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I a sentença VINICIUS CASTRO o nosso verbo sempre teve ligação e eu pedia a deus pra não quebrar nossa oração tudo nosso sempre teve alguma explicação... aposto que o aposto agora é só contradição. parecia até um mandamento tão normal... você sempre ser meu complemento nominal parecia até o meu pilar fundamental: eu era sempre no plural. quem escreveu nossa sentença assim? com dois sujeitos, predicado, enfim... nosso passado tão perfeito, ai de mim, hoje chegou ao fim. foram tantas regras e eu buscando a exceção feito um objeto indireto em tuas mãos falta concordância, falta comunicação aposto que o aposto agora é mera distração. pelas entrelinhas, meus pronomes são iguais, sempre possessivos, relativos e banais foram tantas vírgulas, hiatos... menos mal: agora é só ponto final. quem escreveu nossa sentença assim? com dois sujeitos, predicado, enfim... nosso passado tão perfeito, ai de mim, hoje chegou ao fim. amor reflexivo sempre vai além: indicativo de que sigo bem desconstruindo o que a paixão ergueu amor, o vocativo hoje é ninguém não tão altivo, mas eu sigo bem desconstruindo o que a paixão ergueu ontem só nós, hoje só eu.

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I a sentença VINICIUS CASTRO

o nosso verbo sempre teve ligação

e eu pedia a deus pra não quebrar nossa oração tudo nosso sempre teve alguma explicação... aposto que o aposto agora é só contradição.

parecia até um mandamento tão normal...

você sempre ser meu complemento nominal parecia até o meu pilar fundamental:

eu era sempre no plural.

quem escreveu nossa sentença assim? com dois sujeitos, predicado, enfim...

nosso passado tão perfeito, ai de mim, hoje chegou ao fim.

foram tantas regras e eu buscando a exceção

feito um objeto indireto em tuas mãos falta concordância, falta comunicação

aposto que o aposto agora é mera distração.

pelas entrelinhas, meus pronomes são iguais, sempre possessivos, relativos e banais

foram tantas vírgulas, hiatos... menos mal: agora é só ponto final.

quem escreveu nossa sentença assim? com dois sujeitos, predicado, enfim...

nosso passado tão perfeito, ai de mim, hoje chegou ao fim.

amor reflexivo sempre vai além:

indicativo de que sigo bem desconstruindo o que a paixão ergueu

amor, o vocativo hoje é ninguém não tão altivo, mas eu sigo bem

desconstruindo o que a paixão ergueu ontem só nós, hoje só eu.

II blues da solidão

VINICIUS CASTRO

eu quero a força do equilibrista do sinal

eu quero o dedo e o pincel dos pintores da central

e a esperança de todo ator sem camarim

eu quero o medo e o segredo de todos botequins

eu quero a ambição sem fim desses artistas sem futuro

quero tudo só pra mim

eu quero a alma de um cantor de bar vazio que insiste em cantar*

eu quero a sina desses poetas de esquina quero os versos e os quartetos

dos sonetos da menina

e os desenhos, caricaturas de verdade quero o dom do desenhista

lá do centro da cidade

eu quero a solidão sem fim desses artistas sem futuro

quero tudo só pra mim

eu quero a alma de um cantor de bar vazio

que insiste em cantar*

* citação de ‘Cantor de bar’ (Jion Boechat)

III cara metade

VINICIUS CASTRO

a minha cara lavada retorcida, estendida ao sol no varal

ri da sua cara fechada que tá de mal com a vida em pleno carnaval

a minha cara quebrada

varrida pra debaixo de um tapete qualquer ri da sua cara amassada

de quem não acordou, mas já está de pé.

a sua cara por cima e a minha cara no chão:

você, minha cara, é metade da minha solidão

você quer passear de caravela

e eu vou entrar pro caratê você vai me comprar um caramelo

e eu vou me apaixonar de cara por você com seu sapato de camurça

eu digo o que não quero dizer mas e se te servir a carapuça

me diz o que que eu posso fazer?

a sua cara por cima e a minha cara no chão:

você, minha cara, é metade da minha solidão

você é bola na caçapa

com essa sua cara de pau eu dou a minha cara à tapa e você não reclame no final

a sua cara por cima

e a minha cara no chão: você, minha cara,

é metade da minha solidão.

IV carcaça

DANILO MARIANO / VINICIUS CASTRO

pela mulher que te perdoa todo dia pelo patrão que te explora a força bruta e pela vida que te engole em goles rasos:

quem aqui será contrário à razão que deus criou?

é pela força que se esvai em doses curtas é pela raiva que te queima o peito magro

por tudo aquilo que te prende à lama quente: quem aqui será clemente à razão que deus criou?

é pela língua, pela pele e pelo pêlo. é pelo couro arrancado sem ter dó é pela brasa que te marca a carcaça

quem aqui não acha graça da razão que deus criou?

pela gravata, pelo teu itinerário pela ganância, pela lógica cristã

pela bravata e o bom senso do carrasco por pelo menos uma lágrima de amor

é pelo solo que se racha ao toque d’água

e te lapida em caule seco: alma em pó pelas questões de natureza bestial

quem aqui acha leal essa razão que deus criou?

pela chantagem, pelo teu estelionato pelo inato subornando tua visão

por tudo aquilo que de fato é real quem aqui acha normal essa razão que deus criou?

em nome da guerra, da honra

e de tudo que convém: em nome do pai, do filho e do espírito de alguém

V dos pés à cabeça

VINICIUS CASTRO

se o braço da poltrona nunca abraça eu acho que a palavra perde graça se a boca do fogão não sente fome

então por que o mesmo nome?

se a mão do violão não pega nada eu acho que a palavra tá errada se o fósforo tem algo na cabeça alguém me diz o que ele pensa!

será que pé de planta tem chulé?

será igual ao da planta do pé? e se for pra plantar bananeira...

não porá os pés no chão!

se o alho tem um dente e não mastiga eu acho que a palavra não se aplica se o livro tem orelha e não escuta

mas que palavra mais maluca!

se o milho tem cabelo e não penteia eu acho que a palavra é meio feia se a perna tem batata e não frita

mas que palavra esquisita!

será que pé de planta tem chulé? será igual ao da planta do pé?

e se for pra plantar bananeira... não porá os pés no chão!

se a gente não alcança, não importa mas se cresce e enxerga não suporta

e no fim a fantasia vai embora: o olho mágico da porta só vê o lado de fora...

VI marcas

DANILO MARIANO / VINICIUS CASTRO

as janelas deixaram escapar os odores de uma noite sem dormir

e o tapete parece ocultar as cinzas do cigarro de alguém

se as paredes conseguiram abafar

os gemidos de dois corpos já reféns maquiagem e pó pra disfarçar

as marcas que não convêm

marcas que vão e vêm

o ventilador no teto a rodar espalha a fumaça

e o abajur que insiste em brilhar ilumina quem passa

só o espelho parece anunciar

e o lençol já não cheira a ninguém maquiagem e pó pra disfarçar

as marcas que não convêm

marcas que vão e vêm

o silêncio se esvai pelo corredor e as garrafas transbordam no chão

um drinque a mais de licor e um filme qualquer na televisão

de repente parece girar

a cabeça e o quarto também maquiagem é só pra disfarçar

as marcas que não convêm

marcas que vão e vêm

VII segundas intenções

VINICIUS CASTRO

eu te prometo as estrelas

e todas as constelações eu te prometo os planetas e os cometas

mas nas devidas proporções

eu te prometo o mar e rios aos borbotões

eu te prometo cachoeiras ao luar mas nas devidas proporções

eu sei que pode parecer bem melhor nas ilusões

só te ofereço uma rosa do buquê... mas com a melhor das intenções!

eu te prometo continentes

e ilhas para os casarões eu te prometo toda terra, simplesmente,

mas nas devidas proporções

eu te prometo o ar o hélio pros teus balões

eu te prometo aviões pra decolar mas nas devidas proporções

eu sei que pode parecer bem melhor nas ilusões

só te ofereço uma rosa do buquê... mas com a melhor das intenções!

VIII achados e perdidos

VINICIUS CASTRO

nem proibido, nem autorizado nem aturdido, nem acostumado nem esquecido, nem lembrado

nem aplaudido, nem vaiado

nem tranqüilo, nem desesperado nem bandido, nem delegado

nem odiado, nem amado nem certo, nem errado

o que resta de você

quando acorda sem direção? perdido no convés...

mas achado no porão!

nem peso pena, nem peso pesado nem gago, nem articulado nem saibro, nem gramado nem seco, nem molhado

nem livre, nem acorrentado

nem demitido, nem aposentado nem vendido, nem comprado

nem de pé e nem deitado

o que resta de você quando acorda sem direção?

perdido no convés... mas achado no porão!

nem aquecido e nem congelado

nem batimentos pra provar que existe nem desenvolto, nem atrapalhado

nem nada demais pra fazer!

o que resta de você quando acorda sem direção?

perdido no convés... mas achado no porão!

IX roque das antigas

VINICIUS CASTRO

adão, toma cuidado com a tua costela que é tudo que ela quer de você

aquiles, vá calçar um bom sapato depressa que o teu calcanhar não pode aparecer

sansão, eu vou te dar um conselho

esconde o cabelo ao anoitecer sansão, eu disse: fica esperto!

com um olho aberto ao adormecer

midas, de que serve esse grande tesouro se tudo que é ouro não dá pra comer?

ícaro, esquece essa coisa de asa que santos dumont ainda tá pra nascer

ulisses, vê se tapa essa orelha que essa sereia insiste em cantar ulisses, vê se acerta esse mapa

pra voltar pra casa e pra descansar

você que já andou pelo céu e pelo inferno me diz como era antes de saber

dessas verdades do eterno você que já andou pelo inferno e pelo céu

dante, me diz como era antes de botar essas verdades no papel

nero, vê se para com essa tua mania

senão algum dia alguém vai se queimar narciso, dá um tempo, vê se larga esse espelho

e é esse o conselho que eu posso te dar

édipo, não faça besteira! que dessa maneira não vai enxergar

édipo, não digo mais nada que essa furada é familiar

X pecado original

VINICIUS CASTRO

a gente tenta esquecer

que não tem nada de especial se as mesmas páginas em branco de sempre agora são mais bonitas

a gente tenta esquecer

que não tem nada demais se as mesmas promessas batidas de sempre agora são muito mais

já não dá pra continuar

e parece que você nem percebeu faz de conta que não pode pagar

e quem paga os seus pecados sou eu

o nosso livro não é best-seller o nosso filme não é de hollywood

a nossa história é tão normal e o seu pecado...

o seu pecado não é nada original

a gente tenta esquecer que sempre faz tudo tão igual

nas mesmas histórias nas mesmas apostas que agora são reais

a gente tenta esquecer

que nada mudou eu nunca fui o paul

e você nem é tão linda assim

então deixa... nem todo mundo tem sorte no amor

então deixa... nem todo mundo tem a manha do jogo

XI bala perdida

VINICIUS CASTRO

a vida quase sempre me deu porrada

foi tapa na cara, pernada e até pescoção achei a solução: ninguém me cala

por isso que agora, amigo, comigo é na bala!

é a bala de menta, é a bala de coco não tem nada igual

tem a bala de leite, tem de tamarindo, café e até mingau

encontrada nas lojas do ramo tá pra lá de 2 e tal

mas aqui na mão do camelô vai pagar um real!

a vida inteira eu tive quase nada faltava relógio, carteira, pulseira e cordão

faltou televisão e pai na sala por isso que agora, amigo, comigo é na bala

desculpe incomodar o silêncio de vocês

mas hão de concordar que vale a pena dessa vez senhoras e senhores, eu garanto a qualidade!

é só olhar no verso e conferir a validade!

XII casa ao revés

VINICIUS CASTRO

é ela que acorda cedo e vai trabalhar para assegurar

o alimento do seu lar

é ela que volta à noite e vem reclamar

querendo o jantar e um bom banho pra relaxar

mas quem faz a barba aqui sou eu!

(mas quem manda é ela!) quem faz a barba aqui sou eu!

mas quem faz a barba aqui sou eu, mulher de deus! quem faz a barba aqui sou eu!

é ela que faz segredo

e não quer contar para assegurar o seu direito de pensar

é ela que sai à noite

e vai festejar seu próprio luar com os amigos na beira do mar

mas quem faz a barba aqui sou eu! (mas quem manda é ela!)

quem faz a barba aqui sou eu! mas quem faz a barba aqui sou eu, mulher de deus!

quem faz a barba aqui sou eu!

ela sente prazer sozinha ela se diverte sozinha

ela pensa em seguir sozinha e até mata barata sozinha

mas quem faz a barba aqui sou eu!

(mas quem manda é ela!) quem faz a barba aqui sou eu!

mas quem faz a barba aqui sou eu, mulher de deus! quem faz a barba aqui sou eu!

XIII sangramento VINICIUS CASTRO

vai, devolve meu formato que hoje o meu sapato

já não cabe em mim vai, me alforria o peito que hoje a cruz no leito

rasga o meu cetim

vai, renova o guarda-roupa que hoje a carne é pouca

pra tanto algodão vá, mas saiba, sobretudo,

que hoje o sobretudo arrasta pelo chão

vai, me autoriza (alcooliza) o riso

que hoje eu só preciso de mais circo e pão

deixa eu me esquecer da história me concede a glória de outra encarnação

vai, que esse meu corpo roto

agora é só um porto de injúria e dor

submerge nossa nau perdida pra que eu nem consiga

relembrar da cor

vem, reforma minha alma remodela a calma com pedra-sabão

vem, me reconstrói a cara

em pedras de carrara me remenda a construção

vem, vê se suporta o fardo que hoje o mesmo dardo

crava um peito ateu

vem e me estanca a tempo que esse sangramento

ainda é sintoma teu