ilha capital - florianópolis, 27 de fevereiro 2013 bem ... · 2012, com a definição da...

1
www.ilhacap.com.br 12 Ilha Capital - Florianópolis, 27 de fevereiro 2013 Bem-estar-animal Conforme o Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câ- mara Cascudo, com a contribuição do historiador catarinense Walter Piazza, a Farra do Boi - verbete Boi-na-Vara do Dicio- nário - é tida como um folguedo, uma “revivescência da tou- rada-a-corda” que era praticada no Arquipélago dos Açores. Relatos de farristas mais velhos já descrevem a farra como “boi de campo”, “boi-no-campo”, “boi-na-vara”, “boi-no-laço”, “boi-no-arame”, “boi-solto”, “brincadeira-de-boi” ou simples- mente “Boi”. O folguedo tem a ver com as maneiras como o homem amansava os bois para formarem uma parelha, tanto para a tração circular dos engenhos como para as carretas de transporte. A Farra consistia na escolha de um boi brabo e sua compra através de cotas entre os farristas ou a simples doação por algum político interessado em simpatia e votos. Foguetes, bu- zinas e muita euforia anunciavam a chegada do animal. Após a sua soltura, a multidão acompanhava a “brincadeira”, em que o animal era perseguido com paus, pedras e rojões em pastos, morros, dunas e praias, onde frequentemente o boi morria afogado. Bairros, praças, ruas e servidões dos vilarejos e cidades também eram palco da perseguição. O medo e a fúria do animal criavam uma atmosfera de imprevisibilidade: o boi muitas vezes invadia pátios e casas quebrando cercas e móveis e causando ferimentos em farristas e não farristas. Existiam também os mangueirões, áreas cercadas para a Far- ra. Tudo regado a muita bebida. A partir da década de 80 o folguedo popular, inscrito no in- ventário do Folclore Brasileiro, passa a ser ponto de discórdia entre entidades protecionistas, farristas, forças policiais, seto- res da Igreja e intelectuais. Em 1997, o acórdão 153.531-8, do Supremo Tribunal Fede- ral considera a Farra do Boi crueldade com os animais, ofen- siva ao inciso VII do Art. 225 da Constituição Federal e proíbe sua realização, ainda que sem violência e dentro dos man- gueirões, sob pena de responsabilização de seus agentes. A lei Federal nº 9.605 (ou Lei de Crimes Ambientais) instituída em fevereiro de 1998 criminaliza condutas que maltratem ani- mais, tal como descrito no cap. V Art. 32: “Praticar ato de abu- so, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A aprovação da norma visa conseguir o fim de diversas práticas de crueldade com animais que, muitas vezes, travestidas de cultura popular per- manecem vigentes. A Farra do boi A Polícia Militar disponibiliza o Disque Denúncia, 0800-481-717, para que as comunidades denunciem a prática da farra do boi. O cidadão também pode utilizar outros telefones: Polícia Militar: 190 - Denúncias: 181 - Polícia Civil: 197 - Polícia Ambiental Florianópolis: (48) 3348-3624 / 3348-2362 - Palhoça: (48) 3286-1021 e 3286-1381 A farra do boi e a educação para valores O primeiro Grupo de Tra- balho para estudar e propor medidas para minimizar os im- pactos negativos da prática da farra do boi em SC foi criado pelo Governo do Estado em 16/09/1987 pela Portaria Inter- setorial SEJ/SSP/SEE/SCE/ PGJ/PM 01/87. Juntamente com outros cinco ativistas da Acapra, fiz parte do grupo, e propusemos e nos colocamos como par- ceiros para implantar nas es- colas de ensino fundamental, um programa de formação de valores voltado para o respei- to a todas as formas de vida e a elaboração e distribuição de material didático alusivo ao tema. Nas áreas culturais e esportivas, sugerimos a realização de atividades como peças teatrais, gincanas, jogos abertos, concursos de desenho e redação e o resgate e a valorização das verda- deiras tradições açorianas como Boi de Mamão, Ratoeira, Pão por Deus, Terno de Reis, em pro- cesso de extinção. Nossas propostas fizeram parte das medidas definidas no relatório final divulgado pelo Go- verno do Estado no inicio de 1988, mas jamais transcenderam o âmbito das intenções. As conclusões e medidas recomendadas no relatório não foram avalizadas integralmen- te pelos representantes da Acapra, pois sob a justificativa de que não havia lei que a proibis- se, os representantes públicos no grupo reco- nheciam a farra do boi como tradição cultural, admitiam sua realização em mangueirões e sua integração ao calendário de eventos de SC e recomendavam que as Polícias Civil e Militar não atuassem repressivamente, salvo situações emergenciais e excessos. A partir destas conclusões, decidimos pela tribunalização da farra do boi, até chegar ao Acórdão do STF em 1997 e seu enquadramento no ano seguinte na Lei de Crimes Ambientais 9605/98. E diante do desinteresse es- tatal, iniciamos voluntariamen- te e com recursos próprios em escolas de ensino fundamental interessadas, um programa de formação de valores e respeito a todas as formas de vida. Até 2012, o Ecosul desen- volveu o programa com apoio do MPSC em escolas de Ita- pema, Tijucas, São Francisco do Sul, Gov. Celso Ramos, Lauro Müller, Biguaçú e Florianópolis e para 2013, está programada a atuação em outras comunidades. Consideramos importantes as ações educati- vas pontuais realizadas a partir de 2010 na “Ope- ração farra do boi” durante a Quaresma, mas 26 anos após o primeiro grupo de trabalho, a história consolida nossa convicção de que a educação para valores é uma resposta ao maior problema que a humanidade enfrenta hoje, a violência. Se a partir de 1987 nossa proposta tivesse sido implantada e sistematizada no calendário letivo anual, mesmo que transversalmente, cer- tamente hoje teríamos menos uma ou duas ge- rações de pessoas dessensibilizadas que mani- festam sua violência e agressividade maltratando animais e humanos indefesos. E subvertendo a ordem, afrontando as instituições e incendiando ônibus! “Na guerra contra a violência, mais impor- tante do que soldados e policiais são os pro- fessores e educadores” *Presidente do Instituto Ambiental Ecosul Halem Guerra Nery* Santa Catarina contra a prática da farra do boi Proibida desde 1998, mesmo que sem crueldade aos animais e realizada dentro de mangueirões, a Farra do Boi ainda é praticada no litoral de Santa Catarina especialmente no período que antecede a Quaresma. Antevendo a ocorrência dessa prática crimi- nosa, foi assinado na terça-feira, 19, o Proto- colo de Cooperação com objetivo de promover ações educativas e intensificar a fiscalização e a repressão à farra do boi em Santa Catarina. Assinaram o documento representantes do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), Secretaria de Segurança Pública, polícias Ci- vil, Militar e Rodoviária Federal, secretarias de Desenvolvimento Regional da Grande Floria- nópolis e de Itajaí, Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (CIDASC), Instituto Brasileiro do Meio Am- biente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Ambiental Ecosul. De acordo com o Promotor de Justiça Júlio Fumo Fernandes, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (CME) do MPSC, o Protocolo de Cooperação prevê basicamente duas vertentes de atuação: pre- ventiva e repressiva. O objetivo principal das ações educativas é esclarecer à sociedade catarinense, especialmente nas cidades lito- râneas onde a prática é mais comum, que a farra do boi é crime e causa intenso sofrimen- to ao animal. Palestras para estudantes e concurso de redação nas escolas dos municípios das regi- ões de Itajaí e Grande Florianópolis e campa- nha para orientar a população de que a farra do boi é crime fazem parte das ações preventi- vas. As operações de fiscalização serão inten- sificadas e ocorrerão de forma integrada entre os diversos signatários do documento. “Não há mais espaço numa sociedade humanitária para crueldades e violência gratuita”, afirma o coordenador do CME. A estratégia utilizada em 2012, com a definição da res- ponsabilidade de cada órgão do Governo do Estado envolvido na operação, será adotada nova- mente. Conforme o comandante- geral da PM, coronel Nazareno Marcineiro, “na frente preventiva, o Batalhão de Proteção Ambien- tal desenvolve palestras educati- vas, com distribuição de folhetos. Já na ação repressiva, o setor de inteligência identifica os cria- douros irregulares de animais e a Cidasc fiscaliza os rebanhos”. A fiscalização de Guias de Trans- porte Animal (GTA) nas rodovias estaduais e federais, barreiras policiais e procedimentos de re- tirada de animais apreendidos também fazem parte das ações repressivas. Papéis definidos Paulo Simões Boi machucado numa farra, que certamente não é do boi

Upload: doankien

Post on 12-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

www.ilhacap.com.br12 Ilha Capital - Florianópolis, 27 de fevereiro 2013

Bem-estar-animal

Conforme o Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câ-mara Cascudo, com a contribuição do historiador catarinense Walter Piazza, a Farra do Boi - verbete Boi-na-Vara do Dicio-nário - é tida como um folguedo, uma “revivescência da tou-rada-a-corda” que era praticada no Arquipélago dos Açores. Relatos de farristas mais velhos já descrevem a farra como “boi de campo”, “boi-no-campo”, “boi-na-vara”, “boi-no-laço”, “boi-no-arame”, “boi-solto”, “brincadeira-de-boi” ou simples-mente “Boi”. O folguedo tem a ver com as maneiras como o homem amansava os bois para formarem uma parelha, tanto para a tração circular dos engenhos como para as carretas de transporte.

A Farra consistia na escolha de um boi brabo e sua compra através de cotas entre os farristas ou a simples doação por algum político interessado em simpatia e votos. Foguetes, bu-zinas e muita euforia anunciavam a chegada do animal. Após a sua soltura, a multidão acompanhava a “brincadeira”, em que o animal era perseguido com paus, pedras e rojões em pastos, morros, dunas e praias, onde frequentemente o boi morria afogado. Bairros, praças, ruas e servidões dos vilarejos e cidades também eram palco da perseguição. O medo e a fúria do animal criavam uma atmosfera de imprevisibilidade: o boi muitas vezes invadia pátios e casas quebrando cercas e móveis e causando ferimentos em farristas e não farristas. Existiam também os mangueirões, áreas cercadas para a Far-ra. Tudo regado a muita bebida.

A partir da década de 80 o folguedo popular, inscrito no in-ventário do Folclore Brasileiro, passa a ser ponto de discórdia entre entidades protecionistas, farristas, forças policiais, seto-res da Igreja e intelectuais.

Em 1997, o acórdão 153.531-8, do Supremo Tribunal Fede-ral considera a Farra do Boi crueldade com os animais, ofen-siva ao inciso VII do Art. 225 da Constituição Federal e proíbe sua realização, ainda que sem violência e dentro dos man-gueirões, sob pena de responsabilização de seus agentes. A lei Federal nº 9.605 (ou Lei de Crimes Ambientais) instituída em fevereiro de 1998 criminaliza condutas que maltratem ani-mais, tal como descrito no cap. V Art. 32: “Praticar ato de abu-so, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A aprovação da norma visa conseguir o fim de diversas práticas de crueldade com animais que, muitas vezes, travestidas de cultura popular per-manecem vigentes.

A Farra do boi

A Polícia Militar disponibiliza o Disque Denúncia, 0800-481-717, para que as comunidades denunciem a prática da farra do boi. O cidadão também pode utilizar outros telefones: Polícia Militar: 190 - Denúncias: 181 - Polícia Civil: 197 - Polícia Ambiental Florianópolis: (48) 3348-3624 / 3348-2362 - Palhoça: (48) 3286-1021 e 3286-1381

A farra do boi e a educação para valores

O primeiro Grupo de Tra-balho para estudar e propor medidas para minimizar os im-pactos negativos da prática da farra do boi em SC foi criado pelo Governo do Estado em 16/09/1987 pela Portaria Inter-setorial SEJ/SSP/SEE/SCE/PGJ/PM 01/87.

Juntamente com outros cinco ativistas da Acapra, fiz parte do grupo, e propusemos e nos colocamos como par-ceiros para implantar nas es-colas de ensino fundamental, um programa de formação de valores voltado para o respei-to a todas as formas de vida e a elaboração e distribuição de material didático alusivo ao tema.

Nas áreas culturais e esportivas, sugerimos a realização de atividades como peças teatrais, gincanas, jogos abertos, concursos de desenho e redação e o resgate e a valorização das verda-deiras tradições açorianas como Boi de Mamão, Ratoeira, Pão por Deus, Terno de Reis, em pro-cesso de extinção.

Nossas propostas fizeram parte das medidas definidas no relatório final divulgado pelo Go-verno do Estado no inicio de 1988, mas jamais transcenderam o âmbito das intenções.

As conclusões e medidas recomendadas no relatório não foram avalizadas integralmen-te pelos representantes da Acapra, pois sob a justificativa de que não havia lei que a proibis-se, os representantes públicos no grupo reco-nheciam a farra do boi como tradição cultural, admitiam sua realização em mangueirões e sua integração ao calendário de eventos de SC e recomendavam que as Polícias Civil e Militar não atuassem repressivamente, salvo situações emergenciais e excessos.

A partir destas conclusões, decidimos pela tribunalização da farra do boi, até chegar ao Acórdão do STF em 1997 e seu enquadramento no ano seguinte na Lei de Crimes Ambientais 9605/98.

E diante do desinteresse es-tatal, iniciamos voluntariamen-te e com recursos próprios em escolas de ensino fundamental interessadas, um programa de formação de valores e respeito a todas as formas de vida.

Até 2012, o Ecosul desen-volveu o programa com apoio do MPSC em escolas de Ita-pema, Tijucas, São Francisco

do Sul, Gov. Celso Ramos, Lauro Müller, Biguaçú e Florianópolis e para 2013, está programada a atuação em outras comunidades.

Consideramos importantes as ações educati-vas pontuais realizadas a partir de 2010 na “Ope-ração farra do boi” durante a Quaresma, mas 26 anos após o primeiro grupo de trabalho, a história consolida nossa convicção de que a educação para valores é uma resposta ao maior problema que a humanidade enfrenta hoje, a violência.

Se a partir de 1987 nossa proposta tivesse sido implantada e sistematizada no calendário letivo anual, mesmo que transversalmente, cer-tamente hoje teríamos menos uma ou duas ge-rações de pessoas dessensibilizadas que mani-festam sua violência e agressividade maltratando animais e humanos indefesos. E subvertendo a ordem, afrontando as instituições e incendiando ônibus!

“Na guerra contra a violência, mais impor-tante do que soldados e policiais são os pro-fessores e educadores”

*Presidente do Instituto Ambiental Ecosul

Halem Guerra Nery*

Santa Catarina contra a prática da farra do boi

Proibida desde 1998, mesmo que sem crueldade aos animais e realizada dentro de mangueirões, a Farra do Boi ainda é praticada no litoral de Santa Catarina especialmente no período que antecede a Quaresma.

Antevendo a ocorrência dessa prática crimi-nosa, foi assinado na terça-feira, 19, o Proto-colo de Cooperação com objetivo de promover ações educativas e intensificar a fiscalização e a repressão à farra do boi em Santa Catarina. Assinaram o documento representantes do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), Secretaria de Segurança Pública, polícias Ci-vil, Militar e Rodoviária Federal, secretarias de Desenvolvimento Regional da Grande Floria-nópolis e de Itajaí, Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (CIDASC), Instituto Brasileiro do Meio Am-biente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Ambiental Ecosul.

De acordo com o Promotor de Justiça Júlio

Fumo Fernandes, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (CME) do MPSC, o Protocolo de Cooperação prevê basicamente duas vertentes de atuação: pre-ventiva e repressiva. O objetivo principal das ações educativas é esclarecer à sociedade catarinense, especialmente nas cidades lito-râneas onde a prática é mais comum, que a farra do boi é crime e causa intenso sofrimen-to ao animal.

Palestras para estudantes e concurso de redação nas escolas dos municípios das regi-ões de Itajaí e Grande Florianópolis e campa-nha para orientar a população de que a farra do boi é crime fazem parte das ações preventi-vas. As operações de fiscalização serão inten-sificadas e ocorrerão de forma integrada entre os diversos signatários do documento. “Não há mais espaço numa sociedade humanitária para crueldades e violência gratuita”, afirma o coordenador do CME.

A estratégia utilizada em 2012, com a definição da res-ponsabilidade de cada órgão do Governo do Estado envolvido na operação, será adotada nova-mente. Conforme o comandante-geral da PM, coronel Nazareno Marcineiro, “na frente preventiva, o Batalhão de Proteção Ambien-tal desenvolve palestras educati-vas, com distribuição de folhetos.

Já na ação repressiva, o setor de inteligência identifica os cria-douros irregulares de animais e a Cidasc fiscaliza os rebanhos”. A fiscalização de Guias de Trans-porte Animal (GTA) nas rodovias estaduais e federais, barreiras policiais e procedimentos de re-tirada de animais apreendidos também fazem parte das ações repressivas.

Papéis definidos

Paulo Simões

Boi machucado numa farra, que certamente não é do boi