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  • RAP RIO DE JANEIRO 42(5):829-74, SET/OUT. 2008

    ISSN0034-7612

    Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administrao pblica; 200 anos de reformas*

    Frederico Lustosa da Costa**

    SUMRIO: 1. Introduo; 2. Administrao colonial portuguesa; 3. A construo do Estado nacional; 4. A Repblica Velha; 5. A burocratizao do Estado nacional; 6. O nacional desenvolvimentismo; 7. A modernizao autoritria; 8. A reforma administrativa da Nova Repblica; 9. A reforma do governo Collor; 10. A reforma Bresser; 11. Consideraes finais sntese histrica.

    SUMMARY: 1. Introduction; 2. Colonial Portuguese administration; 3. The construc-tion of the national state; 4. The Old Republic; 5. The bureacraticization of the national state; 6. National underdevelopment; 7. An authoritarian modernization; 8. Administrative reform of the New Republic; 9. Reform of the Collor government; 10. Bresser reform; 11. Final remarks historic synthesis.

    PALAVRAS-CHAVE: Estado; administrao pblica; histria administrativa; reforma do Estado; reformas administrativas.

    KE Y W O R D S: state; public administration; administrative history; state reform; administrative reforms.

    A passagem dos 200 anos da transferncia da corte portuguesa para o Brasil tem sus-citado a realizao de inmeros eventos comemorativos, como seminrios, palestras, exposies e a publicao de livros e artigos em jornais e revistas. Entretanto, poucos encontros, discusses e publicaes em torno dos 200 anos procuraram destacar a questo da constituio do Estado nacional e da formao da administrao pblica brasileira. Este artigo preenche uma pequena parte da lacuna deixada na comemo-rao do bicentenrio da chegada da famlia real portuguesa ao Brasil. Oferece um

    * Artigo recebido em dez. 2007 e aceito em maio 2008. Nasceu de um dos captulos da tese de doutoramento em gesto intitulada Reforma gerencial do Estado no Brasil condicionantes, estratgias e resultados, defendida junto ao Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa (Iscte), em Lisboa, em junho de 2007.** Professor titular da Escola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas (Ebape) da Fundao Getulio Vargas (FGV). Endereo: Praia de Botafogo, 190 CEP 22250-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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    rpido panorama da histria das transformaes por que tem passado a administra-o pblica brasileira, destacando as mudanas planejadas, quer dizer, os esforos de reforma do aparelho de Estado. So enfatizadas as trs grandes reformas que se sucederam a partir de meados dos anos 1930 do sculo passado, separadas entre si por intervalos de 30 anos 1937, 1967 e 1995 (ou 1998, ano da promulgao da Emenda Constitucional no 19). Todo o percurso percorrido desde 1808 configura hoje uma trplice efemride 200 anos de Estado nacional, 200 anos de administrao pblica e 200 anos de reformas institucionais e administrativas.

    Brazil: 200 years of state; 200 years of public administration; 200 years of reformsThe passing of 200 years since the transfer of the Portuguese Royal Court for Bra-zil has generated the realization of innumerable commemorative events, such as seminars, guest speakers, expositions and the publication of books and articles in journals and magazines. However, few findings, discussions and publications about the 200 years looked to examine the question of the constitution of the national state and the formation of Brazilian public administration. This article intends to fill the large void left in the commemoration of the 200 years since the arrival of the Royal Portuguese Family in Brazil. It offers a quick historical panorama of the transformations that Brazilian public administration experienced, emphasizing the planned changes, i.e. the efforts aimed at reforming the state apparatus. Three big reforms are stressed that began in the mid-1930s, separated by intervals of thirty years 1937, 1967, and 1995 (or 1998, the year of the promulgation of Constitutional Amendment n. 19). The entire trajectory that was initiated in 1808 exhibits today a triple celebration 200 years of national state, 200 years of public administration, and 200 years of institutional and administrative reforms.

    1. Introduo

    A passagem dos 200 anos da chegada da famlia real portuguesa ao Brasil, em 1808, tem suscitado a realizao de inmeros eventos comemorativos, como seminrios, palestras, exposies, e a publicao de muitos livros e artigos em jornais e revistas. A maior parte desses eventos e publicaes destaca, em pers-pectiva histrica, os acontecimentos polticos, as transformaes econmicas e o impacto sociocultural da presena da corte na cidade do Rio de Janeiro. Todas as curiosidades esto orientadas para as circunstncias da partida, da travessia e da chegada a estratgia; a sofreguido; a logstica; o nmero de expatriados; os dissabores da viagem e os piolhos da princesa; a passagem por Salvador; a abertura dos portos e os acordos comerciais assimtricos com os ingleses; a instalao da corte e o P. R. (ponha-se na rua) e todas as boas

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    obras do prncipe regente, como a Biblioteca Real, a Imprensa Rgia, o Jardim Botnico e tantas outras.

    Poucos encontros, discusses e publicaes em torno dos 200 anos procuraram destacar a questo especfica da constituio do Estado nacional e da formao da administrao pblica brasileira. Sabe-se que foi a transfe-rncia da famlia real que criou condies para a emergncia do espao p-blico e a formao da burguesia nacional, tornando impossvel a restaurao da situao colonial anterior e favorecendo a independncia nacional. Foi a instalao da corte que transformou uma constelao catica de organismos superpostos em um aparelho de Estado. Pois o Estado representado pela admi-nistrao colonial era, ao mesmo tempo, um todo que abrangia o indivduo em todos os aspectos e uma mirade de instncias e jurisdies que iam do rei at o mais modesto servidor, cujas atribuies se superpunham, se confundiam e se contradiziam.

    verdade que, at 1808, existia no Brasil e, sobretudo, na sede do go-verno geral (vice-reino) uma administrao colonial relativamente aparelha-da. Mas a formao do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e a instala-o de sua sede na antiga colnia tornaram irreversvel a constituio de um novo Estado nacional. Todo um aparato burocrtico, transplantado de Lisboa ou formado aqui, em paralelo antiga administrao metropolitana, teve que ser montado para que a soberania se afirmasse, o Estado se constitusse e se projetasse sobre o territrio, e o governo pudesse tomar decises, ditar pol-ticas e agir.

    Este artigo preenche uma pequena parte da lacuna deixada na comemo-rao do bicentenrio da chegada da famlia real portuguesa ao Brasil. Ofere-ce um rpido panorama da histria das transformaes por que tem passado a administrao pblica brasileira, destacando as mudanas planejadas, quer dizer, os esforos de reforma do aparelho de Estado. So enfatizadas trs gran-des reformas que se sucederam a partir de meados dos anos 1930, separadas entre si por intervalos de 30 anos 1937, 1967 e 1995 (ou 1998, ano da promulgao da Emenda Constitucional no 19). De qualquer maneira, todo o percurso percorrido desde 1808 configura hoje uma trplice efemride 200 anos de Estado nacional, 200 anos de administrao pblica e 200 anos de reformas institucionais e administrativas.

    Parte-se do pressuposto de que no possvel entender as recentes transformaes do Estado, da organizao governamental e da administrao pblica brasileira sem tentar reconstruir os processos de formao e diferen-ciao histrica do aparato estatal que se constituiu no Brasil, desde que a empresa da colonizao aqui aportou, no alvorecer do sculo XVI, ou, pelo

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    menos, desde que o prncipe regente dom Joo VI transferiu a sede da Coroa portuguesa para o Rio de Janeiro e instituiu o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

    2. Administrao colonial portuguesa

    Tomar o desembarque da Coroa portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, como marco para a construo do Estado nacional no significa dizer que nada existisse em termos de aparato institucional e administrativo. Havia na colnia uma ampla, complexa e ramificada administrao. Caio Prado Jnior (1979:299-300) adverte que, para compreend-la, preciso se desfazer de no-es contemporneas de Estado, esferas pblica e privada, nveis de governo e poderes distintos. A administrao colonial, apesar da abrangncia das suas atribuies e da profuso de cargos e instncias, do ponto de vista funcional, pouco se diferencia internamente. Tratava-se de um cipoal de ordenamentos gerais, encargos, atribuies, circunscries, disposies particulares e mis-ses extraordinrias que no obedeciam a princpios uniformes de diviso de trabalho, simetria e hierarquia. O caos legislativo fazia surgir num lugar fun-es que no existiam em outros; competncias a serem dadas a um servidor quando j pertenciam a terceiros; subordinaes diretas que subvertiam a hie-rarquia e minavam a autoridade.

    Em princpio, a administrao colonial estava organizada em quatro nveis as instituies metropolitanas, a administrao central, a adminis-trao regional e a administrao local. Essa estrutura tinha em seu topo o Conselho Ultramarino, subordinado ao secretrio de Estado dos Negcios da Marinha e Territrios Ultramarinos que se ocupava de todos os aspectos da vida das colnias, exceo dos assuntos eclesisticos, a cargo da Mesa de Conscincia e Ordens.

    Do ponto de vista da organizao territorial, o Brasil estava dividido em capitanias, que eram as maiores unidades administrativas da colnia. O territrio delas era dividido em comarcas que, por sua vez, era composto por termos sediados nas cidades ou vilas. Os termos eram constitudos de fregue-sias que correspondiam s parquias da circunscrio eclesistica. Por ltimo, as freguesias se dividiam em bairros, cuja jurisdio era imprecisa (Caio Prado Junior, 1979:306).

    Desde o incio da colonizao, com o fracasso da administrao privada da maioria das capitanias hereditrias, a Coroa portuguesa assumiu direta-mente o seu controle e preocupou-se em instituir uma administrao central

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    para se ocupar das questes de defesa contra os ataques dos invasores e dos ndios mais belicosos. Foi assim que constituiu o governo geral, em 1549, na Bahia, que muito mais tarde, j no Rio de Janeiro, viria a ser o vice-reino. Embora o vice-rei tivesse maior proeminncia sobre os demais governadores, seu poder era limitado, nada mandava da Bahia para o norte e tampouco ao sul de So Paulo.

    O chefe supremo da capitania era o governador ou capito-general ou ainda capito-mor. O governador do Rio de Janeiro tambm era chamado de vice-rei. Havia capitanias gerais1 e subalternas,2 sendo que os governadores das primeiras exerciam atribuies semelhantes s do vice-rei e havia mesmo alguns que reivindicavam esse tratamento. A funo de governador era, so-bretudo, militar, mas sua autoridade superintendia toda a administrao. Seu poder era grande, mas limitado por normas restritas ditadas pelo Conselho Ul-tramarino. Ademais, sua influncia era contrabalanada pela autoridade das relaes, entidades de natureza judiciria e administrativa das quais os gover-nadores eram membros, entre outros, e dos demais rgos setoriais como as intendncias do ouro e dos diamantes e as mesas de inspeo. Ainda assim, era amplo o seu poder e variada a sua competncia. Sua autoridade era real e simblica, pois encarnava a figura do prprio rei. Sob sua superviso encon-travam-se os setores da administrao geral, militar e fazendria.

    A administrao militar estava dividida em tropa de linha, milcias e corpos de ordenana. A primeira era a tropa regular e profissional, formada por regimentos permanentemente armados. As milcias eram tropas auxiliares de cidados recrutados obrigatoriamente, sem remunerao, e organizadas em regimentos. As ordenanas constituam a terceira linha, formada por toda a populao masculina com idade entre 18 e 60 anos, no alistada na tropa regular ou nas milcias.

    A administrao geral contemplava tanto a esfera propriamente admi-nistrativa quanto a judiciria, com sua complexa distribuio de encargos, sujeita a superposies e conflitos de competncia. Os juzes tinham funes judiciais e administrativas, julgando e executando ao mesmo tempo. A admi-nistrao geral s vezes se confundia com a administrao local. As cmaras exerciam funes legislativas, executivas e judicirias. Seu senado era presidi-

    1 Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, So Paulo, Par, Maranho, Gois e Mato Grosso.2 So Jos do Rio Negro, Piau, Cear, Rio Grande do Norte, Paraba, Esprito Santo, Rio Grande de So Pedro e Santa Catarina. As capitanias do Cear e da Paraba tornaram-se autnomas em 1799 e do Rio Grande de So Pedro em 1802.

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    do por um juiz letrado, ou juiz-de-fora, ou por um juiz leigo, o juiz ordinrio. Alm do juiz, o senado era formado por trs vereadores e um procurador, todos sem remunerao e reunindo-se duas vezes por semana em vereana ou vereao.

    A administrao fazendria, encarregada de arrecadar os tributos, reali-zar despesas e gerir o Real Errio nas capitanias, estava sob a direo de uma Junta da Fazenda, presidida pelo governador. Paralela ou complementarmente atuavam tambm as Juntas de Arrecadao do Subsdio Voluntrio Alfnde-ga, o Tribunal da Provedoria da Fazenda, alm dos rgos que exerciam fun-es judicirias e administrativas o Juzo da Conservatria, Juzo da Coroa e Execues, Juzo do Fisco, das Despesas etc. O principal tributo era o dzimo e sua arrecadao, como a dos demais (direitos de alfndega, passagens, en-tradas, imposies especiais, donativos e emolumentos), se fazia por contrato, entregando-se a particulares, por prazo determinado, a cobrana.

    Alm desses trs grandes setores, havia ainda rgos especiais como a Administrao dos ndios, a Intendncia do Ouro e dos Diamantes, a In-tendncia da Marinha, a Mesa de Inspeo, as Conservatrias de Cortes de Madeira, alguns j referidos, e toda a Administrao Eclesistica, que tambm exercia funes civis.

    A sntese histrica de Caio Prado Jnior, retomada por Arno e Maria Jos Wehling (1999), aponta como principais caractersticas da administra-o colonial a centralizao, a ausncia de diferenciao (de funes), o mimetismo, a profuso e minudncia das normas, o formalismo e a morosi-dade. Essas disfunes decorrem, em grande medida, da transplantao para a colnia das instituies existentes na metrpole e do vazio de autoridade (e de obedincia) no imenso territrio, constituindo um organismo autorit-rio, complexo, frgil e ineficaz.

    Isso no quer dizer que no tenha havido um processo de gradual ra-cionalizao do governo colonial ao longo de trs sculos. A partir da admi-nistrao pombalina, pouco a pouco, o empirismo paternalista do absolutismo tradicional foi sendo substitudo pelo racionalismo tpico do despotismo escla-recido. Essa mudana se expressava principalmente nos mtodos e processos de trabalho que davam lugar emergncia de uma burocracia.

    A centralizao de decises na Coroa portuguesa, aparentemente, esva-ziava o poder dos governadores e juzes. Tudo era prescrito em regulamentos circunstanciados e nada se exclua da alada de competncia de uma autorida-de superior que poderia decidir em primeira instncia ou em grau de recurso. Mas a enorme distncia da sede do poder e a lentido na troca de mensagens criavam um vazio de autoridade legal. Tentava-se limitar a ao dos prepostos

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    da Coroa com a minudncia dos regulamentos que eram repetitivos, superpos-tos, contraditrios e confusos. Como estatuam instituies simtricas s da administrao da metrpole, pecavam pelo artificialismo mimtico que torna-va as normas suprfluas e ineficazes. O formalismo das regras, o brao curto da autoridade e a corrupo generalizada ensejavam o autoritarismo daqueles que deviam se impor aos sditos entregues ao abandono, com os prprios meios que deles conseguissem extrair.

    3. A construo do Estado nacional

    A transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil deu-se de forma confusa. At o ltimo instante, o prncipe regente hesitou em partir diante da remota possibilidade de os franceses aceitarem mais um suborno. S se decidiu quando as tropas de Junot j se encontravam em solo portugus, s portas de Lisboa. O alvoroo descrito por alguns dos relatos dos momentos que antecederam a longa travessia no condiz com o minucioso planeja-mento que a indita mudana de uma corte para outro continente deveria merecer (Wilcken, 2005:35-38). Em primeiro lugar, a prpria escolha das cinco, 10 ou 15 mil pessoas os nmeros so imprecisos que comporiam a lotao das naus, diz alguma coisa sobre as instituies e espaos de poder que estavam sendo transplantados. Em segundo lugar, a seleo dos bens que era possvel carregar, alm dos tesouros e objetos de indiscutvel valor, contemplava material, livros, papis, artefatos, instrumentos e smbolos ne-cessrios administrao. Em terceiro lugar, a instituio de um simulacro de governo em solo europeu, que se deu na forma de uma regncia, logo destituda pelo ocupante.

    Todo o acervo administrativo estava a bordo: arquivos, documentos e papis de governo, e de tal maneira arranjados que, ao desembarcarem no Rio de Janeiro, nenhuma falta ou dificuldade especial se fez sentir, e a faina de dirigir a monarquia continuou no novo continente to normalmente como se estivera o regente em Lisboa. Que melhor prova exigir da previso, do longo preparo, e da observncia das ordens mais minudentes para organizar o plano de transferncia (Calgeras, 1980:59)?

    As condies da chegada tambm so indicativas da possibilidade de constituio do aparato administrativo, militar, protocolar e simblico de uma corte europia. O primeiro problema era de edificaes para acolher as re-sidncias da nobreza exilada e as novas reparties do reino. Isso se fez de-salojando os prepostos da Coroa, os poucos fidalgos e os ricos comerciantes

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    que cederam suas casas e palacetes. Por outro lado, acentuou-se a tendncia patrimonialista de reunir no mesmo edifcio o domiclio e o local de trabalho.

    O regente chegou ao Rio de Janeiro com um governo formado pelos mi-nistrios do Reino ou dos Negcios do Reino, cujo titular atuava tambm como ministro assistente ao despacho do gabinete e como presidente do Errio Real; da Guerra e Estrangeiros (ou dos Negcios da Guerra e Estrangeiros) e da Marinha (ou dos Negcios da Marinha) e Domnios Ultramarinos; ou seja, trs ministros para seis pastas. Trs dias depois de sua chegada, substituiu os ministros.

    A instalao da corte ensejou a criao de uma srie de organismos que existiam na antiga sede do Reino, alguns deles no to necessrios quanto outros. O governo arranjado de acordo com o Almanaque de Lisboa dava opor-tunidade de criar cargos e honrarias para tantos que haviam feito o sacrifcio de acompanhar sua alteza real. Assim, criaram-se o Desembargo do Pao, o Conselho de Fazenda e a Junta de Comrcio, quando o pas precisava, segun-do Hiplito da Costa, de um conselho de minas, de uma inspeo para aber-tura de estradas, uma redao de mapas, um exame da navegao dos rios (Vinhosa, 1984:167). Mas cuidou tambm o governo de criar instituies e organismos teis e necessrios, como a Academia de Marinha, a de Artilharia e Fortificaes, o Arquivo Militar, a Tipografia Rgia, a Fbrica de Plvora, o Jardim Botnico, a Biblioteca Nacional, a Academia de Belas Artes, o Banco do Brasil e os estabelecimentos ferrferos de Ipanema. So muitas as criaes e inovaes institucionais, jurdicas e administrativas que tiveram largo im-pacto na vida econmica, social, poltica e cultural do Brasil, tanto no plano nacional, quanto na esfera regional. So leis, cidades, indstrias, estradas, edificaes, impostos, cadeias, festas e costumes que foram introduzidos no pacato cotidiano da antiga colnia.

    O fato que a transferncia da corte e mais tarde a elevao do Brasil a parte integrante do Reino Unido de Portugal constituram as bases do Es-tado nacional, com todo o aparato necessrio afirmao da soberania e ao funcionamento do autogoverno. A elevao condio de corte de um imp-rio transcontinental fez da nova administrao brasileira, agora devidamente aparelhada, a expresso do poder de um Estado nacional que jamais poderia voltar a constituir-se em mera subsidiria de uma metrpole de alm-mar.

    Com a derrocada de Napoleo I, a reorganizao geopoltica da Europa e as agitaes dos liberais no Porto, em 1821, d. Joo VI teve que retornar a Portugal e reassumir o controle poltico da metrpole. Ficaram no Brasil o prncipe herdeiro, na condio de regente dessa parte do Reino, e todo o aparato administrativo instalado pelo rei. D. Pedro I nomeou seu prprio mi-

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    nistrio. Transferiu a pasta dos Negcios Estrangeiros da Secretaria da Guerra, para o Ministrio do Reino, dando ainda mais relevncia a esse ministro. Mas era o prprio prncipe a maior autoridade do Brasil, que a exercia com vigor, impetuosidade e, por vezes, intemperana, colocando-se no centro das dispu-tas polticas locais e no contraponto dos interesses da metrpole.

    Os conflitos em matria fiscal, as propostas em discusso nas cortes para a retomada da condio colonial do Brasil e a exigncia do retorno do prncipe a Lisboa colocaram-no em franca oposio aos interesses da metrpole, ense-jando a realizao de uma seqncia de atos polticos de peso que culminaram com a independncia, pouco mais de um ano depois da partida de d. Joo VI. A sete de setembro de 1822, d. Pedro I declarou a independncia e instituiu o governo do Brasil, valendo-se do aparato da regncia do Reino Unido que se partia. No convm nos alongarmos aqui sobre as peripcias relacionadas com a constituio (poltica) do governo, o enfrentamento das resistncias independncia, a convocao, instalao, atuao e dissoluo da Assemblia Constituinte e a outorga da Constituio de 1824.

    O fato que, dissolvida a Assemblia Constituinte, o prncipe criou um Conselho de Estado e a ele encomendou a redao da Carta que outorgou ao pas em 25 de maro de 1824. A primeira Constituio do Brasil mantinha a monarquia, a dinastia da Casa de Orlans e Bragana e d. Pedro I como impe-rador e defensor perptuo do Brasil. Constitua um Estado unitrio e centra-lizador, cujo territrio era dividido em provncias, que substituam as antigas capitanias. Os poderes polticos eram quatro Legislativo, Moderador, Exe-cutivo e Judicial. Cada provncia era dirigida por um presidente nomeado pelo imperador, que tomava posse perante a cmara da capital. Em cada uma delas havia tambm um conselho geral, cujos membros eram eleitos juntamente com a representao nacional. O monarca exercia o Poder Moderador, com o apoio do Conselho de Estado, rgo de carter consultivo e, ao mesmo tempo, o Poder Executivo, auxiliado pelos seus ministros de Estado. O Poder Legisla-tivo era exercido pela Assemblia Geral, formada pela Cmara dos Deputados e pela Cmara dos Senadores ou Senado do imprio. O Poder Judicial era exercido pelos juzes de direito e pelos juzes de paz, para as tentativas de con-ciliao prvias a qualquer processo. Na capital do imprio e nas provncias havia um Supremo Tribunal de Justia, composto de juzes letrados tirados das relaes. A organizao dos municpios no mudou de forma significativa, tendo as cmaras o mesmo papel que exerciam na colnia.

    Depois de 10 anos frente do destino do Brasil, d. Pedro I abdicou do trono em favor de seu filho Pedro II, ento com apenas cinco anos de idade. Deixou o governo em meio a uma crise de grandes propores, gerada por

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    problemas financeiros, revoltas regionais, identificao com os interesses por-tugueses e queda de brao com o Legislativo. Conforme previa a Constituio, assumiu uma Regncia Trina que enfrentou, assim como as que lhe sucede-ram, uma srie de crises que terminaram por ensejar, em 1841, a declarao da maioridade do imperador menino, aos 15 anos de idade. Logo no incio do perodo regencial, em 1832, foi feita uma reforma constitucional, que instituiu a Regncia Una, aboliu o Conselho de Estado e criou as assemblias legislativas provinciais, em substituio aos conselhos gerais. Tratava-se de pequeno passo no sentido da descentralizao, uma vez que institua o Po-der Legislativo provincial e a diviso de rendas entre o governo central e os governos provinciais.

    Outra mudana constitucional importante, j em 1847, foi a criao do cargo de presidente do conselho de ministros que, na prtica, significou a instituio do regime de gabinete, conferindo maior estabilidade ao governo imperial. O imperador passou a concentrar-se no exerccio do Poder Modera-dor, embora no se eximisse de participar da escolha dos gabinetes, chegando mesmo a designar um governo que no tinha maioria na cmara. Num e nou-tro caso, tratava-se de arbitrar os conflitos entre fraes das classes dominan-tes e sustentar a ordem monrquica, apoiada na grande propriedade rural, na economia primrio-exportadora e no trabalho escravo em declnio.

    Nos 10 ltimos anos do Imprio, esses conflitos tornaram-se mais agu-dos, exercendo forte presso sobre o governo. Em primeiro lugar, a questo do trabalho escravo colocava, de um lado, grandes proprietrios de terra e, de outro, os setores urbanos, adeptos do abolicionismo. Sua libertao suprimiu uma das bases de sustentao da ordem imperial. Em segundo lugar, o pro-blema da autonomia das provncias contrapunha os centralizadores e os par-tidrios da descentralizao. Em terceiro lugar, a Guerra do Paraguai trouxe como conseqncia o desequilbrio das finanas pblicas, o fortalecimento do papel poltico do Exrcito e a exposio da contraditria condio do soldado escravo, contribuindo para desestabilizar ainda mais o governo. Por ltimo, o precrio estado de sade do imperador, muito querido pelos sditos de todas as classes, colocava em primeiro plano a questo sucessria e a ameaa de que o pas viesse a ser governado com o concurso de um estrangeiro, o conde DEu, marido da princesa Isabel, extremamente antipatizado.

    Nesse ambiente poltico, germinava um incipiente movimento republi-cano, apoiado num vago programa de reformas que tentava conciliar interes-ses opostos de monarquistas liberais e de escravocratas descontentes com a poltica abolicionista do Imprio. O movimento republicano se dividia em dois plos o federalismo e o liberalismo. O primeiro era protagonizado pelas

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    lideranas polticas de So Paulo e do Rio Grande do Sul e o segundo repre-sentado pelos polticos da cidade do Rio de Janeiro. Os republicanos do Rio de Janeiro defendiam a participao poltica da populao e os gachos e pau-listas partidrios do federalismo pregavam uma maior autonomia regional. As crticas mais comuns recaam sobre a centralizao excessiva do regime monrquico, que restringia a liberdade poltica e econmica das provncias.

    Assim, as repetidas crises dos gabinetes imperiais geravam um clima de instabilidade poltica que dava fora ao movimento republicano e tenta-o intervencionista do Exrcito. Pequenos incidentes entre lderes militares e o governo acabaram dando o ltimo estmulo aos oficiais descontentes para que deflagrassem o golpe de 15 de novembro de 1889. O que houve foi uma marcha de 600 soldados liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca contra o quartel-general do Exrcito, onde estava reunido o ministrio.

    4. A Repblica Velha

    A proclamao da Repblica no alterou profundamente as estruturas socio-econmicas do Brasil imperial. A riqueza nacional continuou concentrada na economia agrcola de exportao, baseada na monocultura e no latifndio. O que se acentuou foi a transferncia de seu centro dinmico para a cafeicultura e a conseqente mudana no plo dominante da poltica brasileira das antigas elites cariocas e nordestinas para os grandes cafeicultores paulistas.

    O governo provisrio adotou as reformas imediatas necessrias vign-cia do novo regime e convocou eleies para uma assemblia constituinte. A Carta de 1891, francamente inspirada na Constituio americana de 1787, consagrou a Repblica, instituiu o federalismo e inaugurou o regime presiden-cialista. A separao de poderes ficou mais ntida. O Legislativo continuava bicameral, sendo agora formado pela Cmara dos Deputados e pelo Sena-do, cujos membros passaram a ser eleitos para mandado de durao certa. Ampliou-se a autonomia do Judicirio. Foi criado o Tribunal de Contas para fiscalizar a realizao da despesa pblica. As provncias, transformadas em estados, cujos presidentes (ou governadores) passaram a ser eleitos, ganha-ram grande autonomia e substantiva arrecadao prpria. Suas assemblias podiam legislar sobre grande nmero de matrias. Esse sistema caracterizava o federalismo competitivo.

    A Repblica federalista, com estados politicamente autnomos, con-sagrou um novo pacto poltico que acomodava os interesses das elites eco-nmicas do Centro-Sul e do resto do pas. O governo federal ocupava-se de

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    assegurar a defesa e a estabilidade e proteger os interesses da agricultura exportadora atravs do cmbio e da poltica de estoques, com reduzida inter-ferncia nos assuntos internos dos demais estados. L vicejavam os mandes locais, grandes proprietrios de terra e senhores do voto de cabresto, e as grandes oligarquias, que controlavam as eleies e os governos estaduais e as-seguravam as maiorias que apoiavam o governo federal. A poltica dos gover-nadores garantia a alternncia na presidncia da Repblica de representantes de So Paulo e Minas Gerais. Esse sistema era marcado pela instabilidade dos governos estaduais passveis de serem derrubados e substitudos em funo da emergncia de novas oligarquias.

    Nesse perodo, no houve grandes alteraes na conformao do Esta-do nem na estrutura do governo. Desde a proclamao da Repblica, a prin-cipal mudana no Poder Executivo foi a criao dos ministrios da Instruo Pblica, de brevssima existncia; da Viao e Obras Pblicas; e da Agricul-tura, Indstria e Comrcio, cujos nomes sofreram pequenas modificaes. Do ponto de vista da federao, houve uma ligeira reduo na capacidade legislativa dos estados, que perderam o poder de legislar sobre determinadas matrias.

    A Repblica Velha durou cerca de 40 anos. Aos poucos, foi se tornando disfuncional ao Brasil que se transformava, pela diversificao da economia, pelo primeiro ciclo de industrializao, pela urbanizao e pela organizao poltica das camadas urbanas. Novos conflitos de interesse dentro dos setores dominantes, entre as classes sociais e entre as regies punham em causa o pacto oligrquico, as eleies de bico de pena3 e a poltica do caf-com-leite.4

    Por outro lado, desde a guerra contra o Paraguai (1864-70), o Exrcito passou a ser um ator poltico cada vez mais importante, como arena de revoltas ou sujeito de aes determinantes, perseguindo ideais modernizadores ou salva-cionistas.

    A eleio do paulista Jlio Prestes para suceder o tambm paulista Washington Lus, derrotando o gacho Getlio Vargas, desencadeou o rompi-mento do pacto com os mineiros e com as demais oligarquias estaduais, abrin-do espao para mais uma interveno do Exrcito a Revoluo de 1930.

    3 Assim eram chamadas as eleies que ento se realizavam, cujos resultados favorveis s oli-garquias dominantes eram ajustados nos mapas eleitorais, ao bico da pena. 4 A expresso refere-se alternncia na presidncia da Repblica de polticos originrios de So Paulo, grande produtor de caf, e de Minas Gerais, principal produtor de leite.

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    5. A burocratizao do Estado nacional

    A narrativa precedente d conta do processo de formao do Estado nacional, a partir de suas razes coloniais, ao longo do Imprio (1882-89) e da chama-da Repblica Velha (1889-1930). Embora seja desse perodo a cristalizao das principais caractersticas do Estado brasileiro apontadas anteriormente, observa-se que a prpria diferenciao do aparelho de Estado e a criao de novas instituies fazem parte da dinmica de instaurao da modernidade. Estado e mercado, autnomos com relao ordem do sagrado e dominao patriarcal e cada vez mais separados entre si, constituem as bases da formao social moderna. Seu desenvolvimento, consideradas as caractersticas do con-texto local, se d no sentido da racionalizao. A burocracia est no horizonte da administrao pblica que se consolida e atualiza. Se esse movimento se deu de forma lenta e superficial nos primeiros 100 anos de histria do Brasil independente, ele vai encontrar seu ponto de inflexo e acelerao na Revo-luo de 1930.

    De fato, a partir desse marco e durante a maior parte do sculo XX, o Brasil empreendeu um continuado processo de modernizao das estruturas e processos do aparelho de Estado. Como resposta a transformaes econmicas e sociais de largo alcance, esse esforo se desenvolveu ora de forma assiste-mtica, pelo surgimento de agncias governamentais que se pretendia fossem ilhas de excelncia com efeitos multiplicadores sobre as demais, ora de forma mais orgnica, por meio das reformas realizadas no governo federal, em 1938, 1967 e a partir de 1995.

    A chamada Revoluo de 1930 representou muito mais do que a to-mada do poder por novos grupos oligrquicos, com o enfraquecimento das elites agrrias. Significou, na verdade, a passagem do Brasil agrrio para o Brasil industrial. Para compreender essa transformao e a emergncia do mo-delo de crescimento que presidiu o desenvolvimento nacional no sculo XX, preciso entender como se dava a insero do pas na economia internacional e como o Brasil viveu a Grande Depresso.

    Como foi dito, o Brasil era uma economia perifrica apoiada na expor-tao de produtos primrios entre os quais se destacava o caf, principal item da pauta de exportaes. O lucro dessa monocultura permitiu financiar o pri-meiro ciclo de industrializao brasileira, concentrando-se em So Paulo, plo da cafeicultura. Os interesses dos produtores de caf eram protegidos pelo governo federal, com polticas de cmbio favorvel e formao de estoques reguladores. Com a crise de 1929, que penalizou os mercados consumidores, o Brasil foi obrigado a reduzir a exportao de caf, ficando sem divisas para

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    manter a importao de produtos industrializados. O governo federal, entre-tanto, continuou comprando, embora a preos reduzidos, o excedente de caf no-exportvel, formando estoques que no conseguia comercializar. Confor-me os estoques envelheciam, o caf era queimado para dar lugar aquisio de novas safras. Essa poltica mantinha um fluxo de renda para o setor mais dinmico da economia, evitando o desemprego no campo e a recesso gene-ralizada. Por outro lado, a impossibilidade de continuar importando para sa-tisfazer a demanda por produtos industrializados estimulou uma srie de ini-ciativas de produo industrial para substituir bens importados. Praticava-se assim, de forma intuitiva, uma poltica keynesiana, onde o Estado exercia um papel fundamental na manuteno da demanda agregada, pela transferncia de rendas para os trabalhadores-consumidores, e estimulava a substituio de importaes.

    Esse comportamento ensejou mais tarde uma reflexo sobre o desen-volvimento econmico na Amrica Latina. De um lado, passou-se a propugnar uma poltica de crescimento baseada na industrializao via substituio de importaes, reduzindo a dependncia das economias primrio-exportadoras, sujeitas crescente desvalorizao de seus produtos. De outro, o sucesso do New Deal, poltica de interveno do Estado na economia americana para re-cuperar sua dinmica de crescimento, levava a pensar que ela tambm seria possvel e desejvel para promover o crescimento das economias perifricas. O Estado nacional poderia liderar o processo de desenvolvimento, estabele-cendo barreiras alfandegrias, construindo infra-estruturas, criando subsdios e incentivos e oferecendo crdito. Esse papel supunha no s a capacidade de gerar poupana interna para participar da formao bruta de capital como tambm um elevado grau de interveno na economia, em particular, e na vida social em geral. Estavam lanadas as bases do modelo de crescimento e do Estado intervencionista brasileiro.

    Do ponto de vista poltico, havia um quadro favorvel transformao do Estado para atender s novas exigncias do seu papel de indutor do desen-volvimento. As elites oligrquicas excludas do compromisso do antigo regime uniram-se s foras emergentes representativas da nova burguesia industrial e das camadas mdias urbanas. O movimento revolucionrio tambm teve o apoio dos tenentes, lideranas militares egressas da revolta de 1922, com-prometidos com um projeto de reformas modernizadoras (e autoritrias).5

    5 Uma revolta de jovens oficiais no Rio de Janeiro deu origem ao movimento militar denominado tenentismo que, por um iderio nacionalista, modernizador e autoritrio, interferiu na poltica

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    O primeiro perodo de Vargas na presidncia durou 15 anos, sendo qua-tro de governo provisrio, trs de governo constitucional e oito de ditadura. No perodo inicial, houve uma grande concentrao de poderes nas mos do Executivo federal, em conseqncia da dissoluo dos corpos legislativos e da nomeao de interventores para os governos estaduais. Como marco da incor-porao de novos atores sociais, foi criado o Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, que estabelecia uma interlocuo com esses setores e lanava as bases do pacto corporativista que se seguiria. Os tenentes foram absorvi-dos em diversas posies de governo, alguns inclusive como interventores nos estados, trazendo suas idias e a marca da ruptura com o velho pacto oligr-quico. Mas o governo manteve a poltica de valorizao do caf e procurou contemporizar com as oligarquias que aderiram ao movimento revolucionrio. Embora tenha contribudo para a ampliao e consolidao da burguesia in-dustrial, essa foi a imagem bifronte da poltica de Vargas uma face voltada para as oligarquias rurais e outra para as massas urbanas.

    A centralizao e a suspenso das franquias constitucionais geraram crescente insatisfao em setores liberais, sobretudo em So Paulo, desenca-deando uma srie de revoltas, entre as quais a Revoluo de 1932 que, depois de sufocada, ensejou a convocao de uma Constituinte e, em seguida, a pro-mulgao da Constituio de 1934.

    A Constituio de 1934 restabeleceu os direitos e garantias dos cida-dos, restaurou o Poder Legislativo e devolveu a autonomia dos estados. No consentiu a volta dos mesmos nveis de descentralizao que vigoravam na Repblica Velha. Na repartio de encargos e recursos, concentrou compe-tncias no nvel da Unio. Promoveu a uniformizao das denominaes dos cargos de governador e prefeito e fixou limites para a organizao e as atribui-es dos legislativos estaduais. Inaugurou o federalismo cooperativo, com a repartio dos tributos, beneficiando inclusive os municpios, e a coordenao de aes entre as trs esferas de governo.

    A nova Constituio teve vida muito breve. Enfrentando a oposio po-ltico-partidria e a ao organizada do movimento integralista e a ao revo-lucionria dos comunistas, o governo encontrou o pretexto de que precisava para desfechar um golpe de Estado que se deu em novembro de 1937, insti-tuindo o chamado Estado Novo. A ditadura fechou o Congresso Nacional e as assemblias legislativas, suspendeu as garantias constitucionais, destituiu os

    brasileira em diversos momentos, tendo papel importante na Revoluo de 1930 e no longo primeiro perodo presidencial de Getlio Vargas.

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    governadores eleitos, centralizou recursos, aboliu as bandeiras e os hinos esta-duais, prendeu e perseguiu adversrios e oposicionistas e outorgou uma nova constituio, a dita polaca. A centralizao passa a constituir um princpio de organizao do Estado brasileiro que se aplica de forma sistemtica em todos os setores e nveis de estruturao territorial.

    Mantendo a poltica de proteo s matrias-primas exportadas, o go-verno lanou-se de maneira franca e direta no projeto desenvolvimentista, criando as bases necessrias da industrializao a infra-estrutura de trans-porte, a oferta de energia eltrica e a produo de ao, matria-prima bsica para a indstria de bens durveis. Mais do que isso, assumiu papel estratgico na coordenao de decises econmicas. Para tanto, teve que aparelhar-se. As velhas estruturas do Estado oligrquico, corrodas pelos vcios do patri-monialismo, j no se prestavam s novas formas de interveno no domnio econmico, na vida social e no espao poltico remanescente. Urgia reformar o Estado, o governo e a administrao pblica.

    Assim, sob o impulso de superao do esquema clientelista e anrquico de administrao oligrquica, o governo de Getlio Vargas iniciou uma srie de mudanas que tinham pelo menos duas vertentes principais (Lima Junior, 1998):6

    T estabelecer mecanismos de controle da crise econmica, resultante dos efei-tos da Grande Depresso, iniciada em 1929, e subsidiariamente promover uma alavancagem industrial;

    T promover a racionalizao burocrtica do servio pblico, por meio da pa-dronizao, normatizao e implantao de mecanismos de controle, nota-damente nas reas de pessoal, material e finanas.

    A partir de 1937, promoveu uma srie de transformaes no aparelho de Estado, tanto na morfologia, quanto na dinmica de funcionamento. Nesse perodo foram criados inmeros organismos especializados e empresas esta-tais. At 1939, haviam sido criadas 35 agncias estatais; entre 1940 e 1945 surgiram 21 agncias, englobando empresas pblicas, sociedades de econo-mia mista e fundaes (Lima Jnior, 1998:8). At 1930 existiam no Brasil 12 empresas pblicas; de 1930 a 1945, foram criadas 13 novas empresas, sendo 10 do setor produtivo, entre elas a Companhia Vale do Rio Doce, hoje

    6 Baseio neste artigo boa parte da descrio que se segue sobre os esforos para a reforma admi-nistrativa no Brasil.

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    uma gigante da minerao, e a Companhia Siderrgica Nacional, ambas j privatizadas.

    Desde o incio do governo provisrio, foram tomadas medidas visando racionalizao dos procedimentos. J no discurso de posse do presidente Vargas, ao apresentar sua plataforma de governo, ele se propunha a promover uma srie de reformas, entre elas a criao de um Ministrio de Instruo e Sade Pblica; a remodelao do Exrcito e da Armada; a reorganizao do aparelho judicirio; a consolidao das normas administrativas, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislao vigorante, bem como de re-fundir os quadros do funcionalismo, que dever ser reduzido ao indispensvel, suprimindo-se os adidos e os excedentes (Wahrlich, 1975:7-8); a manuten-o de uma administrao de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e sunturias; a reorganizao do Ministrio da Agricultura; a reviso do sistema tributrio; e a instituio do Ministrio do Trabalho, des-tinado a superintender a questo social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural (Wahrlich, 1975:7-8).

    Dando cumprimento a esse programa, em 1930 foi criada a comisso permanente de padronizao e, no ano seguinte, a comisso permanente de compras, ambas voltadas para a aquisio de material. Na rea de pessoal, a Constituio de 1934 introduziu o princpio do mrito. Em 1935, foi criada a comisso mista de reforma econmico-financeira, que destacou uma subco-misso, que ficou conhecida como comisso Nabuco, para estudar a possibi-lidade de um reajustamento dos quadros do servio pblico civil (Wahrlich, 1975:10). Em decorrncia do seu trabalho, em 1936 foi promulgada a Lei no 284, de 28 de outubro, a chamada Lei do Reajustamento, que estabeleceu nova classificao de cargos, fixou normas bsicas e criou o Conselho Federal do Servio Pblico Civil.

    De todas essas medidas, a mais emblemtica foi a criao do Departa-mento Administrativo do Servio Pblico, o lder inconteste da reforma e, em grande parte, seu executor (Wahrlich, 1974:29). O Dasp foi efetivamente organizado em 1938, com a misso de definir e executar a poltica para o pessoal civil, inclusive a admisso mediante concurso pblico e a capacitao tcnica do funcionalismo, promover a racionalizao de mtodos no servio pblico e elaborar o oramento da Unio. O Dasp tinha sees nos estados, com o objetivo de adaptar as normas vindas do governo central s unidades federadas sob interveno.

    Essa primeira experincia de reforma de largo alcance inspirava-se no modelo weberiano de burocracia e tomava como principal referncia a organi-zao do servio civil americano. Estava voltada para a administrao de pes-

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    soal, de material e do oramento, para a reviso das estruturas administrativas e para a racionalizao dos mtodos de trabalho. A nfase maior era dada gesto de meios e s atividades de administrao em geral, sem se preocupar com a racionalidade das atividades substantivas.

    A reforma administrativa do Estado Novo foi, portanto, o primeiro es-foro sistemtico de superao do patrimonialismo. Foi uma ao deliberada e ambiciosa no sentido da burocratizao do Estado brasileiro, que buscava introduzir no aparelho administrativo do pas a centralizao, a impessoali-dade, a hierarquia, o sistema de mrito, a separao entre o pblico e o pri-vado. Visava constituir uma administrao pblica mais racional e eficiente, que pudesse assumir seu papel na conduo do processo de desenvolvimento, cujo modelo de crescimento, baseado na industrializao via substituio de importaes, supunha um forte intervencionismo estatal e controle sobre as relaes entre os grupos sociais ascendentes a nova burguesia industrial e o operariado urbano (Marcelino, 1987).

    O Dasp representou a concretizao desses princpios, j que se tornou a grande agncia de modernizao administrativa, encarregada de implementar mudanas, elaborar oramentos, recrutar e selecionar servidores, treinar o pessoal, racionalizar e normatizar as aquisies e contratos e a gesto do esto-que de material. O Dasp foi relativamente bem-sucedido at o incio da rede-mocratizao em 1945, quando houve uma srie de nomeaes sem concurso pblico para vrios organismos pblicos. A liberdade concedida s empresas pblicas, cujas normas de admisso regulamentadas pelos seus prprios esta-tutos tornavam facultativa a realizao de concursos foi em parte responsvel por tais acontecimentos.

    Para Beatriz Wahrlich (1984) essas atitudes revelavam que o favori-tismo tinha maior peso que as admisses por mrito no sistema brasileiro de administrao de pessoal dos rgos pblicos. Contriburam para isso, o ambiente cultural encontrado pela reforma modernizadora. (...), o mais ad-verso possvel, corrodo e dominado por prticas patrimonialistas amplamente arraigadas (Torres, 2004:147).

    6. O nacional desenvolvimentismo

    A queda do governo Vargas, alm de suas causas mais remotas, foi provoca-da por mais uma interveno militar na vida poltica brasileira. O crescente movimento de oposio ao regime viu-se reforado pelas lideranas milita-res recm-sadas da II Guerra Mundial. De fato, parecia contraditrio que os

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    militares brasileiros voltassem da Europa vitoriosos na luta contra governos totalitrios para dar suporte ditadura.

    falta de lideranas institucionalizadas em posio legtima para as-sumi-la, a presidncia da Repblica foi entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, que conduziu o governo de transio e convocou as eleies e a Assemblia Nacional Constituinte. A Constituio de 1946 restabeleceu o estado de direito e as garantias individuais, restaurou a diviso de poderes da Repblica, devolveu a autonomia dos estados, ampliou os direitos sociais dos trabalhadores, reorganizou o Judicirio e previu a mudana da capital. Forta-leceu-se o federalismo cooperativo, por meio de novos mecanismos de coor-denao e transferncia de rendas entre regies. Eleito em dezembro de 1945, o presidente Dutra, ex-ministro da Guerra de Getlio Vargas, tomou posse em janeiro do ano seguinte e realizou um governo legalista e conservador, marca-do pela dissipao das reservas cambiais acumuladas durante o conflito mun-dial, pela perda da legalidade do Partido Comunista e pela proibio dos jogos de azar. Durante esse qinqnio, foi criada a Companhia Hidreltrica do So Francisco, aumentando a oferta de energia para o Nordeste do Brasil.

    Cinco anos depois de deixar o governo, Getlio Vargas foi eleito presi-dente da Repblica, pelo voto direto, em 3 de outubro de 1950. Vargas assu-miu o governo, com poderes limitados pela Constituio de 1946, para cum-prir um programa francamente nacionalista e reformista, prometendo ampliar os direitos dos trabalhadores e investir na indstria de base e em transportes e energia, o que requeria o aumento da interveno do Estado no domnio econmico. Nesse perodo, foram criadas 13 empresas estatais, entre elas a Petrobras e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDES), gran-de pilar da poltica de fomento da poltica nacional. Vargas tambm tentou controlar a remessa de lucros das empresas estrangeiras e criar a Eletrobrs, empresa controladora do setor eltrico. Contra ele insurgiram-se as foras conservadoras ligadas a interesses contrariados, desencadeando acirrada opo-sio. As presses aumentaram com a investigao do atentado ao jornalista Carlos Lacerda, perpetrado por membros de sua guarda pessoal, culminando com o ultimato dos chefes militares. Getlio preferiu a morte renncia ou deposio. Na madrugada do dia 24 de agosto de 1954 desferiu um tiro no peito que o tirou da vida para coloc-lo na histria do Brasil, segundo ele mes-mo deixou escrito em sua carta-testamento.

    Durante o segundo governo Vargas tambm se pretendeu retomar os esforos reformistas pela designao, em 1952, de um grupo de trabalho com a misso de elaborar um projeto de reforma administrativa que resultou num projeto de lei que previa a reorganizao administrativa do ministrio e a

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    alterao do cdigo de contabilidade das despesas pblicas, abolindo o re-gistro prvio. Submetida ao Congresso Nacional, mereceu um substitutivo de comisso interpartidria que previa a criao do Conselho de Planejamento e Coordenao e dos ministrios do Interior e das Comunicaes e Transportes, que no chegou a ser aprovado, no obstante o apoio do Executivo.

    Depois de um tumultuado perodo de transio de mais de um ano, com golpes, contragolpes, a eleio e a tentativa de impedimento da posse do eleito, assumiu o governo em 1956, Juscelino Kubitscheck de Oliveira. Seu Plano de Metas tinha 36 objetivos, com destaque para quatro setores-chave: energia, transporte, indstria pesada e alimentao. Propugnava a industria-lizao acelerada, apoiada na associao entre capitais nacionais e estrangei-ros, com nfase na indstria de bens durveis, dando prioridade indstria automobilstica e ao transporte rodovirio. Seu lema era a realizao de 50 anos em cinco e a meta smbolo era a construo da nova capital do pas, Bra-slia (Mendona, 1990:335). Era uma fase de grande euforia e de afirmao nacionalista.

    Do ponto de vista institucional, a dcada que vai de 1952 a 1962 foi marcada pela realizao de estudos e projetos que jamais seriam implemen-tados. A criao da Cosb (Comisso de Simplificao Burocrtica) e da Cepa (Comisso de Estudos e Projetos Administrativos), em 1956, representa as primeiras tentativas de realizar as chamadas reformas globais. A primeira ti-nha como objetivo principal promover estudos visando descentralizao dos servios, por meio da avaliao das atribuies de cada rgo ou instituio e da delegao de competncias, com a fixao de sua esfera de responsabilida-de e da prestao de contas das autoridades. A Cepa teria a incumbncia de assessorar a presidncia da Repblica em tudo que se referisse aos projetos de reforma administrativa.

    Esse perodo se caracteriza por uma crescente ciso entre a administra-o direta, entregue ao clientelismo e submetida, cada vez mais, aos ditames de normas rgidas e controles, e a administrao descentralizada (autarquias, empresas, institutos e grupos especiais ad hoc), dotados de maior autonomia gerencial e que podiam recrutar seus quadros sem concursos, preferencial-mente entre os formados em think thanks especializados, remunerando-os em termos compatveis com o mercado. Constituram-se assim ilhas de excelncia no setor pblico voltadas para a administrao do desenvolvimento, enquanto se deteriorava o ncleo central da administrao. De acordo com Lima Jnior (1998:10)

    a administrao do plano de metas foi executada, em grande medida, fora dos rgos administrativos convencionais. Considerando-se os setores essenciais

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    do plano de desenvolvimento (energia, transportes, alimentao, indstrias de base e educao) apenas 5,2% dos recursos previstos foram alocados na admi-nistrao direta; o restante foi aplicado por autarquias, sociedades de economia mista, administraes estaduais e empresas privadas. A coordenao poltica das aes se fazia atravs dos grupos executivos nomeados diretamente pelo presidente da Repblica.

    O governo seguinte ao de Kubitscheck, embora caracterizado por gran-de agitao poltica, no produziu transformaes de largas conseqncias no aparelho de Estado. Pode parecer at um contra-senso afirmar que a mudana do sistema de governo seja de pouca relevncia. Na verdade, a introduo do parlamentarismo depois da renncia do presidente Jnio Quadros, apenas sete meses depois da sua investidura no cargo, foi uma soluo poltica, de curta durao, para o enfrentamento das resistncias militares posse do vice-presidente Joo Goulart. O governo instalou-se em meio a uma crise e com ela conviveu durante os 32 meses seguintes. Jango era apoiado pelo Partido Tra-balhista Brasileiro e se propunha a realizar um programa de esquerda, orien-tado para a realizao de reformas de base bancria, fiscal, urbana, agrria, universitria e administrativa. O programa contemplava a extenso do direito de voto aos analfabetos e s patentes. Esse pacote de medidas enfrentava forte oposio dos setores militares que viam na ao poltica orientada para subo-ficiais e praas uma grave ameaa disciplina.

    Apesar da crise, o governo Goulart criou a Comisso Amaral Peixoto, que deu incio a novos estudos para a realizao da reforma administrativa. Seu principal objetivo era promover uma ampla descentralizao administra-tiva at o nvel do guich, alm de ampla delegao de competncia (Marce-lino, 1988:41).

    Embora tenha havido avanos isolados durante os governos de Getlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jnio Quadros e Joo Goulart, o que se obser-va a manuteno de prticas clientelistas, que negligenciavam a burocracia existente, alm da falta de investimento na sua profissionalizao. A cada de-safio surgido na administrao do setor pblico, decorrente da prpria evolu-o socioeconmica e poltica do pas, a sada utilizada era sempre a criao de novas estruturas alheias administrao direta e o conseqente adiamento da difcil tarefa de reformulao e profissionalizao da burocracia pblica existente (Torres, 2004:151).

    Todas as iniciativas anteriormente descritas, como a criao dessas co-misses, mesmo que no tenham sido implementadas, no deixaram de inau-gurar uma nova viso na administrao pblica com a introduo de concei-tos, diretrizes e objetivos mais racionais, que serviriam de base para futuras

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    reformas no aparato administrativo brasileiro. Na verdade, algumas das gran-des inovaes introduzidas pela reforma de 1967 estavam consignadas nos relatrios da Cosb, da Cepa e, sobretudo, da Comisso Amaral Peixoto, confor-me exaustivamente documentado por Beatriz Wahrlich (1974:30-41).

    De fato, o ministrio extraordinrio para a reforma administrativa ela-borou quatro projetos que nunca conseguiram aprovao no Congresso, mas alguns especialistas no assunto afirmam que foi a partir deles que se concebeu o Decreto-Lei no 200, de 1967. Seu estatuto bsico prescreve cinco princpios fundamentais:

    T o planejamento (princpio dominante);

    T a expanso das empresas estatais (sociedades de economia mista e empre-sas pblicas), bem como de rgos independentes (fundaes pblicas) e semi-independentes (autarquias);

    T a necessidade de fortalecimento e expanso do sistema do mrito, sobre o qual se estabeleciam diversas regras;

    T diretrizes gerais para um novo plano de classificao de cargos;

    T o reagrupamento de departamentos, divises e servios em 16 ministrios: Justia, Interior, Relaes Exteriores, Agricultura, Indstria e Comrcio, Fa-zenda, Planejamento, Transportes, Minas e Energia, Educao e Cultura, Trabalho, Previdncia e Assistncia Social, Sade, Comunicaes, Exrcito, Marinha e Aeronutica.

    7. A modernizao autoritria

    A agitao poltica provocada pelas reformas de base, a ebulio dos movimen-tos populares de esquerda, a mobilizao da direita catlica, a conspirao nos quartis e as revoltas dos marinheiros e sargentos do Exrcito acabaram por provocar mais uma interveno militar que se deu com o golpe de 1o de abril de 1964. O endurecimento do regime ocorreu aos poucos. Primeiro, a deposio do presidente e de alguns governadores; em seguida, a cassao de mandatos eletivos e a suspenso de direitos polticos; depois, a extino dos antigos par-tidos e a suspenso das eleies diretas. Cumpria-se o mesmo programa auto-ritrio de supresso de garantias, cerceamento do Congresso, centralizao de decises, concentrao de recursos e esvaziamento da federao.

    De certa forma, o governo militar realizou, sua maneira, com sinais trocados, o programa de reformas de base elaborou o Estatuto da Terra,

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    promoveu uma reforma tributria, reorganizou o sistema bancrio, reestrutu-rou o ensino universitrio e realizou uma ampla reforma administrativa. Em 1965 teve incio a reforma tributria que se consolidou com a Constituio de 1967, uniformizando a legislao, simplificando o sistema e reduzindo o n-mero de impostos. Ela trouxe uma brutal concentrao de recursos nas mos da Unio, esvaziando financeiramente estados e municpios que ficaram de-pendentes de transferncias voluntrias.

    Ainda em 1964, o novo governo retirou do Congresso Nacional o pro-jeto de lei elaborado pela Comisso Amaral Peixoto para reexame do assun-to por parte do Poder Executivo. Instituiu a Comestra (Comisso Especial de Estudos da Reforma Administrativa), presidida pelo ministro extraordinrio para o planejamento de coordenao econmica, com o objetivo de proceder ao exame dos projetos elaborados e o preparo de outros considerados essen-ciais obteno de rendimento e produtividade da administrao federal (Wahrlich, 1974:44).

    Do trabalho dessa comisso e das revises que se seguiram em mbito ministerial resultou a edio do Decreto-Lei no 200, de 25 de fevereiro de 1967, o mais sistemtico e ambicioso empreendimento para a reforma da ad-ministrao federal. Esse dispositivo legal era uma espcie de lei orgnica da administrao pblica, fixando princpios, estabelecendo conceitos, balizan-do estruturas e determinando providncias. O Decreto-Lei no 200 se apoiava numa doutrina consistente e definia preceitos claros de organizao e funcio-namento da mquina administrativa.

    Em primeiro lugar, prescrevia que a administrao pblica deveria se guiar pelos princpios do planejamento, da coordenao, da descentralizao, da delegao de competncia e do controle. Em segundo, estabelecia a distin-o entre a administrao direta os ministrios e demais rgos diretamen-te subordinados ao presidente da Repblica e a indireta, constituda pelos rgos descentralizados autarquias, fundaes, empresas pblicas e socie-dades de economia mista. Em terceiro, fixava a estrutura do Poder Executivo federal, indicando os rgos de assistncia imediata do presidente da Rep-blica e distribuindo os ministrios entre os setores poltico, econmico, social, militar e de planejamento, alm de apontar os rgos essenciais comuns aos diversos ministrios. Em quarto, desenhava os sistemas de atividades auxilia-res-pessoal, oramento, estatstica, administrao financeira, contabilidade e auditoria e servios gerais. Em quinto, definia as bases do controle externo e interno. Em sexto, indicava diretrizes gerais para um novo plano de classifi-cao de cargos. E finalmente, estatua normas de aquisio e contratao de bens e servios.

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    Para Beatriz Wahrlich (1984:52) de 1964 at 1978 assistiu-se ao ressur-gimento da reforma administrativa como programa de governo formal.

    De 1967 a 1979, a coordenao da reforma administrativa cabia Se-mor (Subsecretaria de Modernizao e Reforma Administrativa), que cuida-va dos aspectos estruturais, sistmicos e processuais, e ao Dasp, que atuava somente no domnio dos recursos humanos. Nesta fase, a Semor se preocu-pou em recorrer a freqentes exames da estrutura organizacional e analisou projetos de iniciativa de outros departamentos, visando criao, fuso ou extino de rgos e programas que trouxessem maior eficcia gesto p-blica. Foram realizados muitos estudos, trazendo contribuies importantes para a formulao do arcabouo terico e de metodologias que embasassem a modernizao administrativa. Quanto s Dasp, alm de suas atividades regulares, seu principal projeto foi a elaborao de um novo plano de clas-sificao de cargos, que se pautava numa classificao por categoria, em oposio ao anterior, aprovado em 1960, que se apoiava num sistema de classificao por deveres e responsabilidades. Esse plano no logrou xito em modificar a estrutura hierrquica de cargos na administrao pblica, o que significa dizer que o sistema de mrito continuou restrito aos postos iniciais da carreira.

    Apesar da distncia entre as metas estabelecidas e as metas cumpridas, no resta dvida de que o Decreto-Lei no 200 contribuiu para a consolidao do modelo de administrao para o desenvolvimento no Brasil. Essa nova concepo viria substituir o modelo clssico de burocratizao, baseado nas idias de Taylor, Fayol e Weber. Adaptado nova condio poltica do Brasil, que atravessava uma ditadura militar, ambicionava expandir a interveno do Estado na vida econmica e social. A modificao do estatuto do funcio-nalismo de estatutrio para celetista7 e a criao de instituies da adminis-trao descentralizada visavam facilitar as pretenses intervencionistas do governo.

    A tentativa de modernizao do aparelho de Estado, especialmente a partir da dcada de 1960, teve como conseqncia a multiplicao de entida-

    7 As expresses estatutrio e celetista referem-se ao regime jurdico das relaes de trabalho do Estado com os servidores pblicos, que poderiam ser regidos pelo Estatuto dos Funcionrios Pblicos Civis da Unio (estatutrios) ou pela Consolidao da Legislao do Trabalho CLT (celetistas), esta ltima comum a todas as relaes de emprego. Com a Constituio de 1988, foi institudo o Regime Jurdico nico (RJU) do servidor pblico, transformando os empregados celetistas estveis em funcionrios estatutrios. A Emenda Constitucional no 19, promulgada em maio de 1998, criou a figura jurdica do emprego pblico, que ainda no foi regulamentada.

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    des da administrao indireta: fundaes, empresas pblicas, sociedades de economia mista e autarquias. A expanso e a multiplicao de novos centros de administrao indireta buscavam maior agilidade e flexibilidade de atuao dessas entidades, melhor atendimento s demandas do Estado e da sociedade, facilidade de aporte de recursos e, naturalmente, facilidade de recrutamento, seleo e remunerao (Marcelino, 1988:44).

    Embora tenha se verificado um crescimento na administrao direta, so-bretudo com o aumento do nmero de ministrios que foram desmembrados de outros, a marca maior do modelo do crescimento foi mesmo a expanso da administrao indireta. Isso resultou no fenmeno da dicotomia entre o Esta-do tecnocrtico e moderno das instncias da administrao indireta e o Estado burocrtico, formal e defasado da administrao direta, que subsiste mesmo depois da reforma administrativa de maro de 1990 (Marcelino, 1988:44). Esse fenmeno tinha se iniciado ainda no final do primeiro governo Vargas, que entre 1940 e 1945 chegou a criar 21 rgos descentralizados.

    Apesar dos avanos, a reforma de 1967 no logrou eliminar o fosso crescente entre as burocracias pblicas instaladas na administrao direta e na indireta, nem garantir a profissionalizao do servio pblico em toda a sua extenso: No se institucionalizou uma administrao do tipo weberiano; a administrao indireta passou a ser utilizada como fonte de recrutamento, prescindindo-se, em geral, do concurso pblico (Lima Jnior, 1998:14).

    A reforma administrativa embutida no Decreto-Lei no 200 ficou pela me-tade e fracassou. A crise poltica do regime militar, que se inicia j em meados dos anos 1970, agrava ainda mais a situao da administrao pblica, j que a burocracia estatal foi identificada com o sistema autoritrio em pleno pro-cesso de degenerao (Bresser-Pereira, 1996:273-274).

    Antes da descrio da reforma administrativa da Nova Repblica, me-recem registro dois programas de reforma elaborados entre 1979 e 1982, a desburocratizao e a desestatizao. De iniciativa do Poder Executivo, os dois programas foram concebidos de forma a atender objetivos complementares que seriam o aumento da eficincia e eficcia na administrao pblica e o fortalecimento do sistema de livre empresa. Mais especificamente, o programa de desburocratizao, institudo pelo Decreto-Lei no 83.740, de 18 de julho de 1979, visa simplificao e racionalizao das normas organizacionais, de modo a tornar os rgos pblicos mais dinmicos e mais geis (Wahrlich, 1984:53). Esperava-se que a supresso de etapas desnecessrias tornaria mais gil o sistema administrativo, trazendo benefcios para funcionrios e clientes. Diferentemente dos outros programas, o da desburocratizao privilegiava o

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    usurio do servio pblico. Da o seu ineditismo, porque nenhum outro pro-grama antes era dotado de carter social e poltico. Mas, ele tambm inclua entre seus objetivos o enxugamento da mquina estatal, j que recomendava a eliminao de rgos pouco teis ou cuidava para impedir a proliferao de entidades com tarefas pouco definidas ou j desempenhadas em outras insti-tuies da administrao direta e indireta.

    O balano de sua atuao registrou at maro de 1981 a anlise de centenas de rotinas de trabalho, para efeito de simplificao, procedendo supresso de documentos e informaes dispensveis. Em 1983, ele ganha estatuto de ministrio, depois de passar por uma fase que volta a ser um pro-grama, a desburocratizao recupera na Nova Repblica sua condio de mi-nistrio, quando suprimida definitivamente em 1986.

    O programa de desestatizao visava ao fortalecimento do sistema livre de empresa e tinha os seguintes pressupostos:

    T organizao e explorao das atividades econmicas competem preferen-cialmente empresa privada, na forma estabelecida na Constituio brasi-leira. O papel do Estado, no campo econmico, de carter suplementar, e visa sobretudo encorajar e apoiar o setor privado;

    T o governo brasileiro est firmemente empenhado em promover a privati-zao das empresas estatais nos casos em que o controle pblico se tenha tornado desnecessrio ou injustificvel;

    T a privatizao das empresas estatais, porm, no dever alcanar nem en-fraquecer as entidades que devam ser mantidas sob controle pblico, seja por motivos de segurana nacional, seja porque tais empresas criem, efeti-vamente condies favorveis ao desenvolvimento do prprio setor privado nacional, ou ainda, quando contribuem para assegurar o controle nacional do processo de desenvolvimento (Wahrlich, 1984:54).

    Para Beatriz Wahrlich (1984:57), o programa da desestatizao havia sido concebido para estabelecer limites aos excessos de expanso da adminis-trao pblica descentralizada, tendncia marcante na dcada anterior sem, entretanto, se configurar na reverso desse processo. Ela completa:

    a necessidade de um programa de desestatizao indica que na questo da or-ganizao para o desenvolvimento, a administrao pblica brasileira ultrapas-sou suas metas e chegou a hora de corrigir a disfuno existente, para atender opo constitucional do pas por uma economia de mercado.

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    8. A reforma administrativa da Nova Repblica

    A reforma do Estado era uma das principais promessas da Nova Repblica, que se traduzia em diversas bandeiras de luta que iam muito alm do rear-ranjo administrativo vigncia efetiva do imprio da lei, desobstruo do Legislativo, aparelhamento da Justia, reforma tributria, descentralizao e, subsidiariamente, reforma agrria, saneamento da previdncia, implantao do sistema nico de sade, erradicao do analfabetismo, reforma do ensino bsico, desenvolvimento regional.

    Tancredo Neves promoveu uma pequena reforma administrativa desti-nada a acomodar os interesses das diversas faces polticas que o apoiavam ampliao do nmero de ministrios e criao de novas diretorias em quase todas as empresas estatais. A verdadeira reforma do Estado, prometia, viria depois da posse. Para realizar essa imensa tarefa, ele indicou um ministro ex-traordinrio da administrao para dirigir o velho e desgastado Dasp.

    O governo civil que acabara de se instalar em 1985, aps mais de duas dcadas de ditadura militar, herdava um aparato administrativo marcado ain-da pela excessiva centralizao. Apesar de representar a primeira tentativa de reforma gerencial da administrao pblica pela inteno de mexer na rigidez burocrtica, o Decreto-Lei no 200/67 deixou seqelas negativas. Em primeiro lugar, o ingresso de funcionrios sem concurso pblico permitiu a reproduo de velhas prticas patrimonialistas e fisiolgicas. E, por ltimo, a negligncia com a administrao direta burocrtica e rgida que no sofreu mudanas significativas na vigncia do decreto, enfraquece o ncleo estratgico do Estado, fato agravado pelo senso oportunista do regime militar que deixa de investir na formao de quadros especializados para os altos escales do servio pblico.

    No final das mais de duas dcadas de regime ditatorial a situao do pas no era muito alentadora. Paralelamente ao desafio da redemocratizao, lidava-se com uma severa crise econmica marcada pelas crescentes desigual-dades sociais. As distores no aparelho administrativo, geradas at o mo-mento, dificultavam qualquer tentativa de reverso desse quadro. Ora, se para realizar mudanas importantes na engrenagem administrativa era necessrio uma reviso crtica de todas as experincias anteriores, a misso mais urgente que se apresentava nos meados dos anos 1980 era a instalao de sistemas administrativos capazes de promover o desenvolvimento, fazendo com que o pas pudesse dispor de toda a potencialidade de seus recursos. importante sublinhar, portanto, que o processo de reforma est estreitamente ligado ao contexto poltico, social e cultural do pas, o que significa que no se pode enfatizar somente os aspectos legal e tcnico.

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    Assim, o governo da chamada Nova Repblica teria como tarefa inadi-vel a reverso desse quadro, que se expressaria na necessidade de tornar o aparelho administrativo mais reduzido, orgnico, eficiente e receptivo s de-mandas da sociedade (Marcelino, 2003:645).

    Para empreender tamanha tarefa, o governo Sarney instituiu uma nu-merosa comisso, cujos objetivos eram extremamente ambiciosos, j que, num primeiro momento, pretendia redefinir o papel do Estado (nas trs esferas de governo); estabelecer as bases do funcionamento da administrao pblica; fixar o destino da funo pblica; reformular as estruturas do Poder Executivo federal e de seus rgos e entidades; racionalizar os procedimentos adminis-trativos em vigor; alm de traar metas para reas consideradas prioritrias, como a organizao federal, recursos humanos e a informatizao do setor pblico. Nessa poca, ainda operavam os programas de privatizao e desbu-rocratizao herdados do governo Figueiredo.

    Segundo Marcelino (2003:646), o documento elaborado pela comisso geral da reforma define as propostas para a reorganizao da administrao pblica:

    T restaurao da cidadania para prover os cidados de meios para a realiza-o de seus direitos, obedecendo aos critrios de universalidade e acesso irrestrito;

    T democratizao da ao administrativa em todos os nveis do governo, por meio de dinamizao, reduo do formalismo e transparncia dos mecanis-mos de controle, controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo e pela sociedade, e articulao e proposio de novas modalidades organizacio-nais de deciso, execuo e controle administrativo-institucional;

    T descentralizao e desconcentrao da ao administrativa com o objetivo de situar a deciso pblica prxima do local de ao, alm de reverter o processo de crescimento desordenado da administrao federal;

    T revitalizao do servio pblico e valorizao dos servios;

    T melhoria dos padres de desempenho a fim de promover a alocao mais eficiente de recursos.

    Essa comisso, criada em agosto de 1985, suspende seus trabalhos em fevereiro de 1986, quando todas as atenes e esforos estavam voltados para o plano de estabilizao da economia o Plano Cruzado. Em setembro da-quele mesmo ano, lanado o primeiro programa de reformas do governo Sarney, que tinha trs objetivos principais: racionalizao das estruturas admi-

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    nistrativas, formulao de uma poltica de recursos humanos e conteno de gastos pblicos (Marcelino, 2003:647).

    Quanto estrutura, o que se pretendia era fortalecer a administrao direta com base na assertiva de que ela tinha sido negligenciada em detrimen-to da administrao indireta, que acusava altos nveis de expanso ano aps ano, desde o comeo das reformas. Para estancar o crescimento dos rgos da administrao indireta e promover o desenvolvimento da direta, elaborou-se uma primeira verso da Lei Orgnica da Administrao Pblica Federal, que sucedia o Decreto-Lei no 200.

    Valorizar a funo pblica e promover a renovao de quadros eram as metas principais da poltica de recursos humanos do governo Sarney. Para isso, foram criadas a Escola Nacional de Administrao Pblica (Enap) e o Centro de Desenvolvimento da Administrao Pblica (Cedam), ambos vinculados Secretaria de Recursos Humanos. O primeiro seria responsvel pela formao de novos dirigentes do setor pblico e ao segundo caberia a funo de treinar e reciclar servidores pblicos, objetivando uma alocao mais lgica e racional de funcionrios pblicos. Complementando essa poltica, a Secretaria de Ad-ministrao Pblica (Sedap), ao tentar resgatar o sistema de mrito, elaborou um novo plano de carreira, uma reviso do estatuto do funcionalismo e um plano de retribuies.

    Na prtica, nem a comisso, nem o grupo executivo que a sucedeu con-seguiu implementar as medidas que preconizaram. A ampla reforma moder-nizadora e democrtica foi deixada de lado para dar lugar mais tradicional estratgia de reforma administrativa a racionalizao dos meios. Mas mes-mo com a emulao suscitada pelo Plano Cruzado, o governo no foi capaz de reativar as antigas ilhas de eficincia do setor pblico planejamento, arre-cadao, comunicaes, poltica agrcola desmanteladas a partir do incio da gesto de Delfim Neto na Secretaria de Planejamento, da presidncia da Repblica, no governo Figueiredo. Por outro lado, como medidas de racionali-zao, o governo Sarney extinguiu o Banco Nacional de Habitao (BNH), que enfrentava grave crise na lgica de financiamento da casa prpria e, com ele, a poltica de habitao, cuja responsabilidade, em parte, foi transferida para a Caixa Econmica Federal (CEF). Tambm pouco avanou na implementao do Sistema nico de Sade (SUS), duramente conquistado na Constituinte.

    No campo da poltica de recursos humanos do setor pblico, o gover-no no conseguiu instituir um sistema de carreiras, apoiando o progresso profissional na formao dos servidores, que justificasse a existncia desses organismos. Deixou para seu sucessor o projeto de um regime nico para os servidores pblicos, determinado pela Constituio de 1988 que, cedendo

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    a presses de interesses corporativos, estabelecia mais de 100 direitos, uns dois ou trs deveres e alguns poucos dispositivos sobre o processo disciplinar e as sanes cabveis em caso de falta grave (Lei no 8.112, de 11 de dezem-bro de 1990, mais tarde, profundamente alterada pela Lei no 9.527, de 10 de dezembro de 1997). Sancionado com vetos posteriormente derrubados pelo Congresso Nacional, esse emblema do privilgio em nada contribuiu para valorizar a funo pblica.

    Para Gileno Marcelino (1988), as tentativas de reforma at 1985 ca-receram de planejamento governamental e de meios mais eficazes de imple-mentao. Havia uma relativa distncia entre planejamento, modernizao e recursos humanos, alm da falta de integrao entre os rgos responsveis pela coordenao das reformas. Os resultados dessa experincia foram rela-tivamente nefastos e se traduziram na multiplicao de entidades, na margi-nalizao do funcionalismo, na descontinuidade administrativa e no enfra-quecimento do Dasp. Em resumo, a experincia das reformas administrativas no Brasil apresentou distores na coordenao e avaliao do processo, o que dificultou a sua implementao nos moldes idealizados. Persistia na sua concepo uma enorme distncia entre as funes de planejamento, moderni-zao e recursos humanos.

    Paralelamente s tentativas de reforma empreendidas pelo governo, tinham incio os trabalhos da Assemblia Nacional Constituinte, eleita em 1986 e instalada no comeo de 1987. A Constituinte pretendia, com a nova Carta, refundar a Repblica, estabelecendo outras bases para a soberania, a ordem social, a cidadania, a organizao do Estado, as formas de delibe-rao coletiva, o financiamento do gasto pblico, as polticas pblicas e a administrao pblica. A Constituio de 1988 proclamou uma nova enun-ciao dos direitos de cidadania, ampliou os mecanismos de incluso poltica e participao, estabeleceu larga faixa de interveno do Estado no domnio econmico, redistribuiu os ingressos pblicos entre as esferas de governo, diminuiu o aparato repressivo herdado do regime militar e institucionalizou os instrumentos de poltica social, dando-lhes substncia de direo. Nesse sentido, a promulgao da Carta Magna representou uma verdadeira refor-ma do Estado.

    Entretanto, do ponto de vista da gesto pblica, a Carta de 1988, no anseio de reduzir as disparidades entre a administrao central e a descentra-lizada, acabou por eliminar a flexibilidade com que contava a administrao indireta que, apesar de casos de ineficincia e abusos localizados em termos de remunerao, constitua o setor dinmico da administrao pblica. Ela foi equiparada, para efeito de mecanismos de controle e procedimentos,

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    administrao direta.8 A aplicao de um regime jurdico nico (RJU) a todos os servidores pblicos abruptamente transformou milhares de empregados ce-letistas em estatutrios,9 gerando um problema ainda no solucionado para a gesto da previdncia dos servidores pblicos, pois assegurou aposentadorias com salrio integral para todos aqueles que foram incorporados compulsoria-mente ao novo regime sem que nunca tivessem contribudo para esse sistema. Alm disso, o RJU institucionalizou vantagens e benefcios que permitiram um crescimento vegetativo e fora de controle das despesas com pessoal, criando srios obstculos ao equilbrio das contas pblicas e aos esforos de moderni-zao administrativa em todos os nveis de governo.

    Apesar do propalado retrocesso em termos gerenciais, a Constituio de 1988 no deixou de produzir avanos significativos, particularmente no que se refere democratizao da esfera pblica. Atendendo aos clamores de participao nas decises pblicas, foram institucionalizados mecanismos de democracia direta, favorecendo um maior controle social da gesto estatal, incentivou-se a descentralizao poltico-administrativa e resgatou-se a im-portncia da funo de planejamento.

    Embora tenha participado da administrao do presidente Sarney, Bres-ser-Pereira (1998:274) faz uma crtica mais contundente s tentativas de re-forma do governo da transio democrtica e s mudanas introduzidas pela Constituio de 1988. Ele acredita que, no plano gerencial, houve uma volta aos ideais burocrticos dos anos 1930 e, no plano poltico, uma tentativa de retorno ao populismo dos anos 1950. Partindo de uma perspectiva de anlise poltica, considera que os dois partidos que comandaram a transio eram, apesar de democrticos, visceralmente populistas, no tinham, como a socie-dade brasileira tambm no tinha, noo da gravidade da crise que o pas esta-va atravessando. Havia, ainda, uma espcie de euforia democrtico-populista. Uma idia de que seria possvel voltar aos anos dourados da democracia e do desenvolvimento brasileiro, que foram os anos 1950.

    8 O Decreto-Lei no 200, de 25 de fevereiro de 1967, estabeleceu a distino entre administrao direta (ou centralizada) e administrao indireta (ou descentralizada), englobando na primeira apenas os ministrios e seus rgos constitutivos, inclusive os relativamente autnomos e, na indireta, as autarquias, fundaes, empresas pblicas e sociedades de economia mista.9 Relao de emprego regida pela Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), que vale tanto para os empregados das empresas privadas quanto para os das estatais. At 1988, esse regime tambm era utilizado na contratao de servidores de autarquias, fundaes e mesmo de alguns rgos da administrao direta. Eram chamados de estatutrios os funcionrios regidos pelo antigo Estatuto dos Servidores Civis da Unio. Na prtica, o RJU transformou todos os empregados pblicos em funcionrios estatutrios.

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    9. A reforma do governo Collor

    Em 15 de maro de 1990, tomou posse o primeiro governo civil eleito pelo voto direto, nos ltimos 30 anos, de um sculo de vida republicana. Para cum-prir seus propsitos reformadores criou uma nova moeda, congelou a poupan-a popular, taxou haveres financeiros e redesenhou a mquina de governo. Em menos de 24 horas, editou 23 medidas provisrias, sete decretos e 72 atos de nomeao, aos quais se seguiram inmeras portarias ministeriais e instrues normativas autrquicas. Com o objetivo de reduzir a interveno do Estado na vida social, criou uma srie de restries e regulamentos temporrios para que, aos poucos, os cidados perdessem a memria inflacionria e pudessem usufruir mais os benefcios decorrentes do exerccio das novas liberdades.

    Na perspectiva econmica, o Plano Collor fomentou debates, ensaios e livros. Sob as lentes do direito, as medidas legais dele decorrentes tm gerado pareceres, polmicas e milhares de demandas judiciais. Esses dois pontos de vista monopolizaram o interesse e a ateno dos meios de comunicao e, em conseqncia, da sociedade como um todo. Hoje, so de conhecimento perfei-tamente acessvel o impacto do inciso de um artigo de uma lei de converso, a alquota de IOF que incide sobre cada ativo financeiro e as projees sobre os estoques de base monetria e da moeda em circulao.

    verdade que a extino de alguns rgos que cumpriam misses mais relevantes e as demisses em todas as reas provocaram vivas discusses. Questionou-se, por exemplo, o propsito do desmantelamento do aparelho de promoo cultural e o fundamento tico das demisses em massa numa conjuntura econmica recessiva. Afora o questionamento sobre sua eficcia em termos de efetiva reduo de custos, os argumentos que se alinhavam a favor e contra sua adoo fundamentam-se em paradigmas de rationale nosemelhantes, a comear por duas ou trs concepes de Estado que supem diferentes nveis de aparelhamento e limites de interveno. Perdeu-se, nessa perspectiva, at o que havia de consensual antes da posse do presidente Collor a necessidade de redefinir o papel do Estado e redimensionar o tamanho do governo.

    claro que no houve um balizamento conceitual, um contedo estra-tgico bem definido e um planejamento da implementao suficientemente estruturado mas, ainda assim, constituiu-se um amplo processo de reforma administrativa do Poder Executivo, embora com uma inverso de fatores, ou seja, existia uma funo procura de um enredo.

    Evidentemente, existem outros modelos de reforma ou modernizao administrativa cujo foco de interveno pode ser orientado para diferentes di-

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    menses do fenmeno macro-organizacional.10 Mas a redistribuio de auto-ridade e responsabilidade por diferentes reas de especializao, organismos e nveis hierrquicos pode caracterizar, por si s, a mudana organizacional e constituir o contedo da reforma administrativa.

    A rpida passagem de Collor pela presidncia provocou, na administrao p-blica, uma desagregao e um estrago cultural e psicolgico impressionantes. A administrao pblica sentiu profundamente os golpes desferidos pelo governo Collor, com os servidores descendo aos degraus mais baixos da auto-estima e valorizao social, depois de serem alvos preferenciais em uma campanha pol-tica altamente destrutiva e desagregadora.

    Torres (2004:170)

    Sua reforma administrativa caminhou de forma errtica e irresponsvel no sentido da desestatizao e da racionalizao.11 As medidas de racionalizao foram conduzidas de maneira perversa e equivocada. Algumas das extines tiveram que ser logo revistas, como a da Capes, por exemplo. Muitas das fuses, principalmente de ministrios, no eram convenientes, pois criavam superestru-turas (como os ministrios da Economia e da Infra-Estrutura) sujeitas a presses de interesses poderosos, e dificultavam a superviso que intentavam favorecer. Os cortes de pessoal, desnecessrios, se examinarmos a administrao como um todo, no trouxeram expressiva reduo de custos. A reforma administrativa desmantelou os aparelhos de promoo da cultura e contribuiu ou, pelo menos, serviu de pretexto para a paralisao de todos os programas sociais. Depois do incio da crise de seu governo, Collor voltou ao velho sistema de concesses po-lticas para atrair apoios, desmembrando e criando ministrios.

    O governo Collor tambm prometeu uma reforma do Estado orientada numa outra direo. Se ela fosse sincera nos seus propsitos poderia, como j

    10 Os principais modelos de anlise e interveno organizacional utilizados no processo de re-forma administrativa e a proposta de mudana ambiental planejada so expostos em Motta, 1979:153.11 Essas categorias foram desenvolvidas para melhor compreender a reforma administrativa do governo Collor. A desestatizao parte da premissa que no cabe ao Estado realizar determinadas funes, e a racionalizao se apia no critrio da eficincia e parte do pressuposto que, entre as funes indelegveis, o Estado pode, com menos recursos, realizar o mesmo volume de atividades ou, em outros casos, com o mesmo volume de recursos, realizar um maior nmero de atividades (Lustosa da Costa e Cavalcanti, 1991:82).

  • RAP RIO DE JANEIRO 42(5):829-74, SET/OUT. 2008

    862 FREDERICO LUSTOSA DA COSTA

    vimos, contribuir para a consolidao e universalizao do Estado mnimo, e assim assegurar o bem-estar dos cidados brasileiros. Na verdade, movida a oportunismo neoliberal e constituda como uma empresa de desmantelamen-to do setor pblico, ela produziu uma srie de remanejamentos no plano da organizao