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o I aI ort

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o I aIort

SOMMARIO

PagoEditoriale

ARCHEOLOGIA

Adilia Alarcão - Poesia e pedagogia de Conimbriga...................... 9RaITaele De Marinis - L'uomo dei Similaun 1;,}Gianfranco Purpura - Archeologia subacquea in Sicilia.

L' itinerario archeologico di Ustica ed altre testimonianze ;J.'jFrancisco Alves - Storie di navi fantasma 47

ARTE

Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara - Um processode italianização em Portugal: os desenhos dos"Galli-Bibiena" 6:3

LETTERATURA

Maria da Conceição Vilhena - Açores-Itália. Uma cartaao poeta T. Cannizzaro sobre Antero de Quental 79

Arlindo José Castanho - Leonardo Sciascia, Una Storia semplice:una lettura............. 91

POLlTICA

Ari tide Canepa - Alcune considerazioni su Presidentedelta Repubblica e indirizzo politico in Italia e Portogallo...... 10.;

STORIA

Paolo Emilio Taviani - Il mito di Colombo al di là dellepolemiche.................................................................................... 149

TEATRO

f{lta Marnoto - A Mandragola e o seu duplo J ()~)

CElEBRAZIONI GOlDONIANE

Nicola M '. c .Má' V' a.n~ - arlo Goldoni nel bicentenario della morte '" ...

n~ .Ielra e Carvalho - Goldoni e os modelos de comunicaçãomUSlco-teatral no século XVIII

Carrnelo Alberti - Il segreto di un r;.~ffi··~·ld··I··n··o····L···;:t··"·········:··d···:·····A t . S. . I tnerario I

n omo acco, comlCo sapiente, da Venezia a LI' bnell'età di Goldoni s ona

•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• •••••• •• 0.00.0

CONTRIBUTI

Vittorio Placella - Metáforas-Aeroporto :::::::::::::::::::: .

Aldo G. B. Rossi - Quattro poesie lusitan~·· ··..· ·· ··· ..·..··..·.....................................

Invito alia lettura..........................................................

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EDITORIALE

Dando continuità ad un'iniziatioaeditoriale che ha già superato lasoglia del mezzo secolo, questonumero di Estudos Italianos emPortugal si propone ancora una voltacome tribuna per quanti, studiosiitaliani e portoghesi, si interessanoai legami culturali da secoli esistentifra i due Paesi.

Negli anni a cui questo numero siriferisce si sono celebrate dateimportanti, quali il 5.!! Centenariodella Scoperta dell 'America ed ilBicentenario della Morte del grandegenio che fu Carlo Goldoni, la cuiopera e patrimonio non soltantoitaliano, ma di tutta l'umanità. Adentrambe le ricorrenze enaturalmente dedica to uno spazio.

Presenti anche i testi di gran partedelle conferenze che hanno dato vitaal ciclo "Archeologia Emozionale",frutto di una profícua collaborazionetra l'Istituto Italiano di Cultura inPortogallo e il Museo Nazionale diArcheologia di Lisbona.

Fra gli altri contributi che

completano questo numero, e ehe aecendono nuova lueesu svariati aspetti delle relazioni fra le due culture, eipiaee proporre all'atterizione dei lettori anehe due voeioriginal i, ehe riassumono simbolicamente in sé questoprofondo lega me. Si tratta di Aldo G. B. Rossi, poetagenovese, che ha composto versi ispirati dalla terralusitana, e di Vittorio Plaeella, medico, serittore epoeta, che ha scelto di serivere parte della sua operadirettamente in lingua portoghese.

In un momento in cui tutto appare sconvolto dadolorose situazioni eontingenti, ma non si abbandonala speranza di nuovi equilibri, vogliamo cosi dartestimonianza di quanto la cultura eostituisea un forteelemento su cui far leva per abbattere barriere e creareun 'Europa effettivamente unita.

Amalia Furletti

por Rita Marnoto

A MANDRAGOLA E O SEU DUPLO

Enquanto arte do duplo, o teatro éalquimia, metafísica da linguagem, dosgestos, das atitudes, da música e doscenários, qual apelo a forças que colo-cam o homem perante a origem dosseus conflitos, susceptível de ser coloca-do em paralelo com a peste negra:

Si le théâtre essentiel est comme lapeste, ce n'est pas parce qu'il est contagieux,mais parce que comme la peste il est larévélation, la mise en avant, la poussée versI'extérieur d'un fond de cruauté latente parlequel se localisent sur un individu ou sur unpeuple toutes les possibilités perverses deI'esprit.

(A.AJtaud, 1964,p. 37)

A sim define Antonin Artaud aessência da representação, num célebrelivro cuja primeira edição remonta a1933, Le théâtre et son double.

Numa época, como a do Renas-cimento, em que a apreensão e o conhe-cimento do mundo circundante assen-tam num processo cognitivo que tem porbase um princípio de analogia, a acti-vidade teatral, nas suas mai variadas

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formas e implicações, não pode deixar de ocupar um lugarprivilegiado, enquanto arte do duplo em que a diferençaentre a cena e o que para além dela fica é sanada pela seme-lhança que se estabelece entre esses dois planos - que édizer, é sanada pela ilusão.

No contexto do teatro quinhentista italiano, a Mandrago-la, escrita por Niccolõ Machiavelli em 1518, ocupa, porém,uma posição muito particular. Se, por um lado, ela é obra dosecretário da chancelaria, adido da magistratura dos "Diecidi Liberta e di Pace", que acabara de ser deposto pela restau-ração mediceia, por outro lado são muito profundas as raizesque ligam o seu texto ao tecido cultural florentino.

Derrubado o governo da república, em 1512, Machiavelli éfeito prisioneiro, e depois exilado em San Casciano. O ócioforçado oferece-lhe, assim, a oportunidade de concretizarvários dos projectos literários que há muito vinha maturando.Mas se a sua intensa e sagaz actividade diplomática dele fi-zera um exímio conhecedor da arte da representação e da dis-simulação, o interesse que manifesta pelo universo do teatro,enquanto homem de letras, não é facto ocasional (Russo,1957, capo "Machiavelli uomo di teatro e narratore"). Aindamuito jovem, traduz a Andria de Terêncio, e compõe umapeça, hoje perdida, intitulada Le maschere, que se supõeinspirada em Aristófanes. Em 1525, escreverá ainda umaoutra comédia, intitulada Clizia. Mas, para além disso, o seutalento dramático deixa marcas indeléveis em toda a suaobra. No Dialogo intorno alla nostra lingua, põe em cena opróprio Dante; o tratado Dell'arte della guerra, por sua vez, éescrito em diálogo; e muitas das suas cartas e dos seusescritos menores são autênticos guiões cénicos.

Florença é uma das cidades italianas onde encontramos,em data mais ancestral, associações de laicos que organi-zam pequenas representações, as companhias dos laudesi,que entoam cantos em louvor da Virgem. Quando Lorenzo

de' Mediei assume o governo, logo se apercebe do prestígioque o florescimento das artes e da filosofia poderá oferecer àsua cidade. Ao tempo do Magnífico, Florença chega a ser arampa de lançamento de um projecto de hegemonia cultural

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em relação ao resto da Itália, e reúne condições excepcionaispara isso, pois a sua riqueza cultural de modo algum é infe-rior ao seu poderio económico (Dionisotti, 1984). O primadodo florentino em relação aos restantes dialectos é legitimadopelo nome dos três maiores escritores das letras italianas,Dante, Petrarca e Boccaccio, que, no século XlV, o haviameleito língua literária. Lorenzo, poeta ele mesmo, abre-se ainfluências muito diversas, que se traduzem no apoio quefornece, enquanto governante, quer a uma instituição deíndole tão erudita como a Academia neoplatónica, quer a todoo tipo de jogos e tradições populares, com relevo para as trêsgrandes festas da cidade, Carnaval, Calendas de Maio e S.João. Neste contexto, a arte dramática ocupa um lugar privi-legiado (Mamone, 1981). A participação em representaçõesdramatizadas traveja verticalmente os vários grupos sociais,coaglomerando elementos antropológicos de proveniênciamuito diversificada, pelo que se oferece como factor nãosecundário de sedimentação da unidade da pólis.

É a partir destes pressupostos que melhor poderemosentender o lugar que, na Mandragola, fica reservado à ilusãocénica. De facto, a simulação pode ser considerada o grandemotivo desta peça, onde tudo gira em torno de enganos, dis-farces e df arte do ser e do parecer. I d-

De acordo com as convenções de género, a comédiarena centista abre-se com um prólogo onde são apresentadasas personagens em cena e onde fica contido um pequenoresumo da acção, ou é feita alusão às fontes manejadas. Doprólogo da Mandragola resulta valorizado, logo 'à partida, oobjectivo de estabelecer uma relação directa com o público aonível pragmático, com base no ver e, muito especialmente, noouvir:

Idio vi salvi, berrigni auditori,quando e' par che dependaquesta benignità da lo e ser grato.Sei voi segui te di non far romori,noi vogliàn che 'intendaun nuovo caso in questa terra nato.

/'"

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Vedete I'apparato,qu aI or vi si dimostra:quest' e Firenze vostra,un' altra volta sarà Roma o Pisa,cosa da smascellarsi deJle risa.QueIJo uscio, che mi e qui in suIJa man ritta,la casa e d' un dottore,che imparõ in ul Buezio legge assai;quella via, che e colà in quel canto fitta,e la via deIJo Amore,dove chi casca non si rizza mai;conoscer poi potraia I'abito d'un fratequal priore o abateabita el tempio che ali' incontro e posto,se di qui non ti parti troppo tosto.Un giovane, CaJlimaco Guadagno,venuto or da Parigi,abita là, in queJla sinistra porta.(Mandragola Prf/Jogo, pp. 69-70)

o vivo apelo aos "benigni auditori" vai de par com umaforma muito particular de apresentar as personagens, cujaindividualidade ganha consistência em função do lugar quelhes é reservado no enquadramento cénico - um "uscio suliaman ritta", "quella via in queI canto fitta", "el tem pio cheall'incontro e posto","quella sinistra porta", e um Doutor, ospercalços de amor, um frade, e um jovem acabado de chegar deParis. Ao escolher para pano de fundo da Mandragola umespaço público, o secretário florentino celebra a cidade e apraça, que se tomara, ao seu tempo, significante privilegiado deuma dinâmica urbana operosa e intensa, pois tempo é dinheiro.

A chamada de atenção para aquilo que se ouve faz-se umsó com o convite a que o público aprecie aquilo que vê, o"apparato", ou seja, os cenários. De facto, ouvir é ver em per-spectiva. Se aquela que se presume ter sido a primeira repre-sentação desta comédia, em 1518, se encontra associada aum evento da vida pública florentina dotado da maior

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importância, as bodas de Lorenzo de' Mediei junior com Mar-guerite de la Tour d'Auvergne, a encenação de 1525, em casade Bernardino Giordano al canto di Monteloro, com cenáriosde artistas tão famosos como Bastiano da Sangallo e Andreadei Sarto, marca um passo decisivo no âmbito da entrada dacidade para o teatro.

A associação do espectáculo teatral a eventos relacionadoscom a vida pública de há muito oferecia ensejo às grandesfamílias de se fazerem, também elas, com a sua presença,espectáculo de magnanimidade. Mas quando, a partir dosalvores do século XVI, a solução conferida aos problemas defiguração esp eial deixa de ser equaeionada a partir da adap-tação da cena à estrutura real da cidade, e os própriosespaços públicos são integrados no seu seio através de repre-sentações icónicas, perspécticas ou em volumetria, as vanta-gens propagandísticas que podem decorrer de tal projecçãosimbólica fazem-se evidentes - como se fossem a opulênciada cidade e o prestígio do seu governo a subirem à cena.

Daí que Giulio Ferroni, ao estudar o teatro de corte qui-nhentista, destaque a "continuità e sostituibilità" que seestabelece entre os espaços da cidade e do teatro (Ferroni,1980, p. 9). É em função de tal efeito de integração que,segundo este crítico, poderemos entender o espectáculoteatral como proposta de encontro e de sobreposição celebra-tiva das diversas formas e dos múltiplos instrumentos dacena cortesã.

Mas se o convite para que o espectador ouça e veja o quese vai passar é uma constante ao longo de todo o texto dacomédia, o ver, o falar, e o ouvir são atitudes que se revestemde uma função fundamental no âmbito do modo de acordocom o qual se desenrola a acção representada. A sua evoluçãoprocessa-se a partir de um complot entre o dizer, o ouvir e oolhar. A dinâmica da peça muito deve, aliás, aos sucessivosrelatos em discurso indirecto do que foi feito e do que foi dito,e à sucessivas reacções em cadeia de certas personagens,quando interpeladas por outras. Callimaco enamora-se deLucrezia apenas por ouvir louvar a sua beleza e os seus cos-tumes, e é tão intenso o desejo de a ver, que abandona todos

óL

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os seus negócios em Paris, para regressar subitamente à Flo-rença que tinha deixado ainda criança (Mandragola I 1). Estecomerciante granjeia a confiança do seu marido utilizandouma linguagem pomposa, e falando latim. Mas o grandemestre da arte da persuasão através da palavra é Ligurio. Éele quem fornece a Callimaco todas as instruções acerca dasua actuação, quem persuade Nicia a consultar o médico porque esse se faz passar, e o leva a fingir que é surdo quandomais lhe convém, quem suscita o apoio da mãe de Lucrezia, equem convence Fra' Timoteo a colaborar na tramóia.

Da integração dramatizada, conjunta e global, de váriasartes e técnicas resulta uma aparência múltipla, corroboradapelos efeitos decorrentes da cliversificação dos pontos de fuga,o que nada tem a ver, acrescente-se, com aquilo que, aotempo de Artaud, se chamava o teatro total, enquanto síntesede todos os meios de acção directa utilizados. No teatrorenascentista, a pluralidade tem por sucedâneo uma maisnítida afirmação do significado único e absoluto da abstractaessência cénica da corte, qual centro que absorve em sime mo qualquer mecanismo particular, ainda que divergenteou desorgânico (Ferroni, 1980, p. 9). Os efeitos perspécticoque, na Mandragola, se geram entre o ver e o falar, criamuma grande variedade de pontos de vista, que se erige emfonte de cómico decerto não secundária, mas que é exploradaa partir da não coincidência do seu alcance.

Cada um do momentos da peça, ou cada gesto e cadatirada dos seus protagoni tas, adquire um significado dife-rente, em consonância com o horizonte da personagem porquem é interpretado. O ridículo disfarce usado por Nicia, nanoite da batalha nocturna, é pormenorizada mente descritopor Ligurio (Mandragola IV 7) aquando da sua entrada emcena, mas entre esse momento e o eu encontro com a briga-da que o espera é incluído um pequeno monólogo tMandrago-la IV 8), onde ele mesmo descreve a sua figura, com umavaidade e um orgulho próprio que a sua actuação des-mentem. O ver projecta-se no contar, e o contar desdobra-sesobre i me mo, em consonância com a voz que conta, Ligurioou Nicia. Um outro exemplo é o do epi ódio que e lhe egue,

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e ninguém vê, o encontro dos amantes, descrito em duas ver-sões, a de Nicia tMandragola V 2) - escutada e comentadapor Fra' Timoteo (Mandragola V 1 e 3) -, e a de Callimaco(Mandragola V 5), cada um dos quais conta a Ligurio (e tam-bém a Siro, no caso de V 2) a sua versão dos factos, em doisrelato diferente como água do vinho.

H ~Mas também ao nível ~ei;~literário o modo como muitos .,dos grandes temas abordado são tratados decorre da inter-secção de elementos de proveniência sígnica muita diversa,quando não contraditória. Sirva-nos de exemplo o tema doamor, perspectivado sob ângulos claramente clivergentes, ecom recurso a códigos literários muito dí pare .

o intermezzo cantado no fim do terceiro acto, fica contidauma de montagem bastante explícita do amor espiritualiza-do:

Si suave e I'ingannoaI fin condotto imaginato e caro,ch'altrui poglia d'affarmo,e dolce face ogni gustato arnaro. O rirnedio alto e raro,tu mostri il dritto calle all'alme erranti;tu, col tuo gran valore,nel far beato altrui, fai riccoAmore;tu vinci, sol co' tuoi consigli santi,pietre, veneni e incanti.(Mandragola, Canzone dopo il terzo atto, p. 103)

e te pequeno poema, é celebrado o engano do qual sepodem tirar proveitos, e exaltado o reméclio que conduz ao"dritto calle", que é expressão dantesca. Mas se tal caminhonada tem a ver com as via através das quais, para Dante, seproces ava a dignificação do género humano, também o con-traponto entre doçura e amargura nada tem a ver com aintersecção de contrários que, em Petrarca, ustentava oaprofundamento da dimensão existencial do sentimentoamoroso. O uso de adjectivos como "suave" e "dolce", numtexto onde ão louvado o efeitos beatificantes de amor, bemcomo os seu con elhos santos, remete, de um modo muito

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claro, para o formulário e para a base conceptual da poesiastilnovista, que foi cultivada, na Itália do século XIII, emárea centro-setentrional, para depois ser recuperada peloQuattrocento mediceio, e pelo próprio Lorenzo poeta. As viasque, na Mandragola, conduzem ao "dritto calle" são as doembuste, preparado com uma perfidia que em muito supera ados ardis descritos em várias novelas do Decameron cujamemória textual vai aflorando ao longo da peça. A verdadeirasolução passa por um enganoso recurso à feitiçaria que nadadeve aos bons costumes. Também as artes mágicas não ficamimpunes, pela fácil cobertura que oferecem às artimanhas deLigurio. Este facto reveste-se de um significado muito parti-cular, em virtude das estritas relações que se estabelecementre ciências ocultas e neoplatonismo. Machiavelli encontra-

-se mais próximo da Antiguidade romana, feita força eambição de dominio imperial, do que da dimensão humanistado helenismo. Neste sentido, é o autor do elogio do burro,contido no poema inacabado que se intitula L'asino, e dosCanti carnascialeschi, postos na boca de diabos que descem àterra para governar o mundo, ou o perscrutador dos mean-dros da intimidade humana que, no décimo oitavo capítulo deIl Principe, observa que o bom governante deve saber ser ani-mal e homem, a subir ao proscénio.

O desdobramento das formas de percepção a que o textofaz apelo, entre o ver e o ouvir, a multiplicação dos pontos devista à luz dos quais é perspectivada a acção, em consonânciacom as vozes das personagens em cena, e o recurso a códigosliterários de índole muito diversificada, conforme foram sin-

/ ~ teticamente analisados, corroboram os efeitos de ilusão céni-ca que dominam a Mandragola. Se este processo reentra nascaracterísticas genéricas do teatro da época, Machiavelli vaimais longe, ao tematizar, de uma forma incisiva e directa, ojogo da ilusão, associando-o à perfidia e ao engano.

Neste sentido, a trama da Mandragola resume-se a umenorme e divertido simulacro. Tudo gira em torno dos enganosque permitirão ao próspero comerciante Callimaco Guadagnoentrar na intimidade de Lucrezia, a jovem e bela esposa deMesser icia. Para isso, o astuto Ligurio, tirando partido da

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grande vontade que o casal tem de ter filhos, dissuade o velhoadvogado de seguir o conselho dos vários fisicos que o aconse-lham a ir para as termas, levando-o a consultar o médicoacabado de chegar de Paris por que Callimaco se faz passar.Convencido de que este ministrará à sua mulher uma bebe-ragem de mandrágora que resolverá o problema de esterili-dade, Nicia empenha-se na resolução dos subsequentes pro-blemas, que são convencer a sua mulher a passar a noiteseguinte com outro homem, que ele acredita credulamenteque puxará para si toda a infecção e depois morrerá, e pensarcomo encontrar a vítima, ao passo que aqueles que fingemajudá-lo preparam o embuste que permitirá a Callimacofazer-se pa sar pelo garzonaccio fortuitamente escolhido.Para convencer Lucrezia a passar a noite com um outrohomem, Ligurio serve-se da devassidão da sua mãe, e utilizaas suas melhores artes retóricas para trazer Fra' Timoteo àsua causa, nos magníficos diálogos do terceiro acto. Fingimen-to e corrupção são, como se vê, ingredientes que não escas-seiam.

A colaboração nesta estratégia exige, pois, que as váriaspersonagens que nela se encontram implicadas entrem numconstante jogo de máscaras. O episódio da batalha nocturnamostra-se, a este propósito, um dos mais significativosmomentos da comédia, conforme já o mostrou Ferroni (Fer-roni, 1980, pp 49-53). Todos os intervenientes em cena seencontram disfarçados. Callimaco faz-se passar por vagabun-do, e Fra' Timoteo, por Callimaco. Siro, Ligurio e Nicia mas-caram-se de agressores. Mas tanto o disfarce do frade como ode Callimaco são disfarçes de disfarces. Timoteo finge ser oagressor de que e disfarça Callimaco. O verdadeiro Callima-co, por sua vez, faz-se passar por médico, e, além disso, porgarzonaccio. Se tivermos em linha de conta que o disfarce deTimoteo se implanta sobre o de Callimaco, ojogo de má carasganha um alcance vertiginoso.

No quarto acto da Mandragola, todas as personagenestão mascaradas, a começar pelo próprio Nicia, o grandeenganado, que, além de ser o único que desconhece que abatida nocturna é uma encenação que só ele toma por ver-

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dadeira, é também o único a acreditar na identidade Callima-co - médico - Timoteo, e a ignorar a identidade entre o gar-zonaccio e Callimaco. O disfarce leva até ao ponto culminanteo jogo de perspectivas que tinha vindo a tomar forma aolongo da peça. Põem-no em relevo as atitudes contraditóriasde Nicia, que embebecido pela beleza da sua figura, se imagi-na um valentão, e toma o comando das operações, apesar deestremecer perante o menor sinal de perigo.

Quando o homem do poder põe em cena uma estratégia depoder, vai mais longe do que os homens de teatro que lhe sãocontemporâneos, pela lucidez com que monta a arte do duplo,fazendo subir à cena, e expondo claramente aos olhos dopúblico, todo o jogo de paixões que domina a cena, e todos osenganos que vão sendo urdidos. Neste âmbito, Machiavellicontraria a essência do espectáculo de corte, na medida emque representa situações donde o negativo não é excluído,mas apresentado como parte integrante do humano. Não é sóao nível literário que se verificam desvios em relação aoscódigos dominantes na época. Também a exemplaridade éticae cultural dos princípios em função dos quais se processa aevolução da intriga muito deixa a desejar. Os próprios meiosde persuasão utilizados tocam assuntos tabu, tais como amanipulação de raiz de mandrágora, uma das mais suspeitasplantas utilizadas na bruxaria, ou o aborto de que se fala naquarta cena do terceiro acto e o concubinato de Callimaco,ambos corroborados pelo frade. A relutância de Machiavelliem aceitar subordinar-se a uma medida comum é simboliza-da, aliás, pelo uso de palavras que transcendem o sistemalinguístico padrão, tais como o badalucco anunciado no prólo-go da comédia (Mandragola, p.70), que estará por spasso, oupor passatempo.

No episódio que serve de desfecho à peça, vem à tona, deforma caricatural, quanto de eticamente reprovável fica con-tido no comportamento das personagens, minadas por inte-resses corruptos e malévolos. Apesar disso, todos os interve-nientes experimentam a maior das felicidades. Lucrezia eCallimaco, porque podem dar largas ao amor que os une, eque vivem intensamente, à margem de todas as possíveis

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interdições. Sostrata, por ter levado a filha a perder o pudor.Fra' Timoteo, por ganhar mais uma alma, e pelas esmolasque irá receber. Ligurio e Siro, pela vitória estratégica e portodos os proveitos materiais daí advindos. Mas mais feliz doque todos parece Nicia - que é, afinal, o grande burlado -,por ter a certeza de que será pai do menino que tão ardente-mente deseja. Este quadro de harmonia é conseguido, pois,não através da exterminação de vícios, mas, pelo contrário, apartir da manipulação da carga negativa contida no ilusóriojogo de simulacros representado - a saber, a desenfreadaintensidade das paixões, a ingenuidade do letrado, os inte-resses materialescos, ou o oportunismo videirinho.

Apesar de tudo, os valores institucionais permanecemincólumes. A solidez do casamento de Lucrezia parece atéreforçada, e todos se dirigem à Igreja para ouvir o ofício daslaudes. Neste sentido, as personagens que o secretário flo-rentino põe em cena mostram-se mais distanciadas dohomem total preconizado por Artaud no manifesto Le théãtreet sa cruauté, do que do homem social cujo perfil cénicorecusa - "soumis aux lois et déformé par les religions et lespréceptes" (Artaud, 1964, p. 147). A"purificação" a que estecrítico tão frequentemente alude, enquanto sucedâneo doduplo, carece de sentido em Machiavelli.

Ao desfecho canónico da comédia clássica (e também devários tipos de novela) com uma cerimónia nupcial, corre-sponde, na Mandragola, um ritual iniciático (Vanossi, 1970,pp. 56-57), simbolizado pela hora matutina, ao qual algumaspersonagens fazem directa alusão:

Nicia.l. ..l perché gli C próprio, stamani, come e tu rinascessitMandragola, p.122l

Frate.] ...J che Dio vi dia a fare un bel figliuolo mastio!(Mandragola, p.123l

Frate: E voi, madonna Sostrata, avete, secondo che mi pare,messo un talo in sul vecchio.

tMandragola, p.124l

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o ritual celebrado por este grupo de laudesi, quando colo-cado em paralelo com a arte do duplo, tal comoArtaud a perf- /pectiva, não redime o "negro" da peste - exibe-o.

Desta feita, mantém-se a dualidade já patente no inter-mezzo inicial, no qual ninfas e pastores entoam, em ambienteidílico, um canto dedicado aos prazeres e aos enganos davida:

perché la vita e brievee molte son le peneche vivendo e stentando ognun sostiene;dietro alle nostre voglie,andiam passando e consumando gli anni,ché cru il piacer si toglieper viver coo angosce e con affanni,non conosce gli ingannidei mondo; o da quai mal ie da che strani casioppressi quasi - sian tutti i mortali.Per fuggir questa noia,eletta solitaria vita abbiamo,e sempre in festa e in gioiagiovin' leggiadri e liete infe stiamo.Or qui venuti siamocon la nostra armonia,sol per onorar questasí lieta festa - e dolce compagnia.Ancor ci ha qui conduttiil nome di colui che vi governa,in cui si veggon tuttii beni accolti in la sembianza eterna.Per tal grazia superna,per sí felice stato,potete lieti stare,godere e ringraziare - che ve lo ha dato.(Mandragola Canzone, p. 69)

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Mas, como diz este coro de ninfas e pastores, as alegrias eos enganos representados têm por objectivo honrar a perso-nalidade do Senhor que promove o espectáculo (que não im-porta, para o caso, saber a que entidade civil concreta corres-ponda; cf.Mandragola, p. 69, nota).

Considerada sob este prisma a Mandragola recuperatoda a sua especificidade enquanto espectáculo de corte, namedida em que a celebração do Senhor a quem é dedicada ésusceptível de ser colocada em paralelo com a apoteose daestratégia de poder nela contida. Em ambos os casos a multi-plicidade dos pontos de fuga é colocada ao serviço de umamais nítida afirmação do significado único, absoluto e aprio-rístico, que corresponde, segundo Ferroni, à abstracta essên-cia cénica da corte. Desta feita, gera-se um círculo viciosoentre o teatro, cidade e corte, fruto do qual à especificidadeque é característica de cada um destes espaços se sobrepõe ovalor de uma aparência niveladora. Nomear um espaço éconstrui-lo como cena, e transformá-lo em técnica cénica,inserindo-o numa permutabilidade fictícia. Daqui resulta anatureza simulatória da cena cortesã, que, "indifferente adogni possibile sostanza deI contenuto, si impone in quantocostruttrice di forme innumerevoli che rimandano tutte aduna sostanza che non c'é" (Ferroni, 1980, p. 11) - tal como amandrágora, símbolo de todo o ardil, é a planta mágica que,na realidade, dele se encontra ausente. a verdade, a erva deque tanto se fala, e que dá o nome à peça, nunca chega a sermanipulada.

Assim e compreende o apelo a que o leitor ouça e veja,porque toda a comédia é um falar e um ouvir falar acerca dealgo que só existe na retórica das palavras. A personagemcuja linguagem se encontra mais apegada ao real, e cujaprofissão tem a ver com o uso ilocutório da palavra, Nicia, é,afinal o grande enganado, ao pa so que Callimaco, o falsomédico que fala latim, Ligurio, o intriguista capaz de seadaptar a todo o tipo de situações, e o frade, exímio emencontrar sentenças e conselhos bons para todas as ocasiões,são os beneficiados (Vanossi, 1970).

Pôr em cena a vacuidade dos artifícios do poder, junta-

182 MANDRAGOLA

mente com quanto de llegalJ\u U sustcntu, mio deixaria de semostrar, todavia, uma atitude suspeita aos olhos do Príncipe,o único que mantém uma perspectiva de exterioridade emrelação ao espectáculo de corte. Mas neste ponto é a figura doencenador que resulta valorizada, que é dizer do exímio co-nhecedor da arte da manipulação de todos os vicios que é ofuncionário no desemprego que compôs a Mandragola, "Perfuggir questa noia", conforme diz na canção inicial.

REFERÊNCIAS BffiLIOGRÁFICAS

ARTAUD, A. (1964) - Le théâtre et son double, Oeuvrescompletes, t. IV, Paris, Gallimard

DIONISOTTI, C. (1984) - Geografia e storia della Lette-ratura Italiana, Torino, Einaudi.

FERRONI, G. (1980) - Il testo e la scena. Saggi sul teatrodel Cinquecento, Roma, Bulzoni

MACHIA VELLI, N. - Mandragola. Clizia, presentazionedi E. Raimondi, commento di G.M. Anselmi, Milano, Mursia,6.~ ed. 1984

MAMONE, S. (1981) - Il teatro nella Firenze medicea,Milano, Mursia, nuova edizione aggiornata.,

RUSSO, L. (1957) - Machiavelli, Bari, Laterza.VANOSSI, L. (1970) - "Situazione e sviluppo deI teatro

machiavelliano'', in L.V. et alii, Lingua e strutture del teatroitaliano del Rinascimento. Machiaoelli, Ruzzante, Aretino,Guarini, Commedia dell'arte, Padova, Liviana (Quaderni delcircolo filologico linguístico padovano, 2).

Nota sobre a tradução e encenação da Mandragola em Portugal:

Existem três traduções portuguesas da Mandragola, uma deGino Saviotti (Cosmos), outra de Carmen González (Estampa), e umaLerceira de Alexandre O'Neill, que nunca foi editada. Se para os com-piladores dos índices da Inquisição Machiavelli é um autor maldito, aComissão de censura respondeu pela negativa aos vário pedido deautorização da sua representação que a seu tempo lhe foram dirigi-

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dos. Foi necessário esperar pelo ano de 1976 para a ver subir aos pal-cos, com o grupo Os cómicos, encenada por Ricardo Pais, na magnífi-ca tradução de O'Neill. Esta mesma versão de Ricardo Pais datradução de O'Neill foi novamente posta em cena em 1992, peloTeatro de Portalegre, e em 1993, pela Escola da noite, com encenaçãotambém de Ricardo Pais.