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III Domingo de Quaresma – Ano A
Evangelho: Jo 4,5-42.
“Senhor, dá-me dessa água!”.
Ir. Sandra M. Pascoalato, sjbp.
O evangelho deste Terceiro Domingo de Quaresma nos apresenta o encontro de Jesus
com a mulher samaritana, em Sicar, junto ao poço de Jacó.
Os versículos 1-4 introduzem a cena, dizendo-nos de onde Jesus estava vindo: vinha
da Judeia, onde os fariseus discutiam sobre o fato de que ele batizava mais do que João.
Na verdade, nem era Jesus que batizava e sim os seus discípulos. Vinha, portanto, de um
ambiente ‘pesado’, de um ‘clima sufocante’, fruto das costumeiras disputas clericais.
Retornava para a Galileia e, anota o evangelista: “Era preciso que Jesus passasse pela
Samaria”. Soa um pouco estranha a expressão ‘era preciso’. Não era obrigatório fazer este
trajeto; ao contrário, o mais normal era que se andasse da Judeia para a Galileia e vice-
versa não passando pela Samaria, mas seguindo pela outra margem do rio Jordão, viagem
mais segura, sobretudo para um judeu que era visto pelos samaritanos como um inimigo.
Entretanto, o evangelista escreve ‘era preciso’, fazendo-nos perceber que uma necessidade
de outro tipo ‘empurrava’ Jesus por ali: não uma necessidade geográfica, mas do coração.
Por uma necessidade interior Jesus é irresistivelmente empurrado a sair dos percursos
habituais, a atravessar territórios ‘degenerados’.
Assim, Jesus chega à pequena cidade de Sicar, onde fica o poço de Jacó. Não é
difícil imaginar a importância de um poço naquelas regiões desérticas. Em geral eram
bastante antigos; este de Jacó, de mais ou menos 1500 anos antes. Mas o poço, para uma
cidade, era também a praça, onde, ao seu redor, todos se encontravam: de manhã, as
mulheres que iam para buscar água; ao entardecer, os homens para conversar sobre a
jornada. Era um pouco como o barzinho do vilarejo. Ali circulavam as notícias, se faziam
contratos de compra e venda e até os matrimônios. A Bíblia nos testemunha que,
justamente perto daquele poço, Jacó havia encontrado Raquel, sua esposa. Era, portanto,
um poço muito significativo na história de Israel e que ficava no território dos Samaritanos,
irmãos ‘separados’ dos Judeus.
A história desta ‘separação’
Após sair do Egito e peregrinar durante longos anos pelo deserto, algumas tribos do
povo de Israel haviam ocupado aquela região. Mas, no ano 722 a.C. os Assírios destruíram
a capital do Reino do Norte, Samaria, e deportaram a população, deixando somente idosos
e mulheres que, para sobreviver se casavam com os cananeus. A partir daqui a ‘pureza’
hebraica começou a ser ameaçada. Muitas famílias samaritanas eram, portanto, compostas
por membros pertencentes a povos vizinhos. Esta terra se tornou sempre mais ‘mesclada’,
com uma fé não ortodoxa, como era, ao invés, em Jerusalém, com o templo e o rei. A
situação piorou quando, em 598 a.C. caiu a cidade de Jerusalém e os judeus foram
deportados para a Babilônia. Em 538 a.C. o imperador Ciro permitiu a volta dos deportados
para Jerusalém e estes projetaram reconstruir o templo. Então, os samaritanos se
ofereceram para ajudá-los, mas os judeus não aceitaram a ajuda porque, diziam que os
samaritanos não eram ‘puros’. Além disso, quando os judeus retomaram a terra, os
sacerdotes ordenaram que todos aqueles que tinham cônjuges que não eram israelitas,
deviam mandá-los embora. Foi um momento terrível: muitos hebreus tiveram que
abandonar suas esposas cananeias, condenando-as, de fato, à prostituição para poder
viver. No IV século a.C., um sacerdote que havia se casado com uma mulher cananeia e
que a amava muito, não quis destruir a sua família; se rebelou e, junto com outros
sacerdotes, provocou um cisma, construindo um templo sobre o monte Garizim. Nasceu,
então, uma tremenda luta entre judeus e samaritanos. No ano 120 a.C. os judeus
destruíram o templo dos samaritanos e estes se vingaram, levando no tempo de Jerusalém,
esterco de porco, para contaminá-lo. Odiavam-se. E, sobretudo os judeus desprezavam os
samaritanos.
Jesus e a mulher samaritana
O evangelista diz que Jesus chega a Sicar, cansado e sedento. Saindo de
Jerusalém, havia caminhado por alguns dias naquela região montanhosa; está cansado e
se senta perto do poço, um poço que tem uns 30 metros de profundidade. Chega ali na
hora mais quente do dia, quando as famílias estão à mesa. De fato, os discípulos tinham
ido à cidade para comprar alguma coisa para o almoço. Naquela hora, chega também ali
uma mulher. Por que naquela hora, perto do meio-dia? Talvez se sentisse excluída,
‘apontada’ por causa da sua história pessoal. Naquela hora do dia não tinha ninguém que
pudesse tratá-la com desprezo.
Enquanto ela está pegando a ânfora e a corda, Jesus lhe pede: “Dá-me de beber”. A
mulher se maravilha: ‘de um judeu ela deveria esperar somente desprezo. Como é que este
homem lhe dirige a palavra e, como um mendicante, lhe pede água? Não é um homem que
comanda, não é um rabi que pensa logo o que lhe ensinar; é simplesmente um homem
necessitado. É como se estivesse lhe dizendo: como você, eu também tenho sede e não
disponho nem de balde e nem de uma corda’. Inicia assim um encontro humaníssimo entre
Jesus e a mulher. É como se naquele momento fosse derrubado um muro de separação:
entre samaritanos e judeus, entre homens e mulheres, entre um rabi e uma mulher (um rabi
não podia conversar com uma mulher, nem mesmo sobre as Escrituras).
A mulher não sabe, não compreende, mas Jesus lhe diz algo que a deixa intrigada e
que ao mesmo tempo a atrai. A linguagem de Jesus é figurativa, enigmática... Ela não
consegue entender aonde Jesus quer levá-la com a sua conversação; todavia, não tenta
mudar de assunto. Jesus lhe faz uma promessa: a água do poço não mata a sede para
sempre, mas a água que ele dá não somente mata a sede, se torna, naquele que a recebe,
uma fonte de água que jorra para a vida eterna. Aquele que a recebe não é somente um
recipiente, se torna um manancial. Pouco a pouco, a samaritana procura entrar na
linguagem de Jesus. Começa a compreender alguma coisa e então, lhe pede: “Senhor, dá-
me dessa água!”.
A este ponto dá-se uma brusca interrupção; improvisamente Jesus diz à mulher de ir
e chamar o marido. Jesus conhece bem a situação da samaritana e a primeira coisa que
ele vê é uma mulher com uma pobre e sofrida história. Jesus não a julga, não a recrimina e,
dizendo-lhe ‘vai chamar teu marido’, procura a verdade da mulher. A Nicodemos, a um
certo ponto do diálogo, Jesus diz ‘tu és um ignorante’ (cf. Jo 3,10); à mulher, ao invés, ele
diz: ‘tu falaste a verdade’.
Do plano humano se passa ao plano religioso. A samaritana reconhece em Jesus um
profeta.
Daqui a pergunta sobre a adoração e sobre o lugar de adoração. Jesus se revela.
Compreende que a mulher está disponível à escuta. Deus não se adora sobre um monte,
mas em espírito e verdade. Ele está no coração de cada pessoa, aí é o lugar onde Deus
habita e aí deve ser adorado. A mulher acolhe o que Jesus diz, está à espera do Messias,
mas ainda não o conhece, até que Jesus se lhe revela: “Sou eu que estou falando contigo”.
Ela crê, nem se lembra mais da água, abandona a ânfora, corre até a cidade e se torna
missionária.
“O resultado daquele encontro junto ao poço foi que a mulher se transformou ...
Tinha ido buscar água ao poço, e encontrou outra água, a água viva que jorra para a vida
eterna. Encontrou a água que procurava desde sempre! Corre à aldeia, àquela aldeia que a
julgava, a condenava e a rejeitava, e anuncia que encontrou o Messias: alguém que lhe
mudou a vida. Porque cada encontro com Jesus nos muda a vida, sempre”. (Papa
Francisco. Praça de São Pedro, 23.03.2014).
Fontes bibliográficas:
Bíblia Sagrada. Ed. Pastoral. São Paulo 1999.
Konings, J. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. São Paulo 2005.
Pagola, J.A. O caminho aberto por Jesus: João. Petrópolis 2013.