí eu transformei ponto de exclamação em sinal de aguaceiro:

- Um traço com um pingo é chuva. Três - !!! - muita chuva. Casa, chuva, chuva, chuva. Estou só avisando…

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Cuidado com goteiras.

Acabei subindo e limpando as calhas do telhado do futuro sogro e as de cada um de seus amigos e parentes.

Hoje, 60 anos depois, repito, valeu a pena. E lá vou eu apanhar uns triângulos vermelhos para a minha

rainha arrumar no triângulo do retângulo do quadrado da frente. Perfeito. Daqui a pouco a jarra da mesa da

sala estará toda perfumada com os… Como é mesmo? Vá lá! Com os triângulos vermelhos.

Conto de Angela Lago, ilustrado por Patricia Lima. Foto de Eduardo Delfim

O Grande Encontro

Silvana Tavano

Ilustração: Sandro Castelli

Era uma vez um Autor com uma vaga ideia para uma nova história. E como nessa história tinha vaga de

verdade para um grande Personagem, pensou em começar sua busca colocando um anúncio no jornal.

"Procura-se um Personagem disposto a viver aventuras eletrizantes. Não é necessário ter experiência no

tema, mas algumas características serão especialmente consideradas: um certo preparo físico, raciocínio

rápido e personalidade carismática."

O primeiro candidato a se apresentar foi logo dizendo:

- Participei de passagens importantes de muitos livros famosos, imortalizados por personagens estrelados.

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- Ah, parabéns! O senhor tem razão. Os grandes personagens não envelhecem. Mas, se entendi bem, o

senhor nunca foi o protagonista desses enredos, certo? Enfim... É uma pena, mas um coadjuvante de idade

avançada não é o que busco. Desculpe!

Dois dias e muitas páginas amassadas depois, o Autor recebe outro candidato - um tipo muito sincero, mas

bastante imaturo.

-Já passei por muitas imaginações, mas...

- Mas?

-Nunca cheguei ao papel...

- Ah...

- Tenho muito potencial, mas...

- Mas?

- Preciso de alguém que acredite em mim, que me decifre e me revele com todas as letras, entende?

- Você é muito interessante. Mas...

Na semana seguinte, com a cabeça embaralhada e ainda sem um herói à vista, o Autor começa a pensar em

outras possibilidades e, repentinamente, tem uma grande ideia: e se o narrador transformasse a própria

aventura em Personagem? Animado, ele já ia colocar o texto em ação quando o telefone toca.

- Bom dia. Posso falar com o Autor?

- E o senhor é...?

- O Personagem.

- Ah, claro, o anúncio...

- Exato, o anúncio. Muito bem escrito, por sinal.

- ...?

- Quantos livros o senhor publicou?

- ... !?!

- Alô? Alô, o senhor está na linha?

- Sim... Claro, estou ouvindo... Continue, por favor!

- Desculpe! Espero que não me leve a mal, mas preciso saber um pouco mais sobre o seu estilo, como é o

seu processo criativo, quais gêneros o senhor domina, se tem livros premiados... É que não me encaixo com

naturalidade em qualquer texto. Tenho que sentir alguma consistência literária, entende?

O Autor experimentou vários estados de espírito. No início, ficou atônito. Mais que isso, catatônico! Depois,

a palavra certa seria "irritado". Mas, pouco a pouco, foi se sentindo, como dizer?, impressionado! Pois, à

medida em que respondia às perguntas do Personagem, foi se surpreendendo mais e mais com suas próprias

palavras.

No dia seguinte, conversaram de novo. E no outro, outra vez.

Trocaram ideias durante tanto tempo que acabaram se tornando grandes amigos. Anos depois, eram tão

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íntimos que um logo adivinhava o que o outro tinha acabado de pensar e, juntos, inventaram histórias

fabulosas.

Silvana Tavano, autora deste conto, é jornalista, autora de livros infantis e juvenis e escreve no

O pobre cocozinho

Rosane Pamplona

Ilustração: Biry Sarkis

Era uma vez um cocô. Um cocozinho feio e fedidinho, jogado no pasto de uma fazenda.

Coitado do cocô! Desde que veio ao mundo, ele vinha tentando conversar com alguém, fazer amigos, mas

quem passava por ali não queria saber dele:

- Hum! Que coisa fedida! - diziam as crianças.

- Cuidado! Não encostem na sujeira! - avisavam os adultos.

E o cocozinho, sozinho, passava o tempo cantando, triste:

Sou um pobre cocozinho

Tão feinho, fedidinho

Eu não sirvo para nada

Ninguém quer saber de mim...

De vez em quando ele via uma criança e torcia para que ela chegasse perto dele, mas era sempre a mesma

coisa:

- Olha a porcaria! - repetiam todos.

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Não restava nada para o cocô fazer, a não ser cantar baixinho:

Sou um pobre cocozinho

Tão feinho, fedidinho...

Um dia ele viu que um homem se aproximava. Já imaginando o que ia acontecer, o cocozinho se encolheu.

"Mais um que vai me xingar", pensou. Mas... Oh! Surpresa! O homem foi chegando, abrindo um sorriso, e

seu rosto se iluminou:

- Mas que maravilha! Que belo cocô! Era exatamente disso que eu precisava.

O cocô nem acreditava no que estava ouvindo. Maravilha, ele? Precisando?

Aquele homem devia ser maluco!

Pois aquele homem não era maluco, não. Era um jardineiro.

E, usando uma pá, com todo o cuidado, ele levou o cocozinho para um lindo jardim.

Ali, acomodou-o na terra, ao pé de uma roseira. E, depois de alguns dias, o cocozinho percebeu, feliz e

orgulhoso, que, graças a sua força, a roseira tinha feito brotar uma magnífica rosa vermelha, bela e

perfumada.

Conto de Rosane Pamplona, ilustrado por Biry Sarkis

O Sol Azul

Ilustração: Jaca

A professora pediu para todo mundo fazer um desenho. O Beto abriu o caderno, cheinho de folhas brancas.

Bateu o olho no giz de cera azul, pegou e fez um Sol. E o sol pode ser azul?

Claro! E sabe o que mais? Também pode ser verde, rosa, vermelho e até cinza com bolinhas roxas. No céu

de verdade, o Sol parece que é amarelo, mas isso é no céu de verdade! No papel, pode de todo jeito.

O que não pode é ter preguiça de imaginar.

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Na imaginação, o Sol pode ser diferente. A menina também. Ela pode ter laço de fita ou chapéu na cabeça.

Pode ter cabelo comprido, curto, solto ou preso - e até ser careca! O menino pode ser grande ou pequeno,

sério ou risonho, colorido por dentro ou levar só um contorno de lápis preto.

A imaginação não dá muita bola para a realidade, não. Ela é mais amiga da fantasia, da liberdade, da arte e

da vontade!

O Beto aproveitou o sol azul e fez uma árvore amarela. Ele achou que ficou bonito. E não é que ficou

mesmo? Lembra até o quadro que tem na casa da tia dele. Para você que não viu o quadro, vou contar

como é.

Tinha o desenho de uma mulher - mas que mulher esquisita aquela! Além de amarela, ela voava! Mas espere

um pouco: não era uma mulher, era um quadro. O quadro que ficava na casa da tia do Beto, lembra? E

quadro é que nem papel que a gente usa para desenhar: pode ter as coisas do jeitinho que a gente costuma

ver. Mas também vale ter gente amarela e que voa!

O Beto olhou para o papel: ele tinha agora um sol azul, uma árvore amarela e até uma nuvem em forma de

flor. A nuvem parecia voar no caderno, mas ela voava na cabeça do Beto, onde cabia muito mais.

- Professora, o Beto fez um sol azul! - gritou o João do fundo da sala.

O Beto então contou para o João que já tinha visto um quadro com uma mulher amarela e que voava.

Quando a professora chegou até os dois, o João tinha desenhado uma montanha listrada. Aposto que você

nunca viu uma montanha listrada. Mas o João, na cabeça dele, já.

Liliane Prata, autora deste conto, é jornalista e escreve no blog Lili Prata. Em 2003, lançou o primeiro

livro, O Diário de Débora (Editora Marco Zero).

O temporal no Amazonas

Thiago de Mello

Ilustração: Ciça Fittipaldi

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Passamos o dia em Ponta Alegre, aldeia dos índios Maués, banhada pelo rio Andirá. Muito

aprendi com o jovem tuchaua, conhecedor de ervas mágicas e amigo das estrelas. Ao entardecer, saímos de

canoa com motor de popa, ao rumo da Freguesia, pequenina comunidade no coração da floresta. Era tempo

de cheia. Soprava de leve o vento geral. Éramos quatro a bordo. Viajávamos rente à margem abarrancada, já

na metade do percurso, quando, de repente, o temporal desabou.

"Este vai ser dos medonhos", disse sereno, lá na popa, onde manejava o motor, Morón, um índio meu amigo.

Junto a ele, no chão da canoa, o seu filho menino, todo encolhido de frio. Lembro-me de que, antes de

escurecer totalmente, do banco da frente onde eu viajava, virei-me e vi o brilho intenso dos seus olhos

enormes. Era o pavor. Na proa, sem camisa, o

cabloco Jari, morador da Freguesia.

Enfrentamos o temporal em silêncio, solidários. A correnteza crescia, a canoa se balançava na alta crista das

ondas, depois se despencava com fragor. A chuva nos vergastava por todos os lados. Houve um momento

em que não vimos mais nada. Repetidas vezes a

proa tocava num tronco. O baque surdo, a canoa parecia que ia virar. Morón inclinava o motor para a frente,

de jeito que a hélice ficasse fora da água.

Só os relâmpagos nos ajudavam, cortando o céu de um lado a outro: a luz fugaz nos mostrava um tronco

enorme, um pedaço de árvore ainda com ramos frescos, já quase em cima de nós. O índio, ágil e calado,

desviava a canoa num golpe de leme. A escuridão era tanta que eu sequer enxergava a minha mão aberta a

centímetros do meu rosto. Mesmo assim, em alguns instantes, tive a certeza de que o piloto conseguia

distinguir, dentro da treva espessa, alguma coisa das águas e das margens. Um filho da floresta.

A tempestade cessou pouco antes de chegarmos à Freguesia. E duas coisas aconteceram que eu preciso

contar. A primeira é que, de repente, demos com várias canoas vindo em nossa direção. Eram homens e

mulheres daquele pedaço verde do mundo, certos de que deveríamos chegar no começo da noite e nossa

tardança já era tanta, nos sabiam surpreendidos pelo temporal e decidiram ir ao nosso encontro, para nos

salvar. Quando nos viram, foi um imenso e prolongado grito de alegria, saído de todas as bocas. Do

coração solidário. A segunda coisa é que depois do temporal o céu acendeu as suas estrelas, perdão, todas as

suas estrelas, que brilhavam enormes, pairando soltas no campo da noite.

Conto de Thiago de Mello, ilustrado por Ciça Fitipaldi

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O tesouro no quintal

Moacyr Scliar

Ilustração: Alexandre Camanho

Era uma família grande, a nossa: pai, mãe, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos

sustentar. Mamãe ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era

bastante difícil. Papai vivia bolando formas de reforçar nosso orçamento doméstico ou de, pelo menos,

diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a idéia da horta.

Morávamos numa minúscula casa de subúrbio, não longe de uma bela praia, que, contudo, raramente

freqüentávamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razão, tinha

um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, não cuidávamos. O capim ali crescia viçoso e no

meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaços de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo,

pesaroso: parecia-lhe um desperdício de espaço e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu

irmão Pedro e eu próprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.

Proposta mais do que adequada. Nós quase não comíamos legumes e verduras, porque eram muito caros.

Mas, se plantássemos ali tomate, alface, agrião, cenoura, teríamos uma fonte extra de alimento - e o mais

importante, sem custo.

Sem custo, mas não sem trabalho. Para começar, teríamos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois

plantar e colher. Meu pai não hesitou: vocês dois, que são os mais velhos, vão fazer isso.

Não gostamos muito da determinação. Não éramos preguiçosos, mas preparar a terra para fazer uma horta

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não era bem o nosso sonho e representaria um grande esforço. Contudo, não tínhamos alternativa. Quando

papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mamãe, que era de uma

família de agricultores e gostava de plantar.

Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, além de mais velho, era o líder entre os

irmãos. Pergunta para a qual ele já tinha a resposta:

- Isso é coisa para o Antônio.

Antônio era o irmão do meio. Com 9 anos, era um menino quieto, sonhador. Mas não era muito do batente,

de modo que fiquei em dúvida: como convencê-lo a fazer o trabalho?

- Deixa comigo - disse Pedro, que se considerava muito esperto. - Eu sei como convencer o cara.

E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lábia fantástica, argumentava como ninguém. Ah, sim, e

sabia contar histórias - inventadas por ele, claro. Era com uma história que pretendia motivar o Antônio a

capinar o pátio.

Eu estava junto, quando ele contou a tal história. Era uma boa história: segundo um famoso professor,

séculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa região

e ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que

a arca com jóias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar,

que podia ser o pátio de nossa casa.

- O tesouro será a nossa salvação - concluiu Pedro , entusiasmado.

Antônio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histórias. Aliás, estava sempre

lendo - era o maior freqüentador da biblioteca do colégio.

- Quem sabe procuramos esse tesouro? - perguntou ele.

Era exatamente o que Pedro queria ouvir.

- Se você está disposto, eu lhe arranjo uma enxada...

Antônio mostrava-se mais do que disposto. No dia seguinte, um feriado, lá estava ele, enxada em punho,

cavando a terra, diante do olhar admirado da família. Papai até perguntou o que tinha acontecido.

- Ele se ofereceu para fazer o trabalho - disse Pedro, dando de ombros.

Para encurtar a história: tesouro algum apareceu, mas, um mês depois, tínhamos uma horta no quintal.

Antônio acabou descobrindo a trama de Pedro, mas não ficou zangado. Inspirado pelo acontecimento,

escreveu uma história, com a qual ganhou um prêmio literário da prefeitura. Uma boa grana, que ele usou

para comprar livros. Hoje é um conhecido jornalista e escritor. Acho que ele acabou, mesmo, encontrando o

tesouro.

Conto de Moacyr Scliar, ilustrado por Alexandre Camanho

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O Trem das Águas

Bem lá dentro da Floresta Amazônica, onde as árvores são tão altas que chegam nas

nuvens e as folhas da mata são tão grandes que poderíamos morar embaixo delas, vivia uma cobra gigante

chamada Cobra Gil. Quando caía a noite, os insetos faziam tanto barulho que Cobra Gil acordava. Saía de

seu buraco-casa, espichava todo o corpo e dava um bocejo tão comprido, soltando um som tão grosso, que

todos os bichos ficavam quietinhos de medo. Até a onça se encolhia em sua toca, apavorada. E Cobra Gil,

cansada de dormir, saía para dar seu rotineiro passeio noturno.

Quando os bichos percebiam que era Cobra Gil - a maior da floresta - que estava saindo para nadar, pediam

para subir nas suas costas. Então ela nadava rio acima parecendo um trem, pois carregava pássaros,

macacos, tucanos, sapos, besouros, cigarras, formigas e lagartos. Na cabeça iam os vaga-lumes iluminando o

caminho. Os jacarés e os pescadores, quando viam aquele monstro com a cabeça iluminada e o corpo que

piava, gritava, zumbia e coachava, diziam:

- Fujam! Fujam todos! Vem chegando o trem da assombração com a cabeça de fogo!

Quem é

Fernando Vilela, autor e ilustrador deste conto, é artista plástico, designer e

professor de Arte em São Paulo. Lampião & Lancelote (52 págs., Ed. CosacNaify, seu livro mais recente,

levou o Prêmio Jabuti de 2007 em três categorias. Seu trabalho pode ser visto em

www.fernandovilela.com.br.

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Para contar estrelas

Dieter Mandarin

-Pai, como é que a gente conta estrelas do céu?, perguntou Lelê. O pai, baixando o jornal, foi logo fazendo

pose de explicação.

- Bem, existem equipamentos especiais para isso. Eles tiram fotos do céu e fazem medições. E tem o

Hubble, que é o bambambã dos telescópios! Mas só os cientistas podem usá-lo. Então, cada um conta com o

que tem à mão.

- Ah!, disse Lelê com admiração, mesmo sem ter entendido muito bem (ele ainda estava no segundo ano).

A mãe o chamou na cozinha para um lanche. Ele se sentou à mesa pensando ainda no que o pai tinha dito.

Decidiu perguntar para ela também.

- Isso seu pai deve saber. Por que não pergunta para ele?

- Já perguntei. Ele falou várias coisas, mas não entendi direito: o que cada um tem nas mãos e...

- Ora, nas mãos a gente tem dedos! Por que você não conta nos dedos?, disse a mãe, que era bem mais

esperta que o pai nos assuntos práticos.

- Hum..., pensou Lelê. Assim eu sei! E foi logo devorando o sanduíche.

Uns minutinhos depois, Lelê já estava no quintal. Olhava para o alto, bem fundo no céu de estrelas. Para

começar, mirou a mais brilhante e passou a contar em voz alta: Um... Dois... Três..., recolhendo um dedo de

cada vez. Chegou até dez. Olhou para as mãos, olhou para o céu.

Suspirou. O problema é que ele tinha só dez dedos, e o céu tinha muito mais estrelas.

Desanimado, sentou-se na varanda, apoiando o queixo nas mãos.

Sua avó, que sempre observava tudo bem quietinha, foi lá falar com ele.

- O que foi, filho?

- Nada...

- Hum. Sabe, eu conheço um jeito de fazer caber todas as estrelas na mão, de uma só vez.

Lelê olhou desconfiado, mas ficou atento, esperando o resto da história.

- Está vendo as estrelas lá em cima? São tão pequenininhas, não é mesmo? Pois então. Basta você olhar bem

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para elas, como se fossem grãozinhos de areia. Daí você passa a mão, assim, por todo o céu, como se

estivesse varrendo, e fecha de uma vez no fi nal! Depois, chacoalha bem e põe em cima do coração, pegando

emprestado um pouco da luz delas.

Ela deu então uma piscadela e foi se levantando para entrar em casa.

Lelê percebeu uma emoção estranha no peito, sentiu uma saudade imensa da avó, queria que ela morasse

com ele para sempre.

Desde então, sempre que tinha vontade, Lelê contava todas as estrelas do céu. E num punhado só.

Dieter Mandarin, autor deste conto, é psicanalista, professor da Faculdade Horizontes, em São Paulo, SP, e

criador do blog dietermandarin.blogspot.com.

Ilustrado por Alexandre Camanho.

Paradoxos

Patrícia Engel Secco

Ilustração: Clouds

A vida parecia cada vez mais complicada para Alberto. Não ruim, pelo contrário, mas cada vez mais difícil.

Há alguns anos, ele não tinha com o que se preocupar... Bastava se entregar aos estudos e às descobertas.

Ah! Como ele estava seguro em meio aos seres invertebrados, aos redemoinhos, às constelações, aos tubos

de ensaio e aos elementos químicos...

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A cada dia que passava, Alberto compreendia mais e mais as razões e o funcionamento de tudo no mundo.

Tudo.

A formação do Universo, estrelas anãs e gigantes brancas, buracos negros, novos planetas e até mesmo um

novo anel em algum planeta conhecido... Nada passava despercebido para Alberto, que, sem ter muito tempo

para atividades que não levassem a alguma conclusão científica, não participava dos jogos do recreio e não

usava, de maneira nenhuma, a internet para o lazer e para o diletantismo, atitude que ele considerava

simplesmente ultrajante!

Então por que dentre todos os jovens da escola justamente ele tinha sido o escolhido pela mais linda e

encantadora menina do grupo?

A vida parecia, sim, mais estranha para Alberto, que, sem entender o porquê de seu comportamento, ficou

quase duas horas tentando montar uma imagem real da atmosfera de Saturno, que, recentemente,

descobriram ser colorida devido aos gases que a compõem. Uma imagem bela o suficiente para tocar o

coração de qualquer menina!

Duas horas perdidas tentando montar uma foto enquanto o mundo científico estava em polvorosa com o

registro de uma colisão de galáxias! E ele ainda assim tinha certeza de que o tempo perdido tinha valido a

pena!

Alberto guardou com carinho a fotografia em uma pasta e seguiu o caminho da escola, pensando em uma

deliciosa frase de seu ídolo maior, Einstein, que naquele momento lhe servia de consolo: "A verdade

científica é sempre um paradoxo se julgada pela experiência cotidiana, que se agarra à aparência efêmera

das coisas".

De acordo com Einstein, são paradoxos a Terra se mover em torno do Sol e a água ser constituída por dois

gases altamente inflamáveis...

Quem sabe decifrar paradoxos tão grandes como este que ele está vivenciando: saber que tudo o que lhe

interessa na vida são as explicações científicas e que não existe explicação científica para o que mais lhe

interessa neste momento, o amor.

Conto de Patrícia Engel Secco, ilustrado por Clouds

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Perdidos na excursão

Fanny Abramovich

Ilustração: Biry

Marquito desabou na poltrona. Completamente moído. Exausto! Agarrou o telefone, ligou pro Tiagão. Dos

dois lados do fio, só queixas e reclamações. E altos xingos.

Bocas raivosas, por nada ter dado certo. Só confusão durante a excursão inteira.

Marquito relembrou a saída orgulhosa. Um final de semana ecológico-aventureiro. Certeza de voltar

triunfantes! Muito pra contar e pra exibir. Turma animada e a fim de descobrir o esconderijo-paraíso dos

micos-leões-dourados. Tiagão ouvia rindo. Logo enfezou. Lembrou da primeira desviada. Um caminho

lindo que deu numa cachoeira despencante. Puladas, procuras, nadadas, volta estropiada pra estrada

arrebentada... Depois, só mancadas... A chuva desviante da trilha. A paralisada hesitante se era pra virar à

direita ou à esquerda. Os em-frente-marche dando em barreiras fechadas, sem brecha pra passagem. As

voltas, semivoltas, voltas inteiras. A parada pra comilança quase dentro duma fazenda murada e o dono

surgindo com as armas em punho... Horror total!!

Marquito parou de sorrir. Partiu pros desabafos gritados. A armação das tendas no escuro e a descoberta

rápida de o lindo lugar estar cercado de cobras... Berros desesperados! O dar de cara com uma margem do

rio sem nenhuma ponte para cruzar... O medaço de se afogar atravessando a pé.

Tiagão espirrou. Gripou bravo. Desligou avisando que foi a primeira e última excursão ecológica. Pra ele,

fim de papo. Marquito resmungou enfezado. Jurou jurado. Outra, só sabendo antes por onde ia pisar.

Chegava de perder tempo, perder a paciência, perder o ânimo.

Conto de Fanny Abramovich, ilustrado por Biry

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Pontos de vista

João Anzanello Carrascoza

Ilustração: Biry

Os sinais de pontuação estavam quietos dentro do livro de Português quando estourou a discussão.

- Esta história já começou com um erro - disse a Vírgula.

- Ora, por quê? - perguntou o Ponto de Interrogação.

- Deveriam me colocar antes da palavra "quando" - respondeu a Vírgula.

- Concordo! - disse o Ponto de Exclamação. - O certo seria: "Os sinais de pontuação estavam quietos dentro

do livro de Português, quando estourou a discussão".

- Viram como eu sou importante? - disse a Vírgula.

- E eu também - comentou o Travessão. - Eu logo apareci para o leitor saber que você estava falando.

- E nós? - protestaram as Aspas. - Somos tão importantes quanto vocês. Tanto que, para chamar a atenção, já

nos puseram duas vezes neste diálogo.

- O mesmo digo eu - comentou o Dois Pontos. - Apareço sempre antes das Aspas e do Travessão.

- Estamos todos a serviço da boa escrita! - disse o Ponto de Exclamação. - Nossa missão é dar clareza aos

textos. Se não nos colocarem corretamente, vira uma confusão como agora!

- Às vezes podemos alterar todo o sentido de uma frase - disseram as Reticências. - Ou dar margem para

outras interpretações...

- É verdade - disse o Ponto. - Uma pontuação errada muda tudo.

- Se eu aparecer depois da frase "a guerra começou" - disse o Ponto de Interrogação - é apenas uma

pergunta, certo?

- Mas se eu aparecer no seu lugar - disse o Ponto de Exclamação - é uma certeza: "A guerra começou!"

- Olha nós aí de novo - disseram as Aspas.

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- Pois eu estou presente desde o comecinho - disse o Travessão.

- Tem hora em que, para evitar conflitos, não basta um Ponto, nem uma Vírgula, é preciso os dois - disse o

Ponto e Vírgula. - E aí entro eu.

- O melhor mesmo é nos chamarem para trazer paz - disse a Vírgula.

- Então, que nos usem direito! - disse o Ponto Final. E pôs fim à discussão.

Conto de João Anzanello Carrascoza, ilustrado por Biry

Recado de fantasma

Flavia Muniz

Ilustração: Rogério Nunes

Tudo começou quando nos mudamos para aquela casa. Era um antigo sobrado, com

uma grande varanda envidraçada e um jardim. Eu me sentia tão feliz em morar num lugar espaçoso como

aquele, que nem dei atenção aos comentários dos vizinhos, com quem fui fazendo amizade. Eles diziam que

a casa era mal-assombrada. Alguns afirmavam ouvir alguém cantando por lá às sextas-feiras.

- Deve ser coisa de fantasma! - falavam.

- Se existe, nunca vi! - E então contava a eles que as casas antigas, como aquela, com revestimentos e

assoalho de madeira, estalam por causa das mudanças de temperatura. Isso é um fenômeno natural,

conforme meu pai havia me explicado. Mas meus amigos não se convenciam facilmente. Apostavam que

mais dia menos dia eu levaria o maior susto.

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Certa noite, três anos atrás, aconteceu algo impressionante. Meus pais haviam saído e eu fiquei em casa com

minha irmã, Beth. Depois do jantar, fui para o quarto montar um quebra-cabeça de 500 peças, desses bem

difíceis. Faltava um quarto para a meia-noite. Eu andava à procura de uma peça para terminar a metade do

cenário quando senti um ar gelado bem perto de mim. As peças espalhadas pelo chão começaram a tremer.

Vi, arrepiado, cinco delas flutuarem e depois se encaixarem bem no lugar certo. Fiquei tão assustado que

nem consegui me mexer. Só quando tive a impressão de ouvir passos se afastando é que pude gritar e sair

correndo escada abaixo. Minha irmã tentou me acalmar, dizendo que tudo não passava de imaginação, mas

eu insisti e implorei que ela viesse até o quarto comigo. Uma segunda surpresa me esperava: o quebra-

cabeça estava montado, formando a imagem de uma casa com um jardim bem florido. No entanto, meu jogo

formava o cenário de uma guerra espacial, eu tinha certeza!

No dia seguinte, fui até a biblioteca pesquisar o tema. Eu e Beth encontramos dúzias de livros que tratavam

de fatos extraordinários e aparições. E a explicação para eventos desse tipo foi a seguinte:

------------------------------------ -----------------------------

*

-----------------------------------------------------------------

Hoje minha casa tem o jardim mais bonito da rua. Centenas de lindas margaridas brancas florescem a maior

parte do ano (para total espanto da vizinhança). O fantasma? Nunca mais vi. Decerto passeia feliz pelo

jardim, nas noites de lua cheia.

*Espaço reservado para a imaginação da turminha

Conto de Flavia Muniz, ilustrado por Rogério Nunes

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Rota de colisão

Tatiana Belinky

Ilustração: Odilon Moraes

Naquela sexta-feira 13, à meia-noite, teria lugar a 13ª Convenção Internacional das Bruxas, numa ilha super-

remota no Centro do Umbigo do Mundo, muito, muito longe.

Os preparativos para a grande reunião iam adiantados. A maioria das bruxas participantes já se encontrava

no local - cada qual mais feia e assustadora que a outra, representando seu país de origem. Todas estavam

muito alvoroçadas, ou quase todas, porque ainda faltavam duas, das mais prestigiadas: a Witch inglesa e a

Baba-Yagá russa.

Estavam atrasadas de tanto se enfeiarem para o evento. Quando se deram conta da demora, alarmadíssimas,

dispararam a toda, cada uma em seu veículo particular, para o distante conclave. A noite era tempestuosa,

escura como breu, com raios e trovões em festival desenfreado.

Naquela pressa toda, à luz instantânea de formidável relâmpago, as bruxas afobadas perceberam de súbito

que estavam em rota de colisão, em perigo iminente de se chocarem em pleno vôo! Um impacto que seria

pior do que a erupção de 13 vulcões! E então, na última fração de segundo antes da batida fatal, as duas

frearam violentamente seus veículos! Mas tão de repente que a possante vassoura de Witch se assustou e

empinou como um cavalo xucro, quase derrubando sua dona. Enquanto isso, a Baba-Yagá conseguiu desviar

seu famoso pilão para um vôo rasante, por pouco não raspando o chão!

Mal refeitas do susto, as duas "pilotas" bruxais se encararam raivosas:

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- Bruaca irresponsável! Quase causas um estrago com o excesso de velocidade da tua estúpida vassoura!

- Estúpido é o teu tosco pilão "trambolhudo", incompetente!

E o bate-boca já ia esquentar perigosamente quando um morcego notívago guinchou, irônico:

- Cuidado, gracinhas desastradas! Vão perder a hora! E será bem feito. Voar no escuro é coisa de morcego,

não de bruxas bobas em seus veículos rústicos, e ainda por cima, sem radar!

As bruxas caíram em si e, esquecendo a briga, saíram chispando, agora na mesma direção.

Foram para o local do grande conclave, onde conseguiram aterrissar em cimíssima da última hora, tendo

apenas de agüentar uma humilhante e rápida repreensão - só com o rabo em ponta de flecha - do Demônio

Chifrudo, presidente do evento.

E a Convenção Internacional das Bruxas começou sem atraso, superagitada, cheia de som e de fúria, para

show de rock nenhum botar defeito.

E terminou em... Mas não dá para relatar como terminou - porque nenhuma das participantes concordou em

conceder entrevista a esta repórter especial, Anaitat Yknileb.

Conto de Tatiana Belinky, ilustrado por Odilon Moraes

Se assim é, assim será?

Silvinha Meirelles

Ilustração: Ana Raquel

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Tudo era bem normal lá em Santantônio da Lamparina.

As crianças iam para a escola enquanto os pais trabalhavam. Todos riam, se divertiam e às vezes ficavam

bem tristes também. Tomavam banho, soltavam pum e tinham coceira no pé, como toda gente em qualquer

parte.

Só tinha um detalhe, mínimo, insignificante, que deixava tudo com cara de esquisito e diferente: lá, o dia era

escuro como a noite, e quando era noite era noite também.

Os moradores estavam acostumados. Viviam à sombra da Lua, estudavam à luz de abajur, sabiam

brincadeiras de escuro: gato-mia, cabra-cega, detetive...

Os mais velhos diziam que lá sempre foi assim e que, se é assim, assim será até o fim. Sentiam-se cansados

de imaginar como seria viver num lugar claro e diferente. Os mais jovens sonhavam e diziam que conhecer

o Sol era o maior desejo que tinham no mundo, no universo. Um desejo infinito.

Por que ninguém pensava em se mudar dali? Porque lá havia o mais lindo luar e o mais delicioso banho de

mar e um povo com um sonho em comum. Às vezes, coisas assim são suficientes para nos fazer ficar.

Num dia noite, chegou um, chegaram dois e mais três ou cinco equilibristas. Era uma família de artistas!

Enquanto uns tocavam, os outros faziam lances incríveis, coisa de especialista!

Há muito tempo o vilarejo não recebia visita tão animada. Os equilibristas estavam acostumados a se

apresentar até o Sol raiar e estranharam: já se sentiam cansados e nada de o dia clarear.

- O Sol não vai aparecer?

E foi assim que souberam que em Santantônio da Lamparina o dia era tão escuro como a noite e que já

estavam acordados fazia dois dias e meio.

- Daí o nome da cidade?

- Daí o nome.

- Mas por que é assim?

- Diz meu avô que o avô dele dizia que o seu tataravô ensinou que é assim porque sempre foi assim e assim

será até o fim!

Os artistas acharam aquela explicação meio fraquinha, de quem já cansou de procurar solução. Avisaram

que por cinco dias escuros e quatro noites noites treinariam um novo número exclusivo e então voltariam

para o espetáculo de despedida!

Voltaram.

Voltaram com o número mais arriscado e sensacional de equilíbrio, coragem e precisão já visto em toda a

história da humanidade!

Precisaram de muita concentração. Foram subindo, um sobre o outro e sobre o outro e sobre o outro e sobre

outro ainda... Até que o menino equilibrista mais levinho e muito craque, com o braço bem esticado, atingiu

o céu. Com a ponta do dedo fez um picote. Um pequeno rasgo no céu, por onde passou um facho de luz.

Era mínimo, mas suficiente para iluminar de alegria e expectativa cada santantonio-lamparinense. Podiam

saber como era o Sol, a luz e o calor que vinham do céu.

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Devagar o rasgo foi aumentando, sozinho, como furo de meia velha, que vai crescendo até virar um rombo...

E um dia, Santantônio da Lamparina amanheceu toda e completamente iluminada! Os moradores, que nem

tinham venezianas e cortinas, acordaram sobressaltados com tanta luz.

Festejaram até o Sol raiar outra vez.

Até hoje, não se cansam de ver o Sol nascer e depois o Sol se pôr e de novo o Sol nascer e mais uma vez o

Sol se pôr. Acham graça, agradecidos.

Conto de Silvinha Meirelles, ilustrado por Ana Raquel

Se a terra não existisse, a gente pisava onde?

Ricardo Azevedo

Tênis é de lona e

borracha. Cueca é de

pano e elástico.

Caderno é de arame e

folha de papel.

Televisão é de plástico

com uma antena em

cima e uma tela na

frente.

Casa é feita de telhado,

parede, piso, porta e

janela. Vaca é de couro,

chifre e quatro tetas

pingando leite. Cachorro é um ônibus peludo cheio de pulgas. Ser humano é feito de carne, osso, coração e

idéias na cabeça.

E o mundo em que vivemos?

O mundo é um monte de terra cercada de água por todos os lados.

A água é o mar, o rio, o lago, a chuva, a poça, a lágrima e o cuspe.

A terra é a terra mesmo.

Tem gente que pensa que terra só serve para cavar buraco no chão, para ser hotel de minhoca, para enfiar

poste de luz ou então para sujar o pé de lama em dia de chuva, mas não é nada disso.

Se não fosse a terra, a gente pisava onde?

Se não fosse a terra, a gente construía nossa casa onde?

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E as cidades? E as estradas? E os campinhos de futebol?

Sem a terra a gente não ia jogar bola nunca mais!

Uma vez eu tive um sonho. Sonhei que estava dormindo com vontade de fazer xixi. Continuei sonhando e

pulei da cama. Pobre de mim! Quando pisei no chão, descobri que naquele sonho não existia chão. Lá fui eu

caindo, despencando, voando, esvoaçando. O mundo ali era um lugar sem terra, por isso tudo vivia boiando

no ar. Saí do quarto, fui voejando, passei pela sala cheia de cadeiras, móveis e mesas voando e cheguei no

banheiro. Lá dentro, o chuveiro, a pia e a privada pareciam umas coisas brancas flutuando no espaço. Fui

tentar fazer xixi, mas a privada não parava quieta. A vontade apertava cada vez mais. Tentei fazer pontaria,

caprichei na mira, mas não deu. No fim, o sonho acabou. Acordei todo molhado com meu irmão, lá

embaixo, gritando socorro. Acontece que a gente dorme em cama beliche, eu em cima e ele embaixo.

Meu irmão me xingou de tudo quanto foi nome. Expliquei a ele que se não fosse a terra firme o beliche

estaria voando e aí, sim, ia ser muito pior.

Pensando bem, a terra é a coisa mais importante do mundo em que vivemos. Ela é o solo, o chão, a gleba, o

piso, o porto, o lugar onde a gente fica em pé e constrói a vida.

Para falar a verdade, a terra é uma espécie de mãe. A mãe de todos nós.

De onde vêm as árvores para dar sombra e segurança? Da terra.

De onde vêm as frutas para a gente chupar? Da terra.

De onde vem a nascente do rio? E a flor? E o passarinho? E a onça? E a tartaruga? E a borboleta? E o

macaco? E o besourinho? E todos os bichos do mundo inteiro menos os peixes e as estrelas-do-mar?

Sem a terra, não ia ter nem milho, laranja, caqui, jabuticaba, banana, pêra, uva, cacau, pitanga, mexerica,

romã, maçã, abacate, melancia, abacaxi, nem amendoim nem nada.

O mundo ia ser só um monte de coisa nenhuma cercado de água para todos os lados.

Mas a terra tem seus truques. Ela não gosta de ser maltratada, não senhor!

Quando fazem queimadas ou destroem o mato ou enchem o chão de lixo e porcaria a terra fica triste vira

deserto, corpo árido, seco, estéril, que não dá mais nada.

Ela, que era generosa, formosa, úmida, florida, risonha, fofa, macia, fértil, cheia de sombra, cheia de

perfume, cheia de riachinhos, borboletas, besourinhos, bichinhos e bichões, de repente fica tão dura e

rachada que só consegue inventar pó, areia e desolação.

Se a terra fosse um deserto ia ter chão, mas como a gente ia ficar?

Conto de Ricardo Azevedo, (extraído do livro Você Me Chamou de Feio, Sou Feio mas Sou Dengoso,

publicado pela Fundação Cargill), ilustrado por Roger Mello

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Sebastião e Danilo

Enquanto no resto do mundo os sapos comiam os grilos e os grilos fugiam dos sapos, os dois viviam muito

bem, obrigado, e eram felizes.

A verdade é que Sebastião e Danilo eram amigos com muitas coisas em comum. Os dois eram verdes. Os

dois viviam saltando. Os dois adoravam plantas de folhas largas. Os dois viviam na beira da mesma lagoa.

Os dois adoravam cantar à noite.

Aliás, foi essa história de soltar a voz que fez os dois ficarem famosos.

Em noite de lua clara, vinha a bicharada toda para ouvir a cantoria. A coruja lá no alto da árvore, os

peixinhos dentro da lagoa. Os bois bem grandes e fortes, os mosquitinhos pequenininhos. A lesma bem

devagar e os coelhinhos correndo, correndo.

Só que o sucesso era tanto que logo começou a confusão. Teve uma noite em que as libélulas, apaixonadas

pelo grilo, começaram a gritar: "Danilo! Danilo! Danilo!"

Os jacarés, que eram fãs do sapo, ficaram com muita raiva daquilo e logo puxaram o coro: "Sebastião!

Sebastião! Sebastião!"

A coisa foi esquentando e logo os bichos estavam divididos. Meio a meio, um tanto de cada lado. De uma

hora pra outra começou a briga.

Era pena voando daqui, água espirrando dali, miados, mugidos, piados, latidos, rosnados, tudo numa

bagunça tão grande que ninguém escutava mais a música.

No meio daquilo tudo, Sebastião e Danilo saíram de mansinho e nunca mais voltaram àquela lagoa, para a

tristeza da bicharada.

Mas se você for com cuidado, sem fazer nenhum barulho, em um certo brejo não muito longe dali, vai ouvir

bem baixinho, quase um sussurro, a música mais bonita daquela região. Sem público, nem confusão, os dois

continuam juntos, amigos, uma dupla de verdade. Cantando sempre, só mesmo porque cantar é muito bom.

Maurilo Andreas,

autor deste conto, é redator publicitário e criador do blog Pastelzinho.

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Sobrou pra mim

Ilustração: Suppa

Quando eu tinha uns 8 anos, mais ou menos, eu morava com minha avó e com a irmã dela, tia Emília. Nossa

rua era sossegada, quase não passava carro nem caminhão.

Eu ia à escola de manhã e de tarde eu fazia minhas lições e ia pra rua brincar com meus amigos.

Às cinco e meia em ponto minha avó me chamava para tomar banho e rezar, minha avó e minha tia rezavam

todas as tardes às seis horas.

Depois do jantar ficávamos na sala, eu, lendo, minha avó e minha tia bordando ou costurando.

Televisão a gente só via uma vez ou outra. Minha avó me deixava ver jogos de futebol ou basquete, mas

tinha horror a novelas e a programas de auditório. Era chato de matar!

A luz era muito pouca, que a minha avó tinha mania de fazer economia, ela dizia que não era sócia da Light.

Então eu cansava de ler e ficava inventando outras coisas pra fazer. Eu ficava desenhando, ficava enchendo

os ós do jornal, brincava com as minhas joaninhas…

Uma vez eu amarrei um fio de linha na perna de um besouro e quando ele voou, com o fio pendurado, minha

tia levou o maior susto.

Uma outra vez, eu inventei uma coisa legal! Enquanto minha avó e minha tia ficavam rezando, às seis horas,

eu amarrei um fio de linha na perna da cadeira de balanço. Depois do jantar nós fomos para a sala. Então, de

vez em quando, eu puxava o fio e a cadeira dava uma balançadinha.

No começo elas não viram nada. Até que tia Emília, muito assustada, chamou a atenção da vovó.

- Ó, Amélia - minha avó se chamava Amélia - Ó, Amélia, você não viu a cadeira balançar?

Minha avó não ligou muito. Mas tia Emília ficou de olho. Daí a pouco ela cutucou minha avó:

- Olha só, Amélia, ainda está balançando. Minha avó olhou e ficou desconfiada.

As duas se olharam e fizeram sinais para não assustar o menino…

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Naquele dia, eu não mexi mais na cadeira. Mas no dia seguinte, eu fiz tudo de novo, só a minha tia é que viu

a cadeira balançar. Ela estava apavorada!

Então eu deixei passar uns dois dias e de novo dei uma balançadinha na cadeira. E dessa vez as duas velhas

viram! Gente, que susto que elas tomaram! Me agarraram pela mão e correram para o oratório para rezar.

Até aí eu estava me divertindo! Mas o que eu não podia imaginar é que no dia seguinte, na hora em que eu

costumava ir para a rua brincar, minha avó me chamou, me mandou tomar banho, me vestir e me levou para

a igreja.

Nove segundas-feiras eu tive que ir à igreja com minha vó e minha tia para rezar pelas almas do purgatório!

Conto de Ruth Rocha, ilustrado por Suppa

Sonhos

Edith Modesto

Ilustração: Renato Mariconi

Finalmente os computadores chegaram à escola. Os alunos olhavam para eles com orgulho,

curiosidade e respeito.

Naquela noite, Marilena foi dormir feliz. Muito romântica, sonhava com um príncipe encantado e, para ela,

o computador era como um super-herói. Acreditava que ele transformaria sua vida.

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"Mas como? Não entendo nada de computação..." — pensou, insegura. E, para espantar a preocupação,

virou-se na cama.

De repente, ouviu um ruído estranho. Olhou para o canto do quarto e... iluminado por uma luz azulada, lá

estava ele: o computador. Intrigada, a menina levantouse, aproximou-se, pé ante pé, e qual não foi seu

espanto quando surgiu na tela do monitor um jovem simpático

que foi se apresentando:

— Oi, Marilena! Prazer, eu sou o S.O.

— Oi! - respondeu ela, bastante surpresa. E pensou: "S.O.? Só espero que não seja de Serapiano

Osmundo..."

Como se tivesse adivinhado, o rapaz explicou:

— S.O., de "Sistema Operacional", viu? E foi você mesma quem me escolheu...

Sorrindo ao perceber o olhar de espanto da garota, S.O. completou: - ...para coordenar os trabalhos aqui.

A menina sorriu encabulada e tentou fingir que sabia da existência de outros "sistemas operacionais" e da

possibilidade de escolher entre eles. Depois, resolveu confessar:

— É, é... que eu nunca tive um - gaguejou ela.

E comentou, preocupada:

— Computador... parece só para homem...

Aí foi a vez de S.O. ficar admirado:

— Para homem? Você nunca ouviu falar de Ada Lovelace?

Em meados do século 19, Ada criou o primeiro programa de computador. Ela foi a primeira programadora

do mundo!

— Nessa época já existia computador? - perguntou a menina, surpresa.

— Bem, computador, computador... - hesitou ele. - Os programas de Ada eram pra ser usados num avô dos

micros... um precursor do computador, planejado por Charles Babbage, um matemático e cientista meio

maluco.

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E o rapaz acrescentou com um olhar sedutor:

— Dizem que eles eram apaixonados.

Para Marilena, descortinaram-se novas perspectivas.

E ela sorriu.

Conto de Edith Modesto, ilustrado por Renato Mariconi

Tadeu X Maria Angélica

José Roberto Torero

Ilustração: Fido Nesti

À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de

viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais.

No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava

as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas

talvez isso só acontecesse porque, na verdade, os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras.

Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram

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contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças.

As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio. Tadeu comprou um uniforme azul e

amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca.

Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus

times acertavam um lance, nem zombar do outro quando a equipe adversária cometia algum erro.

O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu

marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: "Gooooooooool!"

E assim mesmo, com dez letras "o".

Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava "Ê, ô, ê, ô, o

meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor".

Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou:

- Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho!

- Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo?

- E do casamento. Você pisou na bola!

- Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola.

- Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio!

- Calma, eu não quero tirar o time de campo. Vamos tentar um segundo tempo...

- Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti. Pode ir para o chuveiro!

- Quem sabe uma prorrogação?

- Não. Fim de jogo.

Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse:

- Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me

deixa muito triste porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que

eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento... Eu jogava por

amor...

Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem.

Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo.

Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: "Ê, ô, ê, ô, nosso amor é

um terror!"

- Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e

viveram felizes para sempre.

Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.

Conto de José Roberto Torero, ilustrado por Fido Nesti

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Traços Traçados

Januária Cristina Alves

Ilustração: Rubens LP.

Era uma vez um traço. E era uma outra vez outro traço.

Os dois foram traçados por um menino que gostava muito de desenhar trecos com muitas tramas.

A transação dos traços deu uma trança.

E essa trança, trançada com outros tantos traços, deu 'trocentos' troços traçados!

"Trocentos troços traçados fazem muitas trocas", ele pensou, já tonto com tantos tês e 'trs'.

Então, no meio de tantos traços e tantas letras, sem travas nem trapaças, o menino fez uma descoberta

transcendental!

Foi assim, entre traços entrelaçados e letras tresloucadas, que ele descobriu que é assim que se fazem...

Os livros.

Januária Cristina Alves, é jornalista e consultora em Comunicação e Educação. Escreveu este conto em

parceria com o filho André Bollos, 7 anos.

Um Dia e Tanto

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Paulinho levou um susto. Quase deu um pulo da cama. Diante dele estava um cavaleiro medieval. Armadura

reluzente, espada em punho e um grande escudo.

Esfregou os olhos para ter certeza e foi puxado pelo braço.

- Vamos! Não temos muito tempo. Há dragões em toda parte! Preciso da sua ajuda.

- Mas quem é você?

- Sou o Rei Artur. Rápido, os dragões vêm logo ali!

- Na sala?

- Proteja-se, cavaleiro! Aqui, atrás desse esconderijo secreto.

- Mas isso é o sofá.

Paulinho e Artur esperaram a passagem dos dragões. Quando tudo parecia tranqüilo, ouviram tiros. Um

vaqueiro típico do Velho Oeste salta para trás do sofá.

- Olá, desculpem invadir o esconderijo de vocês, senhores. Sou Billy e fujo de bandidos malvados,

assaltantes de banco, ladrões de gado.

- Tenha calma, nobre fidalgo. Eu sou Artur e estamos seguros com a liderança de Sir Paulinho, cavaleiro da

Távola Redonda.

- A seu dispor, xerife Paulinho.

Após alguns momentos, os três espiaram do lado de fora e os perigos já haviam passado. Saíram do

esconderijo quando explodiu o primeiro tiro de canhão.

- Essa não! Piratas! - disse Paulinho - Fujam, marujos! Vamos para o meu barco. Ele está logo ali, no rio

Amazonas.

Desceram o rio em meio a botos-cor-de-rosa, grandes macacos que pulavam de galho em galho, sucuris do

tamanho do barco e animais de todas as espécies. Desceram em terra firme para reconhecer o terreno.

- Dinossauros! Corram! Dois tiranossauros iam em direção aos nossos heróis. De repente, um raio atingiu os

três e os levou a uma nave espacial.

- Seja bem-vindo, comandante Paulinho. Nossa nave está em missão de defesa da Terra e só um ótimo piloto

como você pode nos ajudar - disse um dos tripulantes. E continuou:

- Estamos cercados por discos voadores, comandante. O senhor precisa nos tirar daqui!

Paulinho assumiu o comando.

- Ativar velocidade da luz, manobra de fuga evasiva, manter escudo de proteção, aumentar campo de força...

Nesse ponto, fechou o livro. No dia seguinte ia continuar a leitura, seu passatempo preferido.

Quem é quem

Carlos Fialho, autor deste conto, é jornalista, publicitário e mora em Natal. Junto com outros escritores,

mantém o site www.jovensescribas.com.br Walter Vasconcelos, que ilustrou estas páginas, é de Olinda e

mora no Rio Janeiro. Seus trabalhos podem ser conferidos em www.illoz.com/vasconcelos

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Um encontro fantástico

Ilustração: Ivan Zigg

Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram

criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque

pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e

acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das

folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um

cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.

- Só falta o Boto - disse o Saci, impaciente.

- Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la - comentou a Serpente Emplumada.

- Também acho - concordou o Lobisomem. - Só que eu já a teria apavorado.

Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.

- Agora estamos todos - disse o Negrinho do Pastoreio.

- E então? - perguntou o Boto, saudando o grupo. - Como estão as coisas?

- Difíceis - respondeu o Saci e soltou uma baforada. - Não assustei muita gente nesta temporada.

- Eu também não - emendou a Serpente Emplumada. - Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais

tanto medo de mim.

- Lá no Norte se dá o mesmo - disse o Boto. - Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas

nem ligam.

- Comigo acontece igual - disse o Negrinho do Pastoreio. - Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no

Sul. Mas não atendi muitos pedidos este ano.

- Seu caso é diferente - disse o Lobisomem. - Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente

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Emplumada. Você é um herói.

- Mas a dificuldade é a mesma - discordou o Negrinho do Pastoreio.

- Acho que é a concorrência - disse o Boto. - Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.

- Pois é - resmungou a Serpente Emplumada. - Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por

aí...

- São todos produzidos por homens de negócios - disse o Saci. - É moda. Vai passar...

- Espero - disse o Lobisomem. - Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.

- A diferença é que somos autênticos - disse o Negrinho do Pastoreio. - Nós nascemos do povo.

- É verdade - disse o Boto. - Mas temos de refrescar a sua memória.

- Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar - disse a Serpente Emplumada.

- Eu conheço um - disse o Saci. - Vamos juntos atrás dele! - E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em

uma perna só.

Conto de João Anzanello Carrascoza, ilustrado por Ivan Zigg

Voltando da escola pra casa

Ricardo Azevedo

Ilustração: Paladino

O menino estava voltando a pé da escola. A vida para ele parecia uma coisa sempre igual. Chegar em casa,

comer, fazer lição, brincar, tomar banho, jantar, dormir, acordar. No dia seguinte, tudo a mesma coisa outra

vez.

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Um ruído veio de um terreno baldio. Parecia uma voz. Por entre as folhagens, o menino viu um cachorro

cobrindo o focinho com as patas. O bicho, de repente, resmungou:

- Isso não podia ter acontecido!

O cabelo do menino ficou duro feito arame. Saiu correndo, mas parou. Onde já se viu cachorro falar? Deu

risada de si mesmo. Já estava quase na 4a série. Sabia escrever, ler e fazer contas. Aquilo só podia ser

alguma confusão.

Deu meia-volta e passou de novo pelo terreno baldio. O cachorro agora estava andando de um lado para o

outro dizendo:

- Não, não e não!

Quase sem respirar, o menino chegou mais perto.

Foi quando o animal gritou:

- É a pior desgraça que podia ter acontecido em minha vida!

O menino sabia que aquilo era impossível. Mesmo assim, sentiu pena do cachorro, um bicho não muito

grande com o focinho sujo de terra.

O animal soltou um uivo tão sem esperança que o menino entrou no mato e perguntou se ele estava

precisando de alguma coisa.

Dois olhos surpresos examinaram o menino de alto a baixo. Depois, o bicho encolheu-se, escondendo o

rosto com as patas. O menino sentou-se e acariciou aquela cabeça peluda.

- Se eu contar o que acabo de descobrir hoje - disse o animal -, você não vai acreditar.

E continuou falando devagarinho:

- Faz tempo, conheci uma cachorra linda. Eu estava fazendo xixi num poste. Ela passou. Abanei o rabo. Ela

também. Foi amor à primeira vista.

O menino não conseguia piscar os olhos.

- No fim - continuou ele - a gente acabou se casando.

A cachorra era viúva e tinha uma filha já grandinha. Cuidei dela como se fosse minha própria filha. Um dia,

meu pai veio me visitar. Ele também era viúvo. Só sei que os dois gostaram um do outro, namoraram e

casaram.

O menino queria fugir e ficar.

- Do casamento de meu pai com minha filha - contou o animal - nasceu uma ninhada de três cachorrinhos

que, ao mesmo tempo, são meus netos, pois são filhos de minha filha, e meus irmãos, pois são filhos do meu

pai. Eu também tive três filhotinhos. Eles passaram a ser irmãos da minha madrasta, a filha da minha

mulher. Portanto, além de meus filhos, são meus tios.

As lágrimas esguichavam dos olhos do cachorro.

- Meu pai é casado com minha filha, ou seja, minha madrasta é também minha filha. Por outro lado, sou pai

dos irmãos do meu pai, logo, pai de meu próprio pai. E como o pai do pai de alguém é avô desse alguém… -

e aí o cachorro agitou-se -, descobri que sou avô de mim mesmo!

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O queixo do menino balançava debaixo da boca.

- É duro ser avô da gente mesmo! - exclamou o cachorro em prantos.

Abraçado com o menino, o animal chorou ainda durante um bom tempo. Depois, enxugou as lágrimas, pediu

desculpas, despediu-se e, com ar agradecido, sumiu no matagal. Naquele dia, o menino chegou em casa mais

tarde, almoçou e foi para o quarto. Deitado na cama, ficou só pensando. Como a vida pode ser uma coisa

rica, complicada, meio louca, bonita, espantosa e cheia de surpresas!

Conto de Ricardo Azevedo (extraído do livro Não Tenho Medo de Homem, nem do Ronco, publicado

pela Fundação Cargill), ilustrado por Paladino

De cima para baixo

Artur Azevedo

Ilustração Mauricio Paraguassu

Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete e imediatamente mandou chamar o diretor

geral da Secretaria.

Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua

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Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.

- Estou furioso! - exclamou o conselheiro. - Por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade

o Imperador!

- Por minha causa? - perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos.

- O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!

- Que me está dizendo, Excelentíssimo?...

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os

subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e,

depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:

- É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...

- É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de

ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu

oficial-de-gabinete!

E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:

- Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos

augustos lábios de Sua Majestade que dei a minha demissão!...

- Oh!...

- Sua Majestade não o aceitou...

- Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem.

- Não a aceitou porque me considera muito e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um

decreto mal copiado.

- Peço mil perdões a Vossa Excelência - protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra

demissão. - O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa

Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta

natureza.

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:

- Bom! Mande reformar essa porcaria!

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª

seção, que o encontrou fulo de cólera.

- Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro!

- Por minha causa?

- O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!

E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.

O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:

- Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo

tão urgente!...

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- O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a

afabilidade, mas notei que estava fora de si!

- Não era caso para tanto.

- Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que

me mandou isto na pasta!

- Eu... Vossa Senhoria...

- Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.

- Eu... Vossa Senhoria.

- Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se e mande reformar essa porcaria!

O chefe da 3ª seção retirou-se confundido e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:

- Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Diretor-geral!

- Por minha causa?

- O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do

funcionário nomeado!

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.

- Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do

regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. Diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e

consideração!

- O expediente foi tanto que não tive tempo de reler o que escrevi...

- Ainda o confessa!

- Fiei-me em que o sr. chefe passasse os olhos...

- Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...

- Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...

- Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...

O amanuense obedeceu.

Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo.

- Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!

- Por minha causa?

- Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial

que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!

- Foi porque...

- Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava

suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!

- Mas...

- Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...

O contínuo saiu dali e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.

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- Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!

- Por minha causa?

- Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste

tanto?

- Porque...

- Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? - Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao

porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!...

O preto não redargüiu.

O pobre-diabo não tinha ninguém abaixo de si em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo;

entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu

um tremendo pontapé no seu cão.

O mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boasvindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe

humildemente os pés.

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo

ministro!...

Dois velhinhos

Dalton Trevisan

Ilustração Omar Grassetti

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Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um consegue espiar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz.

Com inveja, pergunta o que acontece. Deslumbrado, anuncia o primeiro:

- Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde:

- Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda:

- Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto. O mais velho acaba morrendo, para alegria do segundo,

instalado afinal debaixo da janela.

Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse tempo o circo mágico do

cachorro, da menina, do enterro de rico.

Cochila um instante - é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço: no beco, muros em ruína, um

monte de lixo.

Conto publicado no livro Mistérios de Curitiba, Ed. Record

Restos do carnaval, de Clarice Lispector

Clarice Lispector

Ilustração Ana Raquel

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as

quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra

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beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao

carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima

que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as

ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim

cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam

fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do

sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e

economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se

tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me

agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina

feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais

profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de

escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo

interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até

meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para

carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me

causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por

ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia

esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também

ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me

fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e

o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa,

com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à

fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu

pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha

amiga - talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade,

já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material.

Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu

mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente,

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minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a

fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma chuva que de repente

nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de

vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa

das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho, que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o

destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo

no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos

não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar

o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer

entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel

crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito

piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um

remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que

cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas,

confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma

coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e

desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina.

Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha

fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de

minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar.

Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de

mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de

confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos,

considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Conto publicado no livro Felicidade Clandestina, Ed. Rocco

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Uma galinha

Clarice Lispector

Ilustração Ana Raquel

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém

olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam

dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances,

alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve

estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno

deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o

almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer

esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o

itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com

urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um

quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma

os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por

mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

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Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava

ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer

por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que

fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela

própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que

morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi

presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com

certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que

aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas

logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e

assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava

e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e

assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e

saiu aos gritos:

- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não

era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum

sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento

qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

- Eu também! - jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do

colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se

lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos,

menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de

apatia e a do sobressalto.

Mas, quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem,

resquícios da grande fuga - e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num

campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já

mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira

do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse

dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a

expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era

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uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

Conto publicado no livro Laços de Família, Ed. Rocco

Uma vela para Dario

Dalton Trevisan

Ilustração Omar Grassetti

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até

parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na

pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve

resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.

Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos

outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram

os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.

Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma

porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada,

soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guardachuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou

cachimbo a seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no

carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância.

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Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do

quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem

o rosto, sem que façam um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as

delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados

sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra

cidade.

Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia.

O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança

de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o

rabecão.

A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para

morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue

fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do

café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos

anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na

pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta

a cair.

Conto publicado no livro 33 Contos Escolhidos, Ed. Record

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CRÔNICAS

A Professora de Desenho

Marcelo Coelho

Ilustração: Luiz Maia.

Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma chatice. Essa história de aprender

tabuada, fazer prova, lição de casa... eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe coisa

melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam revistinhas. Chocolates. Televisão no

quarto. Era ótimo.

Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Essas eram legais.

Toda sexta-feira, depois do recreio, a dona Marisa (naquele tempo a gente não chamava a professora de

"tia", nem usava só o nome dela, sem nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona

Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia.

A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo e se pintava feito louca. Batom. Sombra azul nos

olhos. Meio perua. Eu não gostava da dona Marisa.

Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e

compridos.

A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não tinham linhas, só folhas de papel em

branco, para a gente fazer o que quisesse. Podia. Dona Andréia deixava.

Ela era linda.

Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter aula de

desenho.

Por que será que ela estava atrasada?

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Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez a dona Andréia tivesse brigado com o

namorado. Pode ser que o diretor da escola tivesse dado uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente

na família.

Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho.

Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes.

Não foi só contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão.

Ela entrou na classe.

Alguém gritou:

- É a Andréia!

Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas àquela altura ninguém estava ligando.

Todo mundo começou a gritar:

- É a Andréia! É a Andréia!

O berreiro foi ganhando ritmo. Como se fosse torcida de futebol.

- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!

Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock.

- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!

Ela começou ficando alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo.

- AN-DRÉ-IA!

Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça.

- AN-DRÉ-IA!

Foi então que eu vi. Ela começou a chorar.

E saiu da sala.

Na hora, não entendi.

Fiquei pensando.

Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela.

E, às vezes, muito amor assusta as pessoas.

Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona Andréia", e não dissemos. Era meio

chocante só dizer "Andréia", como se ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada.

Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste com o namorado, ou com alguma

doença da família, e toda aquela alegria da gente atrapalhando os sentimentos dela.

A Andréia nunca mais voltou.

As aulas de desenho acabaram. Comecei a perceber uma coisa.

É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente

começa a gritar:

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- Andréia! Andréia!

E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche.

Ouça este conselho.

Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo. Não fique gritando "Andréia!

Andréia!". Finja que você só está achando a pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo.

Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma mordidinha. Mas não enfia o nariz e a

boca na massa de morango. Senão, vão achar que a gente é idiota.

As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia, que ela foi embora. Se a gente fosse mais esperto

fingia que não gostava tanto.

Crônica para dona Nicota

Tatiana Belinky

Ilustração: Cris e Jean

Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de

idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional

Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um

tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar "abandonado" num lugar estranho, no

meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê- lo aceitar

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tão insólita situação. Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, "fincava o pé", sem chorar

mas também sem ceder... Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona

Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o

timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não

jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A

tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e - ora vejam! - ele respondeu com um sorriso ao sorriso da

dona Nicota!

- Vem ficar aqui comigo - ela disse. - Você vai gostar. - E acrescentou, para minha surpresa, - Eu mesma

vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo.

Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu. E durante vários

dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela

mão, a pé, até a escola e a sua sala. E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o

menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma "aula particular", em casa —

para ele não se atrasar no programa. Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do

mundo...

O Ricardinho adorava a dona Nicota - e não era para menos. Dona Nicota era a mais perfeita e linda

encarnação da "professora primária" ideal - a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a

preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real - com competência, dedicação,

compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para

o futuro cidadão.

Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje? Porque, no Dia do Professor, eu senti que não poderia

prestar maior homenagem a todos os "mestres-escolas" do Brasil do que incluí-los nesta "crônica-tributo" a

dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora "montessoriana" e um grande

ser humano.

Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo. E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô

de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão.

Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu.

Crônica de Tatiana Belinky, ilustrada por Cris e Jean

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Escorrendo

Aos 5 anos de idade o mundo é esmagadoramente mais forte do que a gente. (Aos 30 também, mas

aprendemos umas manhas que, se não anulam a desproporção, ao menos disfarçam nossa pequenez.)

A ignorância não é uma bênção, é uma condenação: compreender a origem dos nossos incômodos faz uma

grande diferença. Mas como, com tão poucas palavras ao nosso dispor? Palavras são ferramentas que

usamos para desmontar o mundo e remontá-lo dentro da nossa cabeça. Sem as ferramentas precisas, ficamos

a espanar parafusos com pontas de facas, a destruir porcas com alicates.

Com 2 anos, meu nariz escorria sem parar na sala de aula. Eu não sabia assoar, nem sequer sabia que existia

isso: assoar. Apenas enxugava o que descia na manga do uniforme, conformado, até ficar com o nariz

assado.

Lembro-me bem da sensação da meia sendo comida pela galocha enquanto eu andava. A cada passo, ela ia

se engruvinhando mais e mais na frente do pé, faltando no calcanhar, e eu aceitava o infortúnio como se

fosse uma praga rogada pelos deuses, uma sina. Não passava pela minha cabeça trocar de meia, desistir da

galocha, pedir ajuda aos adultos: a vida era assim, não havia o que fazer.

Numas férias, meu pai apareceu antes do combinado para pegar minha irmã e eu na casa dos meus avós.

Durante 400 quilômetros, falou que existiam pessoas boas e pessoas más, que aconteciam coisas que a gente

não conseguia entender, que mesmo as pessoas más podiam fazer coisas boas e as pessoas boas, coisas más.

Já quase chegando a São Paulo, contou que nosso vizinho, de 6 anos, tinha levado um tiro.

Naquela noite, enquanto as crianças da rua brincavam - mais quietas do que o habitual, sob um véu

inominável -, um dos garotos disse: "Bem-feito! Ele é muito chato".

Hoje, penso que pode ter sido sua maneira de lidar com uma realidade esmagadoramente

mais forte do que ele.

Meu vizinho, felizmente, sobreviveu. Nossa ingenuidade é que não: ficou ali, estirada entre amendoeiras e

paralelepípedos, sendo iluminada pela lâmpada intermitente de mercúrio, depois que todas as crianças

voltaram para suas casas.

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Quem é quem

Antonio Prata, autor desta crônica, também escreveu o livro O Inferno Atrás da Pia.

Thais Beltrame, autora desta ilustração, é ilustradora e artista plástica.

O dia em que a caça consolou o caçador no Pacaembu

Dois alvinegros, Santos e Botafogo, faziam os grandes jogos dos anos 60. Pelé x Garrincha, fora outros

gigantes dos dois timaços.

Num desses jogos, em São Paulo, os cariocas fizeram uma exibição inesquecível e, estranhamente, pouco

badalada nos embates entre os dois melhores times do país naquela época. Aliás, sempre que se fazem

referências aos jogos entre Botafogo e Santos daqueles tempos, só são lembradas as vitórias santistas, as

goleadas de Pelé & Cia. Pois o Pacaembu estava lotado para ver mais uma.

Pelé e Mané estavam em campo, mas o diabo estava era no corpo que vestia a camisa sete, não a dez. O

lateral-esquerdo Dalmo, do Santos, viveu uma tarde de terror. Garrincha pegava a bola e, andando, levava

Dalmo até dentro da grande área, onde o zagueiro não podia fazer falta.

O Pacaembu não acreditava no que via: um ponta andar desde a intermediária até a área sem que o lateral

tentasse tirar a bola, temeroso do drible desmoralizante. Até que Dalmo percebeu que tinha virado motivo de

chacota dos torcedores, muitos dos quais nem santistas eram, mas que iam ao campo na certeza do

espetáculo.

E Dalmo resolveu bater antes de chegar à grande área. Bateu uma vez, Garrincha caiu, o árbitro marcou a

falta e repreendeu o paulista. Bateu outra vez, Garrincha voltou ao chão, o árbitro marcou a falta e ameaçou

Dalmo de expulsão, porque naquele tempo o cartão amarelo não existia.

A terceira falta de Dalmo foi a mais violenta, como se ele estivesse pensando: "Arrebento essa peste, sou

expulso, mas ele não joga mais".

Pensado e feito. Enquanto o gênio das pernas tortas estava estirado no bico direito da área dos portões

principais do Pacaembu, o árbitro determinava a expulsão de Dalmo, cercado por botafoguenses justamente

irados com seu gesto.

Eis que, como um acrobata, Garrincha levanta-se, afasta seus companheiros, bota o braço esquerdo no

ombro de Dalmo e o acompanha até a descida da escada para o vestiário, que, então, ficava daquele lado.

Saíram conversando, como se Garrincha justificasse a atitude, entendesse que, para pará-lo, não havia

mesmo outro jeito.

O Botafogo ganhou de 3 a 0 e saiu aplaudido do estádio. Tinha visto uma autêntica exibição do Carlitos do

futebol, digna mesmo de Charles Chaplin, divertida, anárquica, humana, sensível, solidária.

Crônica do jornalista Juca Kfouri publicada na revista Lance a Mais (em 9/9/2000),

ilustrada por Andrés Sandoval

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O sucesso da Mala

Cybele Meyer

Ilustração: Ana dos Anjos.

Respiro ofegante. Trago nas mãos uma pequena mala e uma agenda tinindo de nova. É meu primeiro dia de

aula. Venho substituir uma professora que teve que se ausentar "por motivo de força maior". Entro

timidamente na sala dos professores e sou encarada por todos. Uma das colegas, tentando me deixar mais à

vontade, pergunta:

- É você que veio substituir a Edith?

- Sim - respondo num fio de voz.

- Fala forte, querida, caso contrário vai ser tragada pelos alunos - e morre de rir.

- Ela nem imagina o que a espera, não é mesmo? - e a equipe toda se diverte com a minha cara.

Convidada a me sentar, aceito para não parecer antipática. Eles continuam a conversar como se eu não

estivesse ali. Até que, finalmente, toca o sinal. É hora de começar a aula. Pego meu material e percebo que

me olham curiosos para saber o que tenho dentro da mala. Antes que me perguntem, acelero o passo e sigo

para a sala de aula. Entro e vejo um montão de olhinhos curiosos a me analisar que, em seguida, se voltam

para a maleta. Eu a coloco em cima da mesa e a abro sem deixar que vejam o que há lá dentro.

- O que tem aí, professora?

- Em breve vocês saberão.

No fim do dia, fecho a mala, junto minhas coisas e saio. No dia seguinte, me comporto da mesma maneira, e

no outro e no noutro... As aulas correm bem e sinto que conquistei a classe, que participa com muito

interesse. Os professores já não me encaram. A mala, porém, continua sendo alvo de olhares curiosos.

Chego à escola no meu último dia de aula. A titular da turma voltará na semana seguinte. Na sala dos

professores ouço a pergunta guardada há tantos dias:

- Afinal, o que você guarda de tão mágico dentro dessa mala que conseguiu modificar a sala em tão pouco

tempo?

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- Podem olhar - respondo, abrindo o fecho.

- Mas não tem nada aí! - comentam.

- O essencial é invisível aos olhos. Aqui guardo o meu melhor.

Todos ficam me olhando. Parecem estar pensando no que eu disse. Pego meu material, me despeço e saio.

Papagaio congelado

Ricardo Azevedo

Ilustração: Heitor Yida

Um dia, um sujeito ganhou de presente um papagaio.

O bicho era uma praga. Não demorou muito, logo se espalhou pela casa.

Atendia telefone.

Gritava e falava sozinho nas horas mais inesperadas.

Dava palpite nas conversas dos outros.

Discutia futebol.

Fumava charuto.

Pedia café, tomava, cuspia, arregalava os olhos, esparramava semente de girassol e cocô por todo lado,

gargalhava e ainda gritava para o dono de casa: "Ô seu doutor, vê se não torra faz favor!"

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Uma noite, a família recebeu uma visita para jantar.

O papagaio não gostou da cara do visitante e berrou: "Vai embora, ratazana!" e começou a falar cada

palavrão cabeludo que dava medo.

Depois que a visita foi embora, o dono da casa foi até o poleiro. Estava furioso:

— Seu mal-educado, sem-vergonha de uma figa! Estou cheio! Agora você vai ver o que é bom pra tosse.

Agarrou o papagaio pelo cangote e atirou dentro da geladeira:

— Vai passar a noite aí de castigo!

Depois, fechou a porta e foi dormir.

No dia seguinte, saiu atrasado para o trabalho e esqueceu o coitado preso dentro da geladeira.

Só foi lembrar do bicho à noite, quando voltou para casa.

Foi correndo abrir a geladeira.

O papagaio saiu trêmulo e cabisbaixo, com cara arrependida, cheio de pó gelado na cabeça.

Ficou de joelhos.

Botou as duas asas na cabeça.

Rezou.

Disse pelo amor de Deus.

Reconheceu que estava errado.

Pediu perdão.

Disse que nunca mais ia fazer aquilo.

Jurou que nunca mais ia fazer coisa errada, que nunca mais ia atender telefone e interromper conversa, nem

xingar nenhuma visita.

Jurou que nunca mais ia dizer palavrão nem "vai embora, ratazana".

Depois, examinando o homem com os olhos arregalados, espiou dentro da geladeira e perguntou:

— Queria saber só uma coisa: o que é que aquele franguinho pelado, deitado ali no prato, fez?

Anedota contada por Ricardo Azevedo, ilustrada por Heitor Yida

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Pechada

Luis Fernando Veríssimo

Ilustração: Santiago

O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho".

Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.

— Aí, Gaúcho!

— Fala, Gaúcho!

Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região

tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português.

Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do

tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?

— Mas o Gaúcho fala "tu"! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.

— E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os

dois são português.

O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.

Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.

— O pai atravessou a sinaleira e pechou.

— O que?

— O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.

A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma

sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços

de sinaleira sendo retirados do seu corpo.

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— O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge.

— Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.

— E o que é isso?

— Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.

— Nós vinha...

— Nós vínhamos.

— Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro

auto.

A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava

uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo

daquele jeito.

"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater,

claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar"

vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo

Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.

— Aí, Pechada!

— Fala, Pechada!

Crônica de Luis Fernando Verissimo, ilustrada por Santiago

Ponta da Língua

Cheia de graça é a nossa língua, portuguesa.

Você nem precisa aprender o á-bê-cê para rir com ela.

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Desde pequeno já ouve dizer que mentira tem pernas curtas.

E mentira tem pernas?

E a verdade? A verdade tem pernas longas?

E quando dói a barriga da perna?

Ou quando ficamos de orelha em pé?

O que a barriga tem a ver com a perna, e orelha com o pé?

Pra ser divertido, não leve nada ao pé da letra!

Até porque letra não tem pé. Ou tem?

Pé-de-meia é o dinheiro que a gente economiza.

Pé-de-moleque, doce de amendoim.

Dedo de prosa é papo rápido.

Dedo-duro é traidor.

Pão-duro, pessoa egoísta.

E boca da noite? E céu da boca?

É uma brincadeira atrás da outra!

Cabeça de cebola, dente de alho, braço de mar.

Com a nossa língua, a gente pode pegar a vida pela mão.

Pode abrir o coração. Pode fechar a tristeza.

A gente pode morrer de medo e, ao mesmo tempo, estar vivinho da silva.

Pode fazer coisas sem pé nem cabeça.

Mas brincar com palavras também é coisa séria.

Basta errar o tom e você vai parar no olho do furacão.

Então, divirta-se. Cuidado só para não morder a língua portuguesa!

Quem é quem

João Anzanello Carrascoza, autor desta crônica, é redator de propaganda

e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Clouds, autora desta ilustração, é formada em design gráfico pela Universidade Federal do Paraná e

colabora com revistas da Editora Abril.

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Qualidades do Professor

Cecília Meireles

Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade

segura e complexa, essa é o professor.

Destinado a pôr-se em contato com a infância e a adolescência, nas suas mais várias e incoerentes

modalidades, tendo de compreender as inquietações da criança e do jovem, para bem os orientar e satisfazer

sua vida, deve ser também um contínuo aperfeiçoamento, uma concentração permanente de energias que

sirvam de base e assegurem a sua possibilidade, variando sobre si mesmo, chegar a apreender cada

fenômeno circunstante, conciliando todos os desacordos aparentes, todas as variações humanas nessa visão

total indispensável aos educadores.

É, certamente, uma grande obra chegar a consolidar-se numa personalidade assim. Ser ao mesmo tempo um

resultado — como todos somos — da época, do meio, da família, com características próprias, enérgicas,

pessoais, e poder ser o que é cada aluno, descer à sua alma, feita de mil complexidades, também, para se

poder pôr em contato com ela, e estimular-lhe o poder vital e a capacidade de evolução.

E ter o coração para se emocionar diante de cada temperamento.

E ter imaginação para sugerir.

E ter conhecimentos para enriquecer os caminhos transitados.

E saber ir e vir em redor desse mistério que existe em cada criatura, fornecendo-lhe cores luminosas para se

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definir, vibratilidades ardentes para se manifestar, força profunda para se erguer até o máximo, sem

vacilações nem perigos. Saber ser poeta para inspirar. Quando a mocidade procura um rumo para a sua vida,

leva consigo, no mais íntimo do peito, um exemplo guardado, que lhe serve de ideal.

Quantas vezes, entre esse ideal e o professor, se abrem enormes precipícios, de onde se originam os mais

tristes desenganos e as dúvidas mais dolorosas!

Como seria admirável se o professor pudesse ser tão perfeito que constituísse, ele mesmo, o exemplo amado

de seus alunos!

E, depois de ter vivido diante dos seus olhos, dirigindo uma classe, pudesse morar para sempre na sua vida,

orientando-a e fortalecendo-a com a inesgotável fecundidade da sua recordação.

Texto de Cecília Meireles, extraído do livro Crônicas de Educação 3

Ilustrado por Laurabeatriz

Uma lição inesperada

João Anzanello Carrascoza

No último dia de férias, Lilico nem dormiu direito. Não via a hora de voltar à escola e rever os amigos.

Acordou feliz da vida, tomou o café da manhã às pressas, pegou sua mochila e foi ao encontro deles.

Abraçou-os à entrada da escola, mostrou o relógio que ganhara de Natal, contou sobre sua viagem ao litoral.

Depois ouviu as histórias dos amigos e divertiu-se com eles, o coração latejando de alegria. Aos poucos, foi

matando a saudade das descobertas que fazia ali, das meninas ruidosas, do azul e branco dos uniformes,

daquele burburinho à beira do portão. Sentia-se como um peixe de volta ao mar. Mas, quando o sino

anunciou o início das aulas, Lilico descobriu que caíra numa classe onde não havia nenhum de seus amigos.

Encontrou lá só gente estranha, que o observava dos pés à cabeça, em silêncio. Viu-se perdido e o sorriso

que iluminava seu rosto se apagou. Antes de começar, a professora pediu que cada aluno se apresentasse.

Aborrecido, Lilico estudava seus novos companheiros. Tinha um japonês de cabelos espetados com jeito de

nerd. Uma garota de olhos azuis, vinda do Sul, pareceu-lhe fria e arrogante. Um menino alto, que quase

bateu no teto quando se ergueu, dava toda a pinta de ser um bobo. E a menina que morava no sítio? A

coitada comia palavras, olhava-os assustada, igual a um bicho-do-mato. O mulato, filho de pescador, falava

arrastado, estalando a língua, com sotaque de malandro. E havia uns garotos com tatuagens umas meninas

usando óculos de lentes grossas, todos esquisitos aos olhos de Lilico. A professora? Tão diferente das que

ele conhecera... Logo que soou o sinal para o recreio, Lilico saiu a mil por hora, à procura de seus antigos

colegas. Surpreendeu-se ao vê-los em roda, animados, junto aos estudantes que haviam conhecido horas

antes. De volta à sala de aula, a professora passou uma tarefa em grupo. Lilico caiu com o japonês, a menina

gaúcha, o mulato e o grandalhão. Começaram a conversar cheios de cautela, mas paulatinamente foram se

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soltando, a ponto de, ao fim do exercício, parecer que se conheciam há anos. Lilico descobriu que o japonês

não era nerd, não: era ótimo em Matemática, mas tinha dificuldade em Português. A gaúcha, que lhe

parecera tão metida, era gentil e o mirava ternamente com seus lindos olhos azuis. O mulato era um caiçara

responsável, ajudava o pai desde criança e prometeu ensinar a todos os segredos de uma boa pescaria. O

grandalhão não tinha nada de bobo. Raciocinava rapidamente e, com aquele tamanho, seria legal jogar

basquete no time dele. Lilico descobriu mais. Inclusive que o haviam achado mal-humorado quando ele se

apresentara, mas já não pensavam assim. Então, mirou a menina do sítio e pensou no quanto seria bom

conhecê-la. Devia saber tudo de passarinhos. Sim, justamente porque eram diferentes havia encanto nas

pessoas. Se ele descobrira aquilo no primeiro dia de aula, quantas descobertas não haveria de fazer no ano

inteiro? E, como um lápis deslizando numa folha de papel, um sorriso se desenhou novamente no rosto de

Lilico.

Crônica de João Anzanello Carrascoza, ilustrada por Daisy Sartori

POESIA

A Chuva

A chuva derrubou as pontes. A chuva transbordou os rios.

A chuva molhou os transeuntes. A chuva encharcou as

praças. A chuva enferrujou as máquinas. A chuva enfureceu

as marés. A chuva e seu cheiro de terra. A chuva com sua

cabeleira. A chuva esburacou as pedras. A chuva alagou a

favela. A chuva de canivetes. A chuva enxugou a sede. A

chuva anoiteceu de tarde. A chuva e seu brilho prateado. A

chuva de retas paralelas sobre a terra curva. A chuva

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destroçou os guarda-chuvas. A chuva durou muitos dias. A

chuva apagou o incêndio. A chuva caiu. A chuva

derramou-se. A chuva murmurou meu nome. A chuva ligou o

pára-brisa. A chuva acendeu os faróis. A chuva tocou a

sirene. A chuva com a sua crina. A chuva encheu a piscina.

A chuva com as gotas grossas. A chuva de pingos pretos.

A chuva açoitando as plantas. A chuva senhora da lama. A

chuva sem pena. A chuva apenas. A chuva empenou os

móveis. A chuva amarelou os livros. A chuva corroeu as

cercas. A chuva e seu baque seco. A chuva e seu ruído de

vidro. A chuva inchou o brejo. A chuva pingou pelo teto. A

chuva multiplicando insetos. A chuva sobre os varais. A

chuva derrubando raios. A chuva acabou a luz. A chuva

molhou os cigarros. A chuva mijou no telhado. A chuva

regou o gramado. A chuva arrepiou os poros. A chuva fez

muitas poças. A chuva secou ao sol.

Poema de Arnaldo Antunes, ilustrado por Nina.

Andarilhos - Francisco Marques (Chico dos Bonecos)

Ilustração: Ivan Zigg

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Andava pela estrada, sozinho. Um sol de rachar e os dois andando, sem parar. E andando, resolvidos, iam os

três desenxabidos.

Os quatro não andavam à toa: buscavam uma terra boa.

Com os pés doendo de tanto andar, os cinco pararam para descansar.

E os seis se deitaram, dormiram, sonharam...

No meio da noite, os sete acordaram e se arrepiaram.

Dezesseis olhos arregalados, brilhando, viram o rio iluminado, o chão iluminando.

Cavando a terra, dezoito mãos traziam, com a respiração ofegante, dezenas de pedrinhas brilhantes.

Depois de muito cavar, contar e reunir, os dez começaram a discutir.

O centro da discussão era este: onze andarilhos podem suportar tantos brilhos?

Uma dúzia de idéias diferentes, uma ou outra interessante, mas nenhuma idéia brilhante.

Com as palavras doendo de tanto falar, os treze resolveram si-len-ci-ar.

Deitados, silenciosos, os catorze buscavam uma nova rima, quando olharam para cima...

Boquiabertos, ao som de quinze admirações, descobriram estrelas candentes, candentes em grandes porções

e proporções.

E aquelas dezesseis imaginações tropeçaram nas mesmas conclusões...

"As pedras são farelos de estrelas", dezessete vezes pensaram e dezessete vozes exclamaram.

E declararam os dezoito andarilhos, acostumados a vagar de déu em déu: "Essa terra tem parentesco com o

céu".

E dezenove caminheiros decidiram fincar o pé e se estabelecer: "De agora em diante, aqui vamos morar,

aqui vamos viver".

Vinte vezes festejaram, quando uma voz desfestejou: "Continuarei caminhando. Adeus. Já vou".

E deste que se foi, ligeirinho!, posso dizer apenas que ele.

Andava pela estrada, sozinho.

Prosa poética de Francisco Marques (Chico dos Bonecos), ilustrada por Ivan Zigg

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A seca e o inverno

Patativa do Assaré

Ilustração: Joana Lira

Na seca inclemente no nosso Nordeste

O sol é mais quente e o céu, mais azul

E o povo se achando sem chão e sem veste

Viaja à procura das terras do Sul

Porém quando chove tudo é riso e festa

O campo e a floresta prometem fartura

Escutam-se as notas alegres e graves

Dos cantos das aves louvando a natura

Alegre esvoaça e gargalha o jacu

Apita a nambu e geme a juriti

E a brisa farfalha por entre os verdores

Beijando os primores do meu Cariri

De noite notamos as graças eternas

Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes

Na copa da mata os ramos embalam

E as flores exalam suaves perfumes

Se o dia desponta vem nova alegria

A gente aprecia o mais lindo compasso

Além do balido das lindas ovelhas

Enxames de abelhas zumbindo no espaço

E o forte caboclo da sua palhoça

No rumo da roça de marcha apressada

Vai cheio de vida sorrindo e contente

Lançar a semente na terra molhada

Das mãos deste bravo caboclo roceiro

Fiel prazenteiro modesto e feliz

É que o ouro branco sai para o processo

Fazer o progresso do nosso país

Cordel de Patativa do Assaré, ilustrado por

Joana Lira

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Confusões do Seu José

Lidia Izecson de Carvalho

Ilustração Victor Malta

Seu José foi ao mercado

Comprar pra semana inteira

Pegou de tudo um pouco

Até uma enorme peneira

Sem pensar como pagar

Continuou a gastança

Abacaxi, melancia e morango

Não era hora de fazer poupança

Chegou na fila do caixa

Já meio de cabeça baixa

Não sabia onde estava o dinheiro

Teria esquecido no banheiro?

Procurou por todo lado

Remexeu daqui e dali

Do bolso saiu tanta coisa

Pandeiro, alicate e jabuti

Mas onde estava o dinheiro

Isso todos queriam saber

De repente ele lembrou

Assim meio sem querer

Deu um sorriso amarelo

E levantou o boné

Sabia que tinha o dinheiro

Não era nenhum caloteiro

O que ninguém esperava

Foi o que se viu então

Tinha dez notas dobradas

Somando quase 1 milhão

Com tanto ladrão por aí

Foi logo explicando o José

O melhor é se prevenir

Guardar na careca ou no pé

Lidia Izecson de Carvalho, autora deste poema,

é pedagoga, mestre em Educação e mora em São

Paulo. Escreveu diversos livros infantis, como

Cadê o Meu Avô. Em 2006, recebeu o prêmio

Jabuti de melhor obra paradidática.

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Emas

Elas ficavam flanando, as emas.

Nos pátios da fazenda.

A gente sabia que as emas

comem vidros, latas de sardinha, sabonetes,

cobras, pregos.

Falavam que elas têm moelas de alicate.

Nossa mãe tinha medo que as emas comessem

nossas cobertas de dormir e os vidros de

arnica da avó.

Eu tinha vontade de botar cabresto na ema

e sair pelos campos montado nela.

A gente sabia

que a ema quase voa no correr.

E que quase dobra o vento no correr.

Eu tinha vontade de dobrar o vento no correr.

Poema de Manoel Barros, Ilustrado por Siron

Franco

É sempre era uma vez

Elias José

Ilustração: Marcello Araújo

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Era uma vez uma cachorrinha muito alegre e assanhadinha.

Era uma vez um tal Marcelo que se achava muito belo.

Era uma vez um tal João que comia sorvete com feijão.

Era uma vez um cachorrão, enjoado, latidor e folgadão.

Era uma vez um palhaço, que só levava tombaço.

Era uma vez um sacristão, que tocava sino com o dedão.

Era uma vez uma professora, que teimava em ser cantora.

Era uma vez um safado prefeito, que dizia: Não tenho defeito!

Era uma vez um meu colega, que levou uma boa esfrega.

Era uma vez um músico italiano, que, com pé, tocava o seu piano.

Era uma vez um aloprado cientista, que passava xixi na vista.

Era uma vez um feioso estudante, que se dizia muito belo e elegante.

Era uma vez uma desajeitada menina, que misturava perfume com gasolina.

Era uma vez o famoso Chico Peão, que contou vantagem e foi pro chão.

Era uma vez uma tal dona Inês, que tinha cão listrado e gato xadrez.

E eu quero saber agora o resto destas histórias.

Conte de uma só vez, quando chegar a sua vez.

Poema de Elias José, ilustrado por Marcello Araújo

Meu amigo dinossauro

Ruth Rocha

Ilustração: Alarcão

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Um pequeno dinossauro

Apareceu no jardim

Educado, inteligente,

O seu nome era Joaquim.

Nunca consegui saber

De onde foi que ele saiu

Quando a gente perguntou

Disfarçou e até sorriu...

Ficou muito nosso amigo

Fez tudo que é brincadeira.

Levou o Miguel pra escola

Levou a mamãe pra feira.

As pessoas espiavam

Estranhavam um pouquinho

Onde será que arranjaram

Este dinossaurosinho?

Nessa tarde o papai trouxe

Um amigo bem distinto

Que se espantou e exclamou:

— Mas este bicho está extinto!

Há muitos milhões de anos

Ele já virou petróleo!

Ou já virou gasolina,

Ou algum tipo de óleo.

Meu dinossauro sorriu

— Estou vivo, "podes crer"!

Eu não virei querosene

Como o senhor pode ver!

Antigamente diziam

Que o petróleo era formado

Por montes de dinossauros

Um sobre o outro empilhados.

Mas isso não é verdade!

Foram plantas e outros bichos

Que ficaram bem fechados

Entre buracos e nichos.

Sofreram muita pressão

Por muitos milhões de anos

Sofreram muito calor

No fundo dos oceanos.

— Mas então por que o petróleo

Até parece cigano?

Ora aparece na Terra,

Ora debaixo do oceano!

É porque o planeta Terra

Esteve sempre a mudar

Depois de milhões de anos

Tudo mudou de lugar.

Todos ficaram espantados

De tanta sabedoria

E perguntavam: — Que mais

Sabe Vossa Senhoria?

— Sei ainda muitas coisas

Disse o amigo Joaquim

Para que serve o petróleo

E outras coisas assim.

Petróleo move automóvel,

Navio, trem, avião,

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Ônibus e motocicleta,

Helicóptero e caminhão.

Com petróleo se faz pano,

Brinquedo, bolsas e mala,

Pele pra fazer salsicha,

Copos, pratos, nem se fala.

Se faz tinta, faz garrafa,

Material de construção,

Se fazem peças de automóvel

E se faz tubulação.

— Tenho mais uma coisinha

Pra dizer. - Pois então diga!

E o dinossauro puxou

O fecho em sua barriga.

E saíram lá de dentro

O Pedro mais o Raimundo

— Nós não somos dinossauro,

Enganamos todo mundo!

Poema de Ruth Rocha, ilustrado por Alarcão

Morada do inventor

Elias José

Ilustração: Alessandra Kalko. Foto: Marcelo Guarnieri

A professora pedia e a gente levava,

achando loucura ou monte de lixo:

latas vazias de bebidas, caixas de fósforo,

pedaços de papel de embrulho, fitas,

brinquedos quebrados, xícaras sem asa,

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recortes e bichos, pessoas, luas e estrelas,

revistas e jornais lidos, retalhos de tecido,

rendas, linhas, penas de aves, cascas de ovo,

pedaços de madeira, de ferro ou de plástico.

Um dia, a professora deu a partida

e transformamos, colamos e colorimos.

E surgiram bonecos esquisitos,

bichos de outros planetas, bruxas

e coisas malucas que Deus não inventou.

Tudo o que nascia ganhava nome, pais,

casa, amigos, parentes e país.

E nasceram histórias de rir ou de arrepiar!…

E a escola virou morada de inventor!

Poema de Elias José, ilustrado por Alessandra Kalko. Foto de Marcelo Guarnieri

O espelho e a perua

Ilustração: Ionit

A confusão começou

Certa vez, no galinheiro,

Quando as aves encontraram

Um espelho no terreiro.

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Uma galinha vaidosa

Logo quis contar vantagem:

- Com licença, galináceas,

Vim conferir minha imagem!

A pata, torcendo o bico,

Comentou com a vizinha:

- Não vale arrancar as penas

Pra parecer mais magrinha!

E qual não foi a surpresa

Das aves estabanadas:

No reflexo do espelho

Só tinha coisas erradas!

Quem era alta e bela

Viu-se feiosa e baixinha.

Quem era gorda e forte

Ficou magrela e fraquinha.

- Credo! - grasnou o marreco.

- Cruzes! - o pinto piou.

- Incrível! - cantou o galo.

E o papagaio berrou.

A galinha carijó

Foi quem depressa falou:

- Este espelho tem feitiço...

Foi a bruxa que o mandou!

- Mentira! - disse a perua,

Balançando as pulseiras.

- Li esse conto de fadas,

Vocês só dizem besteiras!

Estufou-se, bem danada,

Mostrando o papo vermelho.

E com pose de malvada

Fez a pergunta ao espelho:

- Espelho, espelho meu!

Responda se há no mundo

Outra ave mais bonita,

Mais charmosa e elegante,

Mais esperta e fascinante,

Mais incrível e imponente,

Mais formosa do que eu?

Diga logo, espelho meu!!

Os bichos, impressionados,

Ouviram com atenção

A resposta do espelho

A tamanha pretensão:

- Se você quer a verdade,

Vou dizê-la, nua e crua.

E mostrar a realidade

Para uma simples perua.

Você disse que é esperta,

Imponente e charmosa.

Mas parece antipática,

Falando assim, toda prosa.

Desfila o ano inteiro

Como se fosse a tal.

Mas foge do cozinheiro

Quando chega o Natal!

Poema de Flávia Muniz, ilustrado por Ionit

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O que é, o que é?

Ilustração: Vilmar

O que é, o que é?

Bola de ouro

Correndo, sem choro,

Na ponta do pé.

O que é, o que é?

Bola de prata

Quicando, sensata,

No peito do pé.

O que é, o que é?

Bola de meia

Caindo sem peia

No pio do pé.

O que é, o que é?

Bola de neve

Roçando de leve

A planta do pé.

O que é, o que é?

Bola de fogo

Ardendo no jogo

De pé contrapé.

O que é, o que é?

Bola de cera,

Chegando matreira,

De pé-ante-pé.

O que é, o que é?

Bola fagueira

Saindo certeira

Do arco do pé.

É gol de Pelé.

Poema de Armando Nogueira, (extraído do

livro O Homem e a Bola, publicado pela Ed.

Mitavaí), ilustrado por Vilmar

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Paisagem de Brodósqui

Fátima Miguez

Ilustração: Ivan Zigg

Paisagem de Brodósqui,

a terra manjedoura,

roxeada, avermelhada,

matriz duradoura

do menino Candinho.

Poeta dos pintores,

escreveu em cores

momentos da infância

na tela acordada.

Um baú de histórias coloridas

na lembrança, reunidas

no quadro, imagens

recorridas.

O papagaio de papel

no imenso azul do céu...

O descanso de um boizinho

num pacato povoado.

Um especial bauzinho

na areia depositado.

Um cavalo apressado

Por um homem montado.

Uma modesta igrejinha,

num vilarejo, abençoada

pelas mãos pintoras

do Candido menino,

Portinari consagrado,

estrela a brilhar

no cenário da pintura

universal, brasileira.

Poema de Fátima Miguez (extraído do livro

Paisagens Brasileiras, publicado pela Ed.

DCL), ilustrado por Ivan Zigg

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Picasso

Adriana Abujamra Aith

Ilustração: Biry

Picasso

Desde pequeno

Fazia troça

Com traços

Parece piada,

Mas dizem que é pura verdade

A primeira palavra que disse foi:

"Lápis"

E zapt!

Não parou mais

Desenhava as touradas da

Espanha,

Cavalos, bonecas

Menino levado

Cresceu,

Foi pra Paris

Impressionado com a cidade,

Registrou tudo que viu

Mas um grande amigo partiu

E com ele as cores

Sobrou o azul

Quadros de dores

Logo conheceu uma moça

Na tela branca

A paixão vermelha

Corou de rosa sua paleta

Mas a fase mais engraçada

Foi a cubista

Picasso embaralhou as formas

Brincou com as normas

Cubismo

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Mosaicos

Caquinhos

Pedaços

Na época

Foi aquele estardalhaço

Desenhou perfil de frente

Pôs bumbum no lugar dos braços

Fez tudo diferente

Arte não é fotografia

Que registra o modelo real

tal e qual

Na tela

A imagem que fica

É Picasso e

Não tem igual

Poema de Adriana Abujamra Aith, ilustrado

por Biry

Poema para Dalí

Kátia Can

Ilustração: André Davino

Era uma vez

Um sonho de menino.

Estranho,

Versátil,

Admirável.

De repente, o tempo não existia mais.

Tinha parado,

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Congelado,

Suspendido.

O relógio começou a escorregar por entre as suas

mãos

E o tempo foi derretendo.

O menino então falou comigo:

"Eu penso, eu digo e falo

O que vem na mente.

E você sente".

Juntos, escrevemos automaticamente

Tudo o que vem à cabeça

Sem censura

Nem suspiro.

A gente se entende.

As imagens que surgem do texto são bonitas.

Surgem Dalí e daqui.

Têm sol, têm mar, têm casas e árvores

E têm gente estranha.

As cenas são improváveis

E o ritmo é de um sincopado que não existe,

Nem nas mais exóticas músicas que ouvimos.

Apenas sonho de meninos?

Se eu fosse um artista

Surrealista

Eu também sonharia assim.

Perguntaria teu nome

E no meio da fome

Pediria pra você ficar e pintar comigo.

Eu iria me nutrir da tua mão de chocolate

E da tua pele de pêssego.

Juntos, iríamos passar tinta, comemorar

E colorir todos os sonhos do mundo.

Poema de Kátia Canton, ilustrado por André

Davino

Quadrilha da sujeira

Ilustração: Nika Santos

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João joga um palitinho de sorvete na

rua de Teresa que joga uma latinha de

refrigerante na rua de Raimundo que

joga um saquinho plástico na rua de

Joaquim que joga uma garrafinha

velha na rua de Lili.

Lili joga um pedacinho de isopor na

rua de João que joga uma embalagenzinha

de não sei o que na rua de Teresa que

joga um lencinho de papel na rua de

Raimundo que joga uma tampinha de

refrigerante na rua de Joaquim que joga

um papelzinho de bala na rua de J. Pinto

Fernandes que ainda nem tinha

entrado na história.

Poema de Ricardo Azevedo (extraído do livro

Você Diz que Sabe Muito, Borboleta Sabe Mais,

publicado pela Fundação Cargill), ilustrado

por Nika Santos

Quem tem medo de dizer não?

Ruth Rocha

Ilustração: Ivan Zigg

A gente vive aprendendo

A ser bonzinho, legal,

A dizer que sim pra tudo,

A ser sempre cordial...

A concordar, a ceder,

A não causar confusão,

A ser vaca-de-presépio

Que não sabe dizer não!

Acontece todo dia,

Pois eu mesma não escapo.

De tanto ser boazinha,

Tô sempre engolindo sapo...

Como coisas que não gosto,

Faço coisas que não quero...

Deste jeito, minha gente,

Qualquer dia eu desespero...

Já comi pamonha e angu,

Comi até dobradinha...

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Comi mingau de sagu

Na casa de uma vizinha...

Comi fígado e espinafre,

De medo de dizer não.

Qualquer dia, sem querer,

Vou ter de comer sabão!

Eu não sei me recusar,

Quando me pedem um favor.

Eu sei que não vou dar conta,

Mas dizer não é um horror!

E no fim não faço nada

E perco toda razão.

Fico mal com todo mundo,

Só consigo amolação.

Quando eu estudo a lição

E o companheiro não estuda,

Na hora da prova pede

Que eu dê a ele uma ajuda

Embora ache desaforo,

Eu não consigo negar...

Meu Deus, como sou boazinha...

Vivo só para ajudar...

Se alguém me pede que empreste

O disco do meu agrado,

Sabendo que não devolvem

Ou que devolvem riscado...

Sou incapaz de negar,

Mas fico muito infeliz...

Qualquer um, se tiver jeito,

Me leva pelo nariz...

Depois que eu estou na fila

Pra pagar o supermercado,

Já estou lá há muito tempo...

Aparece um engraçado...

Seja jovem, seja velho,

Se mete na minha frente,

Mas eu nunca digo nada...

Embora eu fique doente!

A gente sempre demora

A entender esta questão.

Às vezes custa um bocado

Dizer simplesmente não!

Mas depois que você disse

Você fica aliviada

E o outro que lhe pediu

É que fica atrapalhado...

Mas não vamos esquecer

Que existe o "por outro lado"...

Tudo tem direito e avesso,

Que é meio desencontrado...

Quero saber dizer NÃO.

Acho que é bom para mim.

Mas não quero ser do contra...

Também quero dizer SIM!

Poema de Ruth Rocha, ilustrado por Ivan Zigg

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Sozinha

Ilustração: Fábio Cobiaco

Sozinha, coitada.

Nunca estava acompanhada.

Pega-pega, sozinha não tinha.

Queimada, sozinha não dava.

Então, ela sentava a pensar.

Mas estava tão sozinha que

nem pensamento vinha.

Se Sozinha assim estava,

mais sozinha ia ficar,

Porque o S da Sozinha resolveu

se mandar.

Mal Ozinha se deu conta, o O

aproveitou o embalo e saiu rolando.

Desolada, sentia-se uma zinha qualquer.

"Ô, Zinha", disse o Z.

E zapt, fugiu ligeiro, deixando

Inha para trás.

"Inha, Inha, inhaaaá!" Desandava a chorar.

Chorava, chorava até a lágrima secar.

E agora, o que fazer?

Olhou para um lado.

Olhou para o outro.

Para lá, para cá.

Até que seu pé se animou. Levantou

a Inha e se pôs a sambar.

Ali de cima, os olhos de

Inha observavam o seu pé,

que sacudia e sacudia.

E sacudindo contagiou o joelho,

que remexeu a coxa e fez

o bumbum rebolar.

Do bumbum para a barriga

foi um estalo.

Os ombros, que não são bobos,

entraram logo no embalo.

Quando Inha percebeu, do pescoço

para baixo estava um grande alvoroço.

Só faltava a cabeça. Então a boca disse:

"Entre na dança." Êba! Vamos lá!

A alegria era tanta que atraiu muita

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gente. E todos os pés ali presentes

convenceram seus donos a participar.

Inha estava contente, mas tão contente,

que nem se lembrava mais do tempo

em que tinha um S, um O e um Z,

que a deixavam Sozinha.

Deles queria distância. Mas não

entendam mal. O S para um samba,

o O num oi e o Z para um ziriguidum

seriam sempre bem-vindos.

Poema de Adriana Abujamra Aith e Ieda

Abbud, ilustrado por Fábio Cobiaco

Eu, hein!

Ivan Zigg

Ilustração: Ivan Zigg

Eu não sei, mas isso é sério

Meia noite no cemitério

Um esqueleto vestindo sunga

Batuca na sua tumba

Eu, hein!

Eu, hein!

Batuca na sua tumba

Eu não sei, mas ouvi falar

Meia-noite em algum lugar

Uma múmia dançando rumba

Batuca na catacumba

Eu, hein!

Eu, hein!

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Batuca na catacumba

Eu não sei, mas ouvi dizer

Aquele esqueleto se parece com você

E como dizia a minha tia Petúnia

Tu és a cara daquela múmia!

Eu, hein!

Eu, hein!

Tu és a cara daquela múmia!

Canção e ilustração de Ivan Zigg

Lado bom

Ilustração com Grafite de Jana Joana e Vitché. Foto Rogério Albuquerque

Periferia tem seu lado bom

Manos, vielas e futebol no campão

Meninas com bonecas e não com filhos

Planejando assim um futuro positivo

Sua paz é você que define

Longe do álcool, longe do crime

A escola é o caminho do sucesso

Pro pobre honrar desde o começo

E dizer bem alto que somos a herança

De um país que não promoveu as mudanças

Sem atrasar ninguém, rapaz

Fazendo sua vida se adiantar na paz

Jogando bolinha, jogando peão

Vi nos olhos da criança a revolução

Que solta a pipa pensando em voar

Para não ver o barraco que era o seu lar

Periferia lado bom o que você me diz

Alguns motivos pra te deixar feliz

Longe do álcool, longe do crime

Sua paz é você que define

(*)E nessa pipa no céu eu vi planar

A paz necessária para se avançar

Ânimo, positividade em ação

Hip hop cultura de rua e Educação

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Foi assim que criaram e assim que tem que ser

O mestre-de-cerimônia rimando pra você

Enquanto o DJ troca as bases

O grafiteiro pinta todo o contraste

Da favela pro mundo

O caminho do rap pelo estudo

Por isso eu não me iludo

Roupa de marca não é meu escudo

Detentos, já te disse no começo

E estudar do sucesso é o preço

Porque a fama não cabe num coração pequeno

Então positividade pra vencer, vai vendo

Longe do crime, longe da dor,

Devemos dar valor ao professor

Vamos planejar um futuro positivo

Para desarmar todo o povo sofrido

Armas no chão, flores nas mãos

União para salvar uma nação

Se liga no que eu vou te falar

No mundo das drogas não pode entrar

Se liga no que eu vou te dizer

Pra depois você não se arrepender

O teu fim não pode ser assim

A rima que eu faço faz parte de mim

O estudo é o escudo, já disse tudo

Valorizar as minas no próximo futuro

Armas no chão, flores nas mãos

União pra salvar uma nação

(*) Na segunda parte desse rap, o autor se inspirou

nas idéias enviadas por estudantes de escolas de

todo o pais, principalmente da Escola Municipal

Madre Maria Viganó, em Castanhal (PA)

Canção de Ferréz, ilustrada com grafite de Jana Joana e Vitché

Na casa do cozinheiro - Hélio Ziskind

Ilustração: Ionit Zilberman

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Panelinha

Panelão

Panelinha

Panelão

Panelinha pim pim

Panelão pão pão pão

Vivo entre panelas

Pim piririm pampam

Frigideiras e tigelas

Pão pão pim

Quem sou?

Quem sou?

O cozinheiro, acertou!

Minha casa é muito musical

Panelinha agudinha

Pim pim pim piririm pim pim

Panelão gravão

Pão pão pão pararão pão pão

Minha filha maior

Toca o instrumento maior

Enquanto o feijão cozinha

Minha filha menor

Toca um instrumento menor

Lá no andar de cima

Pepino com caramelo

Violino com violoncelo

Pepino com caramelo

Violino com violoncelo

Uôu uôu

A panela de pressão assobiou!

Pss psss

Pss psss

Panelinha linha

Panelão nelão

Panelinha linha

Panelão

Violino lino lino

Violoncelo celo celo

Violino lino lino

Violoncelo celo celo

Canção de Hélio Ziskind, ilustrado por Ionit

Zilberman

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Samba do Approach

Mostre como nosso vocabulário incorpora expressões originárias de outros idiomas

Saiba que eu tenho approach

Na hora do lunch

Eu ando de ferryboat

Eu tenho savoir-faire

Meu temperamento é light

Minha casa é hi-tech

Toda hora rola um insight

Já fui fã do Jethro Tull

Hoje eu me amarro no Slash

Minha vida agora é cool

Meu passado é que foi trash

Fica ligada no link

Que eu vou confessar, my love

Depois do décimo drink

Só um bom e velho engov

Eu tirei meu green card

E fui pra Miami Beach

Posso não ser um pop star

Mas já sou um nouveau riche

Eu tenho sex appeal

Saca só meu background

Veloz como Damon Hill

Tenaz como Fittipaldi

Não dispenso um happy end

Quero jogar no dream team

De dia um macho man

E de noite drag queen

Letra de Zeca Baleiro, ilustrada por Fido Nesti

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LENDAS E FABULAS

A dança do arco-íris

João Anzanello Carrascoza

Ilustração: Alarcão

Há muito e muito tempo, vivia sobre uma planície de nuvens uma tribo muito feliz. Como não havia solo

para plantar, só um emaranhado de fios branquinhos e fofos como algodão-doce, as pessoas se alimentavam

da carne de aves abatidas com flechas, que faziam amarrando em feixe uma porção dos fios que formavam o

chão. De vez em quando, o chão dava umas sacudidelas, a planície inteira corcoveava e diminuía de

tamanho, como se alguém abocanhasse parte dela.

Certa vez, tentando alvejar uma ave, um caçador errou a pontaria e a flecha se cravou no chão. Ao arrancá-

la, ele viu que se abrira uma fenda, através da qual pôde ver que lá embaixo havia outro mundo.

Espantado, o caçador tampou o buraco e foi embora. Não contou sua descoberta a ninguém.

Na manhã seguinte, voltou ao local da passagem, trançou uma longa corda com os fios do chão e desceu até

o outro mundo. Foi parar no meio de uma aldeia onde uma linda índia lhe deu as boas-vindas, tão surpresa

em vê-lo descer do céu quanto ele de encontrar criatura tão bela e amável. Conversaram longo tempo e o

caçador soube que a região onde ele vivia era conhecida por ela e seu povo como "o mundo das nuvens",

formado pelas águas que evaporavam dos rios, lagos e oceanos da terra. As águas caíam de volta como uma

cortina líquida, que eles chamavam de chuva. "Vai ver, é por isso que o chão lá de cima treme e encolhe",

ele pensou. Ao fim da tarde, o caçador despediu-se da moça, agarrou-se à corda e subiu de volta para casa.

Dali em diante, todos os dias ele escapava para encontrar-se com a jovem. Ela descreveu

para ele os animais ferozes que havia lá embaixo. Ele disse a ela que lá no alto as coisas materiais não

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tinham valor nenhum.

Um dia, a jovem deu ao caçador um cristal que havia achado perto de uma cachoeira. E pediu para visitar o

mundo dele. O rapaz a ajudou a subir pela corda. Mal tinham chegado lá nas alturas, descobriram que

haviam sido seguidos pelos parentes dela, curiosos para ver como se vivia tão perto do céu.

Foram todos recebidos com uma grande festa, que selou a amizade entre as duas nações. A partir de então,

começou um grande sobe-e-desce entre céu e terra. A corda não resistiu a tanto trânsito e se partiu. Uma

larga escada foi então construída e o movimento se tornou ainda mais intenso. O povo lá de baixo, indo a

toda a hora divertir-se nas nuvens, deixou de lavrar a terra e de cuidar do gado. Os habitantes lá de cima

pararam de caçar pássaros e começaram a se apegar às coisas que as pessoas de baixo lhes levavam de

presente ou que eles mesmos desciam para buscar.

Vendo a desarmonia instalar-se entre sua gente, o caçador destruiu a escada e fechou a passagem entre os

dois mundos. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal, tanto na terra como nas nuvens. Mas a jovem

índia, que ficara lá em cima com seu amado, tinha saudade de sua família e de seu mundo Sem poder vê-los,

começou a ficar cada vez mais triste. Aborrecido, o caçador fazia tudo para alegrá-la. Só não concordava em

reabrir a comunicação entre os dois mundos: o sobe-e-desce recomeçaria e a sobrevivência de todos estaria

ameaçada.

Certa tarde, o caçador brincava com o cristal que ganhara da mulher. As nuvens começaram a sacudir sob

seus pés, sinal de que lá embaixo estava chovendo. De repente, um raio de sol passou pelo cristal e se abriu

num maravilhoso arco-íris que ligava o céu e a terra. Trocando o cristal de uma mão para outra, o rapaz viu

que o arco-íris mudava de lugar.

- Iuupii! - gritou ele. - Descobri a solução para meus problemas!

Daquele dia em diante, quando aparecia o sol depois da chuva, sua jovem mulher escorregava pelo arco-íris

abaixo e ia matar a saudade de sua gente. Se alguém lá de baixo se metia a querer visitar o mundo das

nuvens, o caçador mudava a posição do cristal e o arco-íris saltava para outro lado. Até hoje, ele só permite

a subida de sua amada. Que sempre volta, feliz, para seus braços.

Lenda indígena recontada por João Anzanello Carrascoza, ilustrada por Alarcão

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A lenda do preguiçoso

Giba Pedroza

Ilustração: Orlando

Diz que era uma vez um homem que era o mais preguiçoso que já se viu debaixo do céu e acima da terra. Ao

nascer nem chorou, e se pudesse falar teria dito:

"Choro não. Depois eu choro".

Também a culpa não era do pobre. Foi o pai que fez pouco caso quando a parteira ralhou com ele: "Não

cruze as pernas, moço. Não presta! Atrasa o menino pra nascer e ele pode crescer na preguiça, manhoso".

E a sina se cumpriu. Cresceu o menino na maior preguiça e fastio. Nada de roça, nada de lida, tanto que um

dia o moço se viu sozinho no pequeno sítio da família onde já não se plantava nada. O mato foi crescendo

em volta da casa e ele já não tinha o que comer. Vai então que ele chama o vizinho, que era também seu

compadre, e pede pra ser enterrado ainda vivo. O outro, no começo, não queria atender ao estranho pedido,

mas quando se lembrou de que negar favor e desejo de compadre dá sete anos de azar...

E lá se foi o cortejo. Ia carregado por alguns poucos, nos braços de Josefina, sua rede de estimação. Quando

passou diante da casa do fazendeiro mais rico da cidade, este tirou o chapéu, em sinal de respeito, e

perguntou:

"Quem é que vai aí? Que Deus o tenha!"

"Deus não tem ainda, não, moço. Tá vivo."

E quando o fazendeiro soube que era porque não tinha mais o que comer, ofereceu dez sacas de arroz. O

preguiçoso levantou a aba do chapéu e ainda da rede cochichou no ouvido do homem:

"Moço, esse seu arroz tá escolhidinho, limpinho e fritinho?"

"Tá não."

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"Então toque o enterro, pessoal."

E é por isso que se diz que é preciso prestar atenção nas crendices e superstições da ciência popular.

Lenda recontada por Giba Pedroza, ilustrada por Orlando

De Bem com a Vida

Nye Ribeiro

Filó, a joaninha, acordou cedo.

- Que lindo dia! Vou aproveitar para visitar minha tia.

- Alô, tia Matilde. Posso ir aí hoje?

- Venha, Filó. Vou fazer um almoço bem gostoso.

Filó colocou seu vestido amarelo de bolinhas pretas, passou batom cor-de-rosa, calçou os sapatinhos de

verniz, pegou o guarda-chuva preto e saiu pela floresta: plecht, plecht...

Andou, andou... e logo encontrou Loreta, a borboleta.

- Que lindo dia!

- E pra que esse guarda-chuva preto, Filó?

- É mesmo! - pensou a joaninha. E foi para casa deixar o guarda-chuva.

De volta à floresta:

- Sapatinhos de verniz? Que exagero! - Disse o sapo Tatá. Hoje nem tem festa na floresta.

- É mesmo! - pensou a joaninha. E foi para casa trocar os sapatinhos.

De volta à floresta:

- Batom cor-de-rosa? Que esquisito! - disse Téo, o grilo falante.

- É mesmo! - disse a joaninha. E foi para casa tirar o batom.

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- Vestido amarelo com bolinhas pretas? Que feio! Por que não usa o vermelho? - disse a aranha Filomena.

- É mesmo! - pensou Filó. E foi para casa trocar de vestido.

Cansada da tanto ir e voltar, Filó resmungava pelo caminho. O sol estava tão quente que a joaninha resolveu

desistir do passeio.

Chegando em casa, ligou para tia Matilde.

- Titia, vou deixar a visita para outro dia.

- O que aconteceu, Filó? - Ah! Tia Matilde! Acordei cedo, me arrumei bem bonita e saí andando pela

floresta. Mas no caminho...

- Lembre-se, Filozinha... gosto de você do jeitinho que você é. Venha amanhã, estarei te esperando com um

almoço bem gostoso.

No dia seguinte, Filó acordou de bem com a vida. Colocou seu vestido amarelo de bolinhas pretas, amarrou

a fita na cabeça, passou batom cor-de-rosa, calçou seus sapatinhos de verniz, pegou o guarda-chuva preto,

saiu andando apressadinha pela floresta, plecht, plecht, plecht... e só parou para descansar no colo gostoso da

tia Matilde.

Quem é quem

Nye Ribeiro, autora desta fábula, é educadora e jornalista e já escreveu mais de 30 livros. Seus últimos

lançamentos são Boi Zambu e o Musquitim de Direção (24 págs., Ed. Roda e Cia.) e Colorina, a Árvore da

Vida (24 págs., Ed. Roda e Cia.). Para saber sobre ela, acesse www.nyeribeiro.com.br e

www.rodaecia.com.br.

Nina Moraes, que ilustrou este conto com desenhos e colagens em tecido, é gaúcha de Porto Alegre.

Jornalista e ilustradora, colabora com revistas como Bravo e Saúde!, da Editora Abril, além de participar de

projetos editoriais e publicitários.

Guilherme Tell - Tatiana Belinky

Ilustração: Ivan Zigg

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Há muitos anos, antes de ser um país livre e soberano, a Suíça era governada por um regente autoritário

chamado Gessler. Todo mundo tinha medo dele, porque quem desobedecesse às suas ordens era

impiedosamente castigado. A única pessoa que não o temia era o bravo caçador das montanhas de nome

Guilherme Tell, respeitado pelos seus conterrâneos por ser, além de homem de bem, um exímio arqueiro.

Ninguém o superava na pontaria certeira com o arco e a flecha.

O tirano Gessler, arrogante e vaidoso, gostava de aterrorizar a gente do povo. Por isso, mandou erguer na

praça principal um poste no qual fez pendurar o seu chapéu. Diante desse ridículo símbolo de autoridade,

todos os passantes deveriam se curvar. E todos obedeciam, de medo de ser cruelmente punidos. Todos,

menos Guilherme Tell, que não se submetia àquela humilhação por considerá-la abaixo de sua dignidade.

Até que um dia aconteceu de o próprio Gessler estar na praça quando Tell passou por ali com seu filho de 8

anos.

Vendo que o caçador não se curvara diante do chapéu, Gessler ficou furioso e mandou que seus soldados o

agarrassem, gritando:

- Tell, tu me desafiaste, e quem me desafia morre. Mas tu podes escapar da morte se fizeres o que eu te

ordeno.

E o poderoso Gessler mandou que encostassem o filho do caçador ao poste com uma maçã sobre a cabeça.

Então, continuou:

- Agora, Tell, terás de provar a tua fama de grande arqueiro acertando a maçã na cabeça do teu filho com

uma única flechada. Se acertares, o que duvido, sairás livre. Mas, se errares, serás executado aqui, na frente

de todo este povo.

E Guilherme Tell foi colocado no ponto mais distante da praça, com o seu arco e uma flecha.

- Cumpra-se a minha ordem!, bradou Gessler.

- Atire, meu pai, disse o menino. Eu não tenho medo.

Com o coração apertado, Guilherme Tell levantou o arco, apontou a flecha, esticou a corda e, de dentes

cerrados, mirou em direção ao alvo. Zummmm! A flecha zuniu no ar, rapidíssima, e rachou ao meio a maçã

sobre a cabeça da criança.

Um suspiro de alívio subiu da multidão, que assistia horrorizada àquele cruel espetáculo.

Nesse momento, Gessler viu a ponta de uma outra flecha escondida debaixo do gibão do arqueiro.

- Para que a segunda flecha, se tinhas direito a um só arremesso?, urrou o tirano.

Guilherme Tell respondeu, em alto e bom som:

- A segunda flecha era para varar o teu coração, Gessler, se eu tivesse ferido o meu filho.

E, pegando o menino pela mão, Guilherme Tell deu as costas ao tirano e foi embora.

Anos mais tarde, o arqueiro foi um valoroso combatente pela independência da sua terra e pela liberdade de

seu povo.

Lenda popular suíça recontada por Tatiana Belinky, ilustrada por Ivan Zigg

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No tempo em que os bichos falavam

Adriana Abujamra Aith e Ieda Abbud

Ilustração: Evandro Luiz

Houve um tempo em que os bichos falavam, e eles falavam tanto que Esopo resolveu recolher e contar as

histórias deles para todo mundo.

Esopo era escravo de um rei da Grécia e divertia-se inventando uma moral para as histórias que ouvia dos

animais.

Na verdade, nem todos os moradores do país eram capazes de entender a linguagem dos animais, mas Esopo

era. Sobretudo dos pequeninos, que falavam muito baixinho, como por exemplo os ratinhos que moravam

num buraco da parede da cozinha do palácio.

Um dia, quando limpava o chão da cozinha, Esopo ouviu uns ruídos que vinham de dentro do buraquinho.

Os ratinhos estavam muito agitados e preocupados, pois o rei havia colocado um gato grande e forte para

tomar conta dos petiscos reais e o tal gato não era de brincar em serviço, já tinha devorado vários ratos.

Esopo apurou os ouvidos e pôde ouvir tudo o que os ratinhos diziam. Um deles, muito espevitado, parecia

ser o líder e, de cima de uma caixa de fósforos, discursava:

- Meus amigos, assim não é mais possível, não temos mais paz e tudo porque o rei resolveu trazer aquela

fera para cá. Precisamos fazer alguma coisa, e logo, porque senão esse gato vai acabar com a nossa raça!

Era uma assembléia de ratos e todos estavam muito empenhados em solucionar o problema que os afligia:

um gato, grande e forte, que o rei havia mandado colocar na cozinha.

Já tinham perdido vários amigos nos dentes afiados da fera: o Provolone, o Roquefort, o Camembert e o

pobre Tatá, o mais amado de todos.

Planejaram, planejaram e não conseguiram chegar a nenhuma conclusão que agradasse a todos. Precisavam

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de estratégias eficazes e seguras.

Uns achavam que deveriam matar o tal gato; outros diziam que era impossível: "Como matar uma fera

daquelas?"

Horácio estava quase convencido de que a sina de seu povo era morrer entre os dentes do gato. Com

lágrimas nos olhos, já ia descendo da caixa de fósforos quando Frederico, um ratinho muito tímido que

nunca falava, resolveu dar sua opinião:

- Como vocês sabem, eu não gosto muito de falar, por isso serei rápido, mas antes vocês vão responder a

uma pergunta: Por que esse gato é tão perigoso para nós, se somos tão ágeis e espertos?

E Horácio respondeu:

- Ora, Frederico, esse gato é silencioso, não faz nenhum barulho. Como é que vamos saber quando ele se

aproxima?

- Exatamente como eu pensei. Me perdoem a modéstia, mas acho que a idéia que tive é a melhor de todas as

que ouvi aqui. Vejam só, é simples: Vamos arrumar um guizo, pode ser até aquele que pegamos da roupa do

bobo da corte. Lembram? Aquele que achamos bonitinho e que faz um barulho enorme.

Os ratos não estavam entendendo nada, para que serviria um guizo?

Frederico tratou de explicar:

- A gente pega o guizo e coloca no pescoço do gato. Quando ele se aproximar, vamos ouvir o barulho e

fugir. Não é simples?

Todos adoraram a idéia. Era só colocar o guizo que todos ouviriam o gato se aproximar.

Todos os ratos foram abraçar Frederico e estavam na maior euforia quando, de repente, um ratinho, que não

parava de roer um apetitoso pedaço de queijo, resolveu perguntar:

- Mas quem é que vai colocar o guizo no pescoço do gato?

Todos saíram cabisbaixos. Como não haviam pensado naquilo antes?

Era o fim da euforia dos ratinhos. Para Esopo, a moral da história era a seguinte: "Não adianta ter boas

idéias se não temos quem as coloque em prática". Ou ainda: "Inventar é uma coisa, colocar em prática é

outra".

Fábula de Esopo recontada por Georgina Martins, ilustrada por Evandro Luiz

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O céu ameaça a terra

Betty Mindlin

Ilustração: Joana Lira

Meninos e meninas do povo ikolen-gavião, de Rondônia, sentam-se à noite ao redor da fogueira e olham o

céu estrelado. Estão maravilhados, mas têm medo: um velho pajé acaba de contar como, antigamente, o céu

quase esmagou a Terra.

Era muito antes dos avós dos avós dos meninos, era no começo dos tempos. A humanidade esteve por um

fio: podia ser o fim do mundo. Nessa época, o céu ficava muito longe da Terra, mal dava para ver seu azul.

Um dia, ouviu-se trovejar, com estrondo ensurdecedor. O céu começou a tremer e, bem devagarinho, foi

caindo, caindo. Homens, mulheres e crianças mal conseguiam ficar em pé e fugiam apavorados para debaixo

das árvores ou para dentro de tocas. Só coqueiros e mamoeiros seguravam o céu, servindo de esteios,

impedindo-o de colar-se à Terra. Talvez as pessoas, apesar do medo, estivessem experimentando tocar o céu

com as mãos...

Nisso, um menino de 5 anos pegou algumas penas de nambu, "mawir" na língua tupi-mondé dos índios

ikolens, e fez flechas. Crianças dos ikolens não podem comer essa espécie de nambu, senão ficam aleijadas.

Era um nambu redondinho, como a abóbada celeste.

O céu era duríssimo, mas o menino esperto atirou suas flechas adornadas com plumas de mawir. Espanto e

alívio! A cada flechada do garotinho, o céu subia um bom pedaço. Foram três, até o céu ficar como é hoje.

Em muitos outros povos indígenas, do Brasil e do mundo, há narrativas parecidas ou diferentes sobre o

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mesmo assunto. Fazem-nos pensar por que céu e Terra estão separados agora... O povo tupari, de Rondônia,

por exemplo, conta que era a árvore do amendoim que segurava o céu. (Bem antigamente, dizem, o

amendoim crescia em árvore, em vez de ser planta rasteira.)

Antes de o céu subir para bem longe, os ikolens podiam deixar a Terra e ir morar no alto. Iam sempre que

ficavam aborrecidos com alguém, ou brigavam entre si, e subiam por uma escada de cipó. Gorá, o criador da

humanidade, cansou de ver tanta gente indo embora e cortou o cipó, para a Terra não se esvaziar demais.

Lenda contada por Betty Mindlin, ilustrada por Joana Lira

O nascimento do mundo

Maria de la Luz

Ilustração: Kipper

No início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito. Então, veio a luz e surgiram

Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra. Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das

águas; Tane, deus das florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu

origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.

Rangi e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a

luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os

jovens resolveram dar um basta na situação.

- Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! - disse Tumatauenga.

- Não! - disse Tane. - Vamos apenas separálos, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo.

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Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a idéia excelente.

Tane, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no corpo de Rangi e o

empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram, mas - oh, decepção! - só um pouco de luz chegou ao mundo dos filhos. Além disso,

Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.

Para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela fez

ondular as águas azuis dos mares e rios de Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus

cabelos. Os filhos de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.

Olhando lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo, Ranginui ficou doente de

inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em nada aos pais e

aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas, escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo

percebera:

-Uru, meu irmão, preciso de sua ajuda!

- Nada tenho para dar, você bem sabe!

- Ora, Uru, você tem tantas cestas...

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça: - Não tem nada dentro

delas, irmão.

Tane avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados. As

lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz (para nós, estrelas)!

- Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam enfeitar e iluminar a morada

de nosso pai... Uru concordou. As duas cestas foram passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito

especial. Tane conduziu a canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que

riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.

Quando Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem numa

grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado (para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e

Waka o Tamareriti (que é a "cauda" da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram

os guardiões das estrelas.

Lenda maori recontada por Maria de la Luz, ilustrada por Kipper

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Pégaso e Andrômeda, a princesa acorrentada

Walmir Cardoso

Ilustração: Ivan Zigg

Diz a lenda que muito tempo atrás, num distante país do Oriente, havia um rei chamado Cefeu, casado com a

linda rainha Cassiopéia. Tal era a fama de sua beleza, que as pessoas vinham em caravana dos lugares mais

remotos apenas para contemplá-la. Com o passar do tempo, a rainha começou a se considerar a mulher mais

bonita do mundo. Foi nessa época que cometeu um grande erro. Diante de uma multidão que a aclamava,

ousou dizer que era mais bela que as Nereidas. Essas ninfas, para infelicidade da rainha, eram protegidas

pelo poderoso deus dos mares - Posêidon -, que ficou irado com a comparação. Num acesso de fúria,

ergueu-se das águas segurando o tridente, seu enorme cetro de três pontas, e lançou uma maldição sobre o

reino. O nível do mar subiu rapidamente e inundou grande parte do país. Ainda insatisfeito, o deus dos

oceanos enviou um monstro marinho para devorar qualquer criatura que se aproximasse do reino pela região

costeira.

Os pescadores não se atreviam mais a sair de casa. Os navios estrangeiros que costumavam trazer preciosas

mercadorias, não podendo atracar, nem saíam mais de seus portos. E o rei Cefeu foi aconselhado a realizar

um sacrifício para aplacar a ira do deus ofendido. A vítima escolhida foi a princesa Andrômeda, sua filha.

Deveriam amarrá-la aos rochedos para ser devorada por Cetus, o monstro que aterrorizava a costa.

Andrômeda, que além de linda era muito corajosa, resolveu apresentar-se ao sacrifício para salvar o reino. E

assim foi amarrada aos rochedos e ficou esperando o monstro.

Enquanto isso, longe dali, um jovem herói cumpria certa profecia. O belo Perseu, filho de Zeus - deus da

terra e do céu, que habitava o monte Olimpo - e da princesa Danae, havia recebido três presentes muito

especiais: o manto da invisibilidade, sandálias com asas e um escudo de metal tão polido que mais parecia

um espelho. Sua incumbência era matar a Medusa, um monstro em forma de mulher, cujos cabelos eram

serpentes vivas. Todos os seres que a Medusa olhava se transformavam imediatamente em pedra. Usando

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seu manto e voando com as sandálias mágicas, Perseu conseguiu se aproximar da Medusa enquanto esta

dormia. Quando ela pressentiu a presença de alguém, despertou, mas viu apenas sua própria imagem

refletida no escudo polido do nosso herói. Antes que petrificasse, ele cortou-lhe a cabeça e colocou- a dentro

de uma bolsa mágica de couro.

Quando voltava dessa arriscada missão, o jovem encontrou Andrômeda acorrentada nos rochedos e ambos

ficaram perdidamente apaixonados. Mas, no exato instante em que eles se olharam, o monstro Cetus

apareceu. Foi só então que Perseu se lembrou que trazia consigo a cabeça da Medusa. E não pestanejou.

Aproximouse o mais que pôde e mostrou os olhos petrificantes da Medusa para Cetus, que imediatamente se

transformou em pedra e caiu no fundo do oceano. Quando tudo parecia terminado, Perseu aproximou-se de

Andrômeda para soltá-la, mas nesse exato instante uma gota de sangue da Medusa, que restara na bolsa, caiu

no mar. Posêidon era apaixonado pela Medusa, mas nunca tinha conseguido tocá-la. Essa única gota de

sangue em contato com a água provocou um estrondo e uma abundante espuma branca, da qual emergiu um

belíssimo cavalo alado chamado Pégaso. E assim, ao ver o filho de sua amada, Posêidon abandonou a idéia

de vingança.

Muitas lutas o herói Perseu precisou vencer para chegar à felicidade e casar-se com Andrômeda. E propagou

essa vitória ao mundo, mostrando a todos a cabeça decepada da inimiga. Por fim, livrou-se dela ofertando-a

à deusa Atena, sua protetora.

Segundo a lenda, Pégaso foi recebido no monte Olimpo, morada dos deuses gregos, e, tempos depois,

transformou-se numa das constelações mais representativas da primavera - estação do ano que começa entre

21 e 23 de setembro no hemisfério sul.

Lenda grega recontada por Walmir Cardoso, ilustrada por Ivan Zigg

Viola no saco - Tatiana Belinky

Ilustração: Rogério Borges

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Vocês sabem por que quando alguém perde uma discussão, ou coisa assim, e tem de se calar, se diz que

"fulano meteu a viola no saco"? Pois eu vou contar.

Há muito tempo, quando os bichos falavam e muitas coisas eram diferentes, havia muita festança no mundo.

Um dia houve uma festa no céu e todos os bichos foram convidados. Entre eles, um dos mais esperados era

o Urubu, porque as danças dependiam das músicas que ele tocava na viola.

No dia da festa, o Urubu enfiou sua viola no saco e, antes de iniciar a viagem, foi beber água na lagoa. Lá

encontrou o Sapo Cururu, que se secava ao sol. Enquanto o Urubu bebia, o espertalhão do Cururu, que

também queria ir à festa, se escondeu dentro da viola para viajar de carona.

Quando o Urubu chegou ao céu, foi muito bem recebido, pois todos esperavam por ele para começar a

dançar o cateretê e a quadrilha. Mas antes o chamaram para beber umas e outras.

O Urubu foi, deixando a viola encostada num canto. O Cururu aproveitou para pular da viola sem ser visto e

foi se empanturrar com os quitutes da festa. O Urubu também comeu e bebeu até não poder mais e não viu

que o Cururu, aproveitando uma distração sua, se escondera de novo dentro da viola para tornar a tirar uma

carona na volta para a terra.

Quando chegou a hora de voltar, o Urubu guardou a viola no saco e saiu voando de volta para casa. Durante

o vôo, estranhou que a viola estivesse tão pesada. "Na vinda foi fácil, mas na volta está difícil. Será que

fiquei fraco de tanto comer e beber?", pensou ele. Por via das dúvidas, examinou o saco com a viola e

acabou descobrindo o malandro do Sapo Cururu agachado lá dentro. Furioso por ser usado desse jeito, o

Urubu começou a sacudir o saco com a viola, para despejar o Cururu lá do alto e se ver livre dele.

O Cururu, com medo de se esborrachar no chão pedregoso lá em baixo, recorreu à sua proverbial esperteza e

começou a gritar: "Urubu, Urubu, me jogue sobre uma pedra, não me jogue na água, que eu morro

afogado!".

O Urubu, tolo, querendo se vingar do Sapo, viu lá de cima uma lagoa e tratou logo de despejar o Sapo dentro

d’água, que era pra ele se afogar. O espertalhão do Cururu, que só queria era isso mesmo, saiu nadando, feliz

da vida. O bobão do Urubu só não ficou "a ver navios" porque não havia navios naquela lagoa. E é por isso

que, quando alguém perde a partida e tem de sair quieto e calado, dizem que "fulano teve de meter a viola no

saco"...

Fábula recontada por Tatiana Belinky, ilustrada por Rogério Borges