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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA 1 FAMÍLIA CRISTÃ E HOMOAFETIVA NA MODERNIDADE RELIGIOSA Marina Cápua Nunes 1 Este artigo procura, dada a aprovação da união homoafetiva no Brasil em 2011, entender a causa da disputa religiosa por seu reconhecimento. Procura-se averiguar como o conceito de “família cristã tradicional” consagrado por uma grande religião histórica foi usado para a formulação do conceito de “família cristã contemporânea” que fora elaborado neste artigo a partir da releitura de uma etnografia de uma comunidade pentecostal de doutrina inclusiva. Destaca quais elementos destes conceitos se tornam comuns e divergentes na proposta da inclusão da união homoafetiva na religiosidade cristã. Analisa por meio da teoria sociológica da religião de Danièle Hervieu-Léger a causa da disputa, no espaço religioso cristão, da legitimidade da união homoafetiva. 1 Aluna de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora; [email protected]

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES

15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I

Salvador - BA

1

FAMÍLIA CRISTÃ E HOMOAFETIVA NA MODERNIDADE RELIGIOSA

Marina Cápua Nunes1

Este artigo procura, dada a aprovação da união homoafetiva no Brasil em 2011, entender a causa da

disputa religiosa por seu reconhecimento. Procura-se averiguar como o conceito de “família cristã

tradicional” consagrado por uma grande religião histórica foi usado para a formulação do conceito

de “família cristã contemporânea” que fora elaborado neste artigo a partir da releitura de uma

etnografia de uma comunidade pentecostal de doutrina inclusiva. Destaca quais elementos destes

conceitos se tornam comuns e divergentes na proposta da inclusão da união homoafetiva na

religiosidade cristã. Analisa por meio da teoria sociológica da religião de Danièle Hervieu-Léger a

causa da disputa, no espaço religioso cristão, da legitimidade da união homoafetiva.

1 Aluna de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora;

[email protected]

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Introdução

Dada a aprovação da união estável homoafetiva pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro

em maio de 2011, vive-se um momento de demonstrações contra e a favor desse direito, para efeito

ilustrativo houve uma situação em Goiânia-GO na qual o juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública

Municipal e de Registros Públicos, no dia 17 de junho de 2011 anulara a escritura pública de

reconhecimento de uma união estável homoafetiva, mas que, já no dia 22 do mesmo mês, a

desembargadora que ocupa o cargo de corregedora-geral do Tribunal de Justiça de Goiás suspendeu

tal anulação.2

Grande parte dos que se manifestam contra são religiosos cristãos, como demonstração o

blog “Deus lo vult” em cuja menção ao caso supracitado defende a decisão do referido Juiz, que por

sua vez, conforme o blog argumenta que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união

estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” 3. Nessas manifestações de caráter

genérico o argumento notadamente usado é a defesa da família, compreendida como a união

heterossexual, monogâmica, aos moldes da interpretação criacionista. Não obstante há cristãos que

compreendem e aceitam a condição de um relacionamento homoafetivo, por exemplo, no Brasil é

constatado o surgimento de igrejas inclusivas, nas quais homossexuais podem contemplar cultos

como fiéis ou como ministrantes4, ilustração disso foi a inauguração no dia 03 de junho de 2011 de

um templo nesses moldes em São Paulo por um casal de mulheres5.

Diante desse quadro nacional convém ressaltar que o intuito deste artigo não foi o de discutir

os prós e contras sobre a união estável homoafetiva, mas esses casos citados se tornaram úteis, pois

formam um de pano de fundo para ilustrar a pertinência do objetivo deste trabalho que consiste em

averiguar como conceito de “família cristã tradicional” consagrado por uma grande religião

histórica foi usado para a formulação do conceito de “família cristã contemporânea” que fora

2 Fonte da notícia:TJ de Goiás suspende decisão de juiz que havia anulado união homoafetiva. Disponível em:

<http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidadania/2011/06/tj-de-goias-anula-decisao-de-juiz-que-havia-tornado-sem-

efeito-uniao-homoafetiva> Acesso em: 22 junho 2011. 3 Fonte do Blog: O rei está nu!.Disponível em: http://www.deuslovult.org/2011/06/19/o-rei-esta-nu-2/>. Acesso

em 22 junho 2011. 4 Para maiores detalhes da presença no Brasil e conceito de igreja inclusiva vide: NATIVIDADE, Marcelo. Uma

homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal. Religião e Sociedade, n.2, 2010.

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-85872010000200006&script=sci_arttext. Acesso em: 23 de

junho de 2010. 5 Fonte da notícia: Mulheres homossexuais criam igreja evangélica no centro de São Paulo. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/930854-mulheres-homossexuais-criam-igreja-evangelica-no-centro-de-

sp.shtml>. Acesso em: 22 junho de 2011.

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elaborado neste artigo a partir de etnografia elaborada por Natividade (2010) de uma comunidade

pentecostal de doutrina inclusiva, a fim de identificar quais elementos destes conceitos se tornam

comuns e divergentes na proposta da inclusão da união homoafetiva na religiosidade cristã. Para

posteriormente analisar por meio da teoria sociológica da religião de Danièle Hervieu-Léger a causa

da disputa, no espaço religioso cristão, da legitimidade da união homoafetiva.

1 Família cristã tradicional

Segundo Bourdieu (1999, p.103) a Igreja enquanto instituição reprodutora das hierarquias de

gênero “[...] age de maneira mais indireta, sobre as estruturas históricas do inconsciente, por meio,

sobretudo da simbólica dos textos sagrados [...].”

Por isso a Bíblia entendida como livro sagrado da religião cristã, foi de uso nesta primeira

parte para sustentar o conceito cristão de família enquanto sagrada, mas sem levar em conta o

caráter infalível este livro, pressupondo que

Dispomos dos métodos de inquirição histórica e arqueológica para avaliar a

verdade das partes históricas das escrituras, mas não temos métodos

comparáveis para resolver a esta última pergunta [A Bíblia é verdadeira?],

aquela que está de fato na mente das pessoas.6

Neste sentido o relevante neste momento é o que “está de fato na mente das pessoas”, e sem

ser preciso levantar a questão do Fundamentalismo da Inerrância ou a Exegese Bíblica, em Gênesis

a narração da criação por Deus do homem e em sequência, a da mulher para suprir a solidão

masculina, já permite averiguar a concepção tradicional cristã de família como heterossexual,

monogâmica visando à reprodução.

A forma pela qual se consolidou o símbolo desse modelo de família na sociedade ocidental

pode ser explicada pela ação de consagração da religião identificada por Bourdieu (OLIVEIRA,

2003), quando aplicada sobre essa concepção de família heterossexual foi o que a transfigurou

enquanto instituição social, em instituição de origem sobrenatural ou inscrita na natureza das coisas.

Tem-se que

A isso Bourdieu chama de alquimia ideológica, porque ao revestir o que é

produto humano com o caráter sagrado, a religião desempenha a função

simbólica de conferir á ordem social um caráter transcendente e inquestionável.

Aí reside sua eficácia simbólica e ao mesmo tempo, sua função eminentemente

política. 7

6 TILGHMAN, B. R. Introdução á Filosofia da Religião. São Paulo: Loyola, 1996, p.114.

7 OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA, Faustino

(Org.). Sociologia da Religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, p.177-197, 2003.

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Uma das formas de eternizar esse conceito de família é o sacramento do casamento que

segundo Bourdieu (1999) confere o exercício legítimo da sexualidade ainda que atualmente tenham

se desvencilhado em grande medida, mesmo assim Butler (2002) identifica na sociedade americana

- também herdeira da tradição cristã - que esse vínculo existe, na sustentação desta sociedade de que

a

sexualidade deve se prestar ás relações reprodutivas e que o casamento, que

confere estatuto legal à forma da família ou, antes, é percebido de modo a dever

assegurar essa instituição, conferindo-lhe esse estatuto legal, deve permanecer

como o fulcro que mantém essas instituições em equilíbrio.8

Esses valores da sociedade ocidental como identificou Grossi (2003) se fizeram presente nos

próprios estudos de parentesco na tradição antropológica como, por exemplo, a reprodução da

heterossexualidade "natural" como regra universal, na obra clássica de Lévi-Strauss.

Portanto no conceito cristão tradicional de família aqui elaborado levantam-se os seguintes

elementos: a heterossexualidade, monogamia e a orientação para a reprodução, que conforme

Bourdieu (1999) mesmo com as transformações da família real, tenda a permanecer no habitus e no

direito.

2 Família cristã contemporânea

A eficácia simbólica da função social da religião, aqui fazendo referência á alquimia

ideológica de Bourdieu, só ocorre, segundo Oliveira (2003, p.181) “quando seus [da religião]

esquemas de pensamento se inscrevem nas consciências individuais e nelas se incorporam como se

naturais fossem, transformando-se em hábito”. Portanto será analisada aqui a inscrição do conceito

de família cristã tradicional, consagrado pela religião, em uma comunidade pentecostal inclusiva,

para averiguar os elementos que permanecem ou se dissolvem deste conceito e ainda se agregam,

para a aceitação dos indivíduos que compõem essa comunidade.

Antes, porém de prosseguir com esta análise faz-se necessária uma contextualização

sociológica e histórica do que se constitui por uma “Igreja Inclusiva” para esse propósito utiliza-se

os trabalhos “Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva

pentecostal” de Natividade (2010) e “A Cruz e o Arco íris: Refletindo sobre gênero e sexualidade a

p.180 8 BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossessual?. Cadernos Pagu, Campinas, n.21, 2003,

p.219-260. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332003000200010&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 07

de julho de 2011.

p.221

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partir de uma "igreja inclusiva" no Brasil” de Weiss de Jesus (2010) artigos que trabalham a

presença de igrejas inclusivas no campo religioso brasileiro assunto que trataremos no tópico

seguinte.

2.1 As igrejas inclusivas no Brasil

As igrejas inclusivas são um fenômeno recente no Brasil se tornam singulares por

assimilarem homossexualidade e cristianismo - em sua maioria evangélico (WEISS DE JESUS,

2010). Conforme Natividade (2010) a inclusão de gays e lésbicas no campo religioso brasileiro só

pode ser entendido dentro de condições sócio históricas específicas, como a organização política

dos movimentos homossexuais que, a partir da década de 1990, intensificam as transformações

sociais, pela progressiva legitimação das “minorias sexuais”, como por outro lado o rompimento da

hegemonia católica e ainda quanto ao protestantismo estar apto ás mudanças e rupturas.

Assim a difusão de uma visão sociológica da sexualidade entre os movimentos, atores e

organizações sociais permitiu uma pluralidade de discursos causando uma crítica á postura

homofóbica ligada á tradição cristã por sua acepção da homossexualidade como antinatural e,

portanto vinculada a noção de pecado (NATIVIDADE, 2010).

Por essas condições a partir do ano de 1996, Natividade (2010) identifica grupos de

discussão em âmbito acadêmico sobre a exclusão dos homossexuais nas diferentes tradições

religiosas que acabaram por originar comunidades cristãs gays, e ao longo do final desta década

esse mesmo autor cita uma série de instituições que foram seguindo essa linha de doutrina inclusiva.

Uma estimativa de Weiss de Jesus (2010) coloca que em 2004 eram oito denominações ditas

inclusivas tendo seu número aumentado para dez em 2009 esta mesma autora revela, por meio de

suas pesquisas nos sites das igrejas inclusivas presentes no Brasil que

A grande parte dessas igrejas é autônoma e existem apenas no país. Pelo

conteúdo dos sites percebe-se que as “igrejas inclusivas” possuem discursos

diferentes e conflitantes, doutrinários e com respeito as suas prescrições morais

e que, apesar disso, todas tem ligação - e as utilizam como discurso fundador -

com Igrejas Tradicionais. Essas igrejas têm em comum o fato de seus

fundadores serem oriundos de denominações cristãs tradicionais e que em

determinado momento de suas vidas se desligaram das mesmas. Em alguns

casos fica evidente a manutenção da estrutura organizacional nos moldes das

denominações de origem da liderança.9

9 WEISS DE JESUS, Fátima. A Cruz e o Arco íris: Refletindo sobre gênero e sexualidade a partir de uma

"igreja inclusiva" no Brasil. Ciencias Sociales y Religión, v. 12, 2010. p. 131-146. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/CienciasSociaiseReligiao/article/view/12731. Acesso em 07 de julho de 2011, p.136.

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No contexto nacional, dentre as igrejas inclusivas, a mais institucionalizada é a Igreja da

Comunidade Metropolitana do Brasil (ICM) é também a que congrega o maior número de fiéis.

Esta denominação tem origem internacional na Metropolitan Community Church (MCC) que foi

fundada em Los Angeles, Califórnia, em 1968 pelo Rer. Troy Perry que fora excluído de sua

primeira congregação por sua orientação sexual (WEISS DE JESUS, 2010).

A instalação oficial da ICM brasileira se deu em 2006 pela ICM de São Paulo vincular-se a

Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana-FUICM (WEISS DE JESUS,

2010). A presença da MCC na cidade do Rio de Janeiro não chegou a realizar-se apesar de ter

ocorrido ali a primeira iniciativa do nome ICM, mas que no entanto não chegou a filiar-se a FUICM

(WEISS DE JESUS 2010). Ocorreu segundo Natividade (2010) um cisma na ICM carioca que veio

a originar a Igreja Cristã Contemporânea (ICC) a que serve a esse artigo para a concepção de

“família cristã contemporânea” no próximo tópico.

2.2 A Igreja Cristã Contemporânea

Por meio de Natividade (2010) retoma-se aqui a formação da Igreja Cristã Contemporânea

(ICC) a partir da Igreja Cristã Metropolitana (ICM) na cidade do Rio de Janeiro, há que se destacar

os motivos do cisma que foram mencionados pelo então pastor. Tais motivos se consistiam em que

a futura igreja, enquanto inclusiva, deveria primar em ser uma “igreja comum” e por isso livrar-se

do estigma de “igreja gay” que por ele era considerado como “coisa de americano”; como também

foi retirado do site todo conteúdo teológico que versava sobre a diversidade sexual, porque segundo

ele “o modelo ideal era o de uma igreja com pouca doutrina e teoria, mas muita espiritualidade;

almejava-se com isso a construção de um ambiente no qual o fiel homossexual tivesse conforto e

orientação” (NATIVIDADE, 2010, p.7).

É preciso esclarecer que, apesar das singularidades de cada denominação inclusiva

identificadas por Weiss de Jesus (2010), esse recente movimento conforme Natividade (2010, p.2)

propõe uma “hermenêutica [que] prega a conciliação entre uma orientação sexual dissonante da

norma da heterossexualidade e o exercício da vida religiosa”. Com relação á ICC essa proposta é

seguida, pois

Diferente de grupos evangélicos tradicionais, que pregavam que gays e lésbicas

deveriam tornar-se heterossexuais através de correntes de exorcismos, do

comprometimento com o casamento e a construção de uma família cristã

(Natividade 2008), aqui a cura era direcionada aos sentimentos de inferioridade

que essa parcela de excluídos cultivava em decorrência do preconceito e da

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homofobia. Deus curava, sim – não a homossexualidade, mas as mágoas

decorrentes, por exemplo, das rejeições familiares, as diversas cicatrizes

deixadas pela discriminação.10

(grifo nosso)

A ICC tornou-se útil para essa discussão, pois, enquanto cristã inclusiva, mesmo que não

visando à construção de uma família cristã - termo em negrito na citação acima, que se entende

corresponder ao modelo heterossexual descrito anteriormente - fornece elementos que mais se

assemelham ao conceito tradicional de família quando, ainda que propondo a homossexualidade

como forma legítima de sexualidade humana, é uma comunidade pentecostal onde

procurava-se estabelecer parâmetros, a serem seguidos por gays e lésbicas, que

demarcassem os domínios de uma vida cristã. Assim sendo, cultivavam-se

como valores a monogamia e as relações estáveis, assim como um ethos de

discrição.11

O que representa um contraste com a postura da sua congregação de origem a ICM que,

conforme os membros da ICC era mais permissiva

[...] sendo tolerados o "relacionamento aberto", o sexo sem compromisso e

outras formas de relação afetivo-sexuais não condizentes com uma vida

religiosa. Essa atitude supostamente complacente era interpretada como

incompatível com um comportamento cristão.12

Além disso, Natividade (2010) descreve que a ICC compreendia que o casamento era um

bom exemplo e por isso em suas práticas religiosas a dicotomia entre as coisas de Deus, estava o

casamento e entre as coisas do mundo estava o sexo sem compromisso. Portanto, apesar de

Natividade (2010) não ter descrito o conceito de família na ICC a presença de um elemento que é

similar ao conceito tradicional cristão de família na doutrina desta comunidade é notado que é a

monogamia.

Assim é identificada na ICC uma preocupação em não restringir seu corpo de membros á

homossexuais, mas incluí-los ao modo de vida cristão, que para essa comunidade, tinha como

valores a monogamia e estabilidade em uma relação sexual. Neste sentido o conceito de família

cristã contemporânea, tendo em vista as práticas religiosas da ICC, vem ser forjado baseado na

relação homossexual, monogâmica e estável.

3 A tradição cristã na modernidade

10

NATIVIDADE, Marcelo. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva

pentecostal. Religião e Sociedade, n.2, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-

85872010000200006&script=sci_arttext. Acesso em: 23 de junho de 2011, p.12 11

Idem, p.13 12

Idem, p.9

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Após a apresentação e elaboração dos dois conceitos cristãos de família a que esse trabalho

se dedica, e identificados os elementos que os compõem cabe agora confrontar ambos os conceitos

mediante a teoria sociológica da religião de Hervieu-Léger (2008) a fim de identificar as possíveis

causas das disputas entre religiosos que permeiam a legitimidade da união homoafetiva embasadas

na defesa da família cristã.

Por isso esta parte última do artigo se divide em dois itens, o primeiro dedica-se a uma

explanação desta teoria, e ela foi conduzida pelo trabalho de Camurça (2003), “A sociologia de

Danièle Hervieu-Léger: entre a memória e a emoção”. No segundo item a partir dos conceitos de

família apresentados e a configuração de “vida cristã” da Igreja Cristã Contemporânea por meio da

sociologia da religião de Hervieu-Léger propôs-se uma explicação porque ocorrem disputas de

legitimação pelo conceito cristão de família.

3.1 “Imperativo da continuidade” na sociedade movida pelo “imperativo da mudança”

Danièle Hervieu-Léger, como bem releva Camurça (2003), trabalha o papel da religião na

sociedade moderna levando em conta suas mudanças. Sua formulação sociológica parte da

constatação empírica nas décadas de 1960-70 do surgimento das efervescências religiosas

(HERVIEU-LÉGER, 1997), o que a leva a propor a revisão do conceito de secularização, para

entender esse processo se utiliza de duas interpretações clássicas da sociologia a de Durkheim e a de

Weber.

Pela via durkheimiana, entende que esse processo “evidencia as limitações do projeto

moderno-secularizado fundado no apanágio da ciência e da razão” (CAMURÇA, 2003, p. 262),

pois representa um protesto a especialização da religião mostrando o caráter dessecularizante da

modernidade.

Por meio do pensamento weberiano “significa o abandono total e o reconhecimento da

ineficácia da linguagem religiosa na sociedade, pela assunção de uma não linguagem (glossolalia)

no que se chamou de „culminância emocional da secularização‟” (CAMURÇA, 2003,p. 262)

evidenciando a autonomia do sujeito enquanto elaborador de sua crença.

Por isso Hervieu-Léger identifica que no mundo moderno as instituições religiosas perdem

sua capacidade de impor uma visão de mundo aos indivíduos uma vez que se dissolve sua

“memória autorizada” e ao passo que esses buscam o sentido da existência pela emoção dando

origem a uma religião pós-tradicional (CAMURÇA, 2003).

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Para dar conta de explicar essa realidade ela entende que “religião se define por meio da

transmissão e perpetuação da memória de um acontecimento fundador original através de uma

„linhagem religiosa‟ ou „linha de crença‟”(CAMURÇA, 2003, p. 251) a constituição, o

estabelecimento, o desenvolvimento e o controle da consciência individual ou coletiva de pertença a

uma linhagem religiosa são possíveis graças ao caráter ideológico, prático e simbólico de uma

determinada religião tendo em conta que a memória coletiva é mobilizada de forma específica para

toda religião (CAMURÇA, 2003).

Neste sentido a legitimidade de cada religião específica advém de uma tradição iniciada no

fato fundador original, cuja permanência no tempo lhe investe caráter absoluto, e sobre a qual o

grupo religioso se conecta por uma “linha crente” que em sua continuidade se origina uma crença

religiosa específica. Sendo que a memória religiosa ao conservar e reproduzir esta linha é o que

garante a permanência da religião (CAMURÇA, 2003).

Portanto nas grandes religiões históricas a tradição é dada como uma totalidade de sentido,

pois a memória religiosa dá sentido ao presente assegurando o futuro dentro do percurso da „linha‟,

cujo ponto de origem é o passado sempre eternizado. Mas, uma tradição religiosa, persiste não por

ser imutável e sim por ser governada pelo “imperativo da continuidade” (CAMURÇA, 2003).

Resumindo: “As religiões são tradicionais não porque não mudam, mas porque escondem sua

mudança” (CAMURÇA, 2003, p. 252).

Segundo Camurça (2003) para Hervieu-Léger essa memória religiosa possui uma

normatividade específica que

se expressa na estrutura dos grupos, movimentos, instituições religiosas, através

da constituição de uma memória “verdadeira”: memória „autorizada‟, produzida

por especialistas que se tornam detentores da mesma e erigem um poder

religioso em torno dessa memória, única via de acesso ao “mito de origem‟‟. 13

Esta „memória autorizada‟ que legitima o núcleo de poder religioso responsável por sua

transmissão - retomando a passagem introdutória deste item - vem se dissolvendo por meio da

„desregulação institucional‟ acompanhada da proliferação e disseminação das

„crenças‟(CAMURÇA, 2003).

Cabe agora ver como Hervieu-Léger teoriza esses processos das recomposições das

identidades religiosas, numa formulação em que

13

CAMURÇA, Marcelo. A sociologia da religião de Daniele Hervièu-Leger: entre a memória e a emoção. In:

TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da Religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, p.249-265, 2003, p. 252

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busca apreender no interior da própria tensão entre tendências

„dessecularizantes‟ e „secularizantes‟, ambas presentes nas experiências das

comunidades emocionais contemporâneas, o caráter contraditório do próprio

processo de secularização”.14

Tais processos segundo Hervieu-Léger (2008, p.66) “passam pela combinação livre de

quatro dimensões típicas da identificação, que a regulamentação institucional não articula mais

entre elas ou articula cada vez menos”. Assim elas se seguem: dimensão comunitária “representa o

conjunto das marcas sociais e simbólicas que definem as fronteiras do grupo religioso e permite

distinguir “aqueles que são do grupo” daqueles que não são” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.66);

dimensão ética “é a da aceitação por parte do indivíduo dos valores ligados á mensagem religiosa

trazida pela tradição particular” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.66); dimensão cultural “reúne o

conjunto dos elementos cognitivos, simbólicos e práticos que constituem o patrimônio de uma

tradição particular” (HERVIEU-LÉGER 2008, p.67) e a dimensão emocional “diz respeito à

experiência afetiva associada à identificação” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.67). Essas dimensões

também denominadas de lógicas, que na teoria de Hervieu-Léger segundo Camurça (2003)

[...] funcionam em tensão equivalente, duas a duas, definindo os dois eixos que

estruturam o espaço religioso: o primeiro eixo introduz a tensão entre lógica

comunitária e ética: daqueles marcos identificadores dos componentes do grupo

com a emissão universal da mensagem do grupo, lugar de valorização da

consciência individual do sujeito crente. O segundo eixo expressa a tensão entre

a lógica emocional e cultural: das experiências imediatas e afetivas com a

continuidade legitimadora de uma “memória autorizada” da tradição.15

Mas esses eixos das dimensões tendem a se desarticular na modernidade com a

autonomização do indivíduo, tendo que

O desequilíbrio no eixo comunitário/ético levará a uma superestimação do

comunitário na identidade singular do grupo, e consequente dissolução do

sistema de valores e corpos de crenças, esgotando a força simbólica que

constitui sua identificação enquanto “linhagem” que permanece no tempo e no

espaço. O desequilíbrio no eixo emocional/cultural implica numa disjunção,

onde não se comemora mais o ato fundador, resultando num crer sem tradição”

ou numa memória que não mais mobiliza uma fé comum, uma “tradição sem

crença”.16

As instituições religiosas reagem a isso tentando manter articuladas todas essas lógicas,

usarem de seu dispositivo de autoridade para alcançar esse propósito, mas na sociedade moderna

essa articulação é quase impossível, devido a essa dissociação das lógicas e á subjetividade do

14

Idem, p.262 15

Idem,p.256 16

Idem, p.257

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crente, que fazem de sua tradição um “baú de possibilidades” de onde o indivíduo retira para seu

uso o que lhe convém (CAMURÇA, 2003).

É dessa mesma maneira que a “memória verdadeira” ou “autorizada” por meio da qual as

religiões se legitimam, passa a servir aos propósitos dos sujeitos crentes, ou em trajetória própria ou

de pequenas comunidades. Por isso essas instituições se utilizam de outros artifícios para congregar

fiéis (CAMURÇA, 2003).

Neste sentido, a disputa das religiões nesse espaço religioso moderno em que o indivíduo

busca mais uma “mensagem” que uma “adesão” as instituições religiosas se utilizam, por exemplo,

ou da “mobilização emocional” e da “racionalização cultural” sendo que “a primeira dribla as

contradições através do estímulo ao afetivo e a segunda transforma as contradições em expressões

da diversidade de sensibilidades e culturas”(CAMURÇA, 2003, p. 258).

Outra dessas estratégias é o que Hervieu-Léger chama de “reinvenção da linhagem”, que

consiste em “reconstruir uma „linha de crença‟ de continuidade” cuja naturalidade de se incutir nas

gerações subseqüentes ficou prejudicada, pela não adesão voluntária do indivíduo a tradição

(CAMURÇA, 2003).

Assim temos que a sociologia da religião moderna de Hervieu-Léger apreende uma

totalidade de fenômenos religiosos por sua preocupação em escapar de uma visão unilateral da

secularização encarando seu caráter contraditório.

3.2 Em defesa da tradição do indivíduo

Por meio da etnografia de Natividade (2010) da Igreja Cristã Contemporânea (ICC) pode-se

classificá-la como comunidade pentecostal de doutrina inclusiva onde existe a recorrência da

glossolalia sendo “uma igreja com pouca doutrina e teoria, mas muita espiritualidade”

(NATIVIDADE, 2010, p. 7) onde o homossexual tivesse conforto e orientação.

Por essa classificação entende-se que a ICC está inserida ao contexto da elaboração da

sociologia da religião moderna de Hervieu-Léger (2008), sendo que a identificação dos sujeitos por

essa comunidade cristã poderia acontecer seguindo as seguintes lógicas: pela lógica comunitária,

poderem pertencer tanto homossexuais como heterossexuais com a prescrição do ethos de discrição

para os homossexuais; pela lógica ética o consolo aos oprimidos; pela lógica cultural com relação

aos costumes sexuais previa que independentemente de gênero um casal cristão deveria ser

monogâmico e pela lógica emocional por acolherem homossexuais que passam por discriminação.

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Anexo a essa identificação tem-se pela apresentação dos dois conceitos de família acima

trabalhados, que o primeiro representa a tradição da qual o último se utiliza para ser forjado,

notadamente a consagração da união pelo casamento. Comparando os dois modelos de família cristã

apresentados tem-se como elemento compatível aos dois a monogamia e o elemento divergente a

homossexualidade.

Portanto, em contraste ao conceito de família cristã tradicional está o conceito de família

cristã contemporânea da lógica cultural da ICC que insere um elemento novo ao conceito

tradicional que é a homossexualidade. Dado que - como já foi explanado por meio da teoria de

Hervieu-Léger sobre a religiosidade moderna - a memória autorizada dissolve-se com a

desregulação institucional esse novo elemento representa uma necessidade de identificação do

sujeito homossexual da ICC com a concepção de família cristã tradicional.

Quanto ao elemento da permanência da monogamia, além de reforçar essa necessidade entre

os membros homossexuais na Igreja Cristã Contemporânea, é esse mesmo elemento que faz a

identificação do homossexual ao conceito de família cristã tradicional, que promove a identificação

de outros grupos e indivíduos em lógicas culturais de outras religiões a esse mesmo conceito.

Nessa análise está implícito o que Hervieu-Léger entende pelo

deslocamento de “verdades autorizadas” a verdades que passam pela

autenticidade do sujeito religioso. Deslocamentos de verdades que emanam de

uma autoridade designada e reconhecida pela instituição e poder religioso para

verdades de testemunhas de sentido”, experimentadas em seus percursos

pessoais, em meio a experiências emocionais. 17

A “memória autorizada” que conferia legitimidade ao um núcleo de especialistas contrapõe-

se á necessidade de um grupo minoritário homossexual de reconhecer-se emocionalmente como

cristãos compartilhando do elemento monogamia do conceito de família cristã tradicional.

Neste sentido a questão da legitimidade da união homoafetiva fica aberta á própria trajetória

emocional do crente ao recorrer à tradição. Por essa radical autonomização do indivíduo na religião

é que se entende também as disputas de sentido no contexto religioso cristão dessa legitimação, por

exemplo, pelas interpretações individuais da Bíblia que fundamentam e dissolvem os preconceitos

com relação a homossexualidade.

Considerações finais

17

Idem, 259

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A união homoafetiva no Brasil, aprovada em maio de 2011, fomentou disputa religiosa entre

negação e aprovação de seu reconhecimento, tendo como base a defesa da família cristã, a fim de

contribuir para o entendimento desta disputa foi proposto neste artigo traçar dois conceitos o da

família cristã tradicional e o da família cristã contemporânea.

O primeiro conceito foi elaborado tendo em vista a alquimia ideológica produzida pela ação

de consagração da religião do modelo de família baseado na perspectiva criacionista, que tem como

base o sacramento do casamento composto pelos seguintes elementos: a heterossexualidade,

monogamia. O segundo conceito, que se constitui no cenário pós-moderno e é construído com a

retomada de elementos do conceito tradicional e a agregação de outros, esta última possibilitada

pelo contexto sócio-histórico que deu origem a denominações cristãs definidas como inclusivas, por

assimilarem homossexualidade e cristianismo. De forma que ara o conceito de família cristã

contemporânea foi utilizada uma comunidade específica a Igreja Cristã Contemporânea (ICC) que

permitiu condensar nele elementos que são homossexualidade, monogamia e relação estável.

Para entendermos a retomada á monogamia da família cristã tradicional pela contemporânea,

a sociologia da religião de Hervieu-Léger (2008) expõe que na pós-modernidade existem tendências

secularizantes, pelo surgimento de uma não linguagem religiosa porque para o mundo racionalizado

a linguagem religiosa não explica o sentido da vida. E, por outro ângulo, dessecularizantes pela

necessidade dos indivíduos se rebelarem contra a racionalização da religião e sua

institucionalização. Esses movimentos contraditórios, por um lado despertam no indivíduo uma

busca de sentido para vida a partir da emoção e, por outro, o fim da imposição de uma visão de

mundo aos indivíduos pela dissolução da “memória autorizada”.

Por isso a tradição religiosa, antes alcançada só por meio dessa memória agora se oferece

como um “baú de possibilidades” para que os indivíduos recorram a elas conforme sua trajetória de

vida, levando em conta as lógicas que levam o sujeito a identificar-se com um grupo religioso.

Conforme foi demonstrado neste artigo, foi por meio desta autonomização do indivíduo no

processo de sua identificação religiosa com um grupo é que se encontrou na lógica cultural da

comunidade inclusiva Igreja Cristã Contemporânea o elemento monogamia do conceito tradicional

de família agregado á homossexualidade que compôs o novo conceito contemporâneo aqui

explorado. Assim se tem que a retomada da herança simbólica tradicional no contexto pós-moderno

ainda se faz presente pelos indivíduos, mas acontece conforme suas subjetividades. Portanto a

disputa pela defesa da família cristã no campo religioso, tendo em vista a aprovação da união

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homoafetiva, acontece por que existe uma disputa entre os indivíduos de cada religião pela

legitimidade de sua tradição.

Sendo assim, a defesa da família cristã legítima passa então pelo crivo das “verdades de

testemunha de sentido” de cada indivíduo religioso, pelos membros homossexuais da ICC esse

reconhecimento se dá na inclusão de seu gênero na categoria de família cristã monogâmica, com a

benção do casamento, em contrapartida, existe a crítica á essa concepção por demais fiéis de outras

religiosidades que não compartilham o elemento da homossexualidade na família cristã.

Por outro lado, a desregulação institucional identificada por Hervieu-Léger (2008) e a

proliferação das crenças na pós-modernidade leva a se considerar ainda a estratégias utilizadas pelas

instituições religiosas que não conseguem manter articuladas as lógicas de identificação devido a

essa automatização do indivíduo. Pode-se dizer que as Igrejas Inclusivas se utilizam da estratégia

de “mobilização emocional” para atrair fiéis que se identificam com o recurso simbólico da cura

direcionada aos sentimentos de inferioridade que essa parcela de excluídos cultivava em

decorrência do preconceito e da homofobia.

Dessa forma, nota-se que ao se tornarem membros da ICC os homossexuais buscam um

sentido para sua existência pela emoção, fato que dá a as Igrejas Inclusivas um caráter de religião

pós-tradicional, ao anexar o elemento da homossexualidade ao cristianismo. Essa observação

implica em a ICC retomar o elemento homossexualidade, presente no conceito de família cristã

contemporânea e fora do conceito tradicional, como estratégia para a identificação de indivíduos

homossexuais. Como por outro lado a ICC se utiliza da estratégia de “reinvenção de linhagem”

quando pretende inserir os homossexuais na reconstrução de uma linha de crença com a aplicação

de recursos simbólicos tradicionais como o casamento e a monogamia.

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