identidade, política e rios do alto-amazonas: o pano … · da cabanagem, efetivando-se com a ......

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1 Identidade, política e rios do Alto-Amazonas: o pano de boca de Chrispim do Amaral no Teatro Amazonas SÁVIO LUIS STOCO O objetivo desta apresentação é abordar a constituição do discurso sobre um marco natural que fica próximo a Manaus e passou a ser relacionado a esta capital de maneira rente, a partir da circulação de representações por meio de uma série de obras, sobretudo visuais, desde meados do século XIX - sedimentando-se principalmente no final deste século mencionado. Este marco natural é o encontro dos rios Negro e Solimões, lugar que posteriormente, passou a ser inserido no imaginário turístico, ativo até hoje, motivando a produção de outras tantas imagens, práticas diversas, mobilizando um público amplo aspecto este que não iremos nos deter. Minha reflexão inicia-se com a pesquisa sobre uma imagem pictórica que tematiza este marco natural e que considero central no fortalecimento deste discurso, por conta do local privilegiado em que foi instalada. Refiro-me a um dos dois panos de boca 1 do Teatro Amazonas (1896), aquele que propõe uma representação para o encontro das águas dos dois rios, colocando-os em lugar de destaque na sala de espetáculos deste monumento manauense que fez as vezes de “palácio da cidade”, “centro da vida social e política da capital” (DAOU, 2007:65). Isto por conta da importância de encontros cívicos, saraus e banquetes, além das noites de espetáculos líricos que esta casa abrigou nos últimos anos do XIX e primeira década do XX 2 . Doutorando pelo programa de pós-graduação Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas - FAPEAM. 1 O outro se trata da representação de um planejamento ( rideaux) aos moldes dos produzidos pelo cenógrafo francês Eugéne Carpezat (1836-1912), ao qual se atribui a produção dos panos de boca do Teatro Amazonas (ou pelo menos um deles). Portanto, aparentemente não esboçaria relações com a iconografia amazônica, meu objetivo no presente texto. 2 Mário Ypiranga Monteiro (1966) que pesquisou sobre o Teatro Amazonas e sua programação considera que o “apogeu” desta casa vai até 1908. De 1909 a 1937 ele fala em “decadência”.

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Identidade, política e rios do Alto-Amazonas: o pano de boca de Chrispim do

Amaral no Teatro Amazonas

SÁVIO LUIS STOCO

O objetivo desta apresentação é abordar a constituição do discurso sobre um marco

natural que fica próximo a Manaus e passou a ser relacionado a esta capital de maneira

rente, a partir da circulação de representações por meio de uma série de obras, sobretudo

visuais, desde meados do século XIX - sedimentando-se principalmente no final deste

século mencionado. Este marco natural é o encontro dos rios Negro e Solimões, lugar

que posteriormente, passou a ser inserido no imaginário turístico, ativo até hoje,

motivando a produção de outras tantas imagens, práticas diversas, mobilizando um

público amplo – aspecto este que não iremos nos deter.

Minha reflexão inicia-se com a pesquisa sobre uma imagem pictórica que tematiza

este marco natural e que considero central no fortalecimento deste discurso, por conta

do local privilegiado em que foi instalada. Refiro-me a um dos dois panos de boca1 do

Teatro Amazonas (1896), aquele que propõe uma representação para o encontro das

águas dos dois rios, colocando-os em lugar de destaque na sala de espetáculos deste

monumento manauense que fez as vezes de “palácio da cidade”, “centro da vida social e

política da capital” (DAOU, 2007:65). Isto por conta da importância de encontros

cívicos, saraus e banquetes, além das noites de espetáculos líricos que esta casa abrigou

nos últimos anos do XIX e primeira década do XX2.

Doutorando pelo programa de pós-graduação Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP, bolsista da

Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas - FAPEAM. 1 O outro se trata da representação de um planejamento (rideaux) aos moldes dos produzidos pelo

cenógrafo francês Eugéne Carpezat (1836-1912), ao qual se atribui a produção dos panos de boca do

Teatro Amazonas (ou pelo menos um deles). Portanto, aparentemente não esboçaria relações com a

iconografia amazônica, meu objetivo no presente texto. 2 Mário Ypiranga Monteiro (1966) que pesquisou sobre o Teatro Amazonas e sua programação considera

que o “apogeu” desta casa vai até 1908. De 1909 a 1937 ele fala em “decadência”.

2

O fato de raramente esta imagem - que é a maior e aparentemente mais elaborada

pintura de temática amazônica no TA - ter sido abordada pela historiografia3 é

instigante. Talvez uma razão para esta omissão seja a falta de documentação

diretamente relacionada a sua feitura. Não restaram esboços e tão pouco o contrato

efetuado pelo governo com o seu produtor. O que haveria sido explicitado pelo

financiador, quando lembramos que o contrato do salão nobre desta casa de espetáculos

(inaugurado em 1901) solicitou motivos regionais4 para as pinturas parietais? A falta

documental certamente obscurece questões sobre o pano de boca, mas nem ela em si

responderia a todas as questões satisfatoriamente, conforme acontece com o caso deste

mesmo salão mencionado sobre os quais restaram os esboços, o contrato chegou a ser

publicado em diário oficial, mas é necessário outro tipo de esforço e

interdisciplinariedade para que se levantem hipóteses e passemos a compreender estas

imagens5. E também esta falta não impediria outras metodologias de abordagem, mais

investigativas e inquietas, conforme noções atuais de uma História Visual e da Cultura

Visual6, como a que iremos trabalhar aqui. Almejo então uma análise estética e histórica

ampliada, atento à constituição de discursos visuais na história da arte com foco nas

razões operantes na sociedade que a engendrou.

Paisagem e mitologia

O pano de boca atribuído a Chrispim do Amaral (1858-1911) é uma alegoria

geograficamente demarcada, de cerca de 10,5m x 6,4m. E este artista, atuou como

músico, cenógrafo, caricaturista e decorador; nascido no Recife, onde estudou com

Leon Chapelin, em sua juventude radica-se em Belém, passando posteriormente por

3 Ana Maria Daou (2007), por exemplo, faz importantes análises das pinturas parietais do salão nobre do

Teatro Amazonas, mas menciona apenas em nota que o pano de boca também “tematiza a natureza”,

razão para aprofundar a série de pinturas daquele outro ambiente do prédio. Um dos maiores avanços na

pesquisa sobre o pano de boca está no TCC (2015) e no relatório de IC (2014) de Raúl Gustavo Brasil

Falcón, orientado por Luciane Páscoa na Universidade Estado do Amazonas. Eles trabalharam com a

hipótese desta pintura se referir à ópera Jara (estreia, 1895), do paraense José Cândido da Gama Malcher

(1853-1921), cujo libreto é baseado na lenda indígena transcrita pelo etnólogo e fotógrafo Ermanno

Stradelli (1852-1926). 4 MONTEIRO (1966), DERENJI (1996: 69) e VALLADARES (1974). 5 Uma análise histórica e social destas pinturas pode ser encontrada em DAOU (2007). 6 Ver MENEZES (2003).

3

Roma, onde esteve ligado à Academia de San Luca, Paris, onde consta ter trabalhado na

Comedie Française e nos primeiros anos do século XX estabelece-se no Rio de Janeiro

(DERENJI, 1996: 64).

A imagem enquadra o ponto de encontro dos dois rios em “Y” (Figura 1). A ilha

que os separa está ocupada por uma alta vegetação luxuriante que ocupa a quase

completude da metade superior do espaço, sem mostrar céu algum. Aliás, o espaço

celeste parece ser a própria mata que domina todo o alto da imagem e é o fundo no qual

um ser alado voa segurando o brasão da república, uma trombeta e uma coroa de louros,

aparentemente. Lembremos com isso que o Teatro Amazonas foi inaugurado, sem ter

sido completamente terminado, no dia 31 de dezembro de 1896 possibilitando que o

governador republicano Eduardo Ribeiro, participasse da cerimônia; nome este pintado

no arco do palco do teatro.

4

Figura 1. Pano de boca do Teatro Amazonas, atribuído a Chrispim do Amaral. O nome de Eduardo

Ribeiro está no retângulo azulado, no arco do palco. Crédito fotográfico: SEC/Roumen Koynov.

Ainda vemos duas ovais ornamentadas, com inscrições de nomes dos dois cursos

d’água dispostas lateralmente sobre uma moldura dourada e bastante elaborada, tendo

animais e plantas repousados; moldura onde também lemos em sua parte inferior, em

destaque, o nome “Amazonas” pintada como que em uma placa dourada

destacadamente. Pela convenção geográfica este rio inicia-se naquele ponto indo até a

foz no oceano Atlântico e o encontro destes dois cursos d’água foi determinante para

fundação ali próximo do núcleo que viria a ser a cidade de Manaus7. Desta maneira falar

7 Ver o capítulo O fazer da cidade: da cidade da conquista à cidade conquistada em DAOU (2014).

5

deste marco natural é falar da capital onde se situa o teatro, cidade do outro lado da

“fronteira”8 do rio Amazonas com relação a Belém.

Ainda na pintura, habitando a metade inferior, dedicada às águas (estas que não

estão representadas realisticamente pelo negro e pela cor barrenta que as caracterizam),

na frente da ilha, estão três figuras emergindo. São dois homens na água e uma náiade

repousando em uma concha.

Inclinado e “descriptivo”

Investigando os discursos amazônicos relacionados à história do estado do

Amazonas, destaca-se o Diccionario topográfico, histórico, descriptivo da comarca do

Alto-Amazonas (1852) do escritor e capitão-tenente da Armada Nacional9 Lourenço da

Silva Araújo e Amazonas (1803-1864), nascido na Bahia. Um livro que se notabiliza ao

longo dos anos e no final do século XIX constituindo-se como uma das obras mais

referenciadas pela intelectualidade do estado em questão. Em parte, talvez, pela

proeminência do autor, que em 1857 é aceito pelo IGHB10 na categoria “sócio

correspondente”11, após lançar seu segundo livro: um romance indigenista que se passa

no rio Negro12.

Mas poderíamos considerar também a proeminência do Diccionario e seu autor

por serem contemporâneos ao período de emancipação do Amazonas, após separar-se

administrativamente do Pará – fato cujo anúncio pelo Império se dá em 1850, com o fim

da Cabanagem, efetivando-se com a lei de criação da província publicada em 1852, mas

um processo que iniciou décadas antes, com uma revolta em 1832. Portanto, uma

independência não-repentina, anunciada. Friso isso, pois estou considerando a produção

8 Para esta noção de fronteira, ver A Fronteira na História da Arte, de CASTELNUOVO (2006). Neste, o

autor considera um rio como uma fronteira no caso de duas cidades ligadas e que mantém relações por

meio deste. 9 Armada Nacional era o nome da Marinha de Guerra do Brasil no período monárquico. 10 O IHGB foi uma “instituição criadora e polarizadora do discurso historiográfico no Império do Brasil”,

segundo KODAMA (2010). 11 De acordo publicação no Correio Mercantil (1857). 12 Simá: romance histórico do Alto-Amazonas, publicado em 1857. Ver sobre a obra o trabalho de Neide

Gondin (1996), Simá, Beiradão e Galvez, imperador do Acre (ficção e história).

6

do livro a contar a década de 1840, quando há registros de que o autor começa a

frequentar a região por conta de seu trabalho na Armada Nacional. Ou seja, ele esteve

presente e envolto naquele momento, culminando e praticamente coincidindo a

publicação do seu primeiro livro com a separação em 1852, como mencionado.

Não somente a coincidência com este ano de criação da província, mas pela

menção direta a este fato em algumas passagens que opinam sobre as mudanças e

diferenças políticas, podemos dizer que acessamos a inclinação do autor pelo ponto de

vista amazonense. Ele explica porque usou no título do seu livro o termo “comarca do

Alto-Amazonas”, ao invés de “província do Amazonas”, afirmando ter como objetivo

contribuir com a melhoria das condições naquele território – aliás, deixa entender que

este era o objetivo geral do livro:

Esta obra, como se depreende de sua leitura, já se achava prompta, com o

fito de fazer conhecer o paiz13, e assim demonstrar a coveniencia de sua

actual predicamento. Realisado este antes da publicação, fora com efeito mui

fácil agora trocar as guardas, e escrever – Provincia – onde tem – Comarca

-. Se convirá que o tratar de hum paiz montado, como ainda não está, se

ressentiria de insipidez; além do quanto perderia a obra de sua

originalidade e interesse, deixando de descreve-lo, como fora prévio

proposito. (AMAZONAS, 1852:5)

Ainda sobre como Araújo e Amazonas toma parte do lado amazonense, quando

ele fala dos relatos históricos, critica a maneira como o historiador e administrador

colonial português Bernardo Pereira de Berredo e Castro, no século XVIII, se referiu à

história da capitania do Alto Amazonas no referenciado livro Annaes históricos do

estado do Maranhão: em que se dá noticia do seu descobrimento, e tudo o mais que

nele tem sucedido desde o ano em que foi descoberto até o de 1718, cuja primeira

edição é de 1749:

Da indiferença que tem sempre havido por esta importante parte do Imperio,

nada acompanha tão de perto seu ressentimento, como a sua historia. Nada

escripto se acha positivamente a seu respeito; apenas em Berredo alguma

cousa se depara, quando intima relação lhe assiste com alguma occurrencia

do Pará; como bem expressa Sampaio a respeito da descoberta do Rio

Negro.

13 Ele usa “paiz” no sentido de “território”. E em todas citações, mantive a escrita encontrada nas obras.

7

“O Analysta do Pará (Berredo) não nos disse nada neste particular, assim

como omittio muitas noticias interessantes d’esta Capitania, que lhe fora

fácil averiguar no tempo em que escreveu”14 (AMAZONAS, 1852:225)

Em nosso percurso de estudo sobre o pano de boca do Teatro Amazonas, é no

decorrer deste Diccionario, contextualizado pelo processo de independência

amazonense, que chama atenção o verbete “Confluencia”. Pelo assunto anunciado,

poderíamos imaginar que o autor tivesse como propósito somente explicar o que é o

encontro de dois rios de maneira geral. Mas o texto se excede, deixando ver o

posicionamento político do livro, pois hierarquiza os principais encontros de rios da

região, chamando atenção para o marco próximo à Manaus, a nova capital. Desde o

primeiro parágrafo o autor mostra o teor das suas intenções, que permanecem centradas

na junção do Solimões com o Negro deste ponto (em negrito, a seguir), até o final do

verbete, por mais de quatro páginas:

Confluencia: Lugar onde dous rios se reúnem. Esta definição soffre ainda

alteração, segundo a proporção e disposição de cada hum. Hum rio de

pouco cabedal, que se encorpora a outro caudaloso, longe de confluir,

afflue, e assim também se considera a reunião de dous rios de igual volume;

mas dos quaes hum se dirija sobre o outro perpendicularmente, sem que este

por simiIhante affluencia altere a direcção de seu curso. Por exemplo, os

pequenos rios Comatiá, Camadú, e, por sua disproporção com o Solimões,

encorporando-se-lhe, apenas affluem nelle. Os caudalosos também, como

Purús, Juruá e Jutahi, não obstante sua grandeza, affluem; porque, correndo

sobre elle perpendicularmente, isto he, de S. (sul) a N. (norte), não alterão

sua direcção de O. (oeste) a E. (leste). O que tudo a menor comparação

guarda com a reunião do Amazonas15 e Rio Negro. (AMAZONAS,

1852:93-94)

A semelhança na descrição textual do autor com a que vemos no pano de boca é

trazida ao verbete no momento em que ele, de certa forma, sai de um registro mais

14 Este trecho continua da seguinte maneira: “Depois d’elle ocioso he recorrer a mais alguém, pois que

todos os escriptores do Pará a ele se referem. Baena, mesmo em nossos dias, esqueceu completamente o

Rio Negro em suas eras da Provincia do Pará, e mui de lastimar na minuciosa descripção que deu dos

acontecimentos d’essa Cidade, por accasião da independência, quando também na Comarca não erão as

occurrencias destituídas de importância.” (AMAZONAS, 1852:225-226) 15 “O rio Solimões é o nome dado a parte do rio Amazonas entre a confluencia com o rio Negro e a

fronteira com Tabatinga” (AMAZONAS, 1852:331).

8

informativo presente nas primeiras linhas, para dali em diante dedicar-se à que

considerou de notável e sensível na “Grande confluencia”, ao apresentar o que ele

chama de seu “manuscripto”16, colocando este grande trecho entre aspas. A partir deste

momento ele muda de tom, exalta e romantiza a natureza que vê, trazendo o apelo

visual que daria ao leitor a sensação de estar frente àquele marco natural, tal como

podemos compreender pelo esforço de sua descrição. Com a linguagem figurada

empregada, o autor chega até a trazer ao leitor termos associados diretamente à pintura:

“A quem considera a descomunal quantidade de agoa, que se reúne nesta

confluência, parecerá que para effeito de tão grande phenomeno, tenha a

natureza disposto huma paysagem de caracter correspondente. Nada tão

verdade; mas bem differente do que cria a imaginação, que excitada até o

enthusiasmo, pelo grandioso que ha concebido, delinea hum quadro todo

seu, emprestando-lhe todo o pittoresco e poético de que he capaz17”

(AMAZONAS, 1852:95).

Indo mais ao detalhe da descrição de Araújo e Amazonas para a confluência dos

dois rios, iremos nos dedicar aos elementos a partir da qual nos motivaram a

trabalharmos com a hipótese de terem sido transplantados para a imagem pintada no

pano de boca do Teatro Amazonas. Comecemos pela menção à tríade de personagens

principais, mencionados anteriormente, centralizados na imagem. A figura feminina,

possivelmente uma náiade, deitada numa concha que habita o encontro das águas, teria

sua correspondência sugerida pelos detalhes mencionados no texto, principalmente pela

menção às flores e proximidade com a ilha que separa os dois cursos d’água:

“A margem austral he tão baixa e alagada como a ilha que os separa:

apenas a septentrional he huma colina calçada de lages; mas de hum aspecto

tão suave e risonho que as arvores que a decorão, ao clarão da lua em huma

noite serena, se dirião antes as Naiades do rio, sahidas a gozar os perfumes

das flores, que em suas brandas azas trazem as auras da noite: tudo quanto

16 Ele se refere da seguinte maneira: “refiramo-nos para a sua descripção a hum trecho do nosso

manuscripto”. (AMAZONAS, 1852: 94). Esta passagem possivelmente segue um ‘modelo humboldtiano’

em que se mesclam estilos literários e a noção de “quadros da natureza”, mas também poderíamos pensar

na matriz científica do IHGB, instituição que tinha no naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von

Martius (1794-1868), discípulo de Humboldt, uma das suas principais referências em meados do XIX e

também citado por Araújo e Amazonas. Sobre o ‘modelo humboldtiano’ temos: “Nas ‘fisionomias’

retratadas, o registro minudente e atento às sensações provocadas no espectador estão no centro dos

procedimentos em que caberia à arte – seja a descrição literária refinada, seja a representação pictórica –

promover a experiência estética que seria também parte do fazer científico (DAOU, 2007:56). 17 Grifo meu.

9

póde haver de grande e horroroso dispôz a natureza debaixo da agoa, pela

profundidade que proporcionou aos rios assim na confluência, como em sua

proximidade”. (AMAZONAS, 1852:96)

E sobre as duas figuras masculinas, mesmo que tenham seguido os parâmetros

dos tritões clássicos18, parecem se conectar à sugestão sobressaída da noção de

“gigantes das agoas” que no texto são responsáveis pela movimentação e luta daquele

cenário - mesmo que esta parte atenda à maneira imaginária como o autor inicia seu

“manuscripto” para depois desmentir esta descrição que havia exibido, falando em

alturas dos penhascos rochosos e o vórtices d´água: “Entretanto, tudo he bem pelo

contrario” (AMAZONAS, 1852:95). Mesmo assim, ao sabor dos recursos literários

mais subjetivos do autor, penso que os gigantes das águas do Solimões e do Negro se

aproximariam da ideia de “deuses-rio” presente na mitologia grega; figuras estas

representadas por touros, serpentes ou homens com caudas de peixe – como aparentam

ter os dois homens mergulhados da cintura para baixo19. Desta forma, os elementos

presentes na imagem textual grandiosa e violenta oferecida e depois anulada pelo autor

no lugar de uma mais suavizada, seria retrabalhada e misturada na imagem pintada no

pano de boca:

“Delinea ordinariamente hum promontório pedragoso, ingreme, elevado,

coroado de basto arvoredo, de aspecto tão assombroso que o apuro importe

da natureza em sua mais selvática e magestosa ostentação, para servir como

de antemural entre os dous grandes rios: altos cachopos ainda, de

configuração bisarra, dispõe em sua proximidade, que os fundamentos lhe

reforcem, batidos de continuo pelo impeto das agoas: margens engastadas

de rochedos, que as contenhão, e as fúrias lhes abatão na lucta horrenda de

sua pesmistão: de montes colossaes, picos alcantilados, em nuvens sempre

envoltos, as povoa, como gigantes da terra concorrendo ao conflicto dos

gigantes das agoas: ondas, ou antes moles de agoa, quaes de denegrida,

quaes de exalviçada côr, que em direcções diversas se agitão, arremessão,

recuão, fogem e em rápido vórtice parecem sumir-se (hórrido abysmo por si

mesmo urdido), e logo acima tornando com vigor insólito impellidas, os

cachopos e as margens debatendo, perenne nevoeiro nos ares entretém”.

(AMAZONAS, 1892:95)

.

18 Nomenclaturas utilizadas na análise iconográfica de FALCÓN (2015). 19 A observação sobre a disposição das duas figuras masculinas, a esconder suas pernas ou caudas, estão

em FALCÓN (2015).

10

Podemos dizer que a relação do texto de Araújo Amazonas com a imagem

atribuída a Chrispim do Amaral é no sentido de uma adaptação pictórica, passando da

dinâmica forma de um texto de inspiração “hunboldtiana” com uma descrição natural

romântica para uma pintura, imagem estática de referências clássicas. Mas mesmo

assim parece-me rente a intertextualidade. É razoável imaginar a necessidade de

algumas modificações de elementos e pontos de vista a que o texto nos coloca a ver a

cena: indica aspectos a serem observados na margem sul, depois na margem norte,

saltando para a ilha divisória dos rios ou mesmo indica os céus, o barulho, a superfície

ou a profundeza das águas. No caso da pintura, pareceu necessário selecionar e

congregar a riqueza de elementos sugeridos pelo texto e optar por um único ponto de

vista, estático, mas tão diverso quanto possível como o texto resultando no efeito

propício para uma casa de óperas como o Teatro Amazonas.

“Topographico”

O aspecto topográfico, ou melhor, cartográfico presente no pano de boca é aproximável do

texto de Araújo e Amazonas de forma mais direta considerando alguns elementos da natureza,

como a ilha, a floresta e as águas dos rios; e em outros mais hipotéticos, como no caso da

moldura ornamental, mas a meu ver não menos propenso à investigação e relação com

elementos encontrados nos mapas – elementos importantes na iconografia daquele período

mundialmente e contando com farto repertório amazônico, já que a região atraia diversas

nacionalidades. Ambos os casos estariam relacionados com as disciplinas artísticas as quais

Chrispim do Amaral ministrava em Belém: paisagem e ornamento20; além de sua época ser

marcada pelos relatos de viagem e a busca por cartografar e descrever o mundo, como dito.

Sobre a descrição promovida pelo autor no decorrer do seu “manuscripto” no verbete

“confluência”, temos primeiro a já mencionada imagem idealizada da paisagem, localizada

acima de uma margem rochosa, íngreme, alta: “coroado de basto arvoredo, de aspecto tão

assombroso que o apuro importe da natureza em sua mais selvática e magestosa

ostentação, para servir como de antemural entre os dous grandes rios” (AMAZONAS,

20 A República (1892) menciona que em 1892 Chrispim do Amaral foi nomeado para a cadeira de

desenho de paysagem e ornatos na escola normal. Provavelmente, trata-se do curso no Liceu Paraense,

pois a Escola Normal da Província do Grão-Pará havia sido extinta em 1885 e o curso anexado ao Liceu.

11

1852:95). Mas mesmo quando ele desmente esta imagem dramática para refazer sua

paisagem tal como a percebia, não retira a noção de um conjunto de vegetação: “divide

os rios huma ilha tão rasa, que só o arvoredo tem fora da agoa”.

Então, assim como trabalhado no caso das figuras humanas, temos no pano de boca

uma fusão da vista declaradamente fantasiosa com a da mais realística, digamos assim.

Percebemos a ilha rasa ao meio, mas também por conta da altura que se eleva do meio

até o topo da pintura verticalizada, temos a sensação daquela vegetação ter atendido à

descrição fantasiosa: “em sua mais selvática e majestosa ostentação, para servir como

de antemural entre os dous grandes rios”. Reforça esta noção um pequenino elemento

(se comparado com o tamanho das três figuras em primeiro plano) que vemos ao lado

direito, descendo o rio Negro: um grupo de índios em uma canoa. Ao lado da floresta,

eles são tão diminutos, conformando a dramaticidade daquele cenário.

Sobre os ornamentos encontrados, sobretudo na moldura, no repertório iconográfico

amazônico, encontramos um frontispício de uma publicação (Figura 3), datada de 1756, que

sugere uma mesma maneira de destacar a grandeza a centralidade do rio Amazonas para a

região, destacando-o numa moldura além de incluir equanimemente três principais afluentes da

região do Baixo-Amazonas e três do Alto-Amazonas, incluindo o rio Negro. Também é

importante mencionar a moldura ornamental, adornada com flores, dentre outros elementos,

incluindo no alto o brasão do império português - como que no lugar do brasão republicano

avistado no pano de boca. As disposições e arranjos neste documento podem ter servido de

fonte para Chrispim do Amaral, numa sociedade como a da elite que buscava se referenciar

tanto em imagens exteriores, como as de referências europeia presentes no Teatro Amazonas,

como elaborar uma auto-imagem preocupada com a história oficial que os delimitavam.

12

Figura 2. Frontispício da Collecçam dos prospectos das aldeas, e lugares mais notaveis que se acham

em o mapa que tiraram os engenheiros de expediçam principiando da cidade do Pará the a aldea de

Mariua no Rio-Negro, onde se acha o arrayal, alem dos prospectos de outras tres ultimas aldeas

chamadas Camarâ, Bararuâ, Dari; situadas no mesmo rio (1756). Vemos o rio Amazonas ao centro,

jorrando suas águas e dividindo os rios do território do Baixo-Amazonas (à esquerda): Tocantins, Xingú

e Tapajós, assim como os do Alto-Amazonas (à direita): Madeira, Negro e Branco.

A exemplo disso, além do caso do discurso encontrado no livro de Araújo e Amazonas,

temos também a encomenda pelo governo estadual de dois importantes monumentos exteriores

que irão recobrar fatos políticos e econômicos do Amazonas. Falo do Monumento de Abertura

dos Portos (do rio Amazonas ao comércio mundial), localizado na praça São Sebastião, em

frente ao Teatro Amazonas, referindo-se ao fato ocorrido em 1866. Além do monumento a

Tenreiro Aranha (1798-1861), primeiro presidente da província do Amazonas cujo cargo foi

ocupado de janeiro a junho de 1852. Os artistas envolvidos na criação destas peças são os

13

mesmo que decoraram parte do interior do Teatro Amazonas: ambos foram produzidos pelo

escultor italiano Enrico Quattrini, mas sob contrato firmado com o Amazonas pelo

afamado pintor Domenico de Angelis, que trabalhou na decoração do salão nobre do

TA.

Conclusão

Concentramos-nos na hipótese de intertextualidade entre o Diccionário de Lourenço

da Silva Araújo e Amazonas e o pano de boca do Teatro Amazonas atribuído a

Chrispim do Amaral. Contudo, no final do século XIX e início do XX outras obras

significativas ajudaram a sedimentar esta paisagem na cultura amazonense e

posteriormente no imaginário brasileiro e internacional.

Entre estas, refiro-me aos escudos municipal21 e estadual22 (figuras 3 e 4) que vão

incorporar a confluência dos rios Solimões e Negro em suas representações. Em 1907 o

poeta cearense José Quintino da Cunha (1875-1943), que residia em Manaus, lança o

livro Pelo Solimões: versos norte-brasileiros e que contém o seu texto mais célebre:

Encontro das águas – um poema que foi ensinado nos colégios mais tradicionais de

Manaus até pelo menos meados do século XX. Em 1943, uma crônica do escritor

Álvaro Maia completaria a nossa série que busca perseguir a sedimentação do “encontro

21 O escudo municipal foi criado em 1906 e conta com a seguinte descrição: “A peça é encimada por um

sol, sobre o qual se vê a data: 21 de novembro de 1889, alusiva a adesão da proclamação da Republica,

pela antiga província do Amazonas. Tres secções o dividem; duas representando o encontro das aguas dos

rios Solimões e Negro, dous pequenos bergantins antigos, ou o descobrimento da foz do segundo rio pela

expedição Orellana, em meiados do século XVI; e a terceira a fundação definitiva de Manáos em

princípios do século XVIII. Numa fortaleza vê-se hasteada uma bandeira que significa o domínio então

portuguez; do lado oposto estão palhoças representativas dos fundamentos da cidade; duas alegorias ás

pazes celebradas entre os índios e a metrópole pelo casamento da filha do Cacique com o comandante da

escolta militar portuguesa. Na secção maior divisa-se um trecho do rio, tendo em relevo, na frente, uma

arvores symbolica da natureza agrícola e industrial da região, que tornou Manaós o grande empório da

syphonia elástica.”. (Escudo municipal, 1906). 22 Desconheço a data de criação do escudo estadual, mas ele conta com a seguinte descrição: “(...) é

encimado por uma águia sob a qual fica um sol. Abaixo, uma oval, de fundo verde e amarelo, a qual

encerra os braços dos rios Negro e Solimões, no ponto de encontro com o Amazonas, apparecendo a ilha

de Marapatá. Um barrete phrygio é colocado entro o sol e os braços dos rios citados. Na parte

diametralmente oposta á guia prende-se uma ancora em que se enlaça uma fita, cujas extremidades

descançam sobre a artística moldura do escudo, vendo-se ainda, de um e de outro lado, emblemas do

commercio, indústria, artes etc.” (Instituto Benjamin Constant, 1906).

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dos rios” até quando adentra o imaginário turístico do Amazonas, como mencionamos

no início. “Há poucos anos, nenhum viajante deveria sair do Amazonas sem ver uma

seringueira. Era uma das obrigações para contar lá fora, como é, atualmente, ver um jacaré, um

lago de vitória-régia, ou o encontro das águas perto de Marapatá” (MAIA, 1943).

Figuras 3 e 4. Escudos do Amazonas e de Manaus (criado em 1906), respectivamente. Ambos destacam

em seu desenho o encontro dos rios Negro e Solimões, marco natural que tornou-se símbolo do Alto-

Amazonas pela auto-imagem criada pela elite política e comercial amazonense, sediada em Manaus.

O elemento que foi demarcado na principal obra literária que demarca as

diferenças com relação ao estado do Pará, o Diccionario de Araújo e Amazonas, vai

depois ser “relido” no final do XIX pelos artistas que alguns anos antes haviam

decorado monumentos importantes em Belém. Chrispim redecora o Theatro da Paz e

assina seu novo pano de boca (1891), De Angelis trabalha na catedral e Quattrini

esculpe o monumento ao frei Caetano Brandão. Mas quando são contratados pelo

governo do Amazonas essa tríade das artes tem que dar conta da auto-imagem que a

elite comercial em expansão pretendia ver formando sua nova identidade.

Finalizo contextualizando que esta investigação integra o esforço de traçar uma

genealogia dos discursos visuais amazônicos que constituem a tradição ao qual o

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cineasta português Silvino Santos (1886-1970) se depara, radicado em Manaus, no

período da criação de seus principais projetos fílmicos em longa-metragem: Amazonas,

maior rio do mundo (1918-1920), No Paiz das Amazonas (1920-1922) e No rastro do

Eldorado (1924-1925). Estes discursos fílmicos, além de terem tematizado Manaus e

seus principais monumentos, como o Teatro Amazonas, suas praças, mas

principalmente se propunham a exaltar a natureza abordando o comércio regional. Para

isso contaram com financiamento de capitais governamentais e/ou de comerciantes,

alguns envolvidos na política do final do XIX, como o principal deles, J. G. Araújo,

cuja fundação da primeira empresa data de 1877.

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Descritivo do Alto Amazonas. Recife: Typographia Commercial de Meira Enriques,

1852.

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Escudo municipal. Manaus, Jornal do Commercio, 19 de abril de 1906.

Instituto Benjamin Constant. Manaus, Jornal do Commercio, p. 2. 15 de setembro de

1906.

MAIA, Álvaro. Ressenseamento de seringueiras. Manaus, Jornal do Comércio, p.6, 07

de março de 1943.

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p.1. 18 de setembro de 1857.

Repartições públicas. Belém, A República, ano III, n° 633, p.2, 27 de abril de 1892.

SCHWEBEL, Joan Andre. Collecçam dos prospectos das aldeas, e lugares mais

notaveis que se acham em o mapa que tiraram os engenheiros de expediçam

principiando da cidade do Pará the a aldea de Mariua no Rio-Negro, onde se acha o

arrayal, alem dos prospectos de outras tres ultimas aldeas chamadas Camarâ,

Bararuâ, Dari; situadas no mesmo rio. Para, 1756.

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