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B

TeatroNacionalSão João

11+12Set2009

tradução para lituano

Pranas Povilaitis

cenografia

Marius Nekrosius

figurinos

Nadezda Gultiajeva

música original

Faustas Latenas

desenho de luz

Dziugas Vakrinas

desenho de som

Arvydas Duksta

assistência de

encenação

Tauras Cizas

adereços

Genadij Virkovskij

interpretação

Daumantas Ciunis

Lev Nikoláevitch

Míchkin

Salvijus Trepulis

Parfion Semiónitch

Rogójin

Elzbieta Latenaite

Nastássia Filíppovna

Baráchkova

Diana Gancevskaite

Aglaia Ivánovna

Epantchiná

Margarita Ziemelyte

Lisaveta Prokófievna

Epantchiná

Vidas Petkevicius

General Ivan

Fiódorovitch

Epantchin

Migle Polikeviciute

Adelaída Ivánovna

Epantchiná

Vaidas Vilius

Gavrila

Ardaliónovitch

Ívolguin

Vytautas Rumsas

General Ardalion

Aleksándrovitch

Ívolguin

Ausra Pukelyte

Varvara Ardaliónovna

Vytautas Rumsas Jr.

Ferdíchenko

Neringa Bulotaite

Irmã

Tauras Cizas

Afanássi Ivánovitch

Tótski

administração (Meno Fortas)

Audrius Jankauskas

administração (internacional)

Aldo Miguel Grompone

(Roma)

produção

Meno Fortas

co-produtores

Vilnius – Capital Europeia da

Cultura 2009, Fondazione

Musica per Roma, Fundação

Internacional Stanislavski

(Moscovo), Festival Dialog-

-Wrocław, Festival Baltic

House (São Petersburgo)

em colaboração com

Ministério da Cultura

da Lituânia, Aldo Miguel

Grompone

estreia

[17Jun2009]

Festival Internazionale

di Villa Adriana –

Lazio (Itália)

sex+sáb 20:00

dur. aprox.

[5:20]

com três intervalos

classif. etária

M/12 anos

IdiotasDE FIóDoR DoSToIEVS kIENCENAção E IM uNTAS N EkRoSIuS

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As suas obras, aparentemente pobres, são de um barroquismo reconhecível. A presença constante da banda sonora, a modelação climática do espaço pela luz, o excesso burlesco-trágico da representação, cruzando tradições eruditas e populares, fazem de Nekrosius um demiurgo de feira que transporta e nos transporta ao reconhecível dos Sonhos. Dentro deles, há sempre alguma coisa compatível mas desigual ao estado de vigília. No entanto, tudo é nítido e palpável e tem a lógica da partilha. Há um emolumento dos seres ao Destino, que imbuídos de uma tarefa de renovação, através de provas exemplares de Sacrifício, se inscrevem na roda da Eternidade.

Assistirmos, ora excitados, ora dormentes, ao trabalho do Outro que já executou mais vezes que nós, é um luxo no nosso exílio. Ver como o artesão cose, corta, cola, aperfeiçoa o objecto, o modo como refaz e suspende, confere-nos um conforto e uma segurança que aligeira a nossa tão portuguesa peregrinação silenciosa. Reconhecemos os impulsos, as dúvidas, a (in)continência da

linguagem ambulatória da imaginação que luta contra o autismo. Reforçamos as certezas de que fazemos parte de um tempo comum e de um não-tempo avesso às revoadas da moda.

Estar com Nekrosius é estar de visita a um sage que repete saberes a quem acredita que aprende com o exemplo. […] Enquanto se anda por lá, sente-se uma nostalgia por um teatro a preto e branco com um passado que não é o nosso, mas que nos marca fortemente. Um teatro feito de matéria orgânica e muita Memória. A mesma emoção que havia em Kantor, por exemplo, ou que sentimos diante de uma instalação de Beuys. Uma pobreza talhada por ourives-alquimistas, que nos devolvem o Mundo em estado bruto.•

* Excerto de “Estágio com o treinador”. [Texto escrito na sequência

do Seminário que reuniu à volta do encenador lituano sete

encenadores portugueses, realizado no TNSJ em Janeiro de 2003,

durante uma residência artística da companhia Meno Fortas que

culminou na apresentação de Metai, de Kristijonas Donelaitis.] Duas

Colunas: Notícias do Teatro Nacional São João. N.º 1 (Fev. 2003). p. 14.

Quando, passadas muitas horas, a porta se abriu e as pessoas entraram, encontraram o assassino sem sentidos e com sezões. O príncipe estivera sempre sentado ao lado dele, imóvel, na esteira, e, sempre que explodiam os gritos e os delírios do doente, passava-lhe suavemente a mão tremente pelo cabelo e pelas faces, a acarinhá-lo, a acalmá-lo. Mas já não compreendia nada do que lhe perguntavam e não reconhecia as pessoas que entravam e o rodeavam. Se o próprio Schneider, vindo da Suíça, ali tivesse aparecido para ver o seu antigo discípulo e paciente, lembrando-se do estado em que o encontrava às vezes no seu primeiro ano de tratamento na Suíça, levantaria a mão em desespero e diria, como naquela altura: “Idiota!”. Fiódor Dostoievski O Idiota. 5.ª ed. Trad. Nina Guerra, Filipe Guerra. Lisboa: Presença,

2009. p. 632.

Dostoievski veio, com as suas personagens, costumes e lugares, ocupar a memória de todos nós e até abrir as trevas dum espírito europeu demasiado confiante nas suas luzes. Agustina Bessa-LuísExcerto de “Dostoievski e a peste emocional”. Colóquio. Letras. N.º 61

(Maio 1981). p. 14.

Interpreto quase sempre o texto de forma livre. O autor está seguro: esteve na biblioteca muitos anos e vai permanecer lá outros tantos. Acho que não preciso de ter medo ou evitar interferir. Nós não mudamos o original, isso é impossível. O original está assegurado. Quando nós morrermos, o autor permanecerá vivo. Eimuntas NekrosiusExcerto de “Residencial Nekrosius”. Duas Colunas: Notícias do Teatro

Nacional São João. N.º 1 (Fev. 2003). p. 13.

“Um teatro feito de matéria orgânica e muita Memória”

Nuno Carinhas*

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Quando, no Dezembro de há doze anos, conhecemos Eimuntas Nekrosius, já o seu trabalho tinha atravessado a queda do muro (realidade fisicamente algo distante de Vilnius, mas simbolicamente presente e impositiva), com a correspondente clarificação estética e estratégica, e começava a conhecer uma clara afirmação internacional. Três Irmãs, um dos espectáculos que conferiram uma espessura muito particular à programação do primeiro PoNTI (1997), se revolveu em profundidade a nossa leitura desta obra-prima de Tchékhov, trouxe-nos ainda a revelação de um criador com uma linguagem singular, cujo resultado era uma espécie de hiper-realidade construída a partir do sonho. Aí começou um namoro muito particular entre os públicos do Porto e o trabalho deste lituano, de quem pudemos ver ainda Macbeth (1999) e Otelo (2001), duas estações da trilogia shakespeariana que se completaria com Hamlet, e ainda Metai (2003), um épico do clássico lituano K. Donelaitis que se apresentou em progresso no TNSJ como resultado de uma residência de criação.

De onde emerge esta relação privilegiada, que agora retomamos, de um criador aparentemente tão distante, que trabalha numa língua tão particular (o lituano, mais antigo que o sânscrito, é falado em todo o mundo por cerca de quatro milhões de pessoas), que constrói espectáculos que recusam a fórmula breve e sintética tão ao gosto contemporâneo, com os públicos de uma cidade como o Porto?

Se há pouco dizia que Três Irmãs alterou a nossa percepção das peças de Tchékhov, poderia talvez arriscar um pouco mais e afirmar que este espectáculo consolidou em nós uma outra ideia de Teatro.

Nekrosius procura, em cada novo trabalho, traduzir para cena a força especificamente teatral dos textos que aborda. Destes, retira sobretudo o “drama interior”, procura-lhes o “espírito” ou a “essência” com o objectivo de “revelar o que está escondido”.

Os espectáculos não se organizam em torno da “fidelidade ao autor” ou de uma leitura supostamente pura. O que interessa ao encenador não é a pureza filológica, não é a defesa dos clássicos (que, de resto, tal como afirmou no Seminário para encenadores que

orientou aqui no TNSJ em 2003, estão defendidos por natureza: a sua disponibilidade editorial, muitas das vezes em novas traduções que os vão tornando re-inteligíveis às sucessivas gerações de leitores, liberta os seus intérpretes para que possam afirmar uma visão particular). O que interessa a Nekrosius é encontrar uma chave de leitura, o ambiente inerente a cada texto, descobrir o que move aquelas personagens. De onde partem, quando a peça começa; onde chegam quando delas nos despedimos. A dramaturgia, essencial em Nekrosius, organiza-se então numa profunda leitura sígnica, simbólica e metafórica dos textos de partida, que os escava até ao osso e resulta muitas vezes num paradoxo aparente: uma redução significativa da massa textual, à qual corresponde uma superlativa amplificação de sentido.

Paralelamente, o trabalho com os actores desenvolve-se através de um método analógico e de improvisação que trabalha exaustivamente os “ambientes” de cada cena e a “psicologia” de cada personagem, sem contudo procurar qualquer forma de verismo ou, mesmo, verosimilhança. Toda a sentimentalidade é, aqui, transformada em pura teatralidade. Para tanto, é decisivo o trabalho de actores, cuja força vital parece ultrapassar o humano e elevar-se à condição do músculo feito poesia. Através de um trabalho complexo, no qual o entendimento radical do texto serve sobretudo como forma de entendimento das dinâmicas entre personagens, cada actor parece incorporar toda a verdade da matéria que trabalha e ser capaz de traduzi-la num relacionamento que tudo transforma em coreografia. No teatro de Nekrosius, até a palavra dança. Porque se tornou orgânica no corpo de cada um dos seus intérpretes. Porque lhes é íntima, dir-se-ia inventada por cada um deles.

Ao mesmo nível do texto e da sua linha poética, ao mesmo nível do trabalho dos actores e da sua poesia feita carne, encontramos o restante trabalho de construção cénica. A criação cenográfica, o desenho de uma partitura musical e sonora e a iluminação descendem da mesma preocupação dramatúrgica, nascem de um mesmo movimento de reconstrução do universo essencial para o qual o texto nos

Teatro de longo cursoJosé Luís Ferreira

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remete. Todos os experimentados espectadores portuenses de Nekrosius recordarão a força conferida pelos elementos cenográficos ao desenho de cada espectáculo. Normalmente, são elementos sintéticos, minimalistas, mas extremamente poderosos. Metáforas elementares construídas com materiais simples e nobres. A madeira, matéria teatral por excelência, aqui despida de qualquer intenção decorativista. A água, quase omnipresente, que serve tanto uma função simbólica primordial, significando o tempo e as suas marcas, como subitamente se transforma num literal banho de humildade que limpa os excessos de uma qualquer personagem e a remete à sua pureza essencial, como depois se transmuda em mais uma fonte de luz, reflectida, distorcida, indutora de um onirismo tão absolutamente real como perturbador das nossas certezas. Todos recordarão a importância estrutural da música que obsessivamente acompanha cada cena, não apenas transmitindo um ambiente, mas sobretudo criando uma textura que dá o tom a cada palavra dos actores, que lhes induz a utilização do cenário e dos importantíssimos adereços enquanto fonte sonora e elemento de reforço ou de perturbação da partitura.

O resultado é uma obra total, mas não fechada, onde o tempo (esse lugar dado ao espectador para que possa aproximar-se, distanciar-se, interpretar ele próprio o drama implícito) desempenha um papel essencial. Uma obra onde o jogo do acaso (visto como aquilo que não é predefinido e nasce antes da interacção livre dos elementos) é geneticamente primordial, mas onde tudo o que vemos surge perfeitamente inscrito numa narrativa hiper-realista, capaz de manobrar espaço e tempo, desdobrando-os, estendendo-os, contraindo-os, sintetizando-os.

Se a nossa experiência de Nekrosius nasceu sob a matriz de Tchékhov – esse lugar russo povoado de seres ordinários, pequenas pessoas cujos gestos vulgares alcançam a dimensão poética através da insatisfação, do sentimento sempre problemático de pertença –, prolongou-se depois com Shakespeare, esse demiurgo do Teatro em cuja obra encontramos, como em nenhuma outra, galerias infindáveis de personagens que parecem provindas de um torrencial maná mitogenético: todas mais humanas do que o humano, todas em sintonia (positiva ou negativa) com a história do mundo, todas pessoais, todas universais.

Vejamos agora o resultado do confronto com Dostoievski, romancista total, inventor do

existencialismo antes mesmo que este encontrasse o seu lugar no curso das ideias filosóficas. O Idiota, provavelmente o mais universal e mais humano dos seus romances, é um fresco onde se jogam, sem resposta, categorias infinitas: o bem, o belo, o mal, a queda, a razão ou o seu contrário, o amor, mas sobretudo a compaixão e a piedade. Míchkin, um paradoxal Quixote eslavo, é talvez a única personagem de natureza inteiramente positiva que o romancista nos legou. Move-se pela inteligência do coração, desarma todas as outras personagens ao ponto de as reconduzir a um estado outro de verdade. Porém, é um “idiota”: alguém incapaz de construir a necessária visão individual do mundo, alguém incapaz de produzir escolhas, sempre entregue a um desejo do bem de todos que acaba por produzir a contradição. Se Rogójin é como que um seu “negativo” do ponto de vista espiritual, Míchkin estabelece com ele uma profunda cumplicidade que os reunirá, no final, num estranho velório do amor e da compaixão. Se Aglaia e Nastássia são, ambas, belas e fascinantes, ambas vítimas do seu orgulho “satânico”, Míchkin procurará salvar as duas sem que chegue a saber distinguir a possibilidade do amor de uma outra coisa muito diferente: a piedade e o desejo de redenção.

O Idiota é um vasto romance contraditoriamente cheio de vida e de filosofia literária. Todas as situações dramáticas que dele emergem nascem de uma pesquisa de ordem moral que, no entanto, não descola do plano puramente intelectual, sem alguma vez encontrar as chaves especificamente humanas, que abririam a Míchkin a possibilidade relacional. É, portanto, um vastíssimo maná para Eimuntas Nekrosius. Um território ambíguo, cheio de possibilidades e escasso em verdades definitivas. Um campo de intensa subjectividade onde as paixões de cada personagem inflectem permanentemente o seu destino, num movimento avassalador, catastrófico (como na tragédia).

Os dados estão, assim, lançados: o Teatro, enquanto máquina de exploração dos “infinitos universos possíveis”, encontra aqui uma matéria cuja plasticidade corresponde quase idealmente ao melhor que a linguagem de Nekrosius nos pode transmitir. Torrentes de sentimentos que não conduzem a um lugar racional. A vida como um fluxo contínuo onde, de cada verdade, pode surgir a sua contradição. Bem-vindos ao Teatro de longo curso…•

Príncipe Lev Nikoláevitch MíchkinNina Gourfinkel*

Herói do romance de Dostoievski O Idiota (1868). Nessa figura, como em Ivan Karamazov – personagem do romance Os Irmãos Karamazov –, culmina o pensamento do autor. Dostoievski propusera-se criar “uma personagem inteiramente positiva, de uma natureza absolutamente bela”, como só uma pessoa conseguira ao longo da história, Cristo, e, no domínio da literatura, D. Quixote. Tendo imbuído a sua personagem de ambos, para evitar tanto o lado angélico como o lado ridículo, Dostoievski fez do protagonista um “idiota”. Pelo menos, Míchkin é idiota aos olhos dos seus congéneres, já que, no plano da realidade superior, ele possui a mais elevada inteligência que é a do coração. Dotado de um grau supremo de bondade, de pureza, de intuição, ele penetra as almas e o seu sofrimento; só o sofrimento possui, segundo ele, a virtude purificadora. Míchkin faz nascer a confiança; as pessoas que com ele entram em contacto desatam a sentir e falar verdade. Porém, a personagem paga esse encanto radioso, esse equilíbrio espiritual, com a sua deficiência física. Tem um rosto agradável mas incolor e cavado. Muito

loiro, usa uma leve barba pontiaguda. Há “no olhar atento e calmo dos seus grandes olhos azuis, algo de pesado e de estranho que denuncia o epiléptico”. Viveu toda a sua mocidade na Suíça, num estado de grande torpor e abatimento, sob a vigilância de um médico, e recuperou a razão junto de pessoas simples, num contexto natural de grande beleza. Não fez estudos e conserva os traços rústicos do brutamontes. A sua candura é desarmante. Quando, já curado, volta a transpor a fronteira russa, aos vinte e seis anos, diz para consigo: “Agora vou viver no meio dos homens”.

Todo o seu esforço tende para o exercício de uma bondade activa: quer tomar para si todo o sofrimento dos homens. Míchkin pertence completamente a Deus, característica que se identifica pela sua total ausência de orgulho. É de uma humildade absoluta, a ponto de ser impossível humilhá-lo, a ponto de ser confuso exprimir ideias elevadas, por temor de o comprometer perante a sua própria pessoa. Qualquer ser lhe parece mais precioso do que ele mesmo. Não ignora que toda a gente se debate com “pensamentos duplos”, embora

ele só conceba pensamentos unos. É talvez a única personagem dostoievskiana sobre a qual “o diabo” não tem mão e cuja pureza é integral e inatacável: será poupado às provas que esperam o outro “santo”, Aliocha Karamazov. Como este último, Míchkin é um ser próximo das crianças e dos fracos de espírito iluminados, e, também como ele, exprime as ideias do autor ao defender “o Cristo russo, gigante verídico e poderoso, sagaz e doce” contra “o Ocidente corrompido, católico e materialista”. Mesmo a sua epilepsia é apresentada como “o mal elevado” que lhe proporciona iluminações interiores, revelando assim o aspecto divino do seu “idiotismo”. Os seus traços mundanos confluem para o sentimento que nutre por Aglaia Epantchiná, sentimento que sacrifica por aquele que lhe inspira Nastássia Filíppovna. As duas mulheres são belas e fascinantes, ambas vítimas do seu “orgulho satânico”, e o príncipe gostaria de poder salvar as duas. Se por um lado está apaixonado por Aglaia, por outro está ligado a Nastássia por um sentimento de piedade motivado pelo seu infinito sofrimento, e a caridade será mais forte do que a paixão amorosa. Vai acompanhar a infeliz senhora que – e ele sabe disso – se deixará voluntariamente matar pelo bárbaro, violento e passional Rogójin. Para conjurar a fúria carnal desse homem, Míchkin oferece-lhe, em troca da dele, a cruz que usa ao peito, a fim de fazer da criatura “seu irmão”. Rogójin sente-o,

compreende-o, mas é incapaz de dominar a besta que em si mora. Apesar de amar Míchkin, levanta contra ele a sua faca, e o príncipe só é salvo por mero acaso. Rogójin mata Nastássia por ciúmes de Míchkin, dado que não consegue suportar que ela se sinta irresistivelmente atraída pela aura espiritual do príncipe, e porque não pode perdoar a este último que a caridade seja nele mais forte do que o amor. Na madrugada da noite sinistra, a polícia encontra os dois homens, ambos inconscientes, fraternalmente unidos junto ao cadáver de Nastássia. Míchkin passa suavemente a mão pelos cabelos e pelas faces de um Rogójin sacudido pela febre, como que para o afagar ou acalmar. O príncipe não consegue suportar a prova de habitar naquele mundo; vai acabar os seus dias na Suíça, definitivamente atolado no idiotismo.•

* “Lev Nikolaévitch Muichkine.” In Robert Laffont; Valentino

Bompiani, ed. – Dictionnaire des Personnages Littéraires et Dramatiques

de Tous les Temps et de Tous les Pays. Paris: Robert Laffont, D.L. 2003.

p. 688-689.

Trad. Regina Guimarães.

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Tudo isso – o exagero, a exaltação, a urgência – me parece definir Dostoievski. É o romancista da consciência inquieta, no exacto sentido do termo, isto é: projectada para além de si mesma, visando uma finalidade sempre inacessível, incapaz de satisfação e de repouso. “A minha natureza é demasiado apaixonada. Seja onde for e em tudo, vou até ao último limite.” Nestas palavras é o próprio Fiódor Dostoievski que se confessa, em carta ao seu amigo Maikov. Todos os seus heróis poderiam fazer a mesma confissão. Todos aspiram ao “extremo do possível”. A fórmula não é de Dostoievski: pertence a Georges Bataille. Mas exprime, melhor que qualquer outra, a ambição prometaica ou luciferina da consciência moderna, que, depois da “morte de Deus”, sentindo a vertigem do vazio espiritual, segue o seu impulso ou a sua propensão para tentar atingir as fronteiras da condição humana.

“Sou filho da descrença e da dúvida”, diz Dostoievski. Mas a dúvida, quando se apodera da alma russa, não a conduz ao positivismo ou ao cepticismo: abre um abismo que sente a necessidade de explorar, o que só pode conduzi-la ao niilismo ou ao misticismo. “O homem é um segredo; é preciso devassá-lo… É este segredo que me preocupa, porque quero ser um homem.” A obra romanesca do escritor tem por finalidade devassar esse segredo. Tal projecto, que permitiu finalmente a Dostoievski realizar-se, tomou o lugar de outro que o teria levado a perder-se – porque a rebusca do extremo do possível só pode conduzir à loucura. Em 1838, apenas com dezassete anos, o jovem Fiódor Dostoievski escreve a seu irmão Miguel: “Tenho um projecto: enlouquecer”. Nos seus romances descreve, de facto, homens e mulheres que enlouquecem e que são, como ele teria sido, cúmplices da sua loucura. Mas foi assim que ele pode exorcizar o seu próprio desejo de enlouquecer.

Em que medida Dostoievski é Stavroguine, Tíkone, e também Raskolnikov, Svidrigailov, Míchkin, Rogójin, Lebedev, Ivan, Dimitri, Aliocha, ou mesmo Nastássia Filíppovna? Mais do que em Flaubert, ao dizer “Madame Bovary sou eu”, penso em Fernando Pessoa, ao distribuir a sua visão do mundo por vários

heterónimos. Cada uma das grandes personagens de Dostoievski é muito mais (ou talvez algo completamente diferente) que um “carácter”, como no romance tradicional. Não é um simples intérprete do autor nem uma realidade psicológica objectiva, um ser em si. É uma voz que nos fala, uma consciência que se interroga e em que o mundo objectivo vem reflectir-se. Dostoievski abre caminho ao romance “problemático”, em que as personagens são interrogações feitas ao mundo e às quais só se pode responder com outras interrogações. Os seus heróis, disse Oscar Wilde, contêm em si o “eterno segredo da existência”.

Mas o que dá estrutura à obra do escritor não é a voz desta ou daquela personagem: é a verdade superior, de outra ordem, que nasce da sua confrontação e das suas reacções recíprocas. O crítico “formalista” russo Bakhtine acentuou, desde 1929, que a originalidade de Dostoievski é a de ter sido o primeiro a tornar o romance uma arte polifónica. Toda a arte do poeta consiste em fazer coexistir esses mundos espirituais diversos e levá-los a agir uns sobre os outros. Na verdade, é bem de poesia que se trata quando se atinge esse nível de criação romanesca em que a unidade se organiza em diversidade e a diversidade se resolve em unidade. Ainda hoje há críticos capazes de afirmar, como fazia E.M. de Vogüé há quase um século, que os romances de Dostoievski são confusos e mal construídos. Aplicaria antes a O Idiota ou a Os Irmãos Karamazov o que Blanchot afirma sobre A Morte de Virgílio, de Broch: se esta obra não nos diz onde está a unidade, “é simplesmente porque a configura em si mesma; enquanto poema, é essa esfera […] onde as forças da emoção e as certezas racionais, a forma e o conteúdo, […] se interpenetram”. E o conjunto dos romances de Dostoievski, se não apresenta a construção da obra de Proust nem a coesão da de Balzac, surge-nos hoje, a um século de distância, não como o caos que os nossos antecessores viram nele, mas como uma espécie de catedral harmoniosamente construída, embora complexa e inacabada.•

* Excertos de “Dostoievski e as ‘terríveis paixões humanas’”. Colóquio.

Letras. N.º 64 (Nov. 1981). p. 22.

“Tenho um projecto: enlouquecer”Robert Bréchon*

Apoios

Apoios à divulgação

Agradecimentos

Polícia de Segurança Pública

Pianos Rui Macedo, Unipessoal, Lda.

Castanheira & C.ª, Sucrs., Lda.

F ICHA Té CNICA TNSJ

relações internacionais José Luís Ferreira

assistente Joana Guimarães

coordenação de produção Maria João Teixeira

assistência de produção Maria do Céu Soares,

Mónica Rocha

direcção técnica Carlos Miguel Chaves

direcção de palco Rui Simão

direcção de cena Pedro Guimarães

assistência de direcção de cena Pedro Manana,

Ricardo Silva

luz Filipe Pinheiro, Abílio Vinhas,

José Carlos Cunha, Nuno Gonçalves

maquinaria de cena Filipe Silva, Adélio Pêra,

Joaquim Marques, Jorge Silva, Paulo Ferreira

som António Bica, João Oliveira

legendagem Cristina Carvalho

Teatro Nacional São João

Praça da Batalha

4000-102 Porto

T 22 340 19 00 | F 22 208 83 03

Teatro Carlos Alberto

Rua das Oliveiras, 43

4050-449 Porto

T 22 340 19 00 | F 22 339 50 69

Mosteiro de São Bento da Vitória

Rua de São Bento da Vitória

4050-543 Porto

T 22 340 19 00 | F 22 339 30 39

www.tnsj.pt

[email protected]

Edição Centro de Edições do TNSJ

Coordenação João Luís Pereira

Documentação Paula Braga

Design gráfico João Faria, João Guedes

Fotografia Dmitri Matvejev

Impressão LiderGraf, AG

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante

o espectáculo. O uso de telemóveis, pagers ou relógios

com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes

como para os espectadores.

C