iluminismo e comunicação – de locke a...

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Iluminismo e comunicação – de Locke a Kant Paulo Serra Universidade da Beira Interior Índice 1 Introdução 1 2 Locke e o real como produto semió- tico 4 2.1 Contributos para a teoria da co- municação ............ 4 2.2 A perda do referente ....... 6 2.3 Informação e probabilidade . . . 9 2.4 A “lei da opinião” e o consenti- mento .............. 11 3 Kant e o humano como comunicabili- dade 15 3.1 A natureza pública do pensar . . 15 3.2 Filosofia crítica e comunicabili- dade ............... 16 3.3 Comunicação e sentido comum . 19 4 Iluminismo e meios de comunicação 21 5 Conclusão 24 1 Introdução Segundo refere Raymond Williams, a pala- vra comunicação surge em língua inglesa no século XV enquanto “nome de acção”, de- rivada do latim communicare, que significa “tornar comum a muitos, partilhar”; pelos fins do mesmo século passa a designar tam- bém o objecto que é tornado comum, “uma comunicação”. A partir dos finais do sé- culo XVII, a palavra estende o seu campo semântico aos meios e vias de comunicação como estradas, canais e caminhos-de-ferro, etc., assim se confundindo a comunicação - de informações e ideias - com o transporte - de coisas e pessoas. Já no século XX, sobre- tudo a partir dos anos 20 e em primeiro lu- gar nos EUA, a palavra comunicação passa a designar predominantemente os media como a imprensa ou a rádio, distinguindo-se, as- sim, de forma clara entre a indústria da co- municação propriamente dita e a indústria de transportes. Como sublinha ainda Williams, mesmo enquanto nome de acção a palavra comunicação envolve um sentido duplo: ela pode ser (e é) interpretada seja como trans- missão, “um processo de sentido único”, seja como partilha, “um processo comum ou mú- tuo”. 1 No que se refere ao campo específico da filosofia, a palavra comunicação não consta, como entrada, nem no Dicionário Histórico e Crítico, de Pierre Bayle (1697), nem no Di- cionário Filosófico, de Voltaire (1764), nem sequer na primeira edição da Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert (1751-1765). Apa- rece, nos Suplementos a esta última (1776- 1777), com um sentido que, e como se de- 1 Cf. Raymond Williams, Keywords. A Vocabu- lary of Culture and Society, London, Fontana Press, 1988 3 , pp. 72-73.

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Iluminismo e comunicação – de Locke a Kant

Paulo SerraUniversidade da Beira Interior

Índice

1 Introdução 12 Locke e o real como produto semió-

tico 42.1 Contributos para a teoria da co-

municação. . . . . . . . . . . . 42.2 A perda do referente. . . . . . . 62.3 Informação e probabilidade. . . 92.4 A “lei da opinião” e o consenti-

mento . . . . . . . . . . . . . . 113 Kant e o humano como comunicabili-

dade 153.1 A natureza pública do pensar. . 153.2 Filosofia crítica e comunicabili-

dade . . . . . . . . . . . . . . . 163.3 Comunicação e sentido comum. 194 Iluminismo e meios de comunicação215 Conclusão 24

1 Introdução

Segundo refere Raymond Williams, a pala-vra comunicação surge em língua inglesa noséculo XV enquanto “nome de acção”, de-rivada do latimcommunicare, que significa“tornar comum a muitos, partilhar”; pelosfins do mesmo século passa a designar tam-bém o objecto que é tornado comum, “umacomunicação”. A partir dos finais do sé-culo XVII, a palavra estende o seu campo

semântico aosmeiose vias de comunicaçãocomo estradas, canais e caminhos-de-ferro,etc., assim se confundindo a comunicação -de informações e ideias - com o transporte -de coisas e pessoas. Já no século XX, sobre-tudo a partir dos anos 20 e em primeiro lu-gar nos EUA, a palavra comunicação passa adesignar predominantemente osmediacomoa imprensa ou a rádio, distinguindo-se, as-sim, de forma clara entre a indústria da co-municação propriamente dita e a indústria detransportes. Como sublinha ainda Williams,mesmo enquanto nome de acção a palavracomunicação envolve um sentido duplo: elapode ser (e é) interpretada seja como trans-missão, “um processo de sentido único”, sejacomo partilha, “um processo comum ou mú-tuo”.1

No que se refere ao campo específico dafilosofia, a palavra comunicação não consta,como entrada, nem noDicionário Históricoe Crítico, de Pierre Bayle (1697), nem noDi-cionário Filosófico, de Voltaire (1764), nemsequer na primeira edição daEncyclopédie,de Diderot e D’Alembert (1751-1765). Apa-rece, nosSuplementosa esta última (1776-1777), com um sentido que, e como se de-

1 Cf. Raymond Williams,Keywords. A Vocabu-lary of Culture and Society, London, Fontana Press,19883, pp. 72-73.

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2 Paulo Serra

preende da respectiva entrada, não tem di-rectamente a ver com o actual:

Comunicação,(Gram.) este termo temum grande número de acepções, que seencontrarão a seguir. Ele designa, por ve-zes, a ideia departilha ou decessação(cession), como nacomunicação do mo-vimento; a decontiguidade, de comuni-dadee decontinuidade, como nacomu-nicação de dois canais, portas de comu-nicação; a deexibição por uma pessoa auma outra, como nacomunicação de pe-ças (pieces), etc.”

O anterior não impede, no entanto, quelogo na sua edição inicial aEncyclopédieserefira a uma “Arte de comunicar”. No “Dis-curso preliminar”, essa arte aparece identifi-cada, de forma metonímica, com a própriaLógica – definida quer como a arte que serefere à “maneira de adquirir conhecimen-tos, e a de se comunicar reciprocamente osseus próprios pensamentos”, quer como aarte que “ensina a ordenar as ideias na or-dem mais natural, a formar a sua cadeia maisimediata, a decompor as que encerram umgrande nome de simples, a examiná-las sobtodos os aspectos, enfim a apresentá-las aosoutros sob uma forma que as torne fáceisde apreender”.2 A Lógica assim conside-rada subdivide-se, por sua vez, em Gramá-tica, que trata dos “preceitos” que se refe-rem ao “uso das palavras” que visa comu-nicar “ideias”, e em Retórica, que se refereà arte da ”eloquência” que visa comunicar

2 D’Alembert, “Discours Préliminaire des Édi-teurs”, inEncyclopédie ou Dictionnaire Raisonné desSciences, des Arts et des Métiers, Vol. 13 (Tomo 1 dooriginal), Milão, Paris, Franco Maria Ricci, 1977, p.ix.

“paixões”.3 Já na “Explicação detalhada dosistema dos conhecimentos humanos”, a Ló-gica é apresentada, de forma tripartida, comoincluindo a “Arte de pensar”, a “Arte de re-ter os pensamentos” e a “Arte de os comu-nicar” (ou “Arte de transmitir”) – sendo estaúltima que inclui, agora, a Gramática, ou “ci-ência dos instrumentos do Discurso” e a Re-tórica, ou “ciência das qualidades do Dis-curso”. Note-se ainda que, na “Arte de re-ter”, se inclui a “ciência dos suplementos damemória”, que tem como seus elementos aescrita e a imprensa - que não são incluídas,portanto, e ao contrário do que se poderia es-perar, na “arte de comunicar”.4

Apesar da distância a que nos encontra-mos destes usos iluministas do verbo “co-municar”, aquilo a que hoje se chama a “so-ciedade da comunicação” é, em grande me-dida, a concretização da utopia comunicaci-onal que tem as suas raízes no iluminismoeuropeu do século XVIII – já que, como su-blinham Armand e Michèle Mattelart, “[a]ideia de comunicação e transparência acom-panhou a crença das Luzes no progresso so-cial e na emancipação dos indivíduos.”5

Assim, no final daquela que é, provavel-mente, uma das caracterizações ao mesmotempo mais completas e mais sintéticas doiluminismo, Condorcet refere-se à formacomo os “princípios” daquele movimento,“passando pouco a pouco das obras dos fi-lósofos para todas as classes da sociedade

3 D’Alembert, “Discours préliminaire”,op. cit., p.x.

4 Cf. “Explication détaillée du système des con-naissances humaines”,op. cit., p. xlviii (actualizamosa grafia do título).

5 Armand e Michèle Mattelart,História das Te-orias da Comunicação, Porto, Campo das Letras,1997, p. 152.

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em que a instrução se estendia para além docatecismo e da escrita, tornaram-se a profis-são de fé comum, o símbolo de todos os quenão eram nem maquiavélicos nem imbecis”.6

Uma tal “passagem” é, obviamente, indisso-ciável de toda uma estratégia de divulgação,nomeadamente impressa, das ideias dos filó-sofos e da sua discussão e apropriação pelopúblico em geral e o letrado em particular.Também Kant, ao caracterizar o iluminismocomo “a saída do homem do seu estado demenoridade”7, faz depender um tal processode emancipação do “uso público” da razão,daquilo a que Habermas chamará o “princí-pio da publicidade”.8 O “público” e a sua“ilustração” são, deste modo, temas e preo-cupações centrais da generalidade dos ilumi-nistas – com a excepção talvez, e mesmo as-sim relativa, de Rousseau.9 Compreende-se,portanto, que os problemas relativos à “co-municação” sejam não só trazidos para pri-meiro plano mas também, pelo menos emparte, verdadeiramente inventados pelos ilu-ministas.

Os cerca de cem anos que vão da publi-cação doEnsaio sobre o Entendimento Hu-mano, de John Locke, em 1690, até à redac-

6 Condorcet,Esquisse d’un Tableau Historiquedes Progrès de L’esprit Humain, "Neuvième Époque.Depuis Descartes jusqu’à la formation de la républi-que française", Paris, Vrin, 1970, p. 164.

7 Cf. Emmanuel Kant, “Réponse à la question:qu’est-ce que les lumières ?", VIII, 35, in EmmanuelKant,Oeuvres Philosophiques, II (Des Prolégomènesaux écrits de 1791), Paris, Gallimard, 1985, p. 209.

8 Jürgen Habermas,L’Espace Public, Paris, Payot,1993, p. 114.

9 Sobre a posição a Rousseau no contexto do ilu-minismo cf. Paulo Serra, “Informação e democracia:o sentido da crítica rousseauniana da informação”, inJoão Carlos Correia (Org.),Comunicação e Poder,Covilhã, UBI, 2002, pp. 173-220.

ção e publicação, na década de 90 do séculoXVIII, das últimas obras essenciais de Kant,nomeadamente das que mais directamente sereferem à sua filosofia da política, da histó-ria e da cultura vêem surgir todo um conjuntode obras e de autores que são essenciais parapodermos fazer uma arqueologia mínima da-quilo a que hoje se chama a “sociedade dacomunicação”.

Na impossibilidade de estudarmos deforma minimamente exaustiva todas essasobras e autores, optámos por centrar-nos emdois autores fundamentais: John Locke, cujafilosofia em geral e da comunicação em par-ticular influencia, de forma determinante,todo o século XVIII e, nomeadamente, amaior parte dos autores daEncyclopédie, queaparece como o verdadeiro marco simbólicoda “era da ilustração”;10 Immanuel Kant, deque uma das maiores descobertas, frequente-mente ignorada, consistiu em instalar a inter-subjectividade e a comunicação no próprioíntimo do pensar. A escolha de dois pensado-res separados por um tal intervalo de tempojustifica-se pelo facto de Locke ser o grandeiniciador de um movimento que só ganha oseu sentido pleno com a “revolução coperni-ciana” de Kant.

Atendendo à importância que os iluminis-tas em geral e Kant em particular atribuemà publicação das suas teses, não poderíamosterminar o presente texto sem uma referên-

10 Acerca do modo como os iluministas avaliam ocontributo filosófico de Locke, cf. por exemplo: Vol-taire, "Treizième Lettre. Sur M. Locke", inLettresPhilosophiques, Association de Bibliophiles Univer-sels, 1999 (1734), http://www.abu.org/; D’Alembert,“Discours Préliminaire des Éditeurs”, inEncyclopé-die ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Artset des Métiers, p. xxvii; Condorcet,Esquisse d’un Ta-bleau Historique des Progrès de L’esprit Humain, pp.155-6.

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cia, ainda que breve, à questão dos meios decomunicação, no seio dos quais a imprensa- livros, mas também revistas e jornais - as-sume, claramente, um papel decisivo.

2 Locke e o real como produtosemiótico

2.1 Contributos para a teoria dacomunicação

Ao assinalar a importância de Locke em ma-téria de comunicação, Robert T. Craig situaaquele filósofo na origem das duas grandestradições modernas da teoria comunicacio-nal: o “modelo da transmissão” e a semió-tica.11

No que se refere ao “modelo da transmis-são”, ele é resumido por Luhmann da se-guinte forma: “Vulgarmente recorre-se, paraa explicar [à comunicação], à metáfora da‘transmissão’. Diz-se que a comunicaçãotransmite notícias ou informação do emis-sor ao receptor.”12 O que Luhmann chama“metáfora da transmissão” corresponde, emtermos gerais, àquilo a que Michael Reddychama a “metáfora da conduta” (conduitmetaphor), e que pode ser descrita da se-guinte maneira: somos emissores que colo-cam ideias (objectos) em palavras (contento-res), que enviam (por uma conduta) para umdestinatário, que retira essas ideias dos con-tentores. Eventualmente, as próprias pala-vras podem ter de ser metidas em outra espé-cie de “contentores” – os chamados “meios

11 Cf. Robert T. Craig, “Communication”, in T. O.Sloane (Ed.),Encyclopedia of Rhetoric, New York,Oxford University Press, 2001, pp. 125-137.

12 Niklas Luhmann,Sistemas Sociales. Lineami-entos para una teoría general, Barcelona, Anthropos,1998, p. 141.

de comunicação” -, para serem transportadasde um local para um outro espacial e tem-poralmente distante do primeiro.13 Ainda deacordo com este autor, o “modelo da trans-missão” caracterizará não só a teoria mate-mática da comunicação, de Sahnnon e We-aver – cuja obraA Teoria Matemática daComunicação, publicada em 1949, “é larga-mente aceite como uma das principais fontesde onde nasceram os Estudos da Comunica-ção” -14, mas também as teorias que imedi-atamente se lhe seguiram e, em grande me-dida, nela se inspiraram, nomeadamente teo-rias como a “teoria da agulha hipodérmica”,de Harold Lasswell, no domínio da comuni-cação de massas, ou a de Roman Jakobson,no domínio da comunicação linguística e in-terpessoal.

Tal não significa, no entanto, que a “me-táfora da conduta” tenha tido o seu apare-cimento apenas em meados do século XX,com os chamados “estudos de comunica-ção”. Assim, Ronald Day sublinha o facto dejá Ferdinand de Saussure ter falado, no seuCurso de Linguística Geral, leccionado entre1906 e 1911, do “‘circuito-falante’ (le circuitde la parole) formado entre duas pessoas na

13 Cf. Michael J. Reddy,“ The Conduit Metaphor- A Case of Frame Conflict in Our Language aboutLanguage”, in Andrew Ortony (Ed.),Metaphorand Thought, Cambridge University Press, 1979,pp. 284-324. Cf., sobre o mesmo tópico, KlausKrippendorff, “Major Metaphors of Communicationand some Constructivist Reflections on their Use”,Cybernetics & Human Knowing,1993, 2, 1, pp. 3-25,http://www.asc.upenn.edu/usr/krippendorff/METAPHOR.htm.

14 John Fiske,Introdução ao Estudo da Comuni-cação, Porto, Asa, 20027, p.19. Cf. também DenisMcQuail, Sven Windahl,Modelos de Comunicaçãopara o Estudo de da Comunicação de Massas, Lis-boa, Editorial Notícias, 2003, pp. 14-15.

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transmissão das suas ideias através do meioda linguagem falada”.15 Ora, muito antes deSaussure, a “metáfora da conduta” tem umadas suas manifestações fundamentais noEn-saio sobre o Entendimento Humano, de JohnLocke, publicado em 1690. Das várias pas-sagens que poderiam ser utilizadas para ilus-trar uma tal concepção de Locke, quiçá amais significativa seja a seguinte:

Sendo a língua o grande canal por ondeos homens comunicam as suas descober-tas, os seus raciocínios e conhecimentos,aquele que mal a utiliza, embora não cor-rompa as fontes de conhecimento que es-tão nas próprias coisas, contudo, poderomper ou entupir as canalizações pelosquais ele é distribuído para uso público epara bem da humanidade.16

Esta passagem vai, no entanto, mais longedo que a mera metáfora da transmissão ouda conduta – ao indicar, como finalidades úl-timas da comunicação, o “uso público” doconhecimento e o “bem geral da humani-dade”; finalidades que são, como se sabe, osgrandes lemas do iluminismo enquanto mo-vimento filosófico e político. E, como ex-plicita Locke numa passagem anterior à ci-tada, este “canal” permite não só a comuni-cação “sincrónica”, entre os membros vivos

15 Ronald E. Day, “The ‘Conduit Metaphor’ andThe Nature and Politics of Information Studies”,Journal of the American Society for Information Sci-ence(JASIS), 51(9), July 2000.

16 John Locke,Ensaio sobre o Entendimento Hu-mano, Livro III, Capítulo XI, §5, Volume II, Lisboa,Gulbenkian, 1999, pp. 696-7 (Para certos termos eexpressões originais consultámos a versão inglesa emThe Works of John Locke, (1824), The Online Libraryof Liberty, Edition usedThe Works of John Locke inNine Volumes,London, Rivington, 1824).

de uma determinada sociedade, como tam-bém a comunicação “diacrónica”, entre osmembros vivos e as outras gerações, passa-das e futuras: “a fala é o grande elo que unea sociedade, e o canal comum por meio doqual os progressos do conhecimento são le-vados de um homem para outro e de uma ge-ração para outra”.17

Relativamente à semiótica ou “doutrinados sinais”, ela tem por “assunto”, segundoLocke, “considerar a natureza dos sinais deque o espírito faz uso para a compreensãodas coisas, ou para comunicar os seus co-nhecimentos aos outros”,18 constituindo umadas três partes da Filosofia, a par da Física(Filosofia Natural) e da Ética (Filosofia Prá-tica) – uma divisão que recupera uma velhatradição que remonta aos estóicos.

Acerca do lugar de Locke na história dasemiótica, observa Umberto Eco que “Lockepoderia ser definido como o pai da semió-tica moderna, quanto mais não fosse por terestatuído a existência desta disciplina e suaidentidade prática com a própria lógica naconclusão do seuEnsaio sobre o entendi-mento humano”.19 Esta identificação da se-miótica com a lógica justifica-se, segundoLocke, pelo facto de as palavras constituírema “parte mais útil” da “doutrina dos sinais”levando, assim, a que esta se interesse espe-cialmente por elas.20

O paralelo entre Locke e os dois principaisfundadores da Semiótica contemporânea é,

17 Locke, Ensaio, Livro III, Capítulo XI, §1, Vo-lume II, p. 695.

18 Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XXI, §4, Vo-lume II, p. 1000.

19 Umberto Eco,O Signo, Lisboa, Presença. 1981,p. 115.

20 Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XXI, §4, Vo-lume II, p. 1000.

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aqui, evidente: a identificação entre semió-tica e lógica será também feita por CharlesSanders Peirce; a consideração dos signoslinguísticos como a principal classe de “si-nais” está presente, pelo menos de forma im-plícita, em Ferdinand de Saussure. A pro-ximidade de Saussure com Locke revela-se,ainda, na concepção que este tem do “si-nal” linguístico ou, para sermos mais preci-sos, na forma como concebe a relação entreos “sons” ou “palavras” e as “ideias” - comouma relação “arbitrária” ou “convencional”–, bem assim como a distinção dos “sinais”relativamente às “coisas”.21 Com sublinhaJúlia Kristeva, “a definição saussuriana dosigno está aqui esboçada”.22

O suposto antagonismo, hoje enfati-zado por certos autores, entre os modelos“transmissivo” e semiótico da comunicaçãoresolve-se em Locke com a afirmação deuma mesma ideia básica - a de que a “co-municação”, e nomeadamente, a comunica-ção que se efectua mediante a linguagem, é“o grande instrumento e o elo de união dasociedade”:

Deus, ao criar o homem para ser uma cri-atura sociável, não somente lhe inspirouo desejo e lhe incutiu a necessidade deviver com os da sua espécie, como, alémdisso, lhe deu a faculdade de falar, paraque a linguagem fosse o grande instru-mento e o elo de união da sociedade.23

Ao adoptar tal concepção, Locke antecipa

21 Cf. Ferdinand de Saussure,Cours de Linguisti-que Générale, Paris, Payot, 1978, Introduction, Cha-pitre III, pp. 23-35.

22 Cf. Julia Kristeva,História da Linguagem, Lis-boa, Edições 70, s/d, pp. 246-7.

23 Cf. Locke,Ensaio, Livro III, Capítulo I, §1, Vo-lume II, p. 541.

o movimento histórico que conduziu à emer-gência de uma (forma de) sociedade na quala “informação” e os “sinais” terão uma im-portância cada vez maior – a tal ponto que sedenomina hoje, de forma generalizada, “so-ciedade da comunicação”. Uma sociedadeque, e para utilizamos a linguagem de Luh-mann, se caracteriza pelo “primado da dife-renciação funcional” e que, por conseguinte,“não dispõe de nenhum órgão central. É umasociedade sem vértice nem centro.”24

Como procuramos mostrar em seguida,esta “descentração” e esta “horizontaliza-ção” da sociedade, operada pela “comuni-cação”, é correlativa daquilo a que chama-mos aperda do referentee que, sendo já um(o) tema fundamental em Locke, só ganharátoda a sua importância a partir de Saussuree da “viragem linguística” de que ele é umdos principais protagonistas - uma viragemque acaba por ser uma viragem comunica-cional já que, e como observa Foucault, alinguística saussuriana assenta numa con-cepção de língua já não como “tradução dopensamento” e “representação” mas como“forma de comunicação”.25

2.2 A perda do referenteMesmo reconhecendo que a utilização daspalavras implica, por parte dos seus utiliza-dores, dois pressupostos pragmáticos a queé difícil escapar – o de que essas mesmaspalavras não só “são marcas das ideias quese encontram também no espírito dos outros

24 Cf. Niklas Luhmann,Teoría Política en elEstado de Bienestar, Madrid, Alianza Universidad,1997, pp. 42-3.

25 Michel Foucault, “Linguistique et sciences soci-ales” (1969), inDits et Écrits, Volume I (1954-1969),Paris, Gallimard, 1998, pp. 826-7.

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homens com quem comunicam” mas “sig-nificam também a realidade das coisas” -26,Locke insiste na sua tese central27 de que

[. . . ] as palavras não significam, pois,na sua primeira e imediata significação,senão as ideias que estão no espírito dequem delas se serve, por mais negligenteou imperfeitamente que essas ideias se-jam deduzidas das coisas que se supõeque elas representam. Quando um ho-mem fala a um outro, é para ser compre-endido; e o fim da linguagem é que estessons ou marcas possam dar a conhecer asideias do que fala ao que o escuta.28

As palavras não representam, portanto,“senão as ideias particulares dos homens”, enão, como se supõe habitualmente, as coisaselas mesmas. A relação entre palavras e coi-sas implica, sempre, a mediação das ideias;por isso mesmo, a relação entre palavras ecoisas só pode ser “arbitrária”, e mesmo du-plamente arbitrária. Procuremos explicitar adupla relação – entre palavras e ideias, porum lado, e ideias e coisas, por outro – queaqui está em causa.

Comecemos pela última relação. Deacordo com a perspectiva empirista própriade Locke, aquilo que conhecemos das coi-sas – queremos dizer, as exteriores, deixandode lado as interiores – são apenas as ideiassimples ou sensações que elas provocam em

26 Cf. Locke,Ensaio, Livro III, Capítulo II, §§4-5,Volume II, p. 548.

27 Cf. Norman Kretzmann, “The Main Thesis ofLocke’s Semantic Theory", in I. C. Tipton,Locke onHuman Understanding: Selected Essays, Oxford, Ox-ford University Press, 1977, pp. 123-140.

28 Cf. Locke, Ensaio, Livro III, Capítulo II, §2,Volume II, p. 546.

nós, e a partir das quais o nosso espírito com-põe as ideias complexas de substâncias, mo-dos e relações que são, no essencial, ideiasgerais e abstractas. Deste modo, longe deserem “reflexos” ou “imagens” mais ou me-nos naturais ou necessárias das coisas - umaconcepção que remonta aoPeri Hermeneias,de Aristóteles-29, as ideias são antes “cons-truções selectivas” e “arbitrárias”, necessa-riamente subjectivas, que nos fornecem nãoas “essências reais” mas as “essências nomi-nais” dessas mesmas coisas; são, como re-sume Eco, um, “produto semiótico” – peloque poderiam, com toda a propriedade, se-rem classificadas como “signos”, quiçá emprimeiro grau, das coisas.30 Marcando tam-bém esta distância de Locke em relação a vi-sões como a de Aristóteles, Cassirer afirmarque, para o filósofo inglês, as “diversas clas-ses de conceitos e de significações linguís-ticas” não podem deixar de ser senão “umreflexo deste mesmo procedimento subjec-tivo de ligação e de divisão, e não do modode existência objectivo do ser e da sua estru-tura em espécies e géneros reais, emgenerae specieslógico-metafísicas”.31 Por conse-guinte, as interpretações mais ou menos cor-rentes que atribuem a Locke a tese de queas palavras significam de forma imediata asideias e de forma mediata – através das ideias– as próprias coisas, não têm qualquer sen-tido; para nós estas são sempre, como diráKant, “em si”.32

29 Cf. Aristóteles, “De l’interprétation”, 16 a 10,in Organon, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,1994, pp. 77-8.

30 Eco,O Signo, pp. 115-6.31 Ernst Cassirer,La Philosophie des Formes Sym-

boliques, Volume 1 (Le langage), Paris, Les Éditionsde Minuit, 1991, p. 80.

32 Para uma discussão destas interpretações cf.Walter R. Ott,Locke’s Philosophy of Language, es-

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8 Paulo Serra

Quanto à segunda relação, a que existe en-tre palavras e ideias - ou, como dirá Saus-sure, entre significantes e significados - ,Locke sublinha repetidamente que “as pa-lavras não significam senão as ideias parti-culares dos homens, e isto por uma impo-sição perfeitamente arbitrária”; prova dessatese será, precisamente, o “facto de elas nemsempre despertarem no espírito de outros -mesmo quando falamos a mesma língua - asmesmas ideias de que supomos elas seremo sinais”.33 Mas a arbitrariedade desta “im-posição perfeitamente arbitrária” não podeser total e de cada um – sem o que os ho-mens não se poderiam entender, minima-mente, uns aos outros. O denominador co-mum é construído, em todas as línguas, porum “consentimento tácito” derivado do “usocomum”: “Na verdade, em todas as línguas,o uso comum atribui, por um consentimentotácito, certos sons a certas ideias e limita,deste modo, a significação deste som, peloque alguém que não o aplique justamenteà mesma ideia fala sem propriedade”34 e,por conseguinte, de forma ininteligível paraaquele que o escuta. Deste modo, é sem-pre possível, será mesmo a regra, que asideias que transmitimos a outrem, atravésdas palavras, não evoquem nesse outrem asideias que tencionamos comunicar, mas ou-tras mais ou menos diferentes. As diver-sas “imperfeições das palavras” referidas porLocke derivam, precisamente, das dificulda-des que elas apresentam para servirem, de

pecialmente Capítulo 1, Cambridge University Press,2004, pp. 7-33.

33 Cf. Locke, Ensaio, Livro III, Capítulo II, §8,Volume II, p. 550.

34 Locke,Ensaio, Livro III, Capítulo II, §8, VolumeII, p. 551.

forma perfeita, de “canal” de comunicaçãodas ideias de uns homens a outros.

A relação entre palavras e coisas que aca-bámos de explicitar – e que faz das palavrassignos das ideias que são, por sua vez, “sig-nos” das coisas - tem, como consequênciafundamental, a cisão entre aquilo a que po-demos chamar o mundo humano, o mundodos signos, da comunicação, e o mundo nãohumano, das coisas que supomos existiremcomo “referentes” dos signos mas acerca do“em si” das quais não podemos, em rigor,pensar ou dizer absolutamente nada, preci-samente porque só o podemos fazer atravésdos signos, ideias e palavras; ou, dito de ou-tra forma, a cisão entre ologos e o ontos.É a essa cisão que chamamos, precisamente,a “perda do referente”. Nesta situação ca-racterizada pela “perda do referente”, não éapenas a linguagem que é uma “convenção”– a própria “realidade” se torna uma conven-ção. O “real” passa a ser o que todos, ou pelomenos a maioria, dizem que é real. A reali-dade é assim, construída pela própria comu-nicação intersubjectiva; é aquilo a que, recor-rendo a uma expressão que William Gibsonutiliza no seuNeuromancerpara caracterizaro ciberespaço, poderíamos chamar uma “alu-cinação consensual”.

Ora, se aceitarmos a tese de Luhmann deque “a história da racionalidade Europeiapode ser descrita como a história da dissolu-ção de umacontinuumde racionalidade quetinha ligado o observador no mundo com omundo”, de uma “convergência de pensa-mento e ser” que ocorreria de forma mais oumenos natural,35 e, ainda, que essa dissolu-

35 Niklas Luhmann, “European rationality”,Ob-servations on Modernity,Stanford University Press,1998, p. 23.

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ção “deve ter tido o seu princípio já no no-minalismo da Idade Média tardia, pelo me-nos no século XVII”,36 parece-nos incontes-tável que em Locke uma tal dissolução apa-rece plenamente consagrada. Tal faz do fi-lósofo inglês o primeiro filósofo verdadeira-mente moderno e explica, também, o papelfundador que lhe atribuem não só os ilumi-nistas seus contemporâneos como os nossoscontemporâneos dos “estudos da comunica-ção”.

2.3 Informação e probabilidadeDe acordo com Locke, é não só possívelcomo necessário distinguir-se entre demons-tração e probabilidade, conhecimento e fé.Existe demonstração quando conseguimos“mostrar o acordo ou desacordo de duasideias, pela intervenção de uma ou mais pro-vas, que têm uma constante, imutável e visí-vel ligação de uma com a outra”; a probabi-lidade é, ao invés, “a aparência de tal acordoou desacordo, pela intervenção de provas,cuja conexão não é constante nem imutável,ou, pelo menos, não se percebe que o seja,mas é, ou parece de um modo geral ser as-sim, e basta para induzir a mente a julgar aproposição verdadeira ou falsa, mais do queo contrário”.37 Para ilustrar uma tal distin-ção, Locke dá o exemplo seguinte: existe de-monstração se eu provo e percebo que, numtriângulo, os três ângulos internos são iguaisa dois rectos; mas, se eu me limitar a aceitarde um outro - “um matemático, um homemdigno de crédito”, diz Locke - tal demonstra-ção, estou já no domínio da probabilidade,

36 Luhmann,ibidem, p. 24.37 Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XIV, §1, Vo-

lume II, p. 909.

assente na prova que é a veracidade habitualdesse outro.38

Ora, a impossibilidade – em termos de“tempo livre, paciência e meios” – de cadahomem para fundar todas as suas opiniõesem provas certas e irrefutáveis, ou, como dizLocke, em obter um “conhecimento certo edemonstrativo”, combinada com a urgênciada acção em que a vida o coloca de formapermanente, leva-o a agir com base em opi-niões que não ultrapassam a mera probabili-dade.39 Essas opiniões prováveis podem serformadas a partir da nossa observação e ex-periência anteriores ou, o que será a maiorparte dos casos, a partir de experiências quenos foram transmitidas por outrem, podendoser mais ou mesmo prováveis de acordo comuma série de factores a tomar em considera-ção:

Os campos da probabilidade são, em re-sumo, os dois seguintes: Primeiro: a con-formidade de qualquer coisa com o nossopróprio conhecimento, observação e ex-periência. Segundo: o testemunho dosoutros, garantidos pela sua observação eexperiência. No testemunho dos outrostem que se considerar: 1- O número. 2- A integridade. 3- A proficiência dastestemunhas. 4 – A intenção do autor,quando se trata de um testemunho dedu-zido de um livro citado. 5- A congruênciadas partes e circunstâncias do relato. 6 –Os testemunhos contrários.”40

Assim, e para recorremos a um outro

38 Cf. Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XIV, §1,Volume II, pp. 919-910.

39 Locke, Ensaio, Livro IV, Capítulo XV, §3, Vo-lume II, p. 917.

40 Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XIV, §4, Vo-lume II, p. 911.

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exemplo de Locke, o facto de um homemcaminhar sobre o gelo é conhecimento seeu próprio vir o homem a caminhar sobre ogelo; se, ao invés, tal facto me for transmi-tido por outrem, tal entra já no domínio daprobabilidade, sendo mais ou menos prová-vel de acordo com os dois “campos da pro-babilidade” referidos e, dentro do segundodesses “campos”, os vários critérios enume-rados.41 O problema que aqui está em jogo –e a que, sem forçarmos demasiado o pensa-mento de Locke, poderíamos chamar o pro-blema da “credibilidade da informação” - éde grande actualidade, sendo colocado porLippmann em termos muito semelhantes aosdo filósofo inglês quando afirma, ao referir-se aosmedia, que “[e]xcepto em relação aalguns poucos assuntos, acerca dos quais onosso conhecimento é grande, somos incapa-zes de escolher entre relatos falsos e verda-deiros. Assim, escolhemos entre repórterescredíveis e não credíveis”.42

Fundar a nossa opinião no testemunho deoutrem não deve confundir-se, no entanto, ecomo acontece frequentemente, com consi-deramos como fundamento da probabilidadedas nossas opiniões a mera opinião dos ou-tros – na medida em que não existe “umacoisa mais perigosa em que se possa confiarnem nada que se preste mais a induzir al-guém em erro, visto que há muito mais falsi-dade e erro entre os homens do que verdade econhecimento”.43 Esta mesma ideia é refor-çada e desenvolvida, adiante, quando Locke

41 Cf. Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XIV, §5,Volume II, p. 912.

42 Walter Lippmann, Public Opinion, NewBrunswick, New Jersey, Transaction, 1998 (NewYork, Macmillan, 1922), p. 223.

43 Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XIV, §6, Vo-lume II, p. 913.

considera “o nosso assentimento às opiniõescomuns recebidas, ou dos nossos amigos oudo nosso partido, vizinhança ou país” como“a quarta e última falsa medida da probabi-lidade, (. . . ) e que mantém na ignorância eno erro mais pessoas que todas as outras jun-tas”.44

Da diversidade e insegurança das opiniões- do facto de que “é indubitável, para a maiorparte dos homens, se não para todos, ter vá-rias opiniões, sem provas certas e indubitá-veis da sua verdade”45 – extrai Locke umaconsequência fundamental: a tolerância emrelação a todas as opiniões, erigindo comoúnico “guia” dessas opiniões não a autori-dade imposta por outrem mas a sua própriarazão;46 a nossa “ignorância mútua” deve serremovida através de “meios suaves e equi-tativos de informação” e nunca através daimposição de opiniões de uns aos outros.47

Aliás, a “instrução” – a informação – acabapor ter um efeito (só) aparentemente parado-xal: quanto mais instruídos são os homens,mais conscientes são da sua ignorância e,portanto, menos dogmáticos e mais toleran-tes são com os outros.48

44 Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XX, §17, Vo-lume II, pp. 996.

45 Locke, Ensaio, Livro IV, Capítulo XV, §4, Vo-lume II, p. 917.

46 Cf. Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XV, §4,Volume II, pp. 917-8.

47 Cf. Locke,Ensaio, Livro IV, Capítulo XV, §4,Volume II, pp. 918-9.

48 Cf. Locke,ibidem, p. 919.

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Iluminismo e comunicação 11

2.4 A “lei da opinião” e oconsentimento

Para uma coisa que “não existe”49 mas queé, de qualquer forma, “dada como garan-tida” enquanto fundamento da democraciamoderna,50 o mínimo que se pode dizer é quea “opinião pública” tem uma já longa, com-plexa e sinuosa história.

Como sublinha Luhmann, foi na parte fi-nal do século XVIII que “surgiu o conceitomoderno de opinião pública como o sobe-rano “secreto” e a autoridade invisível da so-ciedade política. A opinião púbica foi estili-zada como um paradoxo, como o poder in-visível do visível. E, nesta forma semântica,tornou-se a ideia culminante do sistema po-lítico.”51 O conceito de opinião pública apa-rece, desde o princípio, associado ao “con-ceito idealizado” de indivíduo: ela é a opi-nião que os indivíduos expressam, de formalivre e igualitária, no “espaço público”.

Se é verdade que a constatação que Lipp-mann fazia, já em 1922 – “Dado que se supõeque a Opinião Pública é o motor primeirodas democracias, poder-se-ia razoavelmenteesperar encontrar sobre ela uma vasta litera-tura sobre ela. Não se encontra.” –52 já nãoterá hoje razão de ser, podemos dizer que, epor razões exactamente inversas às aduzidaspelo autor americano, continua a não ser fá-cil delimitar, de forma objectiva, o conceitode “opinião pública”. De qualquer modo,parece ser possível reconduzir as múltiplas

49 Cf. Pierre Bourdieu, “L’opinion publiquen’éxiste pas ”, inQuestions de Sociologie, Paris, Mi-nuit, 1980, pp. 222-235.

50 Cf. Lippmann,Public Opinion, p. 253.51 Niklas Luhamnn, “Complexidade societal e opi-

nião pública”, inA Improbabilidade da Comunica-ção, Lisboa, Vega, 1993, p. 66.

52 Lippmann,op. cit., p. 253.

concepções da opinião pública a duas fun-damentais, que Elisabeth Noëlle-Neuman re-sume da seguinte forma:

i) A concepção da opinião pública como“processo racional”, que “se fixa especial-mente na participação democrática e no in-tercâmbio de pontos de vista diferentes so-bre os assuntos públicos, assim como na exi-gência de que o governo tenha em conta es-tas ideias e a preocupação de que o processode formação da opinião possa ser manipu-lado pelo poder do estado e do capital, pelosmeios de comunicação e a técnica moderna”– uma concepção que se encontra patente emHabermas e se filia em autores como Humee Kant;

ii) A concepção da opinião pública como“controlo social”, que “busca garantir um ní-vel suficiente de consenso social sobre os va-lores e os objectivos comuns. Segundo esteconceito, o poder da opinião pública é tãogrande que não pode ignorá-lo nem o go-verno nem os membros individuais da socie-dade. Este poder procede da ameaça de iso-lamento que a sociedade dirige contra os in-divíduos e os governos desviados, e do medodo isolamento devido à natureza social dohomem” – uma concepção que se encontrapatente na própria Noëlle-Neuman e na suatematização da “espiral do silêncio ou, ainda,em Walter Lippmann e na sua tese do “este-reótipo como veículo de difusão da opiniãopública”, e se filia em autores como Locke eTocqueville.53

É certo que, como reconhece Noëlle-

53 Cf Elisabeth Noëlle-Neuman,La Espiral del Si-lencio. Opinión pública: nuestra piel social, Barce-lona, Paidós, 1995, p. 289; sobre Lippmann, cf. pp.189-198. Uma versão mais sintética da posição deNoëlle-Neuman encontra-se em “La espiral del silen-cio. Una teoría de la opinión pública”, in Jean-Marc

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Neuman relativamente a Locke, a expres-são “opinião pública” (public opinion) nãoaparece noEnsaio; no entanto, o conceitoestará aí presente, de forma indirecta, emdois aspectos fundamentais: “na sua ideiade acordo, que só pode interpretar-se comounidade social e, portanto, pública”; “na suainsistência no ‘lugar’, com a sua conotaçãode espaço público por excelência”.54 Veja-mos, de forma mais detalhada, a forma comoLocke tematiza a questão da opinião e, maisespecificamente, a “lei da opinião ou reputa-ção”.

Em matéria de opiniões, Locke parte daconstatação – uma constatação que hoje, pro-vavelmente, qualificaríamos de “relativistacultural” - de que em todas as sociedades,e divergindo de sociedade para sociedade,existe um conjunto de opiniões que, por maisirrazoáveis, absurdas e contraditórias quesejam, são “aceites e respeitadas como sefossem inamovíveis primeiros princípios”.55

Ora, como se afirma logo a seguir, essas opi-niões ou convicções “não tiveram por origemnada de mais importante do que a superstiçãode uma ama, ou a autoridade de uma anciã,mas passaram, ainda assim, com o tempo ea aceitação progressiva, a atingir a dignidadede princípios de religião ou de moral”.56

Dotada desta sacralidade da tradição, nãoadmira que a opinião se torne numa “lei”

Ferry, Dominique Wolton y Otros,El Nuevo EspacioPúblico, Barcelona, Gedisa, 1998, pp. 200-9.

54 Noëlle-Neuman,ibidem, p. 100; especifica-mente sobre Locke, ver “A lei da opinião pública:John Locke”, pp. 97-101.

55 Cf. Locke,Ensaio, Livro I, Capítulo II, §21, Vo-lume I, pp. 73-4.

56 Locke,ibidem, §22, p. 74.

pelo menos tão coerciva57 como a lei divinaou a lei civil:

As leis pelas quais os homens regulamgeralmente as suas acções e julgam darectidão ou prevaricação das mesmas,parecem-me ser estas três: - 1 Alei di-vina. 2. A lei civil. 3. A lei da opiniãooureputação, se assim a posso chamar. Pelarelação que estabelecem com a primeira,os homens julgam se as suas acções sãopecados ou deveres; pela segunda, se sãocrimes ou não; pela terceira, se são virtu-des ou vícios.58

É a “lei da opinião ou da reputação” que,como se vê, determina o que em cada socie-dade se considera como virtude - o que estáde acordo com essa “lei” - e o que se consi-dera como vício – o que vai contra ela -, oque merece recompensa e o que merece cas-tigo, o que é respeitável e o que é condená-vel.59 Apesar das diferenças que existem depaís para país, de lugar para lugar, de socie-dade para sociedade acerca do que se consi-dera como virtude e como vício, “[a] virtudee o louvor estão de tal forma unidos que fre-quentemente são designados somente por umnome”.60

A “lei da opinião ou reputação”, que seestabelece nas diversas sociedades e gruposhumanos por “um consenso secreto e tácito”acaba por ter um âmbito ainda mais alargado

57 Recordemos que a coerção é, precisamente, umadas características fundamentais que Durkheim atri-bui aos “factos sociais”; ora, uma parte substancialdestes corresponde, precisamente, àquilo a que Lockechama aqui a “lei da opinião”.

58 Locke, Ensaio, Livro II, Capítulo XXVIII, §7,Volume I, p. 467.

59 Locke,ibidem, §10, p. 468.60 Locke,ibidem, §11, p. 469.

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do que a própria lei civil, na medida em queincide sobre todos os comportamentos - ou,pelo menos, todos os comportamentosob-serváveis- , e não sobre um conjunto maisou menos restrito de acções, isto é, as queatentam contra a liberdade, a segurança oua propriedade dos outros.61 E àqueles quepossam pôr em dúvida a justeza da desig-nação de “lei” – da opinião ou reputação –aplicada àquilo que não será mais do que“o consenso de alguns homens”, Locke ar-gumenta com o que nos mostra a históriada humanidade, que “a maior parte se go-verna principalmente, se não somente, porestalei de costumes(law of fashion) e, as-sim, faz aquilo que a mantenha de bem comos seus semelhantes e dá pouca atenção àsleis de Deus ou aos magistrados”.62 Mais:enquanto que muitos, mesmo a maioria, nãoreflectem seriamente sobre a desobediênciaàs leis divinas, remetendo a sua obediênciapara um futuro mais ou menos longínquo, ouiludem-se com a impunidade em relação aoincumprimento das leis civis, “nenhum ho-mem escapa ao castigo da censura e do des-crédito quando vai contra os costumes e opi-niões daqueles com que convive e aos quaisse subjuga”, o que faz com que não exista“um homem em dez mil que seja suficiente-mente duro e insensível para suportar o des-crédito e a condenação constantes do próprio

61 Como diz Locke, “embora os homens se unamem sociedades políticas, delegam no público a forçade todo o seu poder, de modo a que não a podem apli-car contra qualquer concidadão para além do que a leido se país permite; todavia, mantêm, ainda, o poder dejulgar bem ou mal, de aprovar ou desaprovar as acçõesdaqueles com quem vivem e com quem conversam, ea partir desta aprovação e desaprovação estabelecementre eles o que irão designar como virtude e vício.”(Locke,ibidem).

62 Locke,ibidem, §12, pp. 471.

grupo”.63 Conclui-se, assim, que a “lei daopinião” tem não só um âmbito mais vastodo que a lei civil mas também um poder deimposição e coerção maior do que o dessa leicivil e até mesmo do que o a da própria lei di-vina; o que permitira, também, compreendero sentido profundo do dito segundo o qual “avoz do povo é a voz de Deus”.

A "lei dos costumes, ou da censura pri-vada” (the law of fashion, or private cen-sure), como também chama Locke à “lei daopinião”64 , tem duas implicações óbvias, in-timamente relacionadas: a primeira, a con-formidade de cada um dos homens à opiniãomaioritária da sociedade a que pertence, de-terminada pelo receio do isolamento e da re-jeição; a segunda, a dificuldade de criação edifusão de novas opiniões em qualquer soci-edade humana. Uma outra implicação, me-nos óbvia, e que é posta em destaque porNoëlle-Neuman, é a de que os líderes de opi-nião, os que conseguem fazer e influenciar aopinião pública têm de ser, precisamente, ho-mens capazes de arrostar com “o descréditoe a condenação constantes do próprio grupo”de que fala Locke; ou sê-lo, pelo menos, emmomentos muito precisos e decisivos.65

Uma questão que pode ser vista em cone-xão com a da “lei da opinião” – embora nãose confunda com ela – é a do consentimento.A sociedade política ou civil forma-se, se-gundo Locke, mediante a renúncia, por partede cada indivíduo, do “seu poder executivodas leis da natureza” e a transferência dessepoder para o “público”.66 Em tal sociedade,

63 Locke,ibidem.64 Locke,ibidem, §13, p. 471.65 Cf. Noëlle-Neuman, “La espiral del silencio.

Una teoría de la opinión pública”,op. cit., p. 201.66 Cf. John Locke, Traité du Gouvernement

Civil (1690), Traduction française de David Mazel

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as leis devem ser feitas de acordo com as exi-gências do “ bem público”, que exprimem eque determina, assim, o limite do poder dasociedade ou da autoridade legislativa sobreos indivíduos; um tal “bem público” traduz-se, em última análise, na garantia da liber-dade, da propriedade e da segurança de to-dos e cada um dos indivíduos.67 Ora, sendoos homens “todos naturalmente livres, iguaise independentes”, a sua submissão a um “po-der político” exige o consentimento de cadaum, ou, pelo menos, o do maior número –já que a exigência do consentimento da to-talidade poderia, no limite, impossibilitar aacção do próprio “corpo político”; essa ac-ção deve, assim, ser determinada “pela maiorforça, que é o consentimento do maior nú-mero”.68

Este consentimento pode ser ou expressoou tácito. Se quanto ao primeiro a sua de-finição não levanta dificuldade – um indi-víduo declara, explicitamente, a sua von-tade de se incorporar num determinado es-tado - , o mesmo não acontece com o se-gundo, que é o que caracteriza a maior partedos homens das diversas sociedades. Ele édefinido, por Locke, como o consentimentoque resulta do próprio facto de um homempossuir determinadas posses – terras, casas,bens, etc. - que estão sob a alçada de um de-terminado governo de uma determinada so-ciedade; pelo que a quebra desse consenti-mento tácito, pela parte de um determinado

en 1795 à partir de la 5e édition de Londres pu-bliée en 1728, Les Classiques des Sciences Sociales,http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html, Capítulo VII, §89.

67 Cf Locke, ibidem, Capítulo IX, §131.68 Cf. Locke,ibidem, Capítulo VIII, §§95-6; Capí-

tulo XIX, §211.

homem, só poderia verificar-se com a suasaída do corpo político a que pertence.69

Ambas as teses de Locke de que a socie-dade política se institui mediante um “con-trato original” e de que o poder assentano “consentimento” explícito ou tácito são,como se sabe, rejeitadas liminarmente porDavid Hume70 - que, ao discutir a questãodo “consentimento”, afirma a dado passo que“[a] obediência ou sujeição torna-se coisatão habitual que os homens, na sua maioria,jamais procuram investigar as suas origensou causas, tal como em relação à lei da gra-vidade, à resistência ou às leis mais univer-sais da natureza.”71 Tal não obsta a que, nou-tro dos seus ensaios, o mesmo Hume afirmeque, “como aforça está sempre do ladodos governados, os governantes apoiam-seunicamente na opinião. O governo assentaportanto apenas na opinião; e esta máximaaplica-se tanto aos governos mais despóti-cos e militares como aos mais livres e po-pulares.”72 Deste modo, a discordância deHume com Locke acerca da génese do go-verno não exclui a sua concordância com eleacerca do poder da opinião. Compreende-se, assim, que Noëlle-Neuman veja na posi-ção de Hume sobre a opinião uma espéciede prolongamento da de Locke – no sentidoem que Hume estende, ao governo, o poderda “lei da opinião” que Locke via exercer-sesobre o homem comum.73

69 Locke,ibidem, Capítulo VIII, §119.70 Cf. Hume, “Do contrato original”, inEnsaios

Morais, Políticos e Literários, Lisboa, Imprensa Na-cional - Casa da Moeda, 2003, pp. 399-416.

71 David Hume, “Do contrato original”,ibidem, p.402.

72 Hume, “Dos primeiros princípios do governo”,ibidem, p. 39.

73 Cf. Noëlle-Neuman,La Espiral del Silencio.Opinión pública: nuestra piel social, p. 104.

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3 Kant e o humano comocomunicabilidade

3.1 A natureza pública do pensarA divisa do iluminismo - “Sapere aude!Tema coragem de te servires do teupróprio en-tendimento.”74 -, longe de incitar a um exer-cício mais ou menos solipsista do pensar,exige o “usopúblico” da razão, entendendo-se por tal “o que se faz [“por escrito”, diráKant adiante] enquanto sábio perante o con-junto do públicoque lê”.75 Como observaHannah Arendt,76 a aparente restrição dosentido do “uso público” da razão que aquié feita por Kant resulta do facto de que,e ao contrário do que acontece com o ho-mem enquanto cidadão, que no cumprimentodos seus diversos papéis e obrigações develimitar-se ao “uso privado” da razão, o ho-mem enquanto “sábio” é um cidadão domundo, um membro do que Kant chama uma“sociedade civil universal”.77 Esta conside-ração de que o iluminismo tem o seu cen-tro de gravidade no “uso público” da razãopermite compreender, ainda segundo Arendt,porque é que “a liberdade política mais im-portante para Kant não era, como para Es-pinosa, alibertas philosophandimas a liber-dade de falar e publicar”; e que, apesar dea palavra “liberdade” ter múltiplos significa-dos em Kant, a liberdade política seja “defi-nida, de forma bastante inequívoca e consis-tente ao longo do seu trabalho, como ‘fazer

74 Kant, “Réponse à la question: qu’est-ce que leslumières ?", VIII, 35,op. cit., p. 209.

75 Kant, ibidem, VIII, 37, p.211.76 Cf. Hannah Arendt,Lectures on Kant’s Political

Philosophy, The University of Chicago Press, 1989,p. 39.

77 Cf. Kant, ibidem, VIII, 37, p. 210.

umuso públicoda sua razão em todos os do-mínios”’.78

No entanto, Kant não entende a “liberdadede expressão” da maneira como hoje, em ge-ral, a entendemos - como a liberdade de cadaum manifestar em voz alta, na esfera pú-blica, aquilo que pensa, em silêncio, na suaesfera privada, nesse processo a que Platãochamava, noTimeu, “uma conversação que aalma prossegue consigo própria”.79 De facto,para Kant não há pensamento “privado”, istoé, pensamento que se encontreprivado deuma relação de comunicação com os outros;pensar exige sempre ter em conta, de formareal e inpraesentiaou de forma imagináriae in ausentia,80 a presença inalienável dosoutros, as suas dúvidas, as suas objecções,os seus argumentos prováveis. Como dizArendt, Kant “acredita que a própria facul-dade de pensar depende do seu uso público;sem ‘o teste do exame livre e aberto’ não sãopossíveis nem o pensamento nem a forma-ção de opinião. A razão não é feita ‘para seisolar a si própria mas para estar em comuni-dade com outros”’.81

Deste modo, e ao contrário do que acon-tece com Locke, longe de encarar a comu-nicação como a manifestação exterior de umpensamento interior, prévio àquela, Kant traza comunicação para o próprio coração dopensamento. Num certo sentido, a comu-

78 Arendt, op. cit., p. 39. Na citação do passode Kant feita por Arendt seguimos a versão de Kant,VIII, 36, op. cit., p. 211.

79 Platão, “Théétète”, 189e, inOeuvres Complètes,Volume II, Paris, Gallimard, 1994, p. 158.

80 O que está em causa, neste último caso, é o papelda imaginação e do “senso comum”, a que nos referi-remos adiante; sobre esta questão cf. Arendt,op. cit.,p. 43.

81 Arendt,ibidem, p. 40.

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nicação é mesmo prévia ao próprio pensa-mento, na medida em que o nosso pensa-mento é já resposta ao pensamento que ou-tros pensaram antes de nós. Lido a partirdesta perspectiva de Kant, o dito de Platãoatrás citado significa que pensar é não só co-municar comigo mesmo como se fosse umoutro, mas também como se o pensamentodesse outro que sou eu fosse um pensamentooutro; percebe-se, assim, a necessidade sen-tida pelo filósofo grego de caracterizar o pen-sar em termos de linguagem e comunicação– isto é, em termos de algo “público”.

É precisamente esta relação íntima entrepensamento e comunicação que explica por-que é que não tem qualquer sentido, paraKant, a posição daqueles que pretendem se-parar “a liberdade de falar ou de escrever”da “liberdade de pensar” – já que abdicar daprimeira seria abdicar, necessária e simulta-neamente, da segunda:

Diz-se que a liberdade de falar ou de es-crever pode, certamente, ser-nos retiradapor uma autoridade superior, mas não aliberdade de pensar. Mas quais seriam ocampo e a rectidão do nosso pensamentose nós não pensássemos, por assim dizer,em comunidade com outros, numa comu-nicação recíproca dos nossos pensamen-tos! Pode pois dizer-se que esta autori-dade exterior que arranca aos homens aliberdade de cada um dar publicamenteconta dos seus pensamentos, lhes arrancaao mesmo tempo a liberdade de pensar, oúnico tesouro que ainda nos resta na mul-tidão de fardos da vida civil e o único quenos pode ainda ajudar a encontrar um re-médio para todos os males desta condi-ção.82

82 Kant “Qu’est-ce que s’orienter dans la pensée?”,

Dada esta relação íntima entre os dois ti-pos de liberdade, em toda a sociedade hu-mana deve existir, a par da “obediência aomecanismo da constituição política segundoleis coercivas”, um “espírito de liberdade”que, e no que se refere ao “dever universaldo homem”, substitua a mera coacção (vio-lenta) pelo convencimento ou auto-coacção(racional) - uma distinção que, como facil-mente se compreenderá, é paralela aos usos“privado” e “público” da razão atrás referi-dos. E, constatando que é “a obediência semo espírito de liberdade” que leva às socieda-des secretas, Kant sublinha que “é uma vo-cação natural da humanidade comunicar re-ciprocamente, sobretudo a propósito do quediz respeito ao homem em geral”.83

3.2 Filosofia crítica ecomunicabilidade

Uma questão que merece ser colocada é a desaber se a problemática da comunicação nãoé mais ou menos estranha à “filosofia crí-tica”, nomeadamente à que aparece naCrí-tica da Razão Pura,e em que a comunicaçãonão é, de facto, objecto de uma tematizaçãoautónoma; se, por outras palavras, a comu-nicação não é, tão-só, uma preocupação do“último Kant”, mais virado para os temas dapolítica, da história e da cultura e, no fundo,já relativamente arredado dos grandes temasda filosofia crítica propriamente dita.

Para uma resposta – ou antes, um princí-pio de resposta - a essa questão partiremos

VIII, 144, in Oeuvres Philosophiques, II (Des Prolé-gomènes aux écrits de 1791), pp. 542-3.

83 Kant, “Sobre a expressão corrente: isto pode sercorrecto na teoria, mas nada vale na prática”, inAPaz Perpétua e outros Opúsculos, Lisboa, Edições 70,1988 (1793), p. 92; cf. Arendt,op. cit., p. 40.

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Iluminismo e comunicação 17

de uma passagem dosProlegómenosem que,e a propósito do “sistema das categorias”,afirma Kant:

Extrair do conhecimento comum os con-ceitos que não se fundam de modo al-gum sobre um conhecimento particulare que, entretanto, se encontram em todoo conhecimento empírico, de que elesconstituem, por assim dizer, a simplesforma de ligação, isso não supunha maisreflexão ou discernimento do que ex-trair, de maneira geral, de uma língua,as regras do uso efectivo das palavras ereunir assim os elementos de uma gra-mática (de facto, estas duas investiga-ções encontram-se também aparentadasde forma muito estreita) [. . . ].84

Percebe-se a analogia de Kant: tal comopodemos extrair as regras formais de umalíngua, a sua gramática, dos enunciadosdessa língua – que têm de ser vistos comomanifestações ou concretizações das primei-ras -, podemos extrair os conceitos purosdo entendimento, as categorias, dos conhe-cimentos empíricos – que têm de ser vistos,eles também, como manifestações ou con-cretizações dos primeiros. E, tal como nãopodemos dizer seja o que for com algum sen-tido sem aplicar a gramática de uma língua,também não podemos conhecer seja o quefor sem aplicar as categorias; ambas têm umafunção transcendental.

Mas como entender, mais concretamente,o “parentesco” estreito entre ambas as inves-tigações a que Kant se refere?

84 Kant, “Prolégómènes à toute métaphisique fu-ture”, §39, IV, 322-3, inOeuvres Philosophiques, II(Des Prolégomènes aux écrits de 1791), p. 100.

Uma primeira resposta, aparentemente ób-via, a esta pergunta é a de que é possívelidentificar as gramáticas das diversas línguasàs categorias do entendimento –que aque-las não seriam senão manifestações diversasde um mesmo conjunto, universal, de cate-gorias. No entanto, se é verdade que umatal hipótese ainda poderia ser admitida – emesmo, assim, como muitas reservas e difi-culdades – em relação às línguas ditas flexio-nais, nomeadamente as indo-europeias comoo grego, o latim ou o alemão, muito dificil-mente seria possível admiti-la em relação àslínguas ditas aglutinantes (como o esquimó)ou isolantes (como o cantonês).85

Uma segunda resposta, mais plausível, éa de que o “parentesco” a que Kant se re-fere no excerto transcrito tenha a ver com ofacto de que, quer as gramáticas das línguas,quer as categorias relevam de uma mesmaexigência de inteligibilidade e comunicabi-lidade: umas e outras constituem grelhas deleitura constitutivas do “real” e determinam,assim –a priori - o que acerca desse “real”pode ser dito e conhecido; e o que pode serdito e conhecido é também, e é apenas, o quepode serentendidosimultaneamente por to-dos os homens ou, pelo menos, por todosos membros de uma determinada comuni-dade.86 Sem esta inteligibilidade e comu-nicabilidade universais, o conhecimento nãopoderia deixar de ser algo de meramente sub-jectivo, incapaz da objectividade que é a ca-racterística distintiva de todo o verdadeiro

85 Cf., sobre esta questão, Fernando Gil, “Comopensa a língua”,Análise, Lisboa, No 12, 1989.

86 Deixamos em aberto a questão de saber se existe,para todos os homens de todas as sociedades, ummesmo conjunto de categorias - relembre-se aqui todaa discussão levantada pela tese de Lévy-Brühl acercada “mentalidade primitiva”.

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conhecimento. Compreende-se assim que,ainda que noutro contexto – ao tratar da re-lação entre o juízo de gosto e o juízo teórico,no âmbito daCrítica da Faculdade do Juízo-, Alexis Philonenko pergunte: “O que é anatureza? É a obra dos nossos juízos objecti-vos, que descobrem a razão das coisas, e estaé o conhecimento. O que é o conhecimento?É o conjunto dos conceitos que forjamos etrocamos. O que é a troca: é a possibilidadeda comunicação. O que é, enfim, a possibi-lidade de comunicar: é a essência do nossosaber [. . . ].”87

Desta forma, se aCrítica da Razão Puranão fala de comunicação e, nomeadamente,de comunicação linguística, tal deve-se ape-nas ao facto de, no fundo, uma tal obra nãofalar senão de comunicação – ou melhor, decomunicabilidade.

A exigência de comunicabilidade patentenas categorias (na razão teórica) está pre-sente, também, na lei moral (na razão prá-tica).

A “lei moral em mim” – que é uma “coisa”tão insofismável como “o céu estrelado so-bre mim” –88 , longe de me encerrar no so-lipsismo que Kant critica em autores comoBerkeley, abre-me ao outro, à intersubjecti-vidade. Como o mostram as duas primeirasfórmulas do imperativo categórico, a lei mo-ral apresenta, como dimensões essenciais, auniversalidade e a consideração da pessoa(sua e do outro) como fim. Ora, em cadauma destas dimensões a lei moral revela apresença – virtual, latente – do Outro.

Esta importância atribuída ao Outro

87 A. Philonenko,L’Oeuvre de Kant. La philo-sophie critique, Tome II (Morale et politique), Paris,Librairie Philosophique J. Vrin, 19975(1972), p.194.

88 Cf. Kant, Crítica da Razão Prática, “Conclu-são”, Lisboa, Edições 70, 1989, p.183.

parece-nos ser, precisamente, o ponto cen-tral da Ética kantiana - uma perspectiva de-fendida também por MacIntyre, para quem atese essencial da moral kantiana reside, jus-tamente, na fórmula que manda tratar os ou-tros como fins e nunca apenas como meios,que manda não instrumentalizar os outros.89

Na mesma linha, sublinha Carmo Ferreiraque “aquilo que vincula o indivíduo na suasingularidade de agente moral, a lei univer-salmente válida, é indissociável do própriovínculo dos indivíduos entre si”.90 Essa lei,que institui o “reino dos fins”, “operaria en-tão como o garante de uma acção comunica-tiva não distorcida e que não visa a manipu-lação e a instrumentalização.”91

Pode-se, é claro, objectar à ética kanti-ana que a lei moral – e, por conseguinte, aexistência da “acção comunicativa não dis-torcida” - são ideais mais ou menos inalcan-çáveis. No entanto, essa crítica não atingepropriamente a ética kantiana – no sentidoem que, e tal como a crítica da razão puradefine as condições de possibilidade do co-nhecimento, o que a crítica da razão práticafaz é definir as condições de possibilidade daética; que tal ética seja uma realidade é todauma outra questão, empírica e de facto, a queapenas a humanidade pode dar resposta.

89 Cf. Alasdair MacIntyre,After Virtue: a Study inMoral Theory, London, Duckworth, 1994, p. 46.

90 Manuel Carmo Ferreira, “A intersubjectividadeem Kant”, inRevista Portuguesa de Filosofia, TomoXLIX, 1993, Fascículo 4 (pp. 571-585), Braga, Fa-culdade de Filosofia da Universidade Católica Portu-guesa, p. 580.

91 Ferreira,ibidem, pp. 580-1.

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3.3 Comunicação e sentidocomum

A ding an sichkantiana pode interpretar-se,sem dificuldade, no sentido daquilo a que, apropósito de Locke, chamámos a “perda doreferente”; será mesmo esse, em nossa opi-nião, o seu significado mais profundo. Ora,assim sendo, o que permite que o conheci-mento não seja algo de meramente subjec-tivo não é senão o seu carácter intersubjec-tivo e, por conseguinte, a sua comunicabili-dade universal; ao mesmo, tempo, só esta co-municabilidade universal permite ultrapassaro cepticismo de autores como Hume. Comodiz Kant:

Conhecimentos e juízos, juntamente coma convicção que os acompanha, têm quepoder comunicar-se universalmente; poisde contrário eles não alcançariam ne-nhuma concordância com o objecto: elesseriam em suma um jogo simplesmentesubjectivo das faculdades de representa-ção, precisamente como o cepticismo oreclama.92

Mas se conhecimentos e juízos devem po-der comunicar-se universalmente para seremobjectivos, então também deve pressupor-sea comunicabilidade universal do “estado deânimo, isto é, a disposição das faculdades deconhecimento para um conhecimento em ge-ral”93. Ou seja: a comunicabilidade não ape-nas do conhecimento mas também da preten-são à universalidade que esse conhecimentotransporta, e que deriva da legislação do en-tendimento sobre a imaginação, mediante ascategorias.

92 Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §21, Lis-boa, IN-CM, 1998, pp. 129-130.

93 Kant, ibidem, §21, p. 130.

O “sentido comum”, que se descobrecomo pressuposto do juízo de gosto, é“a condição necessária da comunicabilidadeuniversal dos nossos conhecimentos, a qualé pressuposta em toda a lógica e em todoo princípio dos conhecimentos que não sejacéptico”.94 Quanto ao que se deve entenderpor este “sentido comum”, diz Kant:

Porsensus communis, porém, tem que seentender a ideia de um sentidocomuni-tário (gemeinschaftichen), isto é de umafaculdade de julgamento, que na sua re-flexão considera em pensamento (a pri-ori) o modo de representação de todo ooutro, como quepara ater o seu juízo àinteira razão humana e assim escapar àilusão que – a partir de condições prova-das subjectivas, as quais facilmente po-deriam ser tomadas por objectivas – teriainfluência prejudicial sobre o juízo.95

É o sentido comum que funda a se-gunda das máximas do pensamento ou“entendimento humano comum”: “Pensarcolocando-se no lugar de todo o outro”, oumáxima da “maneira de pensaralargada”.96

Como Kant esclarece adiante, pode falar-se de uma pessoa com “maneira de pensaralargada"quando “ela não se importa comas condições privadas subjectivas do juízo,[. . . ] e reflecte sobre o seu juízo desde umponto de vista universal (que ele somentepode determinar enquanto se transpõe parao ponto de vista de outros)”.97

E se é certo que, de acordo com Kant, sepode falar de um sensus communis aestheti-

94 Kant, ibidem, §21, p. 130.95 Kant, ibidem, §40, p.196.96 Cf. Kant, ibidem, §40, pp. 196-7.97 Cf. Kant, ibidem, §40, pp. 197-8.

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cus(o gosto) e de umsensus communis logi-cus(o entendimento humano comum),98 o fi-lósofo não deixa de considerar que é o gostoque, com maior direito, pode ser chamado“um sentido comunitário, se se quiser em-pregar o termo ‘sentido’ como um efeito dasimples reflexão sobre o ânimo, pois entãose entende por sentido o sentimento de pra-zer. Poder-se-ia até definir o gosto pela fa-culdade de julgamento daquilo que torna onosso sentimento, numa representação dada,universalmente comunicável, sem mediaçãode um conceito.”99

A comunicação, seja a comunicação “ló-gica” seja a do sentimento, envolve sempreum certo tipo de relação – ora assente na “co-erção” ora na “liberdade” - entre as faculda-des, nomeadamente a imaginação e o enten-dimento:

A aptidão do homem a comunicar os seuspensamentos requer também uma relaçãoda faculdade da imaginação e do entendi-mento, para remeter intuições a conceitose por sua vez conceitos a intuições, queconfluem num conhecimento; mas em talcaso a consonância de ambas as faculda-des do ânimo élegal, sob a coerção deconceitos determinados. Somente ondea faculdade de imaginação em sua liber-dade desperta o entendimento e este semconceitos transpõe a faculdade da imagi-nação para um jogo conforme a regrassó aí a representação se comunica, nãocomo pensamento, mas como sentimentointerno de um estado de ânimo conformea fins.100

98 Cf. Kant, ibidem, §40, nota 10, p. 269.99 Cf. Kant, ibidem, §40, p. 198.

100 Kant, ibidem.

Assim, a primazia do senso comum esté-tico sobre o lógico, do sentimento sobre oconhecimento representa, simultaneamente,a primazia da “liberdade” das faculdades so-bre a submissão de umas em relação às ou-tras – mais concretamente, da submissão daimaginação em relação ao entendimento (noconhecimento) e da imaginação em relação àrazão (na moral). Neste sentido pode dizer-se, como o faz Deleuze ao contrapor sensocomum lógico, senso comum moral e sensocomum estético, que “o senso comum es-tético não completa os outros dois:funda-os ou torna-os possíveis. Jamais uma facul-dade assumiria um papel legislador e deter-minante se, porventura, todas as faculdadesjuntas não fossem primeiro capazes desta li-vre harmonia subjectiva”.101

A “fundação” a que Deleuze aqui se re-fere pode ser interpretada da seguinte forma:colocado perante a (bela) natureza, o sujeitoexperimenta uma “harmonia” das faculda-des, materializada como sentimento estético,que o leva a consciencializar a sua caracterís-tica essencial de transcender a mera subjecti-vidade, de tender para o universal (a humani-dade). Deste modo, a faculdade do juízo, quedescobre o universal no particular – é esta acaracterística distintiva do juízo reflexivo -,acabará por antecipar e permitir o funciona-mento do entendimento e da razão que, en-quanto faculdades do universal, determinamo particular, objectos e acções.102

É precisamente neste sentido que vai ainterpretação que Alexis Philonenko faz daCrítica da Faculdade do Juízoe do seu lu-gar – e papel – no contexto da filosofia de

101 Gilles Deleuze,A Filosofia crítica de Kant, Lis-boa, Edições 70, s/d, pp. 56-7.

102 Cf. Kant,Crítica da Faculdade do Juízo, Intro-dução, IV, pp. 60 ss.

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Kant. De acordo com Philonenko,103 coe-xistem em Kant três formas de comunicação,sendo as primeiras duas indirectas e objecti-vas e a terceira directa e subjectiva. A pri-meira é a que se efectua pela mediação doconceito (razão teórica). A segunda, a quese efectua pela mediação da lei moral (razãoprática). Quanto à terceira, diz Philonenko,“é aquela pela qual o homem encontra di-rectamente o homem sem conceito, por e nojuízo de gosto ou, mais geralmente, no sen-timento que suscitou um juízo estético”;104

assim, acrescenta, é “o problema da inter-subjectividade humana que é afirmado”.105

Este terceiro tipo de comunicação encontra-se patente no facto de o juízo de gosto –“Isto é belo” ou “Isto é sublime” – ser sub-jectivo mas pretender, ao mesmo tempo, tervalidade universal, comunicar uma tal vali-dade: “Dizendo ‘isto é belo’, eu elevo-meatravés da reflexão do meu sentimento parti-cular até à universalidade. A comunicaçãoopera-se sem conceitos e é a comunicaçãohumana.”106 A análise da relação entre osdois tipos do juízo de gosto e os juízos éticoe teórico leva Philonenko a concluir que “naestética Kant une a liberdade e a natureza, osdois domínios da filosofia. O que é directoao nível da intersubjectividade, mas subjec-tivo, torna possível ao homem a comunica-ção indirecta, mas objectiva, que se encon-tra na moral e na ciência.”107 O próprio Kantparece insistir nesta “união” entre os dois do-mínios da filosofia mediante a faculdade dojuízo, quando afirma que esta é “um termo

103 Ver, para o que se segue, A. Philonenko,op. cit.,pp. 191 ss.

104 Philonenko,ibidem, p. 191.105 Philonenko,ibidem, pp. 191-2.106 Philonenko,ibidem, p. 193.107 Philonenko,ibidem, p.194.

médio entre o entendimento e a razão”108 eque “entre a faculdade de conhecimento e ade apetição está o sentimento de prazer, as-sim como a faculdade de juízo está contidaentre o entendimento e a razão.”109

A ser assim, talvez não seja descabidopensar que a pergunta pelo conceito de ho-mem – e recordemos que a questão antro-pológica é aquela que, para Kant, acaba porresumir todas as outras -110 acaba por ter asua resposta decisiva no estético e no senti-mento; que, como diz Garcia Morente, “é nosentimento universal que a humanidade en-contra uma expressão totalmente humana” -111 uma afirmação para a qual o filósofo espa-nhol encontra apoio no §60 daCrítica da Fa-culdade do Juízo. Aí, e a propósito da “pro-pedêutica a toda a bela arte”, Kant observaque “humanidade <Humanität> significa porum lado o universalsentimento de participa-ção, e por outro lado a faculdade de podercomunicar-seíntima e universalmente”.112

4 Iluminismo e meios decomunicação

Como vimos, para Kant o que caracteriza oiluminismo não é apenas o facto de se apre-sentar como um projecto de “saída do ho-mem da sua menoridade”, mas também ofacto de fazer depender a realização de tal

108 Kant,op. cit., Introdução, III, p.58.109 Kant, ibidem, p. 59.110 “No fundo, porém, poder-se-ia contar tudo isto

como Antropologia, porque as três primeiras pergun-tas referem-se à última.” (Kant, “Conceito da Filoso-fia em Geral”, in José Barata-Moura,Kant e o Con-ceito de Filosofia, Lisboa, Sampedro, 1972, p. 75).

111 Manuel Garcia Morente, “Prólogo del traduc-tor”, in Manuel Kant, Critica del Juicio, Madrid,Espasa-Calpe, 19843 (1914), pp. 64.

112 Kant,op. cit., §60, p.265.

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projecto de uma estratégia de comunicação,“por escrito”, com o “público que lê” – cons-tituído, idealmente, por todos os homens.

A escrita e a leitura de que aqui se trataé, sobretudo – mas não só, basta pensar-mos na importância que a epistolografia as-sume neste período –, a possibilitada pelaimprensa. Se é verdade que, como observaLuhmann, a descoberta da escrita (e da lei-tura) trouxe, como novidade maior, o dar “àacção solitária a oportunidade de ser umaacção social, de ser comunicação”, fazendode cada um, em cada momento, um partici-pante na “reprodução da sociedade”,113 nãoé menos verdade que só com só a imprensaesse processo ganhou uma expressão signifi-cativa.

Se há iluminista em que transpareça, deforma nítida, a consciência da importância edo papel da imprensa nos novos tempos eleé, sem dúvida, Condorcet. Assim, no seuEsquisse d’un Tableau Historique des Pro-grès de L’esprit Humain, redigido em 1793-4, aquele autor refere-se à imprensa comorepresentando um “meio de falar às naçõesdispersas”, como “uma nova espécie de tri-buna” que visa influenciar menos pela pai-xão e de forma efémera do que pela razãoe de forma mais durável, menos seduzir doque esclarecer. E, como principais “efeitos”dessa mesma imprensa, Condorcet refere aformação de “uma opinião pública, pode-rosa pelo número dos que a partilham; enér-gica, porque os motivos que a determinamagem simultaneamente sobre todos os espí-ritos, mesmo a distâncias muito afastadas”;o estabelecimento de “um tribunal indepen-

113 Niklas, Luhmann,Sistemas Sociales. Lineami-entos para una teoría general, Barcelona, Anthropos,1998, p. 382.

dente de todo o poder humano, em relaçãoao qual é difícil esconder seja o que for eimpossível subtrair-se”; a duplicação e con-jugação das “forças” – do saber e do poder –do “génio” humano, na medida em que o quecada um descobre pode ser apropriado e uti-lizado por todos os outros; a correcção dosnovos erros logo após o seu surgimento, semlhes dar tempo para propagar-se e “enraizar-se nos espíritos”; o abalar dos erros rece-bidos desde a infância, na medida em quese torna impossível impedir a discussão des-ses erros e os “progressos das verdades”; a“possibilidade de espalhar as obras solicita-das pelas circunstâncias do momento, ou osmovimentos passageiros de opinião, e dessaforma interessar em cada questão que se dis-cute num ponto único, a universalidade doshomens que falam uma mesma língua”.114

Quanto à questão de saber se a imprensa –através da sua difusão generalizada, da mul-tiplicação dos livros, da sua diversificaçãoe adaptação a todos os gostos e condições,da simplificação e do carácter agradável dosseus conteúdos - poderá trazer a “ilumina-ção” generalizada do género humano, paraCondorcet, como para a maior parte dos ilu-ministas, parecem não restar quaisquer dú-vidas. Assim, constata já em relação aoseu tempo que “o limite traçado entre a por-ção grosseira e a porção esclarecida do gé-nero humano tinha-se apagado quase inteira-mente, e uma gradação insensível preenchiao espaço que separa os dois extremos, o gé-nio e a estupidez.115 Mesmo Voltaire, que

114 Cf. Condorcet,Esquisse d’un Tableau Histori-que des Progrès de L’esprit Humain,"Huitième Épo-que. Depuis l’invention de l’imprimerie jusqu’autemps où les sciences et la philosophie secouèrent lejoug de l’autorité", pp. 117-8.

115 Condorcet,ibidem, "Neuvième Époque. De-

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em certos textos parece descrente da pos-sibilidade de uma ilustração universal, queultrapasse o círculo das “pessoas esclareci-das” e dos “filósofos” – já que, como afirma,“o povo não lê absolutamente nada, trabalhaseis dias por semana e no sétimo vai ao ca-baré” -116, não deixa de sublinhar, noutrostextos, a necessidade dessa mesma ilustra-ção. Assim, e ao comparar a atitude (dascortes) da França e da Inglaterra a respeitodas “letras” - de desapreço na primeira, deapreço na segunda -, e ao referir-se à formade governo desta última, sublinha que aí“cada um pode mandar imprimir o que pensasobre os negócios públicos. Assim, toda anação se encontra na necessidade de se ins-truir”.117

Em termos mais concretos, a estratégia decomunicação com o “público que lê” passaquer pelo livro - e nomeadamente por livroscomo os dicionários, a exemplo doDicio-nário Histórico e Crítico(1697) de PierreBayle ou doDicionário Filosófico(1764) deVoltaire, e como as enciclopédias, a exemploda Cyclopaedia(1728), de Ephraim Cham-bers ou daEncyclopédie(1751-1765) de Di-derot e D’Alembert -, quer pela revista e pelojornal. Como sintetiza Jeremy D. Popkin,

Tanto como o conteúdo do pensamentoda “idade do Iluminismo”, foi a confi-ança na publicação periódica e na dis-seminação através de outros géneros, es-

puis Descartes jusqu’à la formation de la républiquefrançaise",p. 164.

116 Cf. Voltaire, "Préface de la cinquièmeédition (1765)", in Dictionnaire Philosophique,http://www.voltaire-integral.com/index.html.

117 Cf. Voltaire, "Vingtième Lettre. Sur les Seig-neurs qui Cultivent les Lettres", inLettres Philosophi-ques, Association de Bibliophiles Universels, 1999,http://www.abu.org/.

treitamente relacionados, tais como a en-ciclopédia em múltiplos volumes ou oabrégéou manual vulgarizado, que ca-racterizou o espírito de uma idade que viuo conhecimento como essencialmentepúblico, mais do que esotérico, essenci-almente progressivo, mais do que fixo, eessencialmente importante pela sua utili-dade social, mais do que um fim em sipróprio.118

A publicação periódica – a periodicidadeda publicação – é tão essencial que, aoreferir-se ao sucesso de publicações como aNouvelles de la République des Lettres,dePierre Bayle e suas imitações por toda a Eu-ropa, afirma o mesmo Popkin que “[a]s re-vistas (journals) tornaram-se o fórum ou ‘es-paço público’ no qual os grandes debates doperíodo eram conduzidos”, sendo utilizadasde forma sistemáticos pelos diversos gruposintelectuais que queriam dar a conhecer a ssuas ideias, como foi precisamente o casodos autores daEncyclopédiee do seuJour-nal Encyclopédique.119

As razões para essa importância da publi-cação periódica não são difíceis de descor-tinar. De facto, as revistas e os jornais ofe-reciam pelo menos três vantagens em rela-ção ao livro: o atingir de uma só vez umpúblico muito mais vasto; uma actualizaçãomais acelerada; e, finalmente, a captação denovos públicos para lá dos tradicionais “ho-mens de letras”.120

118 Jeremy D. Popkin, “Periodical publication andthe nature of knowledge in eighteenth-century Eu-rope”, in Donald R. Kelley, Richard H. Popkin (Eds.),The Shapes of Knowledge from the Renaissance to theEnlightenment, Dordrecht, Boston, London, KluwerAcademic Publishers, 1991, p. 204.

119 Popkin,ibidem, p. 209.120 Cf. Popkin,ibidem, p. 212.

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É certo que, como o mostrou a clássicaobra de Habermas, livros, revistas e jornaisnão bastaram, por si sós, para a emergênciada “esfera pública” – havendo que sublinhara importância de salões, cafés, sociedadese academias enquanto espaços de interacçãoe de discussão de ideias, nomeadamente asveiculadas pelos livros, revistas e jornais.121

A estes meios haverá que juntar, ainda, oscorreios, que permitem difundir à distânciaos jornais, as revistas científicas, os livros eas cartas que ligam os cientistas entre si ecom o público.122

5 Conclusão

A leitura que aqui fazemos do iluminismo– mais concretamente, de Locke e Kant -encontra-se, como qualquer leitura, ancoradanum espaço e num tempo que é o nosso.Significa isto que, e ainda como qualquerleitura, ela poderá ser acusada de um certo“pré-conceito” – de projectar, no passado,preocupações que são (apenas) as nossas; defazer falar de “comunicação” autores para osquais a comunicação não existia, de facto,como problema ou, pelo menos, como pro-blema digno de um tratamento autónomo.

Responderemos a uma tal objecção que,e como faz notar Gadamer em relação a to-dos os que pretenderiam abordar o passadosem “pré-conceitos”, é impossível utilizaros “conceitos da época” e, assim, ver umaépoca como ela se viu a si própria; inter-pretar o passado envolve sempre uma “fu-

121 Cf. Habermas,op. cit..122 Cf. António Fidalgo,Os Novos Meios de Comu-

nicação e o Ideal de uma Comunidade Científica Uni-versal, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 1996(Oração de Sapiência proferida por ocasião do X ani-versário da UBI).

são de horizontes” entre os (pré-)conceitosdo intérprete e os dos textos que ele in-terpreta. Por isso, toda a interpretação éuma apropriação.123 Também Ricoeur in-siste na centralidade desta noção de apropri-ação: “‘Apropriar-se’ do que antes era ‘es-tranho’ permanece o objectivo último da her-menêutica. A interpretação no seu último es-tádio quer igualizar, tornar contemporâneo,assimilar, no sentido de tornar semelhante.Este objectivo consegue-se na medida emque a interpretação actualiza a significaçãodo texto para o leitor presente.”124

Uma tal apropriação só é possível se aestranheza do “estranho” de que intentamosapropriar-nos for uma estranheza de um tipomuito especial: a de algo que, não sendonosso, de facto nunca deixou de o ser; dealgo que, ao longo dos tempos e das gera-ções, de forma subterrânea, se foi sedimen-tando na nossa própria vida e na nossa com-preensão das coisas. Assim, apropriarmo-nos de algo “estranho” significa: tomar cons-ciência daquilo que nós próprios somos.Neste sentido, aquilo que se chama “o pas-sado” – como se de uma coisa se tratasse– verdadeiramente não existe; ou é em nóspróprios, naquilo que nós próprios somos, ouentão não é de forma alguma.

Cremos ser esse, precisamente, o signifi-cado mais profundo daquilo a que se chama“tradição”.

123 Cf. Hans-Georg Gadamer,Verdad y Metodo, Sa-lamanca, Sígueme, 1988, pp. 476-7.

124 Paul Ricoeur,Teoria da Interpretação, PortoEditora, 1995, p. 135.

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