igepp - historia eleitoral do brasil

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Índice A nossa tradição democrática O Estado do Brasil, Membro do Reino de Portugal As primeiras eleições gerais realizadas no Brasil Mais duas eleições gerais Uma consulta sobre matéria eleitoral A primeira lei eleitoral brasileira O privilégio do sistema eleitoral brasileiro A Constituição de 1824 A Lei Eleitoral de 1824 A eleição do regente As eleições municipais As agitações políticas A Lei de 4 de maio de 1842 A Lei de 4 de maio de 1842 A Lei de 19 de agosto de 1846 O problema das minorias A Lei dos Círculos Os partidos em 1870 Os processos de votação Servos da gleba e plutocratas A Lei de 1875 A Lei de 1875 A regulamentação de 1876 A Lei do Terço O primeiro título de eleitor A vitória dos liberais A Lei Eleitoral de 9 de janeiro de 1881 A regulamentação da Lei de 1881 Finda o Império Inicia-se a República

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Breve resumo da HIstoria Eleitoral do Brasil

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  • ndice

    A nossa tradio democrtica O Estado do Brasil, Membro do Reino de Portugal As primeiras eleies gerais realizadas no Brasil Mais duas eleies gerais Uma consulta sobre matria eleitoral A primeira lei eleitoral brasileira O privilgio do sistema eleitoral brasileiro A Constituio de 1824 A Lei Eleitoral de 1824 A eleio do regente As eleies municipais As agitaes polticas A Lei de 4 de maio de 1842 A Lei de 4 de maio de 1842 A Lei de 19 de agosto de 1846 O problema das minorias A Lei dos Crculos Os partidos em 1870 Os processos de votao Servos da gleba e plutocratas A Lei de 1875

    A Lei de 1875 A regulamentao de 1876 A Lei do Tero O primeiro ttulo de eleitor A vitria dos liberais A Lei Eleitoral de 9 de janeiro de 1881 A regulamentao da Lei de 1881 Finda o Imprio Inicia-se a Repblica

  • A primeira lei eleitoral da Repblica O Regulamento Alvim A Constituio de 1891 A Lei Eleitoral de 26 de janeiro de 1892 A unidade nacional Legislao do Estado de So Paulo O primeiro decnio da Repblica A Lei Rosa e Silva

    A Repblica que findou em 1930 Passado, presente e futuro O Autor Notas

    A EVOLUO DO SISTEMA ELEITORAL

    BRASILEIRO

    Manoel Rodrigues Ferreira

    A nossa tradio democrtica

    Este trabalho traz a exposio, em ordem cronolgica, de todos os sistemas eleitorais j adotados no Brasil. Neste primeiro tpico, a que damos o ttulo geral de Evoluo do sistema eleitoral brasileiro, pretendemos to-somente ressaltar a importncia dos regimes eleitorais, a fim de justificar as prximas publicaes a que fazemos referncia. O estudo da histria, nesse campo, apresenta uma importncia que transcende o simples interesse em conhecer a

  • nossa legislao eleitoral atravs dos tempos, pois vem demonstrar que o povo brasileiro, desde os primeiros tempos do Descobrimento, sempre teve a mais ampla liberdade de escolher os seus governos locais.

    Quanto importncia dos regimes eleitorais, j em 1830, o grande constitucionalista francs Cormenin afirmava: A Constituio a sociedade em repouso; a lei eleitoral, a sociedade em marcha. Eis porque os cientistas polticos acham que a legislao eleitoral matria que deve ser tratada com um pouco mais de humildade.

    A estabilidade da vida poltica norte-americana conseqncia unicamente do sistema eleitoral que aquele pas adota tradicionalmente, sem qualquer modificao

    substancial. No dia em que os Estados Unidos substiturem o seu regime eleitoral por outro, o seu sistema de partidos e a sua representao popular sofrero modificaes profundas, com todas as repercusses e conseqncias no seu organismo poltico-econmico-social. A mesma coisa se poder dizer da Inglaterra. Isto no significa que esses dois pases possuem um sistema eleitoral perfeito. Bem ao contrrio. A legislao eleitoral brasileira consideravelmente superior da Inglaterra e dos Estados Unidos. A tendncia desses pases conservar a sua legislao eleitoral. A nossa tendncia, como a da maior parte dos pases,

  • aperfeioar a prpria lei eleitoral. No entanto, possumos uma legislao que imperfeita, ainda. Cada um de ns capaz de apresentar suas prprias idias sobre as modificaes que devem ser introduzidas na nossa lei eleitoral. A fertilidade da imaginao humana faz-se sentir em toda a sua exuberncia nesse campo da legislao eleitoral. Mas, muito poucas vezes, e

    raramente, alcana o objetivo visado: eficcia e justia.

    As modificaes das leis eleitorais brasileiras sempre tiveram a finalidade de alcanar um aperfeioamento. justo, pois, que consideremos as sucessivas modificaes dos nossos regimes eleitorais como uma evoluo, no obstante apresentassem, por vezes, alteraes profundas, conseqentes ao advento de nossos regimes polticos.

    oportuno ressaltar que o direito do voto no foi outorgado ao povo brasileiro ou por este conquistado fora. A tradio democrtica do direito de votar, de escolher governantes (locais), est de tal maneira entranhada na nossa vida poltica, que remonta fundao das primeiras vilas e cidades brasileiras, logo aps o Descobrimento.

    Evidentemente, at poca da Independncia, o povo s elegia governos locais, isto , os conselhos municipais. Mas, considerando as atribuies poltico-administrativas das cmaras municipais no

  • Brasil-Reino, as quais legislavam amplamente, distribuam a justia, etc., no se poder negar a importncia de que se revestia a eleio dos componentes dos conselhos. Analisaremos, oportunamente, com mais vagar este assunto. Por ora, vale ressaltar que o livre exerccio do voto, de escolher governos locais, surgiu no Brasil com os primeiros ncleos de povoadores.

    Esse direito, as geraes seguintes sempre o defenderam, mesmo tendo de se insurgir contra os governadores-gerais e provinciais e contra eles representando os reis de Portugal.

    Por isso, os bandeirantes paulistas, quando se embrenhavam nos sertes, iam imbudos da prtica do direito de votar e de ser votado. Quando, em 1719, Pascoal Moreira Cabral chega, com sua bandeira, s margens dos rios Cuiab e Coxip-mirim, e ali descobre ouro e resolve estabelecer-se, seu primeiro ato realizar a eleio de guarda-mor regente. E naquele dia, 8 de abril de 1719, reunidos numa clareira no meio da floresta, aqueles homens realizam uma eleio. Imediatamente lavrada a ata dos trabalhos: (...) elegeu o povo em voz alta o capito-mor Pascoal Moreira Cabral por seu guarda-mor regente at a ordem do senhor

    general (...), e mais adiante continuava o documento: (...) e visto elegerem dito lhe acataro o respeito que poder tirar autos contra aqueles que forem rgulos (...). Depois desse primeiro ato legal, eram fundadas as cidades j sob a gide da lei e da ordem.

  • Aqui, temos to-somente o objetivo de relacionar, cronologicamente, os sistemas eleitorais que at hoje tm presidido as eleies no Brasil. No reproduziremos, na ntegra, os textos das referidas leis, mas sim faremos unicamente um resumo delas, no que tinham de essencial.

    S por necessidade faremos, s vezes, brevssimas referncias a fatos e situaes histrico-sociais que deram origem a algumas das leis eleitorais adotadas no Brasil.

    A seguir, discorreremos sobre a legislao eleitoral contida nas Ordenaes do Reino e que presidiram as eleies dos conselhos municipais do Brasil desde o primeiro sculo do Descobrimento at o ano de 1828.

    O Estado do Brasil, Membro do Reino de

    Portugal

    As repblicas das vilas e cidades

    Aps a queda do Imprio Romano, a Europa mergulhou em completo caos. A instituio que se mantinha, dando aos povos uma relativa segurana, era a Igreja. Aos poucos foram surgindo os mercadores, que estabeleciam o comrcio entre os artesos, as cidades e os campos. Nas cidades, esses comerciantes que dominavam os burgos, isto , as vilas e cidades, iniciaram a estruturao de um poder poltico

  • que os fortalecia criando governos administrativos eleitos pelo povo. Surgiam, assim, as repblicas das vilas e cidades, sob a orientao dos burgueses. Tinham os burgueses, entretanto, um poderoso inimigo: os senhores feudais, grandes proprietrios de terras que possuam suas prprias foras armadas.

    Os reis detinham um poder temporal, recebido dos papas, como representantes de Deus na terra. Era a Teoria do Direito Divino dos Reis, cujos atos compreendiam sano religiosa. Ainda assim no eram unanimidade. Possuam declarada inimizade aos mesmos senhores feudais.

    Como se v, tanto as monarquias quanto as repblicas das vilas e cidades tinham nos

    senhores feudais um inimigo comum, contra os quais ambas se uniram. Surgiam, dessa maneira, os estados-nao: os reinos, monarquias, cujos reis detinham poder vitalcio e hereditrio; juntamente com as cmaras das repblicas das vilas e cidades, cujos membros eram eleitos pelo povo, por um nmero limitado de anos.

    Paradoxalmente os estados-nao eram formados de monarquias e repblicas. Portugal foi o primeiro estado-nao a surgir dessa forma na Europa, no ano 1128, na cidade de Guimares.

  • O Brasil patrimnio da Ordem de Cristo

    Na Idade Mdia, por ocasio do movimento das Cruzadas para libertar a Terra Santa dos infiis, foi fundada, em Jerusalm, no ano 1119, a Ordem dos Templrios. Logo aps, a Ordem se estabelece no Condado Portucalense (depois Portugal), recebe, a ttulo de doao, o Castelo de Soure e ergue, posteriormente, o Convento de Tomar.

    Em 1312, sob presso do Rei Filipe, o Belo, da Frana, o Papa Clemente V suprime a Ordem dos Templrios. Em Portugal, o Rei D. Diniz, utilizando todo acervo da extinta Ordem dos Templrios, funda a Ordem de Cristo,

    governada pelos reis de Portugal. O infante D. Henrique, com esses bens, criou a Escola de Sagres, responsvel pelos grandes descobrimentos martimos. Todas as novas terras descobertas ficaram sob propriedade da Ordem de Cristo, inclusive o Brasil. Assim, as terras do Brasil no poderiam ser vendidas, somente doadas, seja pelos reis portugueses seja por seus representantes.

    Aps o Descobrimento, conhecendo o Brasil por fora e por dentro

    Depois do Descobrimento do Brasil, em 1500, a Coroa Portuguesa tratou de conhecer-lhe o litoral. Para tanto, mobilizou seus cosmgrafos e cartgrafos, o que no era empreitada fcil. preciso reconhecer que

  • Portugal tinha um milho de habitantes e precisava cuidar tambm da frica e da sia. Assim, no bastavam homens especializados nesse mister, mas tambm dinheiro.

    Apesar das dificuldades, j em 1519 o cosmgrafo Lopo Homem apresentava o seu mapa da costa brasileira (litoral do Brasil), com mais de 150 acidentes geogrficos. Estava, pois, o Brasil conhecido por fora, ao longo do seu litoral.

    Martim Afonso de Souza funda, em 1532, as duas primeiras vilas: So Vicente, no

    litoral, e Piratininga, no interior

    Por determinao do rei de Portugal, em 3 de dezembro de 1530, parte de Lisboa a grande expedio, composta de cinco navios e mais de quatrocentas pessoas, chefiada por Martim Afonso de Souza. Depois de muitas peripcias, Martim Afonso de Souza chega a So Vicente, onde havia um grupo de portugueses e espanhis, no dia 22 de janeiro de 1532. Em companhia de Joo Ramalho, sobe a Serra do Mar, onde funda, no planalto, junto a um rio chamado Piratininga, uma vila: a primeira no interior da Amrica Portuguesa. Comeava assim o Segundo Descobrimento do Brasil, o

    interior; pois o litoral fora o Primeiro Descobrimento. O objetivo era criar uma escola de sertanismo para formar homens que, afeitos penetrao das matas e devassa das florestas do interior, fossem procura da

  • clebre Lagoa Dourada, que os ndios denominavam Lagoa Paraupava e Vupabuss.

    Surge o Estado do Brasil

    Em 1549 criado o Estado do Brasil, com sede em Salvador, na Bahia. Era o Govemo-Geral, ao qual ficavam subordinadas todas as capitanias.

    A fundao das vilas e cidades

    No se pode ignorar a importncia jurdica de se fundar uma vila. Martim Afonso de Souza fundou duas vilas, So Vicente e Piratininga, em um mesmo ano, 1532. No entanto, o documento que comprova a fundao das vilas no especifica qual das duas foi a primeira.

    Eu, autor deste artigo, j expus em livros e em outros artigos que, por muitas e boas razes, Piratininga foi a primeira a ser fundada. So Vicente, localizada no litoral, constitua uma ncora de Piratininga. Foi, portanto, a segunda vila. O documento da fundao de ambas acha-se no Dirio de Pero Lopes de Souza, irmo de Martim Afonso de Souza, que registrou todos os passos da expedio. Pelo documento, v-se que houve um ordenamento jurdico a fundamentar legalmente a constituio de ambas as vilas, isto , foram rigorosamente fundadas sob os aspectos da administrao poltica (governo da Repblica eleito pelo povo), da economia e da organizao

  • social (incluindo a existncia de uma Igreja para os atos religiosos). esse um dos mais belos documentos da nossa histria. Deveria obrigatoriamente ser ensinado nas escolas, desde as primeiras letras.

    necessrio acrescentar que Martim Afonso de Souza estava autorizado a utilizar o solo, de propriedade (patrimnio) da Ordem de Cristo, para fundar as duas vilas. A autorizao foi-lhe concedida pelo governador dessa Ordem, o rei de Portugal. Martim Afonso distribuiu as pessoas que com ele vieram entre as duas vilas. Derrubaram a mata, limparam o cho, estabeleceram o plano urbanstico, abriram ruas, marcaram a praa, onde localizaram a Casa de Cmara e Cadeia, e tomaram lotes, tornando-se, cada um, proprietrio do seu.

    Estava estabelecida aquela nascente sociedade, regulada pelo livro mximo do Reino de Portugal, a Ordenao do Reino, que estabelecia os fundamentos jurdicos da Monarquia, no mbito nacional, e das repblicas das vilas e cidades, no mbito local. E assim se desenvolveram as duas primeiras vilas do Brasil: So Vicente, no litoral, e Piratininga, no interior (hoje, a cidade de So Paulo).

    A Ordenao do Reino

    Estado-Nao: REINO DE

    Formas de governo:

  • PORTUGAL MONARQUIA (mbito

    nacional) REPBLICA

    (vilas e cidades)

    Livro da Constituio

    dos dois estados

    (Nacional e Repblica),

    com suas leis, cdigos, etc.: ORDENAO

    DO REINO

    Organizao poltica dos dois estados (Nacional e Repblica)

    1. MONARQUIA DE PORTUGAL

    (vitalcia e hereditria)

    2. REPBLICA DAS VILAS E

    CIDADES (eleies

    populares)

    Os dois esquemas acima so bastante esclarecedores. No primeiro, vemos que o Estado-Nao, denominado Reino de Portugal, era governado por uma Monarquia (no plano nacional) e pelas repblicas (nas vilas e cidades). No segundo esquema verificamos que a Ordenao do Reino estabelecia a organizao poltica desses dois estados (Monarquia e repblicas).

    Podemos dizer que as repblicas das vilas e cidades eram a clula-mter do Reino de

  • Portugal, juntamente com as repblicas das vilas e cidades do prprio Portugal europeu.

    O livro mximo do Reino de Portugal, Ordenao do Reino no confundir com ordens reais, determinaes reais, exigncias reais, etc. , esclarecia a maneira como era organizado o Reino de Portugal, composto de Monarquia e de repblicas. No era, pois, a Ordenao um livro somente da Monarquia, mas tambm das repblicas. O Reino de Portugal compunha-se assim de Monarquia e de repblicas. Tanto a Monarquia, com suas prprias leis e outras disposies, quanto as repblicas das vilas e cidades, com atribuies, composio dos concelhos das repblicas, o Cdigo Eleitoral, alm de outras disposies, possuam captulo prprio na Ordenao do Reino.

    A histria do povo do Brasil

    Por se desconhecer a histria das repblicas das vilas e cidades no Brasil, no seu sentido poltico, econmico e social, tal como se acha na documentao relativa s suas cmaras, os historiadores desconhecem a histria do povo durante esse perodo. A histria do Brasil que se conhece, que sempre se cultivou, foi a histria pela ptica da Monarquia de Portugal: os atos de reis, governadores-gerais, vice-reis, governadores das capitanias e demais altos funcionrios da Coroa Portuguesa. , na verdade, a histria brasileira no contexto

  • generalizado de toda a Nao Portuguesa, da qual o povo brasileiro no participava diretamente, pois, na Corte, no havia representantes do povo. Portanto, foi e um erro procurar a histria do povo do Brasil nessas searas.

    A histria do povo, como ser poltico, acha-se na histria das repblicas das vilas e cidades. Era nelas que a gente do Brasil exercitava o seu poder poltico, elegendo e sendo eleita para os cargos da sua Repblica. Como vimos, a Monarquia Absolutista e o conjunto das repblicas das vilas e cidades equilibravam-se reciprocamente. Supor que o povo em geral no possua direitos e poderes polticos um equvoco. Tinha-os e exercitava-os, de maneira ampla, nas repblicas das vilas e cidades. na documentao relativa a essas repblicas locais que vamos encontrar a histria do povo do Brasil de 1532 a 1829.

    O Cdigo Eleitoral

    A eleio para os cargos das repblicas das vilas e cidades era regida pelo Cdigo Eleitoral da Ordenao do Reino, que em seus captulos no explicitavam os rgos da administrao, mas referiam-se aos ocupantes dos diversos cargos e funes. Assim, a Ordenao do Reino de D. Joo IV, reimpressa em 1767 a mando de D. Joo V, tratava: Dos juzos ordinrios e de fora, no ttulo LXV, estabelecendo suas competncias; Dos vereadores e das suas

  • competncias, no ttulo LXVI; Em que modo se faro a eleio dos juizes, vereadores, almotacs, e outros oficiais, descrevendo minuciosamente o respectivo Cdigo Eleitoral, no ttulo LXVII; Dos almotacs, no ttulo LXVIII; Do procurador do Concelho, no ttulo LXIX; Do tesoureiro do Concelho, no ttulo LXX; e Do escrivo da Cmara, no ttulo LXXI.

    O nmero de oficiais de uma Repblica era determinado pelo nmero de moradores de uma vila ou cidade. Em geral, o nmero de vereadores variava de trs a sete e o de juizes de um a dois. Procurador do Concelho era apenas um. Quando, uma vez por semana, os vereadores, os juizes ordinrios e o procurador se reuniam para tratar das coisas respeitantes ao bem comum da Repblica, dizia-se que eles faziam cmara.

    Oficiais eram aqueles que exerciam uma determinada funo, os oficiais da Cmara, no caso de cargos pblicos; ou ofcio, profissionais como os oficiais mecnicos, que executavam trabalhos manuais.

    Assim, em uma repblica politicamente constituda, a presidncia cabia a um juiz ordinrio. A Cmara era o corpo Legislativo da Repblica. O Executivo era exercido pelos procuradores, que cuidavam das obras pblicas por intermdio dos almotacs, fiscais de pesos e medidas e tambm das moradias em relao s outras casas e logradouros pblicos, e dos

  • alcaides que, executando a funo dos atuais chefes de polcia, eram encarregados da cadeia e dos presos. Como no existiam policiais militares, a Ordenao do Reino, para manter a ordem pblica, determinava a criao de uma polcia civil com gente do povo. Eram quadrilheiros. Esses nada tinham a ver com o que determinava o Regimento das Ordenanas, que era o povo todo em armas, para guerras de ataque ou defesa, o que veremos ainda.

    Nada mais era preciso acrescentar a essas vilas e cidades para que se constitussem verdadeiras e autnticas repblicas, como alis se denominavam. Os prprios reis, quando a elas se dirigiam, chamavam-lhes repblicas. Os documentos existentes so abundantes. oportuno citar que todas essas funes eram exercidas graciosamente, devendo aqueles que faltassem s suas obrigaes pagar multas s cmaras.

    O Cdigo Eleitoral das Ordenaes

    J dissemos que os juizes, vereadores e procuradores das cmaras municipais eram eleitos por um ano. Vejamos agora como eram feitas essas eleies. Esse cdigo eleitoral estava contido no Livro I, Ttulo 67 das Ordenaes. No iremos transcrever aqui,ipsis litteris, esse cdigo eleitoral, pois, se a

    realizao das prprias eleies j era complicada, fcil imaginar a dificuldade em se

  • entender a redao do mesmo. Ento, optamos por explic-lo com a redao nossa, para torn-lo mais acessvel queles que no esto acostumados com essa linguagem de h sculos. Comecemos, ento. O mandato dos oficiais da Cmara era de um ano, mas no se faziam eleies anualmente. As eleies eram feitas de trs em trs anos. Isto , num s

    escrutnio eram eleitos trs concelhos: um para cada ano. Vejamos, pois, o processo de eleio.

    l Convocao dos eleitores. O concelho cujo mandato estava terminando, e por ser ele o terceiro, convocava eleies por meio de editais, convocando todos os cidados, homens bons e republicanos, para a eleio que seria realizada num determinado dia de dezembro. A denominao cidados significava o povo todo, ou melhor, a Gente mecnica ou os Oficiais mecnicos, que era a plebe que tinha o direito de votar, mas no de ser votada. S podiam ser votados os que pertenciam nobreza das vilas e cidades, ou seja, os denominados homens bons que recebiam tambm a denominao de republicanos. Os editais da Cmara Municipal de So Paulo usavam tanto uma como outra denominao, indiferentemente. Portanto, o sufrgio era universal, no havia qualificao prvia de eleitores, e nem restries ao seu exerccio. (Agora, um parntese necessrio: um socilogo brasileiro, Oliveira Viana, afirmou que no tal Brasil-Colnia a massa do povo no votava, e fez tal assertiva,

  • por desconhecer as Ordenaes e a documentao existente, da qual a mais abundante no Brasil a da Cmara Municipal de So Paulo, que s comeou a ser publicada em 1914. Desconhecendo essa documentao, Oliveira Viana, que era socilogo e no historiador, fez tal afirmativa. Foi o bastante, para at hoje, qualquer um invocar a

    autoridade de Oliveira Viana, para provar que hoje o nosso povo no sabe votar porque esse direito lhe foi negado no tal Brasil-Colnia, etc. etc. Ora, em Histria no existem autoridades, mas sim documentos. E a documentao abundantssima das nossas cmaras municipais, particularmente a de So Paulo, que foi a que mais se conservou, a est para provar que Oliveira Viana foi leviano na sua afirmativa. Mas, deixemos em paz os pobres repetidores que, como papagaios, invocam a autoridade de Oliveira Viana E continuemos, fechando este parntese).

    2 A eleio de primeiro grau. Reunido o

    povo, comeava a eleio. Cada cidado aproximava-se da mesa eleitoral e dizia ao escrivo, em segredo, isto , junto ao seu ouvido, sem que ningum ouvisse, o nome de seis pessoas. Essas pessoas deveriam ser da nobreza local, ou seja, da categoria dos homens bons, ou republicanos, o que tinha o mesmo sentido. Eles eram nomeados secretamente, isto , sem outrem ouvir o voto de cada um (observao: cada vez que usarmos

  • aspas, tal significa que a referida expresso consta do Cdigo Eleitoral das Ordenaes). Essas seis pessoas em quem o cidado votava deveriam ser as mais aptas para exercerem a funo de eleitores do segundo grau. O escrivo ia anotando os nomes e, terminada a votao, os juizes com os vereadores vero o rol, e escolhero para eleitores os que mais votos

    tiverem: aos quais ser logo dado juramento dos Santos Evangelhos. Isto , esses seis mais votados seriam os eleitores do segundo grau, e que em seguida iriam se reunir para eleger os oficiais da Cmara para os trs anos seguintes. O juramento dos Santos Evangelhos que lhes era exigido referia-se a que iriam escolher os melhores homens bons, os melhores da nobreza local, os melhores da Repblica, trs expresses que tinham o mesmo significado. E o juramento tambm se estendia ao fato de que nunca diriam em quem iriam votar. Ou melhor, nunca diriam em quem votaram.

    3 A eleio do segundo grau. Esta era a

    segunda fase da eleio. Os seis eleitores, eleitos pelo sufrgio universal, iriam agora escolher os membros do Concelho, isto , os oficiais da Cmara Municipal, ou o que o mesmo, da Repblica, para os prximos trs anos. Continuemos, ento, o processo. Os seis eleitores eram agrupados de dois em dois, formando trs grupos. Dois de um grupo no podiam ser parentes, nem cunhados, at o quarto grau, segundo o Direito Cannico. E

  • assim agrupados, deixavam o recinto da eleio do primeiro grau, e se dirigiam a outro local, onde continuaria o processo da eleio. E determinava a Ordenao: E em outra casa, onde estejam ss, estaro apartados dois a dois, de maneira que no falem uns com os outros. Isto , dois de um grupo ficariam em um cmodo da casa, outro grupo de dois ficaria

    em outro cmodo e o mesmo com o terceiro. Dessa forma, dois de um grupo poderiam conversar entre si, sendo proibida a comunicao entre dois grupos vizinhos. Assim separados, os trs grupos organizavam as suas listas de votao, ou seja, iriam votar em pessoas da nobreza da vila ou cidade, que deveriam ocupar os cargos de oficiais da Cmara Municipal nos prximos trs anos. Exemplifiquemos como procedia um grupo: os dois eleitores, numa folha de papel, faziam tantas colunas quantos os cargos de oficiais a eleger. Geralmente eram trs colunas, intituladas: juizes, vereadores e procurador. Sendo dois juizes para cada ano, esse grupo escrevia seis nomes; se fosse um s juiz para cada ano, a coluna teria trs nomes. Na segunda coluna, sob o ttulo vereadores, escreveriam um mximo de nove nomes, desde que eram trs vereadores para cada ano. Se a vila ou cidade tivesse s dois vereadores, ento a coluna teria somente seis nomes. Na coluna procurador, escreviam um mximo de trs nomes, desde que sempre s havia um procurador em cada Cmara Municipal. Cada

  • grupo tinha, pois, o seu rol de nomes. Vejamos o passo seguinte da eleio.

    4 O processo de apurar a pauta. Em seguida, os trs grupos entregavam os respectivos ris (relaes) que haviam feito ao juiz mais antigo, o qual perante todos jurar de no dizer a pessoa alguma os oficiais que na eleio ficam feitos. O juiz mais antigo, isto , que no estivesse exercendo o cargo, jurava, pois, que guardar segredo dos nomes escritos nos trs ris. Passava agora o referido juiz a manipular aqueles nomes contidos nos trs ris, num processo que recebia o nome de apurar a pauta ou alimpar a pauta. Ambos os nomes eram usados indiferentemente. Assim, o juiz ver por si s os ris, e consertar uns com os outros, e por eles escolher as pessoas que mais votos tiverem. E tanto que os assim tiver apurados, escreva por sua mo em uma folha, que se chama pauta, os que ficam eleitos para juizes, em outro ttulo os vereadores, e procuradores, e assim de cada

    ofcio. Nessas condies, o juiz apurava a pauta, ou seja, juntava numa s folha de papel todos os nomes que constavam nas trs relaes organizadas pelos trs grupos de eleitores de segundo grau. Evidentemente, por pura coincidncia, alguns nomes deveriam aparecer em mais de um rol, nos trs at. O juiz organizava, na referida folha de papel chamada pauta, trs colunas, com trs ttulos: juizes, vereadores e procuradores. E em cada

  • coluna colocava todos os nomes que constavam das respectivas colunas das trs relaes que havia recebido. Assim, na suposio de que no havia nomes repetidos, na coluna juizes, ele colocaria dezoito nomes (3x6); na coluna vereadores escreveria vinte e sete nomes (3x9) no caso de a Cmara Municipal ter trs vereadores; dezoito nomes (3x6), no caso de

    haver s dois; finalmente, na coluna de procuradores, escreveria nove nomes (3x3), pois as cmaras municipais tinham um s procurador por ano. Estava, pois, concludo o processo de apurar a pauta ou alimpar a pauta. Em seguida, o juiz passaria segunda fase do processo: dos nomes arrolados na pauta, selecionar os que iriam governar a terra nos prximos trs anos. o que veremos.

    5 O modo de conciliar os nomes. Cabia agora ao juiz uma importantssima tarefa: conciliar os nomes da pauta, segundo o seguinte critrio que consta das Ordenaes do Reino: E para servirem uns com os outros, o juiz juntar os

    mais convenientes, assim por no serem parentes, como os mais prticos com os que o no forem tanto, havendo respeito s condies e costumes de cada um, para que a terra seja melhor governada. A estava, pois, a sabedoria das Ordenaes, ou seja, conciliar os nomes, para que a terra, isto , o municpio, a Repblica municipal, fosse melhor governada. Eis como agia o juiz: no caso dos juizes, ele iria escolher seis nomes, dividindo-os em grupos de

  • dois, ou seja, dois para cada ano de mandato. No caso dos vereadores, dividi-los-ia em trs grupos, cada grupo com trs ou dois vereadores, conforme o uso da vila ou cidade. No caso dos procuradores, dividia-os em trs, de um nico nome em cada. Evidentemente, ao escolher esses nomes, o juiz era obrigado a rejeitar um grande nmero de pessoas, desde

    que ultrapassavam o total necessrio. Estavam, pois, organizados juizes, vereadores e procuradores, para servirem nos trs prximos anos. Essa nova pauta, organizada pelo juiz, seria guardada, como determinavam as Ordenaes: E esta pauta ser assinada pelo juiz, cerrada e selada. Mas antes que o fosse, o juiz iria escrever os nomes dos grupos separadamente, pois, a cada trs anos, dever-se-ia conhecer os nomes dos grupos de oficiais da Cmara que haviam sido eleitos. E se ficassem todos nessa pauta, aberta, ento se ficaria sabendo, de antemo, os grupos que iriam governar nos dois anos seguintes. Para evitar esse conhecimento prvio, o juiz, antes de fechar e selar essa pauta, iria dela retirar os nomes dos grupos formados, para passar ao processo seguinte da eleio. o que passaremos a descrever.

    6 Os pelouros da eleio. Inicialmente, vejamos o que eram os pelouros de cera da eleio. Quando comearam a surgir as armas de fogo, elas eram praticamente pequenos canhes que os soldados carregavam nas mos.

  • E esses canhezinhos disparavam balas de ferro macio, chamadas pelouros. No eram grandes, talvez uns centmetros de dimetro. Eram, pois, pequenas bolas de metal. No caso das eleies, usavam-se pelouros de cera, redondos e do mesmo tamanho dos pelouros

    dos canhes. Da o nome. Mas, continuemos. Antes de fechar e selar a pauta dos grupos que iriam servir nos prximos trs anos, o juiz procedia da seguinte maneira: escrevia em trs papeizinhos os nomes dos trs grupos de juizes (um ou dois nomes, conforme o caso) e colocava cada papelzinho dentro de um pelouro de cera e o fechava. Depois escrevia em trs outros papeizinhos os nomes dos trs grupos de vereadores (trs nomes ou dois, segundo o caso) e colocava cada papelzinho dentro de um pelouro de cera e o fechava com cera mesmo. Finalmente tomava trs outros papeizinhos e em cada um escrevia o nome do procurador, e cada papelzinho colocava dentro de um pelouro de cera. A estavam, pois, nove pelouros fechados: trs de juizes, trs de vereadores e trs de procuradores. Vejamos agora o passo seguinte.

    7 O saco dos pelouros no cofre. Ato contnuo, o juiz tomava um saco de pano, com trs divises: numa diviso onde estava escrito juizes, ele colocava os trs pelouros de juizes; na segunda diviso onde estava escrito vereadores, ele colocava os trs pelouros de vereadores; e finalmente, na diviso de

  • procuradores, ele colocava os trs pelouros de procuradores. Na ltima diviso do saco, o juiz colocava a pauta cerrada e selada. E esse saco era guardado num cofre de ferro, com trs fechaduras, sendo que cada vereador cujo mandato se estava extinguindo ficaria com uma chave. Para abrir o cofre, posteriormente, seria necessria a presena dos trs ex-vereadores,

    simultaneamente, como veremos. Cada ano, essas trs chaves passariam sucessivamente aos vereadores cujos mandatos terminavam. De acordo com as Ordenaes do Reino, aquele que cedesse sua chave a outro seria degredado um ano para fora da vila, e pagar quatro mil ris de multa. Estava, pois, findo o processo da eleio. O cofre ficava guardado na Cmara Municipal, e cada um ia para a sua casa.

    A Abertura dos Pelouros

    No fim do ano, geralmente em fins de novembro ou comeos de dezembro, os oficiais da Cmara Municipal, cujos mandatos terminariam no ltimo dia de dezembro, lanavam prego, ou seja, edital, convocando o povo e homens bons para que em determinado sbado, hora em que o sino da cadeia tocasse, todos se reunissem na sede do Concelho, para a abertura dos pelouros, e saberem quem seria designado para servir no ano seguinte. Dizemos designado, pois eleito j havia sido; dependendo da sorte, seria designado para um dos prximos anos.

  • Convocados e reunidos aps o sino bater, determinavam as Ordenaes que, perante todos, um moo de idade at sete anos meter a mo em cada repartimento (do saco), e revolver bem os pelouros, e tirar um (pelouro) de cada repartimento, e os que sarem nos pelouros, sero oficiais esse ano, e no outros. Isto , o jovem retiraria da primeira diviso do saco onde

    estava escrito juizes um pelouro, que era aberto e ento todos ficavam conhecendo os nomes dos que iriam servir. E assim se procedia com os vereadores e procurador. Depois fechava-se o cofre, que era guardado novamente.

    Em seguida, esses nomes eram levados ao conhecimento do ouvidor-geral, que os examinaria e expediria um documento chamado carta de confirmao de usanas, ou simplesmente carta de confirmao, ratificando a escolha feita, e assim os eleitos podiam tomar posse. Essas cartas de

    confirmao correspondiam s atuais diplomaes dos candidatos eleitos nas nossas eleies, que tambm so assinadas pelos juizes presidentes dos tribunais regionais eleitorais. Os eleitos tambm recebiam, do escrivo da Cmara Municipal, um ofcio comunicando-lhes que haviam sido eleitos.

    A posse dava-se sempre na primeira oitava do Natal, ou seja, no dia 1 de janeiro do ano

    seguinte. Vejamos o significado dessa expresso

  • primeira oitava do Natal: antigamente, considerava-se que o dia do Natal (25 de dezembro), por ser o dia do nascimento de Cristo, deveria ser o primeiro dia do ano, isto , do ano que iria comear da a oito dias. Assim, se o ano que estivesse correndo fosse o de 1618, eles no diziam 25 de dezembro de 1618, mas sim, 25 de dezembro de 1619, ou seja, j

    comeava o ano seguinte. E como esse era o primeiro dia do ano, o dia 1 de janeiro seria o oitavo dia do novo ano, ou seja, a oitava do Natal conforme se dizia e escrevia. Dessa maneira, terminamos a exposio do Cdigo Eleitoral das Ordenaes do Reino, tal como era usado tanto em Portugal como no Brasil. As atas e registros da Cmara Municipal de So Paulo, j publicadas, provam que durante quase trs sculos, se observara rigorosamente o Cdigo das Ordenaes e outras leis esparsas, que veremos mais adiante.

    Entretanto, devemos fazer mais algumas observaes ao processo eleitoral visto. Se, no

    momento da abertura do cofre, faltasse algum ou alguns dos vereadores que possuam as chaves, por estarem fora da vila (ou cidade), o cofre seria arrombado por determinao do juiz. Se, no momento da abertura dos pelouros, faltasse algum dos oficiais que neles saram, ausncia devida a falecimento ou a estar no serto, ento seria feita, no mesmo momento, eleio s para esse caso, e ento todos os homens bons do lugar, no momento

  • presentes, votavam diretamente nos nomes que quisessem, para preencher o cargo ou os cargos vagos. E os nomes que fossem recebendo votos iam sendo anotados com uma barra (/), da ser a eleio chamada de barrete. Seria eleito o que mais votos tivesse, ou seja, o que mais barretes tivesse. O mesmo processo era

    usado quando durante o ano falecia ou da vila (ou cidade) se ausentava por muito tempo um oficial da Cmara.

    E agora, uma ltima informao. As cartas de confirmao de usanas, ou simplesmente cartas de confirmaao, justificavam-se, pois, como j vimos, somente os homens bons da vila (ou cidade), que constituam a sua nobreza local, poderiam ser

    eleitos. O ouvidor, ao receber a comunicao dos eleitos e designados, iria verificar nos seus assentamentos se eles podiam ou no ocupar os cargos.

    Casa da Cmara e Cadeia

    As vilas e cidades deveriam construir a ento chamada Casa da Cmara e Cadeia com dois pisos: trreo e sobrado. No sobrado funcionava a Cmara da Repblica; no piso ficava a cadeia, com celas para homens e mulheres, separadamente. Assim, os presos ficavam sob a jurisdio direta da Cmara, particularmente dos juizes ordinrios, eleitos pelo povo.

    As sesses e as audincias pblicas

  • As sesses da Cmara da Repblica eram realizadas com juizes, vereadores e o procurador na Casa da Cmara, no andar superior do sobrado. Mas as audincias pblicas eram diferentes: o povo s era recebido, na Casa da Cmara, pelos vereadores e pelo procurador. Os juizes ordinrios eram proibidos de dar audincia pblica na Casa da

    Cmara. Havia uma casa separada, denominada Pao do Concelho, onde os juizes ordinrios recebiam o povo em audincia. Na falta do Pao do Concelho, os juizes ordinrios deveriam realizar audincias pblicas em suas prprias residncias.

    As faltas

    O mandato dos membros da Cmara da Repblica era de um ano. Como suscitado anteriormente, nenhum deles recebia vencimentos ou qualquer tipo de remunerao. Alm disso, o membro da Cmara que faltasse deveria justificar-se por escrito, do contrrio, era obrigado a pagar multa.

    El-Rei D. Sebastio cria as bandeiras

    O jovem Dom Sebastio, XVI Rei de Portugal (e tambm do Brasil), nasceu em Lisboa, em 1554, e, aos treze anos de idade, pouco antes de ascender ao trono, escreveu as Mximas, que o orientariam ao tornar-se rei, e que seriam sua guia e norma. Esse documento pouqussimo conhecido em Portugal, tendo sido publicado

  • pelo historiador portugus Mrio Saraiva em seu recente livro D. Sebastio na histria e na lenda (Editora Universitria, Portugal). Assim, nas suas Mximas, Dom Sebastio escreveu:

    Conquistar e povoar a ndia, Brasil, Angola e Mina.

    Gabar [elogiar] os homens e cavaleiros que tiveram bons procedimentos, diante de gente [povo] e os que tiverem prstimo para a Repblica, e mostrar aborrecimento s coisas a ela prejudiciais. Armar todo o Reino.

    Os termos colocados entre colchetes so meus. Notemos a importncia que Dom Sebastio dava gente, isto , ao povo, e s repblicas, isto , s cmaras das repblicas das vilas e cidades. Percebamos tambm que ele no escreveu colonizar o Brasil, mas sim, povoar o Brasil. Forte evidncia de que as palavras colnia, colonizar, colonos, como temos dito, nunca existiram na Histria do Brasil.

    Finalmente, notemos que El-Rei D. Sebastio estabeleceu a poltica de Armar todo o Reino. J rei de Portugal (e do Brasil!), no dia 10 de dezembro de 1570, assinou o Regimento dos Capites-Mores, e mais Capites e oficiais das Companhias da Gente (povo) de Cavalo e de P: e da Ordem que tero em se exercitarem. documento muito extenso que no temos espao para fazer resumo aqui.

  • Foram criadas as milcias. Essas milcias, formadas tambm por esquadras (cada esquadra era composta de 25 homens), eram organizadas pelas cmaras das repblicas das vilas e cidades, com toda a sua gente (habitantes). Dez esquadras, 250 homens, constituam uma companhia chamada Bandeira. Toda essa milcia das vilas e cidades possua uma hierarquia: cabos, alferes, sargentos, meirinhos, escrives, capites, eleitos pela Cmara da Repblica. Formada da gente do povo, a milcia possua armas prprias e reunia-se a cada quinze dias, para os exerccios militares. O gnio do malogrado Rei D. Sebastio assim estabelecia o que chamamos hoje de Exrcito popular para defender as prprias vilas e cidades. Alis, 250 anos depois, em 14 de janeiro de 1775, o Ministro Martinho de Melo, de Portugal, dizia em suas instrues enviadas aos governadores das capitanias do Estado do Brasil: As principais foras que ho de defender o Brasil so as do mesmo Brasil.

    Concluindo, em 1532, Martim Afonso de Souza fundou a Vila de Piratininga para constituir uma escola de sertanismo com o objetivo de formar sertanistas para penetrar nos

    desconhecidos sertes da Amrica portuguesa, descobrindo-os, devassando-os. Exatamente 38 anos depois, em 1570, El-Rei Dom Sebastio cria as bandeiras, cuja finalidade era armar os sertanistas, formando, assim, as milcias bandeirantes, que tiveram tambm o objetivo de

  • penetrar, descobrir, devassar o grande serto da Amrica portuguesa.

    As cmaras das repblicas davam posse

    Quando os reis de Portugal nomeavam governadores das capitanias, enviavam ofcios s cmaras das repblicas das sedes das capitanias, informando-as dessas nomeaes. Davam notcias detalhadas dos nomeados e solicitavam s cmaras das repblicas que lhes dessem posse logo aps as suas chegadas. Ao chegar s cidades-sedes das capitanias, os novos governadores se dirigiam s cmaras, agora denominadas senados das repblicas, e apresentavam suas credenciais. Os senadores

    da Repblica, eleitos pelo povo, davam-lhes posse. S ento os governadores das capitanias passavam a exercer o cargo de representantes dos reis de Portugal.

    As cmaras das repblicas e dos senados

    Conforme vimos no item anterior, nas

    capitais das capitanias, as cmaras das repblicas recebiam a denominao e prerrogativa de Senado das repblicas, com representantes eleitos pelo povo.

    Correspondiam-se com os reis de Portugal

    As cmaras e os senados das repblicas correspondiam-se com os reis de Portugal, e,

  • muitas vezes, reclamavam dos governadores das capitanias.

    Os privilgios

    No dia 6 de julho de 1715, D. Joo, rei de Portugal (e do Brasil tambm!), resolveu que sobre ser conveniente ao bom servio da Repblica da cidade de So Paulo concedia, aos que servirem na Cmara dessa nobreza, privilgios de cavaleiros. E mais adiante, dizia o rei: todos os que na cidade de So Paulo servirem de juizes ordinrios, vereadores e procuradores do Concelho fiquem com as mercs de cavaleiros e logrem os privilgios deles.... Estava criada a Ordem dos Cavaleiros de So Paulo.

    Os privilgios das cidades

    Os reis de Portugal (e tambm do Brasil!) estenderam os privilgios de que gozavam os habitantes das cidades de Lisboa e do Porto s cidades-sede das capitanias do Estado do

    Brasil: So Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, So Lus, etc.

    As categorias sociais

    As populaes das repblicas dividiam-se em trs estados: nobreza (civil e militar), eclesistico e povo, da mesma maneira que a

    realeza.

  • Vejamos, inicialmente, a nobreza de uma Repblica do Brasil. A nobreza local no era estabelecida por qualquer ato do rei. Na Idade Mdia, essa classe era denominada homens bons, e consistia na camada superior da sociedade, a quem competia os cargos da Repblica por intermdio das eleies populares. As primeiras famlias portuguesas

    de homens bons vieram para o Brasil na armada de Martim Afonso de Souza e, com ele, participaram da fundao de So Vicente e Piratininga, em 1532. Passaram, da em diante, a se considerar, e a serem consideradas, conquistadoras da terra.

    Seus descendentes diziam-se descendentes dos conquistadores da terra, o que lhes garantiam a categoria de homens bons e o privilgio de serem eleitos para os cargos da Repblica. Assim acontecia em todas as vilas e cidades do Brasil. Somente uma pesquisa poderia dizer em que poca essa categoria de homens bons passou a ser denominada nobreza (local). Ambas as denominaes coexistiam, de maneira freqente, com a de repblicos, classe poltica dirigente das repblicas locais.

    Portanto, expresses como homens bons, nobreza da terra e repblicos, comuns na documentao das repblicas, eram sinnimas. Mas, como em diversas partes da Monarquia portuguesa estavam sendo eleitas pessoas sem

  • essa qualificao, o alvar rgio, de 12 de novembro de 1611, ordenava s cmaras das repblicas que organizassem livros (cadernos) onde ficassem assentados os nomes dos nobres e seus descendentes, nicos que podiam ser eleitos para os cargos das repblicas.

    Essas nobrezas locais (das vilas e cidades) viviam exatamente maneira da nobreza real, e segundo as suas leis. Dentre elas, a mais importante era a proibio de executar trabalho manual, o que alis era norma em todas as naes da Europa e em seus domnios em toda a Amrica. Os elementos da nobreza podiam executar trabalho manual, desde que no fosse para vender o resultado dele. O nobre local, que a isso fosse obrigado, teria o seu nome riscado dessa categoria social e no mais poderia ser eleito para os cargos da Repblica.

    Nas vilas e cidades, a nobreza era sempre muito reduzida e em sua maioria era constituda de proprietrios de terras. Em outras atividades, como os senhores de engenho (indstria aucareira), por exemplo, tambm existiam elementos da nobreza. Quando algum perdia a condio de nobre, passava a fazer parte da massa popular, que executava trabalhos manuais para viver e cujos membros eram denominados oficiais mecnicos . Eram os sapateiros, alfaiates, barbeiros, ferreiros, etc. Existia outra classe, intermediria entre a nobreza e os oficiais

  • mecnicos, que Bluteau, em seu dicionrio, chamou de estado do meio, mas que os especialistas em nobiliarquia denominavam ofcios neutrais tabelies, escrives, banqueiros, arquitetos, negociantes do atacado, os mestres de ler, escrever e contar, os professores de filosofia, de retrica, de gramtica latina ou grega, etc. Os ofcios neutros no davam nem tiravam nobreza. Tambm no era permitido a eles o direito de participar da administrao da Repblica.

    Resta falar dos escravos, que no constituam classe social, exceo dos forros, que eram classificados como oficiais mecnicos.

    oportuno frisar que os nobres que dirigiam a administrao da Repblica eram

    denominados oficiais da Cmara. A eleio que eles faziam dos capites de companhia da ordenana, isto , de capites de bandeiras, s podiam recair em elemento da nobreza. Quanto aos outros postos da hierarquia militar das bandeiras, eleitos pelos oficiais da Cmara (nobreza), podiam ou no ser ocupados por elementos da nobreza: alferes e sargentos. Assim, as bandeiras, que saam aos sertes, eram comandadas s por elementos da nobreza, embora fizessem parte da tropa tanto nobres como oficiais mecnicos, isto , gente da ordenana, do povo.

  • O respeito do rei s repblicas

    de se ressaltar que durante os quase trezentos anos da existncia da nossa vida poltica, com simultaneidade de Monarquia e Repblica, no se registra um nico caso de interveno do rei em repblicas ou de fechamento de cmaras. Em contrapartida, em 1 de junho de 1490, o rei D. Joo II concedeu cidade do Porto (Portugal) certos privilgios, liberdades e isenes estendidos a muitas capitais das capitanias do Brasil como So Paulo (1714), Rio de Janeiro (1644), Salvador (Bahia), So Lus (Maranho), Recife (Pernambuco), etc.

    O estado do meio

    A partir do incio do sculo XVIII comeou a surgir tanto no Brasil quanto em Portugal uma nova classe que hoje chamamos de burguesia, mas que poca era denominada estado do meio (Bluteau). Essa nova classe no pertencia nem nobreza nem aos oficiais mecnicos (povo). Embora vivesse sob lei da nobreza, no tinha os direitos polticos (privilgios) daquela. Assim, no podia ocupar, na Cmara, os cargos da Repblica.

    Tal proibio originou a Guerra dos Mascates. Em 1707, a burguesia do Rio de Janeiro protestou, em representao ao rei, contra a nobreza, que no lhe permitia ocupar cargos na respectiva Repblica. Posteriormente,

  • em 1732, foi a vez da nobreza do Rio de Janeiro, em representao ao rei, protestar contra alguns funcionrios da Corte que no respeitavam os seus privilgios de acordo com os privilgios concedidos nobreza da cidade do Porto.

    Esses conflitos que comeam a surgir so, em geral, provocados pela burguesia, o estado do meio. Em meados do sculo XVIII, comea a instalar-se nas trs Amricas uma organizao secreta, a Maonaria. Essa organizao recruta os descontentes do estado do meio que almejam parte do poder poltico reservado exclusivamente nobreza local. Por sua vez, a classe letrada, como os advogados, so doutrinados pela leitura em francs, dos autores do Iluminismo e de Rousseau que pregam a revoluo poltico-social, com o advento da representao popular em nvel nacional. Essa a verdadeira fermentao contra a Monarquia portuguesa, no atos isolados como os motins.

    A idia revolucionria d-se, entretanto, somente nas cidades de intenso comrcio, como Vila Rica (hoje Ouro Preto) ou nas cidades do litoral. Esse movimento no existe na cidade de So Paulo, pobre, mas rica na tradio de devoo Monarquia. Os ideais revolucionrios no ativeram-se a membros do estado do meio, constitudo pela burguesia, expandiu-se tambm aos intelectuais.

  • O movimento incitado pelos burgueses explode em 1789, com os inconfidentes mineiros, que se utilizam de um pretexto como em todas as revolues para deflagr-lo: a cobrana de impostos por parte do poder real. Duas faces da Maonaria se defrontam nesse momento: a azul, que deseja a permanncia da Monarquia com Parlamento

    nacional eleito pelo povo; e a vermelha, que deseja a supresso definitiva da Monarquia. Da a primeira (azul), por intermdio de Joaquim Silvrio dos Reis, denuncia a segunda (vermelha), o que leva Tiradentes forca (Tiradentes fora condenado morte por exercer o ofcio de alferes das tropas regulares; tinha a funo de carregar a bandeira do rei, da a gravidade do seu gesto de lesa-majestade). Ressalta-se que uma simples solicitao da nobreza da Cmara de Vila Rica ou do Rio de Janeiro Rainha D. Maria I teria salvado a cabea de Tiradentes. Mas tanto essas, como todas as cmaras de todas as repblicas, estavam ao lado da Monarquia contra os inconfidentes.

    Quanto ao povo (oficiais mecnicos) que constitua a tropa, o Exrcito da Repblica,

    alm de no doutrinado para ficar ao lado dos inconfidentes, no fora dirigido, nesse sentido, pelos superiores hierrquicos, os capites das companhias (bandeiras), os sargentos-mores e os cabos, que eram eleitos pelas cmaras das repblicas. Posteriormente, a Inconfidncia

  • Baiana foi uma tentativa malograda de envolver o povo nessa revoluo. Da mesma maneira a Revoluo Pernambucana de 1817.0 xito da revoluo contra a Monarquia a Revoluo Liberal teve incio em Portugal (Porto), em 1820, estendendo-se ao Brasil, em 1821, onde foi vitoriosa por ter sido dirigida pelo Senado da Cmara do Rio de Janeiro, em mos do estado do meio, sendo o seu chefe Jos Clemente Pereira. Fazendo a Revoluo Liberal, as cmaras tomadas fora pelos revolucionrios deram o golpe de morte nas suas repblicas.

    A Revoluo Liberal

    A Revoluo Liberal, que eclodiu no dia 24 de

    agosto de 1820, na cidade do Porto, em Portugal, foi dirigida pela Loja Manica, denominada Sindrio, e estendeu-se ao Brasil pelos elementos da Maonaria Vermelha que aqui, executando o mesmo movimento revolucionrio havido em Portugal, dominaram as repblicas das vilas e cidades, colocando-as ao lado das cortes de Lisboa. Instaurava-se assim, no Brasil, em 1821, a Revoluo Liberal, aprisionando o Rei Dom Joo VI e enviando-o a Portugal, como exigiam as cortes de Lisboa.

    No Brasil, foram eleitos os deputados s cortes de Lisboa, que se dividiam entre vermelhos (republicanos) e azuis (monarquistas), mas estes liberais, isto , com Constituio e Parlamento eleito pelo povo. Como s existia um partido poltico, a

  • Maonaria, seus prprios integrantes dividiram-na, publicamente, em Grande Oriente (republicana) e Apostolado (Monarquia com Constituio e Parlamento eleito pelo povo). Da luta que se seguiu, venceu o Apostolado, tendo o Prncipe Regente, Dom Pedro, declarado a Independncia do Brasil, em 7 de setembro de 1822, instaurado o Imprio do Brasil e

    outorgado a Constituio de 1824, concedendo a nacionalidade brasileira a todos aqui nascidos e aqui residentes.

    de se perguntar se o regime que terminava, a Monarquia Absolutista de Portugal, era mesmo absolutista. A resposta negativa, pois esse termo no existira antes, isto , at ser substituda(o) em 1820. O vocbulo absolutista foi um rtulo aplicado denominao Monarquia, que nunca antes existira. Alis, se no existira a Monarquia absoluta, sem representao popular junto ela, existiram, entretanto, as repblicas, eleitas pelo povo, das vilas e cidades e que contrabalanavam o poder real, conforme vimos ao longo de 290 anos no Brasil (l532-1822).

    Tambm no existia, de 1500 a 1815, o termo colnia aplicado ao Brasil, tal como se adotou nos manuais escolares de 1822 em diante. Isto , a denominao Brasil-Colnia nunca existiu em nossa Histria, mas sim, Estado do Brasil, de 1549 a 1815, data esta em que o Rei Dom Joo VI tornou o Estado do

  • Brasil em Reino do Brasil, at 1822. Nossos antepassados nunca conheceram a denominao Brasil-Colnia. pois um rtulo condenado tambm pela moderna Teoria da Histria, que surgiu com o movimento de historiadores em 1929, na Frana, denominado cole des Annales. Da mesma

    maneira, os termos municpio e municipal nunca existiram no nosso passado, uma vez que s foram introduzidos no Brasil pela Constituio de 1824, que os copiou da Revoluo Francesa de 1789. Como os muitos historiadores no haviam conhecido a realidade das nossas repblicas das vilas e cidades na documentao histrica, passaram a adotar os termos municpio e municipal para designar aquele antigo termo Repblica. Assim, esses rtulos municpio e municipal, inexistentes entre o perodo de 1532 a 1822, precisam ser abolidos, pois do uma idia errnea do nosso passado em que s existiam as repblicas das vilas e cidades.

    Vejamos em seguida algumas modificaes havidas na passagem do regime da Monarquia

    portuguesa para o Imprio do Brasil, em 1822.

    Os juizes ordinrios, antes eleitos pelo povo nas repblicas, foram suprimidos nos novos municpios, e suas atribuies incorporadas no novo Estado brasileiro.

    Tanto o rei quanto a bandeira do rei (smbolo de todo o povo) representavam a Nao. O rei foi

  • substitudo pelo Imperador do Brasil, e a Bandeira do rei foi substituda pela Bandeira do Imprio do Brasil, que passou a representar exclusivamente o povo brasileiro.

    Contudo, a grande transformao foi quanto ao direito de ser votado e de votar. At 1824, havia uma categoria social, a nobreza das vilas e cidades, que tinha o privilgio (direito) de ser votada pelo povo para os cargos das repblicas. Vimos que o movimento formado pelos negociantes, o estado do meio, a gente da vara e cvado como se dizia, criou e ampliou seu espao. Os negociantes almejavam ter os mesmos privilgios (direito) da nobreza das vilas e cidades: serem eleitos para os cargos da Repblica, aos quais vinham juntar-se tambm os advogados e intelectuais, que eram os dirigentes da Maonaria, quando esta foi introduzida nas trs Amricas, em meados do sculo XVIII.

    Com a vitria da Revoluo Liberal, essa nobreza das vilas e cidades perdeu completamente os seus privilgios, e o estado do meio tornou-se vitorioso, passando a dominar o Imprio, novo regime, e passando a receber o nome de burguesia. Instaurou um novo privilgio: s poderiam votar e ser votados os cidados que tivessem determinada renda anual medida em dinheiro corrente. Assim, muitos membros da antiga nobreza das vilas e

  • cidades foram excludos por no possurem essa renda anual.

    Destaca-se uma oportuna considerao final. No incio deste captulo, vimos como os burgueses, na Idade Mdia, criaram e dirigiram as repblicas nas vilas e cidades. Depois, ao longo do tempo, esses burgueses, denominados homens bons ou repblicos, ao se tornarem fundadores de novas vilas e cidades, passaram a receber uma nova denominao: nobreza das vilas e cidades, que tinha o privilgio poltico de ser a nica a ser votada para os cargos das repblicas. Opondo-se a essa nova denominao de nobreza, comeou a estruturar-se uma nova burguesia, o estado do meio, que se tornou vitorioso com a Revoluo Liberal e passou a dominar o Estado Novo, o Imprio do Brasil.

    Eis, pois, o que acontecera: na Idade Mdia, os burgueses criaram e passaram a dominar as repblicas das vilas e cidades. Com a Revoluo Liberal, sob outra designao, nobreza das vilas e cidades, passaram, pela primeira vez na histria, a dominar os governos dos estados nacionais. Da Idade Mdia at a Independncia, em 1822, passaram-se mais de 1.500 (mil e quinhentos) anos para a burguesia ganhar os governos modernos, dos estados nacionais, como no Brasil.

  • As primeiras eleies gerais realizadas no Brasil

    Em 1820, quando D. Joo VI ainda se achava no Brasil, dois movimentos revolucionrios irromperam em Portugal, dando origem a duas juntas, que coexistiam harmonicamente. Uma, tinha o objetivo de governar, e a outra, de convocar as cortes, no menor prazo de tempo possvel. Foram esses movimentos que levaram D. Joo VI, em 1821, a voltar a Portugal, deixando o Brasil. Uma das juntas, a Junta Provisional Preparatria das Cortes, ficara encarregada de providenciar a eleio dos deputados que iriam compor as Cortes Gerais de Lisboa. Os deputados seriam eleitos pelos povos de Portugal, Algarve e Estado do Brasil, e, nas cortes, deveriam redigir e aprovar a primeira carta constitucional da Monarquia portuguesa.

    Seria essa a primeira eleio geral a ser realizada no Brasil, pois, como j vimos, as eleies em nosso pas tinham um carter puramente local, isto , eram realizadas somente para eleger governos locais, ou, melhor dizendo, os oficiais das cmaras. Pela primeira vez, iriam ser realizadas eleies gerais, que abrangeriam todo o territrio brasileiro, com a finalidade de eleger representantes do povo a um parlamento: as Cortes de Lisboa.

    A junta portuguesa encarregada de convocar as eleies, devido premncia do tempo, viu-

  • se em dificuldades para organizar uma lei eleitoral que servisse aos seus objetivos. Resolveu, por isso, adotar a lei eleitoral estabelecida pela Constituio espanhola de 1812. Pequenas modificaes foram introduzidas, unicamente com o objetivo de adapt-las s particularidades do reino portugus.

    Ainda no Brasil, D. Joo VI assinou decreto, de 7 de maro de 1821, convocando o povo brasileiro a escolher os seus representantes s Cortes de Lisboa. Juntamente com esse decreto, foram expedidas as Instrues para as eleies dos deputados das Cortes, segundo o mtodo estabelecido na Constituio Espanhola, e adotado para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, conforme rezava o ttulo do decreto referido.

    O nmero de deputados

    As Instrues constituam o que denominamos modernamente de lei eleitoral. O captulo I dispunha sobre o modo de formar as cortes, e o seu art. 32 determinava:

    (...) cada provncia h de dar tantos deputados quantas vezes contiver em sua povoao o nmero de 30.000 almas e que se por fim restar um excesso que chegue a 15.000 almas, dar mais um deputado, e no chegando o excesso da povoao a 15.000 almas, no se contar com ele.

  • Desde que o Brasil, pelo ltimo recenseamento, de 1808, possua 2.323.366 habitantes, seriam 77 deputados. Como as fraes das provncias ficaram desprezadas, o nmero total ficou reduzido a 72 deputados.

    A lei no fazia referncia a partidos polticos, que no existiam nessa poca. Tambm no havia qualificao prvia de eleitores. O captulo II, art. 34, estabelecia que se devero formar Juntas Eleitorais de Freguesias, Comarcas e Provncias. Como veremos, esse sistema permitia a eleio em quatro graus, o que era um verdadeiro absurdo, comparado com o cdigo eleitoral das Ordenaes, que determinava somente dois graus.

    *

    As Instrues de 7 de maro de 1821 estabeleciam um sistema de eleies em quatro graus: o povo, em massa, escolhia os compromissados; estes, escolhiam os eleitores de parquia, que, por sua vez, escolhiam os eleitores de comarca; finalmente, estes ltimos procediam eleio dos deputados. Descreveremos, a seguir, os processos de eleio adotados em cada grau.

    Juntas eleitorais de freguesias

    No havia qualificao prvia de eleitores, nem partidos polticos; todos os habitantes de uma freguesia seriam eleitores (a provncia

  • dividia-se em comarcas; e estas, em freguesias). O artigo 35 determinava: As juntas eleitorais de freguesias sero compostas de todos os cidados domiciliados e residentes no territrio da respectiva freguesia (...). O povo votava em massa, inclusive os analfabetos, no havendo qualquer restrio ao voto. Esse era o eleitorado de primeiro grau, que iria escolher um certo

    nmero de concidados denominados compromissrios. Quantos compromissrios seriam eleitos? Para sab-lo, seria necessrio conhecer, antes, quantos eleitores da parquia seriam eleitos pelos compromissrios. Procedia-se, ento, da seguinte maneira: Nas juntas ou assemblias paroquiais, ser nomeado um eleitor paroquial para cada 200 fogos (art. 39). (Por fogos, subentendem-se moradias, ou mesmo famlias). O resto, excedendo de cem, daria mais um eleitor paroquial. Conhecido o nmero de eleitores paroquiais, calculava-se o nmero de compromissrios. O art. 42 dizia que, para cada eleitor paroquial, deviam ser eleitos 11 compromissrios; para dois paroquiais, 21 compromissrios; para trs, 31. Esses 31 compromissrios eram o limite, pois a lei estabelecia que nunca se poder exceder este nmero de compromissrios, a fim de evitar confuso. Esses nmeros eram diferentes para as freguesias pequenas, mas deixamos de mencion-los, a fim de abreviar esta exposio. Em resumo, dividindo-se o nmero de fogos por 200, tinha-se o nmero de eleitores paroquiais

  • a eleger. Sabendo-se este nmero, calculava-se o total de compromissados que seriam escolhidos pelo povo.

    No dia da eleio, o povo reunia-se na Casa do Conselho (Cmara Municipal), sob a presidncia do juiz de fora ou ordinrio, ou vereadores, e tambm com a assistncia do proco, para maior solenidade do ato. Inicialmente, toda a assemblia eleitoral deveria dirigir-se igreja Matriz, onde seria celebrada missa solene do Esprito Santo. O proco faria um discurso anlogo s circunstncias. Terminada a missa, a assemblia (o povo) volta Casa do Conselho, e organiza-se a junta eleitoral dentre os presentes. Alm do presidente, que era o juiz ou um vereador, eram escolhidos dois escrutinadores e um secretrio. Em seguida, no havendo denncias de subornos ou conluios, que eram proibidos, passava-se eleio dos compromissados. Os cidados chamados ditavam ao secretrio da mesa os nomes das pessoas nas quais votavam para compromissados, mas ningum podia votar em si mesmo. A seguir, a mesa proclamava os compromissados eleitos pluralidade de votados. Imediatamente, os compromissados retiravam-se para um recinto separado e, ali, procediam eleio do eleitor ou eleitores paroquiais, que deveriam ser maiores de 25 anos, ficando eleitos aqueles que reunirem mais de a metade dos votos. Voltavam os compromissrios assemblia e

  • entregavam o resultado junta eleitoral. A seguir, era lavrada a ata (ou termo), cada eleitor paroquial (de 3 grau) ficando de posse de uma cpia, que seria a sua nomeao, como dizia a lei. Aps, a junta dissolvia-se. Ento, os cidados que formavam a junta, levando o eleitor ou eleitores (paroquiais), entre o presidente, escrutinadores e secretrio, se

    dirigiro igreja Matriz, onde se cantar um Te Deum solene.

    Os eleitores de parquia (de 3 grau), de posse dos seus diplomas (cpias da ata), dirigiam-se, aps a eleio, s cabeas das respectivas comarcas. A eleio que eles iam agora proceder realizava-se no domingo seguinte ao da eleio anterior.

    Juntas eleitorais das comarcas

    Os eleitores de parquia iriam eleger os eleitores de comarca. Quantos seriam estes? Segundo as Instrues, os eleitores de comarca seriam o nmero triplo dos deputados a eleger (em cada provncia).

    No dia da eleio, os eleitores de parquia reuniam-se no Pao do Concelho (Cmara Municipal), sob a presidncia do corregedor da comarca, e, a portas abertas, nomeavam, dentre eles, um secretrio e dois escrutinadores. Em seguida, a mesa recebia os diplomas dos eleitores de parquia para verificao. No dia seguinte, havia nova

  • reunio. Estando tudo em ordem, os eleitores de parquia com o seu presidente se dirigiro igreja principal, onde a maior dignidade eclesistica cantar uma missa solene do Esprito Santo, e far um discurso prprio das circunstncias. Terminada a cerimnia religiosa, voltavam todos ao Pao do Concelho. Procedia-se, ento, escolha dos eleitores de

    comarca. Por escrutnio secreto, por meio de bilhetes, nos quais esteja escrito o nome da pessoa que cada um elege, dizia a lei. Depois da apurao, ficar eleito aquele que tiver, quando menos a metade dos votos e mais um. Se no houvesse essa maioria absoluta, haveria segundo escrutnio para os mais votados. Lavrada a ata, cada cidado eleito (eleitor de comarca, a de 4 grau) recebia uma cpia da ata, que seria a sua diplomao. Estava terminada a eleio, dirigindo-se a assemblia eleitoral incorporada igreja Matriz, onde seria cantado o Te Deum solene. E os eleitores de parquias voltavam s suas casas.

    Juntas eleitorais das provncias

    Os eleitores de comarca (de 4 grau) de todas as comarcas seguiam, agora, para a capital da provncia. No domingo seguinte eleio anterior, eles se reuniriam sob a presidncia da autoridade civil mais graduada, apresentando-lhes os seus diplomas (cpias da ata). Marcavam o dia da eleio dos deputados s Cortes de Lisboa. Eram nomeados um

  • secretrio e dois escrutinadores. Os diplomas eram recebidos para exame. No dia seguinte, estando tudo em ordem, os eleitores das comarcas com o seu presidente se dirigiro igreja Catedral, na qual se cantar uma missa solene do Esprito Santo; e o bispo ou na sua ausncia a maior dignidade Eclesistica far um discurso anlogo s circunstncias. Voltavam ao Pao do Concelho e procedia-se eleio. Cada eleitor de comarca, chegando-se mesa, declarava os nomes daqueles em que votava, e que o secretrio anotava. Em primeiro escrutnio seriam eleitos os que obtivessem a metade dos votos e mais um; os que no o conseguissem, entrariam em segundo escrutnio, e seriam eleitos os que alcanassem pluralidade de votos, simplesmente. Eleitos os deputados, passava-se eleio dos seus suplentes. A seguir, lavrava-se ata. Terminados os trabalhos, a assemblia eleitoral dirigia-se igreja principal onde seria cantado solene Te Deum. E estava findo, dessa maneira, o processo eleitoral.

    Dessa forma, foram eleitos os 72 deputados brasileiros s Cortes de Lisboa.(1)

    Mais duas eleies gerais

    No dia 1 de outubro de 1821, D. Joo VI decreta a forma provisria da administrao poltica e militar das provncias do Reino do

  • Brasil, as quais seriam governadas por juntas provisrias, algumas de sete membros, e outras de cinco. Dizia o artigo 2:

    Sero eleitos os membros das mencionadas juntas por aqueles eleitores de parquia da provncia que puderem reunir-se na sua capital, no prazo de dois meses, contados desde o dia em que as respectivas autoridades da mesma capital receberem o presente decreto.

    Ao que parece, esses eleitores de parquia seriam os mesmos da eleio de deputados s Cortes, realizada anteriormente. Esses eleitores de parquia (3 grau) deveriam, por esse decreto, continuar no exerccio de suas funes, ficando os eleitores de comarca (4 grau) sem funes. Parece que os eleitores de parquia constituam, segundo o decreto em causa, um

    colgio eleitoral permanente, ao menos naquelas circunstncias excepcionais, de nova organizao poltico-administrativa do Brasil. Pelo menos, no foram convocadas novas eleies.

    Terceira eleio geral

    Coube a D. Pedro, no ano seguinte, determinar a realizao da terceira eleio geral no Brasil. A lei eleitoral adotada foi a mesma de 7 de maro de 1821, extrada da Constituio Espanhola. Esta segunda eleio foi convocada por decreto de 16 de fevereiro de 1822, o qual criava o Conselho de Procuradores-Gerais das

  • Provncias do Brasil, e que tinha a alta virtude de antecipar a existncia da Cmara dos Deputados do Imprio, que seria convocada no ano seguinte, com prerrogativas de Legislativo.

    O decreto referido adotou o seguinte sistema eleitoral:

    Estes procuradores sero nomeados pelos eleitores de parquia juntos nas cabeas de comarca cujas eleies sero apuradas pela cmara da capital da provncia, saindo eleitos afinal os que tiverem maior numero de votos entre os nomeados, e, em caso de empate, decidir a sorte; procedendo-se em todas estas nomeaes e apuraes na conformidade das Instrues que mandou executar meu augusto pai pelo Decreto de 7 de maro de 1821, na parte em que for aplicvel e no se achar

    revogada pelo presente decreto.

    O decreto acima transcrito, em verdade, mutilou, como o fez o de 1 de outubro de 1821, a Lei Eleitoral de 7 de maro de 1821, que era de quatro graus, reduzindo-a para trs graus, desde que os eleitores de parquia, em vez de elegerem os eleitores de comarca, j iriam eleger diretamente os procuradores-gerais, nas prprias cabeas de comarca. As atas seriam mandadas s capitais das provncias, onde seriam apurados os votos. Seriam eleitos tambm os que tivessem maior nmero de votos entre os nomeados isto , pluralidade de votos (maioria relativa), em vez de pluralidade

  • absoluta (maioria absoluta), como exigia o Decreto de 7 de maro de 1821, para eleio dos deputados s Cortes.

    Uma consulta sobre matria eleitoral

    Adotando a lei eleitoral da Constituio espanhola, trs eleies gerais foram convocadas no Brasil, como vimos anteriormente: a dos deputados s Cortes de Lisboa, a das juntas governativas das provncias, e a dos procuradores das provncias. A primeira foi de quatro graus. A segunda convocao mutilou a lei eleitoral da Constituio espanhola, reduzindo-a a trs graus, isto , suprimindo os eleitores de comarcas. E pelo, que se deduz, no seriam necessrias novas eleies, pois serviriam os eleitores de parquia, da primeira eleio.

    Quanto terceira convocao, tambm no foi clara. Parece que a interpretao ficava a cargo das provncias. A propsito desta ltima convocao, a Cmara de Olinda (Pernambuco) dirigiu ao prncipe regente uma consulta, isto , perguntava se deveriam ser realizadas novas eleies de eleitores ou se serviriam aqueles j eleitos quando das eleies gerais dos deputados s Cortes de Lisboa.

    A 11 de julho de 1822, Jos Bonifcio responde que D. Pedro:

  • (...) H por bem declarar que o decreto acima mencionado (de 16 de fevereiro de 1822) no determina quais sejam os eleitores (de 3 grau), que devem nomear os referidos procuradores, deixando ao arbtrio dos povos a escolha da maneira que julgarem mais a propsito; que nesta e nas outras provncias se tm servido dos eleitores (do 3 grau), antigos;

    que, contudo, quando estes no meream a confiana pblica, fica livre a escolha dos outros.

    O prncipe regente deixava ao arbtrio das provncias a realizao, ou no, de novas eleies para a escolha dos eleitores de parquia (3 grau), que iriam eleger os procuradores. No caso de no serem realizadas novas eleies, continuavam os eleitores de parquia escolhidos na primeira eleio geral (deputados s Cortes de Lisboa) investidos das suas funes, isto , seriam considerados um corpo eleitoral, ou mais propriamente, um colgio permanente, ao menos durante aquela circunstncia agitada da vida poltica brasileira.

    Por outro lado, percebe-se a pouca experincia dos homens do governo no que se refere convocao de eleies gerais, que se ressentiam das exigncias mnimas indispensveis, a fim de que no dessem margem a dvida por parte das provncias.

    Lembremo-nos de que as eleies locais, ou seja, municipais, continuavam a ser realizadas

  • pelo cdigo das Ordenaes do Reino, nada havendo que as perturbasse.

    A primeira lei eleitoral brasileira

    Por decreto de 3 de junho de 1822, D. Pedro convocou uma Assemblia Geral Constituinte e Legislativa composta de deputados das provncias do Brasil eleitos na forma das Instrues que em conselho se acordarem, e que sero publicadas com a maior brevidade.

    A nova lei eleitoral

    As Instrues a que se refere o decreto acima foram publicadas a 19 de junho de 1822. Constituem a primeira lei eleitoral brasileira, isto , a primeira elaborada especialmente para presidir as eleies no Brasil. Ao contrrio da lei eleitoral copiada da Constituio espanhola, esta, a de 19 de junho de 1822, era perfeita para a poca. Toda a matria eleitoral era bem estruturada e ainda hoje nota-se a sua redao simples e acessvel. No havia, ainda, partidos polticos. O sistema era indireto, em dois graus: o povo escolhia eleitores, os quais, por sua vez, iriam eleger os deputados. No havia, em primeiro grau (o povo), qualificao ou registro. Somente os seus delegados, os eleitores da

    parquia, possuiriam o necessrio diploma, uma cpia das atas das eleies. Observemos, ainda, que a religio catlica era a religio oficial, adotada pela Monarquia portuguesa, o

  • que explica as missas estabelecidas nas Instrues. E, finalmente, que a eleio era nica e exclusivamente de deputados Assemblia Geral, no havendo, ainda, assemblias nas provncias.

    No iremos transcrever a referida lei eleitoral (ou Instrues), mas, unicamente, resumi-la no que tinha de essencial.

    Lei Eleitoral de 19 de junho de 1822

    Antes do dia designado para as eleies, os procos das freguesias eram obrigados a afixar, nas partes das suas igrejas, editais onde constavam o nmero de fogos (moradias), ficando eles mesmos responsveis pela exatido do censo. O povo de cada freguesia escolhia os seus eleitores (do 2 grau). Quantos? O art. 5 rezava:

    Toda a povoao ou freguesia que tiver at cem fogos dar um eleitor; no chegando a 200, porm, se passar de l50, dar dois; no chegando a 300 e passar de 250, dar trs, e assim progressivamente.

    Esses eleitores, a serem escolhidos pelo povo, eram denominados eleitores de parquia. O art. 7 precisava os que podiam votar:

    Tem direito a votar nas eleies paroquiais todo o cidado casado e todo aquele que tiver de 20 anos para cima sendo solteiro, e no for filho-famlia(2). Devem, porm, todos os

  • votantes ter pelo menos um ano de residncia na freguesia onde derem o seu voto.

    O art. 8 determinava os que podiam no votar: So excludos do voto todos aqueles que recebem salrio ou soldadas por qualquer modo que seja, exceto os guarda-livros, os primeiros-caixeiros de casas comerciais, os criados da Casa Real (que no forem de galo branco), e os administradores de fazendas e fbricas. Vemos, pois, que somente podiam ser eleitores os assalariados das mais altas categorias e os proprietrios de terras ou de outros bens que lhes dessem renda. Tambm no podiam votar os religiosos regulares, os estrangeiros no naturalizados e os criminosos (art. 9).

    A restrio ao voto era imposta s classes econmicas menos favorecidas, isto , no

    proprietrias, no obstante se estendesse o direito do voto s mais altas categorias dos empregados. Como veremos, todos esses eleitores podiam ser analfabetos.

    A eleio dos eleitores de parquia

    Pelo censo feito pelo proco e afixado porta

    da igreja, sabia-se quantos fogos (moradias) havia na freguesia. Em conseqncia, calculava-se o nmero de eleitores de parquia a serem eleitos pelo povo.

    No dia aprazado para as eleies paroquiais, reunido na freguesia o respectivo povo,

  • celebrar o proco missa solene do Esprito Santo, e far, ou outro por ele, um discurso anlogo ao objeto e circunstncia.

    Terminada esta cerimnia religiosa, o presidente (da assemblia eleitoral, que era o presidente da Cmara), o proco e o povo se dirigiro s casas do concelho, ou s que melhor convier, e tomando os ditos presidente e proco assento cabeceira de uma mesa, far o primeiro, em voz alta e inteligvel, a leitura dos Captulos I e II destas Instrues. Depois propor dentre os circunstantes, os secretrios e escrutinadores, que sero aprovados ou rejeitados por aclamaes do povo.

    A mesa ou junta paroquial estava, pois, formada. No havendo quem denunciasse subornos ou conluios para eleio de

    determinada pessoa, passava-se eleio propriamente dita. Comeava o recebimento das listas ou cdulas.

    Estas devero conter tantos nomes quantos so os eleitores (do 2 grau) que tem de dar a freguesia: sero assinadas pelos votantes, e reconhecida a identidade pelo proco. Os que no souberem escrever, chegar-se-o mesa e, para evitar fraudes, diro ao secretrio os nomes daqueles em quem votam; este (o secretrio) formar a lista competente, que depois de lida ser assinada pelo votante com uma cruz, declarando o secretrio ser aquele o sinal de que usa tal indivduo (art. 5, II).

  • Verificamos que, como no possua o votante qualquer documento de identidade ou ttulo de eleitor, era identificado, no momento de votar, pelo proco. As cdulas de votao eram assinadas pelo votante. Se este fosse analfabeto, faria uma cruz. Em seguida, procedia-se apurao, no mesmo local e pela mesma mesa ou junta. Seriam eleitos os que

    alcanassem pluralidades de votos (maioria relativa). Lavrava-se ata (ou termo), eram extradas cpias, que seriam enviadas s autoridades do Imprio e da Cmara do Distrito, cabendo tambm uma a cada cidado eleito eleitor de parquia. E, assim, terminava esta eleio de primeiro grau: reunidos os eleitores, os cidados que formavam a mesa, levando-os entre si e acompanhados do povo, se dirigiro igreja Matriz, onde se cantar um Te Deum solene (art. 6, II).

    A eleio dos deputados

    Os eleitores de parquia, quinze dias aps a eleio, deviam achar-se nas cabeas de distritos a que pertencessem suas respectivas freguesias. A lei eleitoral de que estamos tratando relacionava os distritos de cada Provncia do Brasil. Os distritos da Provncia de So Paulo eram: cidade de So Paulo, Santos, Itu, Curitiba, Paranagu e Taubat. Reunidos nestas cabeas de distritos, os eleitores de parquia iriam eleger os deputados que a provncia iria dar. A lei em questo tambm

  • determinava o nmero de deputados a eleger por provncia: Minas Gerais (20), Pernambuco (13), So Paulo (9), etc.

    Reunidos nas cabeas de distrito, eram verificados os diplomas (cpias de atas) dos eleitores de parquia e demais formalidades legais.

    No dia seguinte, reuniam-se novamente os eleitores de parquia ou colgio eleitoral. Por escrutnio secreto (art. 3, V), era escolhido presidente, dentre os eleitores. Esta era a nica atividade neste dia. No dia seguinte (...) dirigir-se- todo o Colgio igreja principal, onde se celebrar pela maior dignidade eclesistica missa solene do Esprito Santo, e o orador mais acreditado (que no se poder escusar) far um discurso anlogo s circunstncias (...) (art. 4, V). Terminada a cerimnia, tornaro ao lugar do ajuntamento e (...) procedero eleio dos deputados, sendo ela feita por cdulas individuais, assinadas pelo votante, e tantas vezes repetidas, quantas forem os deputados que deve dar a provncia, publicando o presidente o nome daquele que obtiver a pluralidade e formando o secretrio a necessria relao (...) (art. 5, V). Este termo e relao sero assinados por todo o Colgio, que desde logo fica dissolvido (art. 6, V)

    Terminadas as eleies, as cabeas de distrito enviavam os resultados Cmara da Capital da Provncia.

  • A apurao

    O art. 7 determinava:

    Recebidas pela Cmara da capital da Provncia todas as remessas dos diferentes distritos, marcar por editais o dia e hora em que proceder apurao das diferentes nomeaes: e nesse dia, em presena dos eleitores da capital, dos homens bons e do povo abrir as cartas declarando eleitos os que maior nmero de votos reunirem. Terminados os trabalhos, a Cmara, os deputados, eleitores e circunstantes, dirigir-se-o igreja principal, onde se cantar solene Te Deum s expensas da

    mesma Cmara.

    Estavam, pois, terminadas as eleies de deputados realizadas pelas Instrues de 19 de junho de 1822, a primeira lei eleitoral elaborada no Brasil, para ser aqui aplicada.

    O privilgio do sistema eleitoral brasileiro

    Descrevemos anteriormente a primeira lei eleitoral brasileira, de 19 de junho de 1822. Devemos observar, entretanto, que os sistemas eleitorais adotados naqueles tempos eram denominados Instrues, para a realizao de eleies. Tudo se resume numa simples questo de nomes: o que naquela poca se denominava Instrues, hoje chama-se lei eleitoral.

  • Esse sistema eleitoral era completamente diferente dos dois anteriores, de 7 de maro de 1821 e de 16 de fevereiro de 1822, ambos copiados da Constituio espanhola de 1812. Nestes dois ltimos, o sufrgio era universal, no havendo restrio ao voto.

    J as Instrues de 19 de junho de 1822, que vimos em artigo anterior, restringiam o voto do povo em escala considervel. De fato, o art. 8 do Captulo I dizia:

    So excludos do voto todos aqueles que receberem salrios ou soldadas por qualquer modo que seja. No so compreendidos, nesta regra, unicamente os guarda-livros e primeiros-caixeiros de casas de comrcio, os criados da

    Casa Real (que no forem de galo branco) e os administradores de fazendas rurais e fbricas.

    Considerando a estrutura econmico-social da poca, conclui-se que o voto era privilgio dos proprietrios de terras, engenhos, etc. Isso, no obstante a sua extenso aos guarda-livros e primeiros-caixeiros das casas comerciais, criados da Casa Real (de hierarquia superior) e administradores de fazendas e fbricas. De qualquer modo, o exerccio do voto, direito poltico, assentava-se sobre bases econmicas. Isso no era novidade. O poder poltico, baseando-se na propriedade, desde a Grcia, com Aristteles, at Locke, filsofo ingls do sculo XVII, constitua preocupao dos que se dedicavam ao estudo das doutrinas polticas.

  • John Locke, por exemplo, ia buscar a origem e o fim do Estado na propriedade. Dizia ele: Portanto, a grande e primordial finalidade que une os homens em comunidades e os obriga a organizar-se em governo no vem a ser mais do que a conservao da propriedade.

    As idias de Locke eram correntes nos Estados Unidos da Amrica do Norte, poca da sua independncia. Jefferson e os outros pais da primeira Constituio norte-americana (1787) inspiraram-se em Locke. Quando foi elaborada essa carta poltica, um dos seus autores, Madison, defendeu a idia, alis predominante na poca, de que a direo dos negcios do Estado deveria caber aos proprietrios de terras e de outros bens, pois afirmava que, sendo a classe no possuidora de bens muito maior, h o perigo de a regra da maioria empolgar o governo e fazer desmoronar o edifcio econmico-social. O governador Morris, nessa ocasio, dizia: Se os pobres tiverem o direito do voto, eles o vendero aos ricos. Entretanto, resolveu-se que a Constituio norte-americana nada diria sobre o direito do voto, deixando a sua legislao aos estados da Federao. Mas estes, por sua vez,

    somente permitiram que os proprietrios ou possuidores de bens fossem eleitores. Em 1820, Daniel Webster defendia esse direito, enquanto Jackson lutava com o objetivo de ser o voto estendido s classes menos favorecidas economicamente.

  • Nessas condies, a restrio do voto, determinada nas Instrues de 19 de junho de 1822(3), no era devida a quaisquer consideraes originadas do regime monrquico existente, mas sim decorrncia de uma filosofia poltica que influenciava ainda muito mais os Estados Unidos, pois, no Brasil, ainda havia uma categoria de assalariados que tinha o

    direito de votar.

    As idias polticas em voga na Europa e nos Estados Unidos influenciavam, duma ou doutra maneira, os nossos estadistas daqueles tempos. A primeira lei eleitoral brasileira (de 19 de junho de 1822), cuja exposio sumria fizemos nos artigos anteriores, foi, em grande parte, inspirada em modelos de outros pases. Alis, nem poderia ser de outro modo. Denominamo-la brasileira porque foi elaborada no Brasil, para uso dos brasileiros somente, ao contrrio das anteriores, que eram elaboradas em Portugal e serviam a todas as provncias do Imprio portugus.

    A Constituio de 1824

    A 7 de setembro de 1822, D. Pedro I declara o Brasil independente do Imprio portugus. Realizadas as eleies convocadas por decreto de 3 de junho e presididas pelas Instrues de 19 do mesmo ms, inaugurada, a 3 de maio de 1823, a Assemblia Constituinte. Tendo

  • funcionado regularmente, dissolvida pelo imperador a 13 de novembro do mesmo ano. A17 de novembro, convocada nova Constituinte, e, pouco depois, anula-se essa convocao.

    Finalmente, a 25 de maro de 1824, D. Pedro I outorga ao povo brasileiro a sua primeira Constituio poltica. Dela, faremos breve exposio, no que interessa ao estudo que estamos fazendo.

    Os poderes polticos nacionais

    Art. 10. Os poderes polticos reconhecidos pela Constituio do Imprio so quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial.

    O Poder Moderador

    Art. 98. O Poder Moderador a chave de toda a organizao poltica, e delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nao, e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manuteno da Independncia, equilbrio e harmonia dos demais poderes polticos.

    Art. 101. O imperador exerce o Poder Moderador.

    O Poder Legislativo

  • Art. 14. A Assemblia Geral compe-se de duas cmaras: ou Cmara de Deputados, e Cmara de Senadores, ou Senado.

    Art. 17. Cada legislatura durar quatro anos, e cada sesso anual, quatro meses.

    A eleio da Regncia

    Art. 121. O imperador menor at a idade de 18 anos completos.

    Art. 122. Durante a sua menoridade, o Imprio ser governado por uma Regncia, a qual pertencer ao parente mais chegado do imperador, segundo a ordem da sucesso, e que seja maior de vinte e cinco anos.

    Art. 123. Se o imperador no tiver parente algum que rena estas qualidades ser o Imprio governado por uma Regncia permanente, nomeada pela Assemblia Geral, composta de trs membros, dos quais o mais velho em idade ser o presidente.

    A eleio dos deputados

    Era exigncia para o cidado poder ser eleito deputado:

    a) ter o direito de ser eleitor (de 2 grau);

    b) ter renda lquida anual de quatrocentos mil ris por bens de raiz, indstria, comrcio ou emprego;

  • c) no ser estrangeiro naturalizado;

    d) professar a religio do Estado (Catlica).

    Uma lei regulamentar posterior determinaria o nmero de deputados.

    A eleio dos senadores

    Art. 40. O Senado composto de membros vitalcios, ser organizado por eleio provincial.

    Art. 41. Cada Provncia dar tantos Senadores, quantos forem metade de seus respectivos deputados (...)

    Art. 43. As eleies sero feitas pela mesma maneira, que a dos deputados, mas em listas trplices, sobre as quais o imperador escolher o tero na totalidade da lista.

    Art. 44. Os lugares de senadores que vagarem sero preenchidos pela mesma forma da primeira eleio pela sua respectiva provncia.

    Art. 45. Para ser senador requer-se: I que seja cidado brasileiro, e que esteja no gozo dos seus direitos polticos; II que tenha de idade quarenta anos para cima; III que seja pessoa de saber, capacidade e virtudes, com preferncia os que tiverem feito servios ptria; IV que tenha de rendimento anual por

  • bens, indstria, comrcio, ou empregos, a soma de oitocentos mil ris.

    As provncias

    Art. 165. Haver em cada provncia um presidente nomeado pelo imperador, que o poder remover, quando entender que assim convm ao bom servio do Estado.

    Art. 71. A Constituio reconhece e garante o direito de intervir todo o cidado nos negcios da sua provncia, e que so imediatamente relativos a seus interesses peculiares.

    Art. 72. Este direito ser exercitado pelas cmaras dos distritos, e pelos conselhos, que com o ttulo de Conselho-Geral da Provncia se devem estabelecer em cada provncia, onde no estiver colocada a capital do Imprio.

    Art. 73. Cada um dos conselhos-gerais constar de 21 membros nas provncias mais populosas, como sejam: Par, Maranho, Cear, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, So Paulo e Rio Grande do Sul, e nas outras, de treze membros.

    Art. 74. A sua eleio se far na mesma ocasio, e da mesma maneira que se fizer a dos representantes da Nao, e pelo tempo de cada legislatura.

  • Art. 75. A idade de 25 anos, probidade e decente subsistncia so as qualidades necessrias para ser membro destes conselhos.

    As cmaras municipais

    Art. 167. Em todas as cidades, e vilas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se criarem, haver cmaras, s quais compete o governo econmico, e municipal das mesmas cidades e vilas.

    Art. 168. As Cmaras sero eletivas e compostas do nmero de vereadores que a lei designar, e o que obtiver o maior nmero de votos ser presidente.

    O presidente da Cmara tinha as funes dos nossos atuais prefeitos. Uma lei posterior cuidaria da eleio dos vereadores, seu nmero, etc. (Obs.: Esta lei somente apareceria em 1828, razo por que, at esse ano, a organizao das cmaras municipais continuaria obedecendo s Ordenaes do Reino).

    As eleies

    Art. 90. As nomeaes dos deputados e senadores para a Assemblia Geral, e dos membros dos Conselhos Gerais das Provncias sero feitas por eleies indiretas, elegendo a massa dos cidados ativos, em Assemblias Paroquiais, os eleitores de provncia, e estes os representantes da Nao e provncia. Estas

  • eleies indiretas eram em dois graus, como veremos.

    Primeiro grau

    Eram as eleies primrias, onde os cidados ativos (eleitores de 1 grau) escolheriam os eleitores de provncia (de 2 grau).

    Art. 91. Tm voto nestas eleies primrias: I) Os cidados brasileiros, que esto no gozo de seus direitos polticos; II) os estrangeiros naturalizados.

    Pelo art. 92, no tinham o direito de votar:

    I Os menores de vinte e cinco anos, nos quais se no compreendem os casados, e oficiais militares, que forem maiores de vinte e

    um anos, os bacharis formados, e clrigos de ordens sacras; II os filhos-famlias que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem ofcios pblicos; III Os criados de servir, em cuja classe no entram os guarda-livros, e primeiros-caixeiros das casas de comrcio, os criados da Casa Imperial, que no forem de galo branco, e os administradores das fazendas rurais e fbricas; IV os religiosos e quaisquer, que vivam em comunidade claustral; V os que no tiverem de renda lquida anual cem mil ris por bens de raiz, indstria, comrcio, ou emprego.

    Segundo grau

  • Art. 94. Podem ser eleitores (de 2 grau) e votar na eleio dos deputados, senadores e membros dos conselhos de provncia todos o