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#DO QUEHÁ URBANO EMNÓS

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Page 1: IGNOTO LIVRO V1.9 FINAL · Trampo (Lim) (Sara Albuquerque) Foto: MLuiza Villela Vide Bula! (Iriwelton Caetano) Foto: Guilherme Ramos Pátria Pária (Guilherme Ramos) Foto: Guilherme

#DO QUEHÁURBANO EMNÓS

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#DO QUEHÁURBANO EMNÓS

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#DOURBANOQUEHÁEMNÓS

Fabiana FreitasGabriela HollandaGuilherme Ramos

Iriwelton CaetanoLisley NogueiraMagno Almeida

Melina VasconcelosMLuiza VillelaNatália Agra

Sara Albuquerque

ProjetoLiterário

IGNOTO

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Pão Francês (Sara Albuquerque)Foto: Lisley Nogueira

Perdeu, João (Natália Agra)Foto: Natália Agra

Viagem (MLuiza Villela)Foto: MLuiza Villela

Laico Frouxo (Fabiana Freitas)Foto: Lisley Nogueira

Crente sem Dentes (Melina Vasconcelos)Foto: Melina Vasconcelos

Severo (Lisley Nogueira)Foto: Lisley Nogueira

Foge, Daniel (Iriwelton Caetano)Foto: MLuiza Villela

20 Cachorros no Funeral (MLuiza Villela)Foto: MLuiza Villela

O Primeiro Suicídio (Gabriela Hollanda)Foto: Gabriela Hollanda

O Vinho de Anita (Melina Vasconcelos)Foto: Melina Vasconcelos

0810

Estações (Fabiana Freitas)Foto: Lisley Nogueira

A Raiz (Magno Almeida)Foto: MLuiza Villela

Tomate em Pé de Maçã (Gabriela Hollanda)Foto: Gabriela Hollanda

Cegueira (Guilherme Ramos)Foto: Guilherme Ramos

Uma Porta Aberta, Outra Fechada (Natália Agra)Foto: Natália Agra

Trampo (Lim) (Sara Albuquerque)Foto: MLuiza Villela

Vide Bula! (Iriwelton Caetano)Foto: Guilherme Ramos

Pátria Pária (Guilherme Ramos)Foto: Guilherme Ramos

Arquitetura do Caos (Magno Almeida)Foto: Lisley Nogueira

Sangue, Sarjeta, Par de Brincos (Lisley Nogueira) Foto: Lisley Nogueira

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Leitor: co-autor do texto.(Lêdo Ivo, 1924-2012)

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Apresentação

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Nada é por acaso. E o acaso vira ideia, proposta, projeto, ação. Quando o universo conspira, devemos esquecer o marasmo e trabalhar incansáveis a seu favor. Assim surgiu #DoUrbanoQueHáEmNós, a primeira publicação do Ignoto – Projeto Literário, que nasceu da necessidade de gritar a liberdade, a expressão e a urbanidade.

Tudo começou em 14/05/2016, num encontro de três personas em um café de Maceió/AL. A ideia de uma coletânea artística tomou corpo, buscando preencher a lacuna literária existente em meio ao turbilhão de escritores talentosos que habitam nesta capital. O objetivo do projeto foi agregar, compactuar, mobilizar cabeças entrincheiradas nos muros da cidade, a fim de rompê-los e adentrar o mar. A necessidade de dar voz às palavras fez-se urgente: era preciso mostrar-se em verso e prosa para o mundo.

A proposta foi reunir escritores de diferentes estilos, interligados por uma temática ainda desconhecida. Todo o projeto foi concebido sem que os autores tomassem conhecimento do corpo editorial. Ou seja: o grupo recebeu um convite misterioso por e-mail (única ferramenta utilizada para contatos e orientações), textos e imagens foram enviados e, até o final do processo, ninguém conhecia as pessoas com as quais estavam trabalhando. A própria concepção artística da publicação foi feita sem consciência do rumo a ser seguido. Só depois dos textos serem analisados e selecionados é que se estabeleceu a temática urbana. Era a sintonia do universo indicando o norte magnético.

Foram três meses preparando a coletânea com todo carinho e capricho, produzindo e tratando fotos, realizando encontros semanais noturnos que varavam as madrugadas (algumas bem frias, com direito a cobertor) nas casas dos componentes do corpo editorial, que viraram verdadeiras editoras abarrotadas de ideias, imagens e muito café, acompanhado de boas risadas, num emaranhado de fios e tomadas.

E aqui estamos. Rasgando o horizonte literário, chega às suas mãos a edição digital de um livro, uma revista, uma mídia literária carregada de sentidos, sentimentos e sensações coletivas para contribuir com imagens, prosas e poesias inéditas num universo fantástico cujo limite é, apenas, o infinito.

Boa leitura. E boa escrita. Porque novas obras virão. O problema não é confiar no ignoto, mas se tornar um. Acredite em você. Nós acreditamos.

Coordenação EditorialIgnoto - Projeto Literário

Maceió, 27/08/2016

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#ESTAÇÕES

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A boa memória das pálpebrasNão deixa esquecerO garrancho que moraNo meio do meu sobrenome

Que assina com um risoDe criançaE costura nas entranhasDo adultoO passado fugitivo

Que num piscarDe olhosVira futuro a galopeLembrando queO primeiro nome do tempo

É início

(Fabiana Freitas)

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#A RAIZ

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caso nomeassemartodas as coisasnada mais restariaalém do povoamento das [conchasou o significado encharcado do tempo

caso nomeasseliberdade vastidãotodas as coisasexistiria em mimum milhão de maneiras de ir

(Magno Almeida)

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#TOMATE EM PÉ DE MAÇÃ

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Dolores logo descobriu que não seria das páginas dos códigos que retiraria seu sustento. Ela tentou, bem tentou, decorar as tantas leis, mas até onde eu saiba nenhuma lei lhe foi válida. Nem os dizeres proféticos de sua avó vingaram. Repreendendo seus malfeitos, a velha dizia batendo no peito:

– A gente colhe o que a gente planta.

Dolores plantou maçãs e colheu pelo resto de sua vida tomates. Não sabia dizer de onde brotavam. Simplesmente ramavam por todo terreno de sua casa, rebentando calçadas. Praga pior que capim, dada a velocidade. Se viu de repente obrigada a abandonar estudo e trabalho pra dar conta da poda. Por dia, não sabia dizer quantos quilos cada colheita. Nunca soube lidar com números. O relógio da cozinha ainda era para si um mistério. Apenas sua escoliose cada vez mais acentuada denunciava o peso das tantas sacolas que carregava dia após dia do jardim à cozinha.

A principio adquiriu o costume de comer tomate em todas as refeições. Não dando conta da produção, passou a vendê-los na feira, assim como toda receita que levasse esse fruto; de doce na compota a molho de massa fresco.

Toda manhã levantava junto com o sol e voltava pra casa apenas quando ele se punha. Não dominando a arte das horas, marcava seu tempo pela quantidade de luz e de sorrisos. Quanto mais risadas acumulava durante o dia, mais depressa corria o tempo. Numa dessas carreiras, conheceu um cliente que fez de um mês uma semana. Dolores estava, a julgar pelo rubor de suas faces, apaixonada. E o homem, a julgar pela quantidade de retornos, estava também apaixonado, ou gostava muito de tomates.

Alimentada por essa dúvida, Dolores passou a sair com o moço, e saindo, passou a beijá-lo, e o beijando, passou a amá-lo, e o amando, passou a querer que todos os seus meses fossem semanas. Passaram-se várias até que a dúvida tomasse corpo de certeza: ele gostava muito de tomates. Tomada pelo desgosto, Dolores passou a se dedicar à colheita com maior afinco. Tamanho era o afinco que, perdida entre os tomateiros, não se lembrava sequer de comer. Sua primeira paixão lhe custou cinco quilos.

Voltando à sua palidez característica, Dolores seguia a rotina de casa à feira/da feira a casa, sem nunca se desviar. Passados alguns sois e poucos dentes amarelos à mostra, ela conheceu outro homem, mais forte, embora mais calvo. Ela se certificou apenas por precaução: ele odiava tomates. Novo rubor, nova paixão. Os dias eram mais uma vez curtos.

Levados pela fluidez do tempo, decidiram morar juntos. Não podendo abandonar sua horta, Dolores fez com que o moço mais calvo se mudasse para sua casa. Já no dia da mudança se deu a separação. Do portão à entrada da casa tecia-se verdadeira floresta de tomates e o homem, como já foi muito bem certificado, odiava tomates. Com os olhos cheios de água, Dolores

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adentrou a floresta à procura de sua casa, mas sem conseguir enxergar com precisão, esteve perdida por um tempo que não soube medir. Sabia apenas que ao final de sua incursão havia deixado no caminho mais dez quilos.

Encovada, retornou à feira com a certeza de que não voltaria a namorar ninguém que conhecesse naquele lugar. Foi munida dessa certeza, passado longo tempo nublado, que caiu de paixão pelo açougueiro da esquina. Homem charmoso de bigode e avental. Naquela barriga protuberante encontrou seu melhor travesseiro e naquele sorriso troncho sua maior distração. Mas também o terceiro homem, por algum motivo que não envolvia tomates, não chegou a ser eterno. Ao sair pela porta da frente, lhe tomou quinze quilos.

Cada vez mais magra, Dolores ia conhecendo pela cidade novos pretendentes à eternidade. Perdeu nos dedos a quantidade de homens, e algumas poucas mulheres, que vinham e iam lhe levando sempre alguns quilos, ao ponto que, passado pela porta o último homem, Dolores enfim desapareceu.

(Gabriela Hollanda)

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#CEGUEIRA

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Mãos corriam – para lá e para cá – tocando paredes, vãos de portas, obstáculos diversos e não encontravam respostas para a pergunta “onde ele está?”. Isso a deixava cada vez mais confusa. Curiosa. Constrangida. Pois nunca lhe havia acontecido algo semelhante. Jamais precisou de ajuda. De ninguém. Sempre se virou muito bem sozinha. Até aquele momento.

Estava tudo escuro em sua cabeça. Imagens não se formavam, ambientes tornaram-se desconhecidos, pessoas ficaram totalmente desfocadas. Nada. Não havia mais luz. Absolutamente nada penetrava em seus olhos. A não ser uma última imagem. Dele. De sua partida. Marcada em seus cristalinos. Tão cegante, quanto traumático. Imagem estática, congelada. Numa quase tatuagem que não lhe despregava dos olhos. Impossível qualquer outra opção de visão.

Seus dedos percorriam todos os milímetros possíveis, buscando o corpo dele, querendo traduzir suas palavras, procurar signos, metáforas, parábolas. Mas em vão. Não há significado nem significante no vazio que lhe foi imposto. Não havia braile para registro e compreensão. Não havia libras para transmissão do que sentia e queria dizer. Não havia nada. Apenas o nada. Num vazio tão cheio que a sufocava.

Atirou-se ao chão. Desconstruída. Desiludida. Desesperada. Gritava como nem sempre se vê numa hora dessas. Frágil. Como uma taça de cristal em meio à manada de elefantes furiosos. Não havia mais ninguém por perto. Ninguém para escutá-la. Para ouvi-la. Para salvá-la. Nem ela mesma. Na sua ânsia pela busca do outro, esqueceu-se de si própria. E isso lhe foi fatal.

Jurou nunca mais se deixar envolver assim. “Nunca mais” seria sua partícula temporal. Egoisticamente particular. Mas o “nunca mais” tornou-se muito tempo. Virou rotina. E, tal qual muita luz, cansou sua retina. Que começava a clarear. Pensava que o “nunca mais” – assim como o “para sempre” – demoraria mais. Tempo. Espaço. Tudo deixou de apenas ser. A questão de apenas ver, virou um completo estardalhaço.

Estava cega. Novamente. De paixão. Uma cegueira rubra. Como o sangue que lhe fervia o corpo. Como a saliva queimava-lhe a boca, lágrimas queimavam o que lhe restou dos olhos.

Mãos corriam. Estava tudo escuro em sua cabeça. Seus dedos percorriam todos os milímetros possíveis. Atirou-se ao chão. Jurou nunca mais se deixar envolver assim. Estava cega.

(Guilherme Ramos)

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#UMA PORTA ABERTA,OUTRA FECHADA

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Um dia quis parar de vez e a porta se abriu de repente. E eu ali, metade choro, metade sangue. Um piano fazia sala no quarto; num tom triste que percorria o meu corpo e me dava certeza. Cortei, cortei e cortei; por mais de cinquenta vezes. Quando a porta se abriu, continue ali, do mesmo jeito. Ignorando a razão. Luiza gritava e meu ouvido surdo só presenciou o oco do grito. O corpo inerte, a razão desmaiada no travesseiro e muito sangue.

No mesmo dia, metrô de porta a porta cheio. 18h. O ferro de encosto sempre frio. Ar-condicionado mortal e ele lá imobilizando a saída com sua tara vermelha. Ainda pensei em apertar o botão; também vermelho. Mas não. Manobrando para frente, logo, ele estava abrindo mais espaço no curto espaço do vagão. E eu cada vez mais encurralada e imobilizada. Prendi a respiração, ele me prendeu, me encarando, enquanto subia, subia e subia. Não me olhou o corpo: fixou meu rosto, me fazendo chorar. E eu sentindo a pior sensação de todas. E ele duro, duro, duro.

Pessoas entravam e saíam a cada estação e ele lá, roçando seu poder contra mim. Eu olhava para o lado e as pessoas estavam rindo ou ocupadas demais em suas redes sociais. Ele gozou neste exato momento. Lambendo os lábios e se recompondo. Na saída, alisou meu rosto com a mão que se limpou.

Um dia quis parar de vez e a porta se abriu de repente.

(Natália Agra)

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#TRAMPO [LIM]

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— o corpo, lembrar-me de inclinar pra trás —

Meus pés-de-prancha se posicionam como se de bailarina fossem, moldando cavas em si mesmos com o decalque de uma sapatilha invisível. Os olhos se descortinam em miopia. Fecho-os para me arrematar os sentidos. Um pequeno incômodo no dedo mindinho encravado. Um aperto dolorido no roçar do maiô com a virilha recém-depilada. Entre a clavícula esquerda e o meiozinho das costas, uma coceira vadia. Não coço. Deslizam em catarata uns pingos pela nuca. Os cabelos ensopados se lambuzam. A gravidade adula meus pensamentos pro fundo. Balanço a cabeça. Investigo concentração. Inspiro pelo nariz. Expiro pela boca. Inspiro pelo nariz. Expiro pela boca. (lembrar-me de inclinar o corpo para trás)

Um, dois, meio, já estou na beira da rampa, prestes a me mergulhar num céu frio de cabeça pra baixo. Frenética, aconteço com a memória da explosão de todas as minhas bolhas ao toque do vão azulado. Os braços, militares, eretos. As mãos encostam na superfície das pernas, pouco abaixo do quadril com estrias, catando uma epidemia de poros resfriados. Os dedos apontam petrificados para a lâmina branca onde estou em pé. Jogar o corpo para trás. Jogar o corpo para trás.

Declino alguns graus do meu pescoço, enrijeço as panturrilhas e, com os pés ainda em posição de bailarina, forço meu peso para baixo, balançando a rampa duas vezes seguidas, como quem dá tapinhas nas costas de um amigo quando se despede. Inspiro pela boca, expiro pelo nariz, mergulho em gerúndio: o peito pra frente cortando o ar, a cabeça descendo ao encontro das pernas, reconhecendo a sensação de ser feto, de voltar ao útero de minha mãe, protegida por sua placenta de massa de modelar, agarrando minhas coxas rígidas, fugindo da lei gravitacional, girando o corpo de novo numa subida apressada, num movimento de rotação cambalhota que me faz ser dia e ser noite e ser agora, soltando o controle das pernas, espreguiçando o mundo, esticando os joelhos, os pés, os nervos, os vasos, a liberdade, jogando, jogando, jogando o corpo, jogando o corpo pra trás, erguendo as mãos em direção ao anil, plantando bananeira no ar, sorrindo a vista, nascendo já enorme, jorrando choro pra tudo que é lado.

(Sara Albuquerque)

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#VIDE BULA!

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Naquele consultório frio, que eu já não aguentava mais, doía nos ossos, coloquei as mãos entre os joelhos na tentativa fracassada de aquecer minhas mãos entre as pernas, ela veio me falar que o meu problema era estresse, já pensou?, olhei com meu olho biônico revestido em ódio, é disso que eu falo, senhor, o senhor está muito estressado. Levantei da cadeira, virei, caminhei até a porta, senti que ela acompanhava meus passos com seus olhos, coloquei a mão na maçaneta de aço que estava mais frio que o ambiente, minha mão pegava fogo naquele metal congelante, parei, o sangue subiu à cabeça, quis dizer umas verdades, voltei. Perguntei com delicadeza, para não quebrar o clima calmo e sereno que a arquiteta quis passar escolhendo aquela cor branco gelo para as paredes e aquele azul bebê do rodapé. Desculpa, como é seu nome?, Doutora Patrícia Bittencourt, Patrícia, vai tomar no seu cu, patrícia, como você vem me falar que meu problema é estresse, só quero saber quem nesse mundo não vive estressado, patrícia?, é a bosta da cachorra pra limpar, comer no sofá não pode, se faço certo reclamam, se eu faço errado choram, e eu choro, de raiva, e minha alergia?, a ácaro, a poeira, a camarão, fico todo vermelho, de vergonha, passo vergonha, sou humilhado no trabalho, não sobra nada do meu salário, lembro do meu pai me pedindo para não roubar, para não manchar o nome da família, me diga, Patrícia, como não ficar estressado?, faça Yoga senhor, porra de Yoga Patrícia, caralho de Yoga Patrícia, qual o tempo que eu tenho para fazer Ioga Patrícia?, você vai trabalhar nos meus três empregos no meu lugar?, vai dar de comer as bocas que eu tenho em casa, falta comida na geladeira, eu passo fome, mas elas eu não deixo passar, senão tiver carne come ovo, senão tiver ovo come o resto do queijo, mas eu não deixo ninguém não, passar fome. O senhor poderia procurar uma igreja, quer dizer que o papa não se estressa?, O pastor não se estressa?, Padre não pega ar?, vá se lascar pra lá, Patrícia, fé eu tenho, Jesus no coração também, mas não é você e nem ninguém que vai fazer meu estresse diminuir, só Deus sabe da minha luta. Não aguentei, parti para pancadaria, quebrei o monitor do computador do consultório, patrícia se levantou assustada, caçou o telefone para pedir socorro, segurei nos cabelos dela, dei duas tapas em sua cara para ela se orientar, ela me chamou de misógino, dei mais duas tapas em sua cara porque eu não sabia o significado da palavra que ela tinha acabado de chamar, miso o quê?, a clínica ouviu os gritos, os seguranças entraram a base de pontapés, me deram um abraço sem delicadeza, lembro de alguns enfermeiros aplicando algumas injeções em meu corpo, senti várias picadas fortes, o corpo foi ficando mole, dormente, os lábios secando, os olhos virando, desmaiei, fui para um hospital de doido, me medicaram, e hoje estou bem, estou feliz, consigo admirar os pássaros, o céu que hoje esqueceu de trazer as nuvens apareceu solitário, as árvores que dançam conforme o vento e que se despedem das folhas ingratas que vão embora com ele, encantadas com o seu jeito de dançar, ludibriadas, pelo charme gostoso do sopro dançarino, o pé de jaca que pode ser dura ou mole, as bananeiras que não reclamam, se balançam, se bronzeiam, além de tudo isso posso respirar os ares das segundas-feiras.

(Iriwelton Caetano)

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#PÁTRIA PÁRIA

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Egoístas,Egocêntricos,Ególatras.Baba-ovos,Puxa-sacos,Lambe-botas.Indolentes,

Inconsequentes,Idólatras.

Filhos. Da pátria.Mãe gentil, antipática,

Que nos insulta.Filhos. Da puta.

Mãe raparigueira,Parideira corrupta.

Maceió. Alagoas. Brasil.

Terra estuprada,ViolentadaE explorada:

Pátria pária que nos pariu.

(Guilherme Ramos)

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#ARQUITETURA DO CAOS

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catalogar nuvenste presentar –todos os dias –com os desenhosfigurados do vapor de águainvadindo o instanteeu, tu, a palavratomados de fantasias soprosbraçadas do marnada por mim?

(Magno Almeida)

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#SANGUE, SARJETA, PAR DE BRINCOS

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Vendi um par de brincos por vinte reais. Nem dezenove, nem vinte e um. Apenas vinte reais. Sarjeta passava todo dia pela minha porta e era o tipo de moleque com quem ninguém se metia. Desde pequeno assombrava a escola, quando aparecia por lá. Cresceu no Beco de baixo e com oito anos, todos já sabiam dele pelas redondezas. Sarjeta não nasceu pra brincadeira. Seu nome verdadeiro era Denis, mas o apelido vinha da falta de pai e mãe, além do fato de que até os três anos, sentava nuzinho na lama depois que chovia forte e ai de quem tentasse tirar ele de lá. Escorregadio pela vida, viu na malandragem o melhor caminho. Nunca quis sair do Beco, apenas reinar por lá. Aos quinze, já ensinava a cartilha. Tinha lá os meios e seus contatos. Andava com Toco, o mais novo, que não chegou nem a um metro e meio, e com Martin,loiro de olhos claros, seu maior inimigo; então, fazia por onde mantê-lo por perto. Toco ainda não tava calejado, ao contrário de Martin, que entrava e saía do bueiro que quisesse. Isso incomodava Sarjeta. Inveja. Saíram da adolescência ao mesmo tempo. Os três. Tinham quase a mesma idade, mas a malícia era de Martin e a maldade, era de Sarjeta. Toco só tinha o azar de andar com eles. Furtos, arrombamentos, tráfico, tudo passava pela mão de Sarjeta, e essa, era a sua diversão. Arrumou mais uma, quando Toco pediu vinte reais para o par de brincos. Sarjeta, conseguia o que queria: celular, relógio, tênis da moda, tinha até moto. Torturou Toco até que ele confessasse que a dona do presente era Dandara. A menina era a deusa do segundo ano vespertino. Corpo de carnaval. Todo mundo sabia que ela tinha uma queda por Martin, e com isso, o infeliz do Sarjeta teve uma "ideia". Fez Toco escrever duas cartas, e caso ele contasse, perderia a língua. No dia seguinte, Toco entregaria os brincos, mas somente quando todo mundo saísse da porta da escola. Às dezesseis em ponto, sexta-feira, fim de aula, nem antes, nem depois, Dandara já no local combinado, viu Martin do outro lado da calçada. Levantou rápido, ajeitou o vestido, pôs o cartão no bolso. Ele, distraído, sem entender direito o encontro, sorriu e então, encarou a guria. A vizinhança toda viu o que aconteceu. Da esquina veio Toco, com as pernas curtas, mas na velocidade de um rato, gritando o que ninguém entendia direito, não deu tempo de parar Sarjeta, que atravessou com a moto na frente deles metendo uma bala certeira em cada um, depois saiu em disparada na direção de Toco, que morreu na confusão. Dandara recebeu um bilhete de Martin pedindo o encontro; usava os brincos de vinte reais, coitadinha. Martin recebeu um bilhete assinado por ela, pedindo pra que fosse na escola, porque ia dizer uma coisa do interesse dele. Toco fez os dois bilhetes e ficou com a língua dentro da boca; sonhava com Dandara em silêncio, mas o medo era maior que tudo. Sarjeta avermelhou os olhos quando soube do interesse da guria por Martin , e não aceitou que a garota que negou ficar com ele, se arrumasse com o inimigo. Cegou de ciúmes e ódio. Acho que eles nunca foram adolescentes. Nem sei porque mataram minha sobrinha. Toco me contou tudo antes de chegar na escola. O maldito nunca foi pego. Sarjeta fugiu com todo aquele sangue que ostentava. Matando só por matar.

(Lisley Nogueira)

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#PÃO FRANCÊS

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A verruga latejando na virilha me faz dar um pulo da cama. Que porcaria. Coisa chata vivendo entre as pernas. Unhas roídas, coço daquele jeito enfurecido, deixando dolorido, marcado, mas até que é gostoso. Ao lado, um tufo de pelos enroscados pela falta de depilação. Tento desencravar com os dedos em pinça. Não sai. Aliso a pele enrugada, parece que vai rasgar. Levo a mão ao nariz e, ah, pelo menos isso. O cheiro de buceta recém-acordada ainda é o mesmo. Aquele cheiro de buceta que já deu um bocado, agora anda preguiçosa. Sorrio por dentro pra não gastar os dentes. Me levanto que, meu pai eterno, já são sete horas? E Lucas ainda não foi pro colégio? Moleque desleixado, nem pra garantir o bolsa serve. Me arrasto até o banheiro. Um elefante nas costas. A barriga inchada, repara. Quando vê isso, são gases.

Me sento na privada, um xixi, a dor nos quartos, descarga. No espelho, um vulto, não dou atenção. Porta, corredor, sala, cozinha, o que porra você tá fazendo aí em cima? O menino se desequilibra da cadeira e cai de bunda. Dou uma gaitada dos deuses, isso é bom demais pra uma segunda de manhã.

desculpa, dinda, queria pegar o nescau — amaciando a perna direita, com cara de cuzão.

desculpa, dinda, desculpa, dinda — imito sua voz mimada que sou boa atriz, eu sei — já era pra você tá no mundo, infeliz.

não consegui acordar, tive pesadelo de novo, dinda — fica em pé, olhos de quem vai chorar.

e o problema é de quem? meu que não é, e engula esse choro, mais tarde tem seu maurício por aqui, tá lembrado, né? — mordo um pão francês, duro, troço difícil de engolir.

mas

mas nada — a boca cheia.

não gosto de fazer isso, dinda, não quero fazer isso — a voz tão baixa que quase não escuto.

deixa de frescura, agora você que sabe, num digo nada, quero ver como vai arranjar grana pra cuidar da sua mãe se não for assim — engulo.

Encarando os pés, ele sai mancando, bicho frouxo.

(Sara Albuquerque)

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#PERDEU, JOÃO

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Ouvi João nascer Antônio;João Antônio, o primeiro João dos demais que viriam. João era um berro, era um berço com um terço entre as miúdas mãos. Trazia um sorriso desajeitado, ainda assim; sorte.

João era o primeiro Antônio;cabia nas palmasenobrecia os seiosAntônio João;o primeiro que havia. uma massa de sangue que não se cabia em si.

Era de noite, silêncio;de dia, era casa cheia. João perdeu ao nascerSina exata dos pobres. Perdeu, João, ao chorar.

João;o Antônio. O primeiro a chegar, a pena; a perder.

(Natália Agra)

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#VIAGEM

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Um carro.

Música no volume máximo, dirijo em alta velocidade por uma estrada escura e desconhecida.

Não havia paisagem. Não havia luar. Não havia céu.

Um filme retrô roda sem parar em minha mente e começo a rir para mim mesma.

— Hey! Não se engane, pequeno garoto cor de caramelo. Sabia bem o que estava fazendo quando entrei por aquela grande porta toda entalhada.

— Sabia?

— Sempre soube e não foi à toa que me vesti bonita em renda Francesa e sapato forrado.

Só via teus olhos arregalados a me fitar e isso me divertia.

Caminhava, sobre pétalas de rosa chá, lentamente em tua direção, pé ante pé.

Flutuava... e ouvi seu cochicho:

— Linda!

Eu sorri.

E você desabafou baixinho.

— Não fugiu!

— Não, não fugi. Estou aqui para te beijar.

Lágrimas. Então fugi como se estivesse deixando para trás todo peso herdado.

Só recordo que bati a maldita porta amarela, joguei os sapatos na calçada suja, pois não queria nem a poeira do meu passado me perseguindo e parti.

Sigo em frente, rumo ao infinito de minha alma a procura de mim mesma.

A estrada se modifica a cada curva, mas a velocidade continua agressiva e implacável e não me dobro frente ao medo.

Já pulei de várias pontes.

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Procuro em muitos mapas e não há nada escrito. Nenhuma pista.

E continuo a viagem.

Continuo gritando ao infinito, gritando para ouvir meu eco.

Acelero para chegar mais rápido e te encontrar, bater um bom papo, cozinhar juntos, beber uma cerveja e dormir abraçados.

De repente paro o carro, desço, respiro um ar gelado e, quando me viro, você partiu.

— Hey! Hey, garoto! Para onde você foi? Está muito escuro e frio, não vejo você. Ainda tenho muitas perguntas. Precisamos pagar as contas e limpar a piscina.

O silêncio me envolve. Fico apenas eu, o carro, a música tocando naquela estrada escura.

O vento é frio e permaneço quieta, aguardando uma resposta.

Mansamente, você se aproxima e me responde:

— Amor, precisei partir a fim de resolver assuntos urgentes. Continue a caminhada. Deixei todas as instruções anotadas sob a mesa da sala. Siga e viva. Nos encontraremos mais adiante.

Retomei meu fôlego, entrei no carro e novamente rasguei a estrada.

E continuo a viagem.

Voltam as lágrimas. Saudade imperfeita que me abate, que me joga para frente e me liberta.

Olho pelo retrovisor e não vejo o passado, apenas a estrada que fica vazia, imóvel.

Sigo o caminho.

Acelero para chegar em casa.

Só restaram os cachorros.

Vou ler as instruções.

(MLuiza Villela)

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#LAICO FROUXO

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Hoje é DomingoEspero o horóscopoDo jornalMe contar o que não seiMudo de ideiaE decido não quererSaber do FuturoMas nem acreditoEm horóscopoDeve ser com outraLeoninaEu não sou assimO futuro era bomDepois da SegundaEstrofeParei de lerForam os 15 segundos Mais lindos

Que não viverei

(Fabiana Freitas)

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#CRENTE SEM DENTES

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A criatura não tinha um dente na boca, o que não lhe impedia de profetizar a palavra do Senhor. Duas fileiras de cadeiras atrás da minha, ele disparava, com a boca murcha e cabelos brancos, as pencas de milagres que o deus dele operava, bastava ter quem acreditasse. Banco lotado, o caixa com cara de ontem, a mulher ao meu lado reclamando que já estava esperando havia 45 minutos ali e nada. E ele lá: “O senhor é isso”, “o senhor é aquilo outro”, e “desceu com o fogo de oitocentos cometas não sei de onde” e “apareceu com um cinturão de ouro na montanha não sei qual”. Eu mascava meu chicletinho rezando por duas coisas: que o caixa me chamasse logo e que o diabo do coroa não me achasse com cara de quem queria conversão. Do meu outro lado, uma senhora gorducha disparava sua revolta contra o homenzinho desdentado: “Minha fia, o povo que precisa ficar aí alardeando aos quatro cantos que acredita em Deus, ave Maria, esse véio deve ser tão ruim!”. Eu mascava meu chiclete. Trident. A mulher do outro lado bufava: “Nam! Chamam mais nunca!”. E a voz do homenzinho se aproximando: “Ele morreu por nóóóóós!!!!!!” Eu pedia, contrita, em nome de todos os deuses, santos e anjos: “Não venha, não venha, não venha!!!!” De repente, o número da senha da gorduchinha do meu lado aparece na tela: “Ixe, agora sou eu!”. Eu ainda tentei segurar a sua mão fofinha enquanto ela se apressava em enfrentar o caixa de sobrecenho cerrado. Não deu outra, com a cadeira dela vaga, o banguelinha sentou e disparou, me cuspindo um pouco: “Ele é o ontem, o hoje e o amanhã!”, olhando fundo nos meus olhos. Mesmo falando fofo, repetia, incansavelmente, as maravilhas dos céus. Eu dizia apressada: “Amém! Amém!”, achando que aquilo o acalmaria. Lêdo engano. Você já teve alguém percebendo nos seus olhos sua falta de fé e justamente por isso tentando a todo custo lhe converter? Não? Então não pode saber o que é isso. Ele me dizia: “Se você crê, fale alto comigo: Eu creio!”. Olhei pro segurança do banco procurando em sua feição qualquer promessa de salvação. Ele, como quem tinha acabado de estar na mesma situação, desviou do meu olhar e virou as costas, desenganado. Eu pensava: “Agora eu arrumei o meu! É hoje que eu vou pro inferno!” Então já que eu ia enfrentar o casaca de couro mesmo, reuni forças e disse: “Meu senhor, desculpe aí, mas eu não creio não.” Você já olhou para a cara de alguém que tivesse a convicção de que veio para o planeta Terra para salvar a sua alma? Não? Então não pode compreender o brilho nos olhos dele por mais que eu tente explicar. Sem um dente na boca a criatura desatou a falar que o fim estava próximo e que meu tempo se esgotava e que aquela era a oportunidade que Cristo tinha me mandado naquele dia. Vejam que coincidência! Eu mascava meu chiclete olhando pro chão, enquanto ele terminava. Uns cinco minutos depois, ele já cansado de falar, pegou nas minhas mãos, me obrigando a dar de cara com toda aquela banguela e me perguntou com cara de santo que está querendo reza: — Você pode aceitar a palavra de Deus?

— O senhor pode aceitar um chiclete?(Melina Vasconcelos)

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#SEVERO

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Ele vivia como se não quisesse viver. Acordava quase sempre com jeito de lixo virado. Rezava algumas vezes e depois, um gole de cachaça pra entorpecer a ideia de conviver consigo, mesmo que por algumas horas. Sua descrença tinha raízes profundas, um casamento fodido e os pés estragados pela seca. Saiu do sertão e com isso só mudou de desgraça, pois a moeda da favela não é a água, é a vida. Já havia morrido há tempos na verdade, mas enterrar-se deixando dois filhos pequenos e uma mulher com derrame, era a certeza de pagar os pecados em algum lugar muito pior que o inferno. Quase não falava, não era letrado, mas na sua pouca história, pensar em suicídio era coisa do capeta. Passou fome, deu dinheiro a quem já tinha. Trabalhava pra pagar remédio e cachaça. O tempo passando e ele parou de rezar. Sobrou a revolta e uma conta na venda. O pensamento em acabar com aquilo tomava conta do corpo inteiro como um câncer que não se pode mais curar. Um homem bom no passado. Hoje, não podia afirmar que era um homem. Andava as voltas por não ter trabalho; tentou em todo canto. Qualquer coisa pra não ver a mulher definhando e os gêmeos chorando. Gastava a madrugada se enganando, até o álcool sair na urina. Queria um casulo maior ou um caixão. Gritou calado até o desespero tomar as rédeas. Escolheu um dia próximo, esperou o galo cantar, saiu de casa cortando o esgoto até chegar na venda. Tentou negociar um serviço de pintor em troca da bóia do dia. Voltou com uma lata de leite, uma de sardinha, quatro pães, água sanitária e a cachaça da vez.

Suava desfazendo a sacola. Água no fogo pra duas mamadeiras. O choro dos gêmeos. Aquele azedo n'alma. Olhou pra mulher e só viu sombra. Mal se mexia, não falava, tudo nela era roxo-esverdeado, cadáver que não apodrecia.

Fez o leite pra os gêmeos, tomou metade da cachaça, amassou dois pães com a sardinha e o óleo da lata pra mulher e em três copos, uma boa dose da água sanitária.

Não pensou em matar, pensou em salvar. Pensou em dar asas à três corpos. Pensou em quem merecia ficar. Pensou em ir sozinho. Pensou em ir primeiro. Não pensou no fato de viver no lugar onde o sol não queima. Lá, quem te alisa é o breu. Não pensou no dia seguinte. Duas crianças e uma mulher em estado grave. Queimadas, porém, sobrevivendo. Do outro lado da cidade, um estranho conhecido chamado Severo agarrado a uma sacola de plástico, linchado até à morte.

(Lisley Nogueira)

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#FOGE, DANIEL!

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Terminei de tomar banho, lavei o banheiro e me deu uma vontade de rezar, agradecer, a Deus, não sei, nem acredito, em um criador, mas me deu vontade mesmo assim, decidi, me ajoelhei, e foi até engraçado, antes de começar a rezar eu comecei ri da cena, depois pedi perdão, vai que é verdade mesmo esse negócio de um criador; então criador, meu nome é Daniel, trabalho no zoológico, cuido dos leões, o senhor já deve me conhecer, e hoje eu vim aqui através desta carta falada agradecer, por tudo, inclusive pelo cachorro que está latindo no vizinho, muito lindo o cachorro quando late e isso muito me alegra, queria agradecer também pelo canto dos grilos que estão cantando aqui nas moitas, acho mágico, não poderia esquecer dos mosquitos que estão me mordendo, mas eu os amo, por último quero agradecer pela vida da minha família que acabei de tirar, amém.

(Iriwelton Caetano)

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#20 CACHORROS NO FUNERAL

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Uma manhã de sol não anunciava o acontecimento: um funeral.

Foi num fevereiro qualquer às 10:30, pontualmente.

Ele morreu na madrugada anterior de falência múltipla dos órgãos e não gostava de cachorros. Ou, pelo menos, não morria de amores por eles.

A esposa preparou tudo com esmero, depois de chorar um pouco, inclusive as cores da roupa, das flores, que deveriam obedecer fielmente à cor do time do coração.

O corpo foi recolhido de uma mesa de pedra fria, enrolado em lençóis manchados e cuidadosamente preparado, embalsamado, a fim de não derramar fluidos ou odores repugnantes. Fora maquiado para deixa-lo com feições de vivo, se é que isso é possível. De perto, bem de perto, mas bem de perto mesmo observava-se que os lábios tinham sido colados para mantê-los fechados, pois não havia mais motivos para ouvir suas lamentações, tão pouco suas desculpas ou juras de amor. Enfim vestido a caráter com sua camisa xadrez, um presente, foi conduzido ao esquife e rodeado de flores vermelhas de material sintético, a contragosto da etiqueta, para não exalar aquele cheiro de cemitério antes do tempo.

Nesses momentos delicados em que ficamos fragilizados, muitos chegam para uma palavra de conforto. Pessoas que você nunca viu, parentes jurássicos, criaturas que nunca sequer falaram com o morto, interesseiros de plantão e o curioso querendo saber tudo da vida da viúva. Suporta-se, por educação, até rezadeiras profissionais.

Após o velório, em cortejo até a morada final, seguimos aquele carro fúnebre em silêncio vulcânico. Um carro modificado para parecer bonito numa situação tão tenebrosa, para não dizer uma situação de paralisia cerebral aguda.

O cemitério, cujo túmulo escolhido e preparado pelo coveiro, era afastado da cidade, alguns poucos quilômetros. O coveiro, uma figura ímpar, falador, inocentemente alegre do seu labor, prometeu um serviço de primeira com muita limpeza e capricho.

O cortejo, chegando ao local seguiu pelo único corredor que havia. Aparentemente, dava impressão que aquele lugar estava abandonado fazia séculos, nem os mortos estavam mais ali, pois foi tomado por um mato bem grande, flores velhas, vasos virados, tumbas esquecidas e vinte cachorros. Sim, vinte cachorros com caras felizes e solícitos ao sofrimento humano. Eram cachorros de todos os tipos: grande, pequeno, pelo liso, pelo enrolado, marrom, preto, branco, malhado, velho, novo, com sarna, carrapato, orelha arrancada, magricelo, caolho, perneta, abandonado e visitante. Os únicos que não se importavam com a situação do defunto, não

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precisavam de desculpas nem perdão. Apenas sacudiam o rabo em sinal de singela simpatia.

Os cachorros, donos do cemitério, porque assim ficava mais divertido, seguiram o esquife que ia sendo carregado com certa dificuldade, pois o peso do perdão não coube na balança.

Vinte cachorros no funeral daquele que não morria de amores por eles. Parece ironia, mas na verdade é uma sincera demonstração de sabedoria do universo. Pois cachorros são gente boa em demasia sem a necessidade de agrado. Apenas o são.

Alguns não convidados sentiram-se incomodados, outros admirados, outros encantados, porque aqueles cachorros, no seu canino entendimento, sabiam o que era tristeza e saudade.

E tristeza e saudade eram o nome daquele dia em que vinte cachorros acompanharam um enterro, mesmo sabendo que aquele sepultado não morria de amores por eles.

No ínterim do sepultamento, ouviu-se uma batida seca na madeira do caixão. Rapidamente o receptáculo fúnebre foi largado e todos se afastaram, exceto os cachorros que faziam uma algazarra infernal no entorno. Resolveu-se, então, abrir o esquife e verificar o barulho. Foi quando, para espanto geral, o defunto, de olhos abertos, sentou-se de sopetão e forçou a abertura da boca com suas mãos. Estava de bico colado até então e bradou energicamente:

- Que calor dos infernos!

- Porra! Já não tinha dito que eu não iria nem no meu enterro? Odeio cemitérios!

Latiram.

Levantou sacudindo a morte e saiu caminhando cemitério a fora com os cachorros lhe acompanhando.

(MLuiza Villela)

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#O PRIMEIRO SUICÍDIO

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Disse que iria caso não chovesse. Caso, assim, já abrindo na resposta uma ressalva. É que não lido bem com guarda-chuvas. Outro dia mesmo, tempestade mais de vento que de água, avessou-se em meio à rua. Fui por metros arrastada. É que sou magrela, daquele tipo que tem joelho saltado. Uso vestido de atrevida, porque não me importo com feiura. Nem com careta. Eu choro em público quando tenho vontade de chorar. É que às vezes o corpo pede um transbordo. Eu obedeço.

Fato é que amanheceu, clarinho de doer o olho. Sabe quando o dia é branco? Branco de nuvens? Quando abafa no peito a vontade de sorver? Claustro. O ar me falta aos poucos. Meio que farfalha, se perdendo no caminho do nariz ao pulmão, não enche, permanece serpenteando no de dentro da gente sem satisfazer. Acordei vendo o ar, branco e sólido, sem ser capaz de senti-lo. Quando a gente se concentra na respiração ela meio que foge. Estar vivo é por si só. Atentar pesa no peito. É devagarzinho que amanheço, tentando pôr para dentro qualquer vestígio de vida.

Acordei cedo cedo. É que tirei as cortinas do quarto pra lavar. Ainda hoje estão penduradas no varal, nunca secam. Faz mais de mês que tenho acordado com o sol fazendo do olho fechado sangria. Ainda assim, me retorço na cama, cobrindo a cabeça pra não ter que levantar. Levantar, quando não no automático, é que nem a respiração que falha. Há de se pôr razão no pé que se move e se faz gelado no piso. Por que mesmo?

Naquela manhã era simples, ou deveria ser. Havia quem me esperasse lá do outro da cidade. E me esperava também, é certo, o motorista do ônibus que me levaria até ele; e a senhorinha no ponto com suas sacolas de compras; e a menina se balançando no ritmo da música que a ensurdecia através de fones de ouvidos; e a cordinha que puxaria pra descer – ela também me esperava; e a rua longa, em descida, que me deixaria num restaurantezinho apertado; e a última mesa do canto esquerdo; e a garçonete de batom vermelho vivo; e a água mineral, cinco reais uma garrafa; e o quiche insosso de alho poró; e ele, segurando o cardápio, escondido entre os doces – ele sempre começava pelos doces.

Mas é exatamente no ‘dever ser’ que está o perigo. Eu deveria ser menos egoísta e deveria ter falado mais verdades e deveria ter perdoado meus pais e deveria ter adotado um cachorro e deveria ter tirado a cortina do varal ontem antes de deitar porque eu deveria saber que choveria na madrugada e deveria, deus, como deveria, levantar dessa cama e sentir o ar nos pulmões e cumprir minha palavra e subir no ônibus porque, sim, a chuva já tinha passado, e apesar de opressor, o dia ainda era dia, e permanecia, por ora, seco o suficiente para que eu não me molhasse, e ainda que começasse a chover, eu deveria abandonar o guarda-chuva e com meu vestido florido ir me encontrar com ele, porque eu deveria saber que um pouco de chuva não mata, e se inunda, é o peito que precisa agora mais do

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que nunca estar cheio, mas está, como sempre, vazio.

(Gabriela Hollanda)

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#O VINHO DE ANITA

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Oitenta e quatro anos, sozinha, nem casamento nem filhos. Sequer bichos de estimação. Valeu-se da vida, viajou, estudou, esteve fora dos padrões femininos do tempo a que pertenceu. Desfrutou do amor e do sexo sem tantos pudores. Era capaz de captar emoções na rua, de sentir a dor alheia e de quase compreender o mistério da existência, apenas olhando ao redor. Sempre introspectiva, de uma introspecção quase confundida com timidez, não fosse a força do seu olhar que parecia ler o pensamento alheio, invadir a privacidade do outro e de lhe roubar seu segredo melhor escondido. Realizava sinapses complexas tendo como matéria-prima nada mais senão o sopro do momento. Essas percepções, não fossem sorrisos tímidos em rompantes que vez em quando lhe escapavam aos lábios, nunca viriam ao mínimo conhecimento do seu objeto de desvario: o outro. Quando Anita era criança, seu pai a pegava no colo e lhe sussurrava no ouvido: “Seja quem é!”. Ter o respaldo daquele a quem ela mais amava nesse mundo era o que lhe permitia ir além, além-mar, além-vida, além-lugar-comum, além-ela-mesma. Tinha a ponta da corda bem atada em um lugar do mundo que ela sabia, era o seu. Por isso, podia levar a outra ponta a qualquer parte, sem nunca perder o caminho de volta. Nem por isso ela deixava de sentir dor. Poder sentir a dor da existência, sabia também, era o que a permitia ir fundo. Quanto a isso, somente criou um hábito curioso, o de tomar analgésico sempre que a dor da alma lhe puxava a barra da saia. Guardou ao longo da vida, em cima do guarda-roupa, que é onde mesmo se deixa as coisas que se quer longe das vistas, todas as cartelas de comprimidos que ingeriu, fazendo então montes de caixa de sapatos de cartelas vazias. Anita não sofre com as recordações. Não é isso que lhe aflige. O que lhe aflige é esta carcaça cansada, dolorida, sonolenta, em algum momento continuar a vida sem ela. Treme. Não se lamenta pela velhice. Não teme a morte. Inquieta-lhe o momento da espera pela outra vida, que chegará, sem que a consciência esteja lhe garantindo a experiência. Não é nostalgia, não é insegurança pelo que virá. É vontade de vida, é necessidade de sinapses, é o combustível acabando. Gosta de livros. Guarda-os com carinho e estima. Foi com eles que viveu ótimos momentos, aqueles da sensação de fichas caindo, de compreensão da vida, do contato com o todo, aquele momento da solidão em que ela conseguia acessar todas as pessoas, senti-las ao mesmo tempo, transcender à pequenez das discussões de vizinhos ou ao aumento do preço da batata e até ao enrugar lento e impiedoso da pele do seu corpo. Gosta de Baudelaire, da sua inteligência, da sua crueza, sua acidez. Admira-o por conseguir verbalizar aquilo que os mais acordados pareciam saber e calavam, por não saberem escolher as palavras certas ou simplesmente por evitarem fazê-lo. Gosta especialmente da sua poesia em prosa que versava sobre a triste capacidade de enxergar a vida com clareza:

“É necessário estar sempre bêbado.Tudo se reduz a isso…… Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos;

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Embriagai-vos sem tréguas!De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha”

Mas agora? Como embriagar-se? De vinho já não pode, seu diabetes a mataria e antes de matar a definharia. Constrange-lhe o fato de que um dia os vizinhos lhe entrem a casa atraídos pelo cheiro da morte roubando o frescor dos dias. De poesia? Seus olhos cansados e esse sono insistente já não lhe deixam se debruçar em livros e explorar suas entrelinhas, que é onde está o que ela busca. E a virtude... Bem, a virtude por si só, descobriu, não era capaz de embriagar. E ela gostaria de dizer isso a Baudelaire um dia em algum plano, fosse verdade que as energias comuns se atraíam em outra vida, se houvesse outra vida. Se houvesse outra vida ela encontraria Baudelaire, que não teve tempo de lhe sobrar apenas a virtude, ela diria a ele que a virtude sozinha não era capaz de entontecer a mínima partícula de real. Mas não o proporia mudanças na poesia, não proporia mudanças porque ninguém tem o direito de roubar a esperança de quem quer que seja, e há quem não tome vinho e há quem não tenha olhos de ler poesia, e há quem tenha somente a virtude para acreditar que apenas ela baste contra o peso da verdade e passe a vida a persegui-la. Somente uma coisa temia: a chegada do momento da perda da consciência, de não estar desperta quando a morte chegasse. Quem ela seria quando não experimentasse mais? Como se poria no mundo se já não pudesse reconhecer a embriaguez ou ao menos o desejo de embriagar-se? Talvez, calcula Anita, sua história estivesse fadada a ser como esta: sem fim.

(Melina Vasconcelos)

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Autoras &

Autores

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Fabiana Freitas nasceu em Maceió e transita pelo universo da escrita desde muito nova. É graduada em Jornalismo, pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Publicou João & seus ais miúdos, em 2016. O livro é fruto da seleção no edital público do Programa de Incentivo à Cultura Literária, da Imprensa Oficial Graciliano Ramos.

Gabriela Hollanda nasceu em 1994. Desistiu de ser advogada antes mesmo de começar a cursar Direito. Passou dois anos tentando se convencer dessa desistência. Hoje é graduanda em Letras pela Universidade Federal de Alagoas. Tem um livro, Monocromático, publicado pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Tem também várias decepções e alguns afetos inesperados. Não gosta de beterrabas.

Guilherme de Miranda Ramos, escritor de verso e prosa, é autor de "Mateu Errante, Mateu Brincante" (nov/2015) e "Minha Fúria e Outros Demônios" (out/2016), ambos vencedores dos editais da Imprensa Oficial Graciliano Ramos/AL. Artista intermídia, é ator, diretor teatral, dramaturgo, compositor e músico prático. Mantém o b l o g “ P r o s o p o é t i c a d e u m I n s o n e S o n h a d o r ” (www.prosopoetica.blogspot.com). Seu conteúdo, despretensioso, mescla poemas, músicas, contos, reflexões e tudo mais de inspirador que vier na cabeça.

Iriwelton Caetano, 25 anos. Escreve desde 2006, tem um violão, tinha um cachorro. Viciado em filmes, séries e livros. Projetos e trabalhos: Direção e roteiro do espetáculo "O fim do mundo" (2011), Cia. Insanos, agraciado com o edital GESTO-SESC/AL; Prêmio de Incentivo à Cultura Alagoana, texto para teatro "Rato" (2015). Escreve o roteiro do fanzine ZéSiri mensalmente.

Lisley Nogueira. Escritora, fotógrafa, ilustradora; apaixonada p o r p o e s i a , c o n t o s e c r ô n i c a s . A s s i n a o b l o g www.lisnogueira.prosaeverso.net; participou da Antologia poética 6 U N I V E R S O S; seleção e direção textual da coletânea de poemas MONANTO, ambos em formato e-book. Textos publicados na Revista Alagunas #6: Pater e #7: Peste.

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Magno Almeida nasceu em Maceió. Formado em Letras pela UFAL. Acredita ser poeta e professor. Publicou pelos poros & pequenos apelos (2015) e Composição para além vértebras (2016), ambos pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Esteve presente em revistas literárias virtuais e impressas. Atualmente trabalha no seu primeiro romance (que talvez nunca seja finalizado). Rascunha no blog: bulimiapoetica.blogspot.com.

Melina Vasconcelos é empresária, criadora, roteirista, produtora, diretora e editora na empresa de produção de conteúdo Filmiola. Apaixonada por contar histórias, ela escreve e se realiza produzindo filmes/séries/videos, roteiros. Como um sinestésico, diverte-se vendo a cor dos sabores e sentindo o cheiro dos sons.

Sara Albuquerque. Exerce como hobbies a advocacia e o serviço público federal, onde é Assistente em Administração da EDUFAL - Editora da Universidade Federal de Alagoas. Tem publicados três livros de literatura infantil, todos frutos de concursos culturais e publicados pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos (IOGRAM): "O Segredo do Rio Mundaú", "Ei, Você Viu Luizinho?" e "O Embrulho Misterioso de Nina". É artista. Busca profissionalizar-se enquanto escritora. Deseja viver de literatura.

MLuiza (Mariluiza) Villela, pedagoga, tem muita intimidade com literatura infantil, desenha e ilustra seus escritos. Gosta de fotografia e fazer edição de textos. Escreve em prosa poética fantástica por que acredita que a vida é embalada pela música certa, que livros movem nossos sonhos e a simplicidade conduz nossa alma.

Natália Agra. Formada em jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas, tem dois projetos de livros em andamento para 2016: um de poesia, “A ordem das coisas e bichos soltos” e um romance em parceria com uma amiga, além de uma série que ainda está em fase de organização das ideias. Tem duas páginas no Facebook, uma de poesia: “Ismália Porto” e uma de exercícios em prosa: “Me chamo Subúrbia”. Gosta do não óbvio, leva a literatura muito a sério e não está

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O conteúdo disposto nos textos, bem como sua revisão ortográfica, são responsabilidade dos próprios autores.

A distribuição das cópias eletrônicas deste livro é permitida, porém qualquer utilização do conteúdo precisará da autorização prévia de cada autor.

FICHA TÉCNICA

COORDENAÇÃO EDITORIALGUILHERME RAMOSLISLEY NOGUEIRAMLUIZA VILLELA

EDIÇÃOGUILHERME RAMOSMLUIZA VILLELA

PROJETO GRÁFICO GUILHERME RAMOSLISLEY NOGUEIRA MLUIZA VILLELA

TRATAMENTO DE IMAGEMGUILHERME RAMOSLISLEY NOGUEIRA

FOTOS AUTORAIS*GABRIELA HOLLANDA: PÁG. 12, 47GUILHERME RAMOS: PÁG. 6, 7, 9, 11, 15, 21, 23, 36, 37, 43, 49LISLEY NOGUEIRA: PÁG. 1, 8, 25, 27, 29, 40, 53MELINA VASCONCELOS: PÁG. 38, 50MLUIZA VILLELA: PÁG. 10, 19, 33, 42, 44NATÁLIA AGRA: PÁG. 17, 31

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