i kuma - s3-eu-west-1.amazonaws.comkuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-da cidade dos...

6
F EVEREIRO DE 2012 I KUMA? 1 F ANZINE DE P UBLICAÇÃO I NCERTA • A NO I • N. 1 F EVEREIRO 2012 E DIÇÃO AFL & M C MARS TABASKI! I K UMA ? Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens

Upload: truongthuan

Post on 20-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: I KUMA - s3-eu-west-1.amazonaws.comKuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que

FEVEREIRO DE 2012 I KUMA? 1

FANZINE DE PUBLICAÇÃO INCERTA • ANO I • N. 1 FEVEREIRO 2012 EDIÇÃO AFL & MC MARS

TABASKI!

I KUMA?

Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens

Page 2: I KUMA - s3-eu-west-1.amazonaws.comKuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que

FEVEREIRO DE 2012 I KUMA? 2

TABASKI!

A seguir ao Ramadão, o Tabaski é a festa mais importante para os muçulmanos. Celebra-

se no 10º dia do 12º mês do calendário islâmico e organiza-se em torno da Hada (conselho familiar), da Fanata (obrigação) e da Suna (conselho comunitário).

Em 2011, coube ao dia 7 de Novembro esta reunião.

Cada núcleo familiar vai ao encontro da obrigação de não se esquecer do momento em que o profeta Muhammad em Meca, a cidade dos anjos, professa o seu amor incondicional por Deus:

pede a paz por e para os homens, segundo o ritual de sacrifício do profeta Abraão. Um homem que teria sido capaz de sacrificar o que tinha de mais caro - o seu único filho - para obedecer ao seu Senhor. Mas o Senhor só o queria pôr à prova, e desde então o cordeiro é sacri-

Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens

ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que ainda não se conseguem dar.

Na casa de Issuf e de Sónia, somos acolhidos como se fizés-

semos parte da família, porque de facto o somos. Chegamos e convidam-nos a tirar os sapatos, e a pôr-nos confortáveis. Às 10 horas dará início a reza que reu-nirá os fiéis muçulmanos que

não puderam encontrar-se com os seus irmãos em Meca, a cida-de sagrada. A celebração será feita ao ar livre, no bairro de São Vicente de Paulo, na cidade de Bissau.

O animal é trazido e passo a passo entregue. Não há desejo de o fazer sofrer

Page 3: I KUMA - s3-eu-west-1.amazonaws.comKuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que

FEVEREIRO DE 2012 I KUMA? 3

Da Guiné-Bissau partiram em 2011 cerca de 300 guineenses para Meca, em grande parte cus-teados pela igreja muçulmana local e por apoios a esta. Num país onde as religiões coabitam pacificamente, a convivência entre os diferentes credos é ain-da uma agradável surpresa.

Já são quase 10 horas e é momento de nos purificarmos para a reza. Lavamos a mão direita, a mão esquerda. Segue-se a boca, o nariz, o rosto, a cabeça, as orelhas, o pescoço. Prosseguimos com o braço direi-to, o braço esquerdo, o pé direi-to, o pé esquerdo. Há que partir, mas preparados.

As pessoas coloridas em linho e seda, vestidas a rigor para este momento de festa, cruzam-se e cumprimentam-se pelo caminho, cientes da importância dos pas-sos que dão, do pó que levan-tam. No local que é amplo, areja-do, debaixo das árvores e junto às habitações deste largo, esten-dem as suas esteiras, descalçam-se e concentram-se. O imã (o líder da comunidade muçulmana) prepara-se para dar início a uma

reza aberta a quem desejar participar. Com movimentos repetidos, de adora-ção, numa onda de corpo e alma, “Deus é grande” e a comu-nidade vai louvando um ente que casa perfeitamente

com o “Deus Pai Todo Poderoso Criador do Céu e da Terra”. Vamos espreitando as crianças, mulheres e homens que – ainda que separados enquanto família e irmãos – parecem reunir-se segundo algum critério de cumplicidade e condição, mais do que uma lógica meramente separatista.

O imã é o primeiro a sacrificar o cordeiro. Se alguém o fizer antes dele deverá ceder-lho. De vol-ta a casa, Issuf, o chefe de família—ainda em jejum—prepara-se para entregar o seu cordeiro e poder finalmente ser o primeiro da casa a comer o fígado, a parte que lhe cabe enquanto coordena-dor deste rito.

O animal é trazido e passo a passo entregue. Não há desejo de o fazer sofrer, por isso procu-ra-se ser rápido e certeiro. Há

consciência de que este animal está a ser sublimado e de que cada parte terá a sua função. De acordo com as preferências dos vizinhos e com o grau de relacio-namento que Issuf tem com eles, este cordeiro partirá como um dever da família e de cada um para com o coração dos irmãos da comunidade, professem estes os credos que professarem. No final da imolação, as palavras de paz proferidas comprovam-no há séculos: “que o sangue derrama-do por este cordeiro encerre o sangue derramado na jihad (guerra santa).” Que se una o que a irracionalidade desuniu. Muhammad terá sacrificado 66 cordeiros (o nr. de alá, o nr. Per-feito), invocando o gesto de entrega de Abraão.

“E, estendendo a mão, pegou no cutelo para imolar a seu filho. Mas o anjo do Senhor bradou-lhe desde o céu, e disse: Abraão, Abraão! Ele respondeu: Eis-me aqui. Então disse o anjo: Não estendas a mão sobre o mance-bo, e não lhe faças nada, por-

Peregrinar – v. tr. [Pouco usado] andar em peregrinação

por (terras distantes),v. intr. viajar por longes terras, ir em romarias a

lugares santos, [Figurado] divagar.

Page 4: I KUMA - s3-eu-west-1.amazonaws.comKuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que

FEVEREIRO DE 2012 I KUMA? 4

Este apelo vai marcando ritmo na história das religiões. Para Issuf a religião nada tem a ver com a cultura. Para este muçul-mano de etnia sussu (da Guiné-Conacri), casado com Sónia, “a religião deve estar no meio. Nem à direita nem à esquerda”. Aí residem as diferenças islâmicas, onde comunidades como os xii-tas e os sunitas se demarcam daquilo que é puramente a fé muçulmana, da sua história: “Há que seguir o que está escrito”, ressalva.

“Por exemplo, quando no Alco-rão se fala de um homem poder casar com diferentes mulheres, há que o contextualizar na exi-gência histórica de na Jihad (guerra santa) - dado o faleci-mento dos maridos - a viúva poder ser amparada”, explica Issuf. Hoje, tal “esvazia-se de sentido”. Para este homem gran-de, que combateu entre o Sene-gal e a Guiné, trabalhou para o Governo guineense e que se dedica no presente a curar o cor-po e o espírito de quem o procu-ra, o mais importante é a tranqui-

lidade que a prática da fé te traz. A religião que na prática não é mais do que “uma árvore com diferentes ramos”. A árvore Abraão, pai de Isaac, de quem partiu o judaísmo, e de Ismael, de quem derivou o islamismo. Credos filhos de um mesmo pai. Credos irmãos.

Sónia é doce e profunda. Proce-de ao ritual do chá e não usa de falsas modéstias quando nos confidencia que sabe fazer de tudo um pouco. Vertendo bem do alto a água num delicado copo de chá—e voltando a colocá-la no bule até formar uma espuma leve e consistente - Sónia afirma-se. “Era cristã até há bem pouco tempo.” Casada com Issuf há m a i s d e um a dé c a d a , “namorados há muito”, esta mulher de etnia papel e origem portuguesa por parte da mãe e de etnia manjaca por parte do pai, conta-nos que acabou por encontrar no Islamismo “toda a convicção de ser religiosa”. “Os muçulmanos pedem a Deus, durante ou depois da reza prati-cada em cinco momentos dife-

rentes do dia”. Para Sónia, “há um contacto permanente”, uma ligação a Deus que pessoalmen-te não encontrou no cristianismo e, “se Deus aceitar o teu pedido, podes receber o que quiseres… felicidade, sossego, vida…”. Mãe, dona de casa, trabalhadora e estudante de Direito desafia o seu país a buscar justiça na terra e propõe-se a juíza: “Na Guiné-Bissau não há falta de vontade, há medo”.

Enquanto isso a carne é cozinha-da com muita cor e tempero. Malagueta, alho, caldo, pimenta e sal pisados no pilão… cebola cortada por todas as mulheres da casa para o refogado, massa e couscous para acompanhar, penteados com as mãos e cozi-nhados num pano colocado a vapor… Numa festa dos senti-dos, sente-se o mais importante. Acolher quem chega.

Benvindo, católico, gosta de todo o tipo de carne. “Isto está muito bom”, exclama-nos. Não podia ser porco… Mas porquê? Reza a tradição muçulmana que o porco teria indicado o caminho da água

quanto agora sei que temes a Deus, visto que não me negaste teu filho, o teu único filho. Nisso levantou Abraão os olhos e olhou, e eis atrás de si um car-neiro embaraçado pelos chifres no mato; e foi Abraão, tomou o carneiro e ofereceu-o em holo-causto em lugar do seu filho (…)

Por mim mesmo jurei, diz o Senhor, porquanto fizeste isto, e não me negaste teu filho, o teu único filho, que deveras te aben-çoarei, e grandemente multiplica-rei a tua descendência, como as estrelas do céu e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta

dos seus inimigos e em tua des-cendência serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz.”

In Livro do Génesis, Capítulo 22

Benvindo, de religião católica, e Sónia e Issuf, de religião muçulmana sentam-se à mesa para falar do Tabaski e do diálogo entre homens e mulheres de diferentes credos

Page 5: I KUMA - s3-eu-west-1.amazonaws.comKuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que

FEVEREIRO DE 2012 I KUMA? 5

a um grupo de sequiosos; o ani-mal, deixando o seu sinal nas árvores, conduziu o grupo a um curso de água. Gratos, os muçul-manos teriam passado a não comer porco, segundo reza a lenda… Porém, na realidade, Issuf garante que os muçulma-nos não comem é animais com garras… mas na Guiné, come-se

de tudo um pouco: galinha, cabra, porco, vaca, carneiro, macaco (apesar de este ser ile-gal)… Questão de sobrevivência ou de puro gosto, Issuf não se distrai enquanto se deleita após um longo jejum e sorri às amigas cristãs que comem satisfeitas a carne de porco preparada para elas com couscous e batata...

Os vegetarianos poderiam pas-sar aqui maus momentos, mas a carne neste dia é mais do que um alimento. É rito de passagem entre gerações. É um trato fami-liar.

Fotógrafo e jornalista, Benvindo tem nos olhos a curiosidade e nas mãos a calma para nos

Durante

toda a tarde cozinha-se, come-se, conversa-se, dança-se… enquanto as crianças desatinam de um lado para o outro

Page 6: I KUMA - s3-eu-west-1.amazonaws.comKuma+1.pdf · e desde então o cordeiro é sacri-Da Cidade dos Anjos à Cidade dos Homens ficado “em nome Dele”, sob o olhar dos homens que

FEVEREIRO DE 2012 I KUMA? 6

Encontrar - v. tr.

ir de encontro a, fazer encontro de, dar casual-mente com; deparar, achar, atinar, descobrir,

liquidar, saldar, compensar, ser contrário a, ofender, contrariar, ver na rua; passar por.

v. pron.

dar-se encontrão, embater, chocar-se, opor-se; contradizer-se mutuamente, concorrer; achar-

se; ver-se, ser da mesma opinião (que outrem), bater-se em duelo.

comunicar. Mancanha de etnia, este jovem é um exemplo de que o que parece pode ser muito mais. Não só os muçulmanos acabam por ter mais do que uma mulher. O seu pai, cristão, também casou duas vezes. “Isto aqui é algo cultural, transversal às religiões”. E uma vez mais a cultura salta à vista e extrapola qualquer História universal…mas have-rá na Guiné-Bissau casamentos mistos entre reli-giões? Benvido garante que há muçulmanos a casarem com cristãs e outros mesmo a converte-rem-se ao cristianismo, mas Issuf não valoriza esses casos. Não os considera muito comuns e acrescenta que é de difícil aceitação nas famílias muçulmanas dar em casamento uma filha a um cristão. Neste caso, estar-se-ia a negar a perpetua-ção da fé muçulmana no sangue familiar, já que

para os muçulmanos a educação dos filhos deve ser de acordo com a religião paterna.

Issuf levanta-se e, gozando da mesma tranquilida-de e sentido de hospitalidade de Sónia, prepara-nos um chá verde, de longe… Acha que é “da Chi-na”. Durante toda a tarde cozinha-se, come-se, conversa-se, dança-se, enquanto as crianças desatinam de um lado para o outro. Obedientes e traquinas, como todas as crianças deveriam ser, dão-nos a mão no final e pedem-nos para ficar numa festa igual a tantas outras e única ao mesmo tempo. Será do clima? Que horas serão? Aparen-temente não viemos aqui em peregrinação (ou sim?), mas com certeza viajámos num espaço que nos convida a abrir as portas, sobretudo as da nos-sa mente. Partir. Procurar? Talvez deixarmo-nos simplesmente encontrar.

Texto de Filipa Lacerda e Fotografia de Gustavo Lopes Pereira