human rights

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tabu 18/02/11 49 tabu 18/02/11 48 Entre o cacho de corpos, um homem geme baixinho a sua dor. Funda, lancinante. Arras- ta há seis meses o pé apodrecido das feridas, devorado por larvas do tamanho de minhocas. Roubara um telemóvel na esperança de ali- mentar sete filhos e foi baleado como castigo, definhando sem assistência médica. Não fosse a equipa de peritos da Orga- nização das Nações Unidas (ONU) ali ter entrado, esta- ria morto. Duarte Nuno Vieira amputou-lhe o pé, medicou-o e encaminhou-o para o hospital. « F i c o u i n c a p a c i t a d o , s e m o p é e p a r t e d a p e r n a , m a s s o b r e v i v e u , f o i s o l t o e j á m e e s c r e v e u d u a s v e z e s » , conta o presidente do Instituto de Medicina Legal, que há mais de quatro anos corre prisões de todo o mundo, como especialista forense das missões da ONU contra tortura e tratamentos cruéis. Já correu os cinco continentes e viu muita coisa, mas este foi o cenário mais dantesco com que algu- ma vez se deparou. Castigados com tiros nos pés O médico abrevia porme- nores para não azarar o destino, incerto que bas- te, de todos os prisionei- ros aqui evocados. Este, soubemo-lo depois pelos HAMAM-LHE ‘A SALA DA TORTURA’. Numa prisão sobrelotada em África, 125 pes- soas esvaecem sob o ar pastoso. Três são mulheres e pelo menos duas crianças. No centro, cavado no chão, um único buraco serve as necessidades. Pedaços de cartão fazem de cama. Água e comida, como o resto, são conseguidos a troco de subor- no. Encarcerados há mais de dois meses, nenhum fora visto por um juiz, advogado ou sequer pela família. Quase todos, isso sim, têm uma cicatriz cravada na pele. Uns queimados com cata- nas em brasa, outros suspensos em barras de ferro. Os menos afortunados alvejados nos pés. A morte paira como um fantasma. Apagou corações, mas não levou a fome. NA GUINÉ EQUATORIAL, RECLUSAS ENGRAVIDAVAM DE PROPÓSITO DE CO-PRISIONEIROS PARA EVITAREM MAIS ABUSOS NO ARQUIPÉLAGO DA TORTURA É presidente do Instituto de Medicina Legal e uma au- toridade mundial em prisões. Duarte Nuno Vieira passa metade do ano a viajar ao serviço da ONU e contou ao SOL os cenários de pesadelo que encontrou um pouco por todo o mundo: prisioneiros enjaulados, homens sodomizados até à morte e até mulheres e crianças encarceradas em condições degradantes. Um retrato negro do século XXI Texto de S Ó N I A G R A Ç A * C / testemunho Ásia: disparos sucessivos a curta distância na sequência de tortura para obtenção de confissão. Desde 2006 que a ONU inclui peritos forenses nas missões contra a tortura. O exame – da pele ao sistema genital – é consentido e privado África: Homens, mulheres e crianças na mesma cela, múltiplos detidos agonizam com lesões de gangrena causadas por disparos intencionais. E m b a i x o : queimaduras com ferro aquecido ATENÇÃO: CONTÉM IMAGENS CHOCANTES

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Entre o cacho de corpos, um homem gemebaixinho a sua dor. Funda, lancinante. Arras-ta há seis meses o pé apodrecido das feridas,devorado por larvas do tamanho de minhocas.Roubara um telemóvel na esperança de ali-mentar sete filhos e foi baleado como castigo,definhando sem assistência médica. Não fossea equipa de peritos da Orga-nização das Nações Unidas(ONU) ali ter entrado, esta-ria morto. Duarte NunoVieira amputou-lhe o pé,medicou-o e encaminhou-opara o hospital.

«Ficou incapacitado, sem o pé e parte da perna, mas sobreviveu, foi solto e já me

escreveu duas vezes», conta o presidente doInstituto de Medicina Legal, que há mais dequatro anos corre prisões de todo o mundo,como especialista forense das missões da ONUcontra tortura e tratamentos cruéis. Já correuos cinco continentes e viu muita coisa, maseste foi o cenário mais dantesco com que algu-

ma vez se deparou.

Castigados comtiros nos pésO médico abrevia porme-nores para não azarar odestino, incerto que bas-te, de todos os prisionei-ros aqui evocados. Este,soubemo-lo depois pelos

HAMAM-LHE ‘A SALA DA TORTURA’. Numaprisão sobrelotada em África, 125 pes-soas esvaecem sob o ar pastoso. Três sãomulheres e pelo menos duas crianças. Nocentro, cavado no chão, um único buracoserve as necessidades. Pedaços de cartãofazem de cama. Água e comida, como oresto, são conseguidos a troco de subor-no. Encarcerados há mais de dois meses,nenhum fora visto por um juiz, advogadoou sequer pela família.

Quase todos, isso sim, têm uma cicatrizcravada na pele. Uns queimados com cata-nas em brasa, outros suspensos em barrasde ferro. Os menos afortunados alvejadosnos pés. A morte paira como um fantasma.Apagou corações, mas não levou a fome.

NAGUINÉ EQUATORIAL,RECLUSAS

ENGRAVIDAVAMDEPROPÓSITODECO-PRISIONEIROSPARAEVITAREM MAIS

ABUSOS

NOARQUIPÉLAGODATORTURAÉ presidente do Instituto de Medicina Legal e uma au-toridade mundial em prisões. Duarte Nuno Vieirapassa metade do ano a viajar ao serviço da ONU econtou ao SOL os cenários de pesadelo que encontrouum pouco por todo o mundo: prisioneiros enjaulados,homens sodomizados até à morte e até mulheres ecrianças encarceradas em condições degradantes. Umretrato negro do século XXI

Texto de SÓNIA GRAÇA *

C

/ testemunho

Ásia: disparos sucessivosa curta distância nasequência de tortura paraobtenção de confissão.Desde 2006 que a ONUinclui peritos forenses nasmissões contra a tortura.O exame – da pele aosistema genital – éconsentido e privado

África: Homens, mulheres ecrianças na mesma cela,múltiplos detidos agonizam comlesões de gangrena causadas pordisparos intencionais. Em baixo:queimaduras com ferro aquecido

ATENÇÃO:CONTÉMIMAGENSCHOCANTES

è

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preciso fazer turnospara se poder dormir nochão. Violação clara dasrecomendações interna-cionais: «Cada preso tem direito, em condi-ções ideais, a um espaço mínimo de seis metros quadrados».

Os limites da resistên-cia humana são testadosa um extremo impensá-vel: reclusas confessa-ram à equipa ter engravidado de propósitode um co-prisioneiro, para assim se prote-gerem e não padecerem mais às mãos de ou-tros. Subjugar o corpo aos caprichos de ofi-ciais, guardas e outros prisioneiros é, para

elas, ainda a única ma-neira de matar a fome.

Na América do Sul, oclima está longe de sermais ameno. Numa ca-deia de menores, NunoVieira descobriu um bi-zarro passatempo: «Os guardas entretinham- -se a treinar a pontaria disparando, de guari-tas, balas de borracha contra as nádegas dos

rapazes durante o recreio».Numa prisão do Uruguai, símbolo da dita-

dura militar do país, havia presos preventi-vos metidos em caixas de metal como autên-ticos animais. Sem alternativa, bebiam água

da casa-de-banho e só podiam sair quatro ho-ras por semana. Privados de cuidados médi-cos, cortavam-se a si próprios para ganha-rem direito à assistência. Com uma taxa desobrelotação de 166%, as celas abarrotamcom cinco vezes mais reclusos do que a suacapacidade. Duas prisões foram fechadaspelo Governo após a passagem da ONU, emMarço de 2009.

Com quase meio milhão de presos, o Brasilestá atrás apenas dos EUA e da China. Em to-das as visitas, desde 2000, a ONU testemu-nhou um lastro de barbaridades que aindaressoam na cartilha de Dan Mitrione, agentenorte-americano que nos anos 60 do séculopassado instruiu a polícia brasileira atravésdos manuais da CIA, ensinando como tortu-rar sem deixar marcas. Há a ‘técnica do

NO URUGUAI,AONUENCONTROUPRESOS

AMONTOADOSEMCAIXASDEMETAL.

O GOVERNOMANDOUENCERRAR DUAS

PRISÕES

opiop poiopip poipoipo oipoipo poipoip poipoipoi poipoipoipo poipoipoi poi-poip

América do Sul: condições de detenção cruéis, desumanas e degradantes. Numa

cela com ‘gaiolas’ desenhadas para seis pessoas, foram encontradas dezenas

numa só. Um buraco faz de casa-de-banho. A comida é distribuída de manhã, emsacos de plástico. Nenhum pode ver a luz do dia – violação das normas internacio-

nais, que estabelecem o direito a uma hora por dia fora das celas. Ao lado, zonas de

recreio para detidos noutra prisão da América do Sul

América doSul: punição de

vários reclusoscom barra

metálica.«A tortura tende a ser

mais frequente

na fase inicial

de detenção, durante o

interrogatório,

para obter confissão ou

informações»,

salienta Duarte

Nuno Vieira

Ásia: em baixo, reclusos são obrigados a utilizargarrafas e sacos de plástico para fazerem

as necessidades. Condições de detenção cruéis,

desumanas e degradantes, à luz da Convençãocontra a Tortura e Tramentos Cruéis, Desumanos

ou Degradantes, de 1984

África: equipa do relator

especial da ONU chega a

estabelecimento prisional.Em cima e à direita: celas

sobrelotadas, sem água

corrente nem instalações

sanitárias

è

arquivos da ONU, foi resgatado numa prisãoda Nigéria, em Março de 2007, durante a visi-ta conduzida pelo austríaco Manfred Nowak,então relator especial. Vários reclusos, nomais primitivo dos sadismos, haviam sido al-vejados de propósito nos pés e agonizavamsem cuidados médicos. Um deles confessoutratar as pústulas com a chama de uma vela.Durante os três meses em que estivera em de-tenção secreta, a sua casa e conta bancáriaforam confiscadas.

Num país com 46 mil presos – dos quais 30mil aguardam julgamento, que demora emmédia dez anos –, a tortura é lei, seja para ob-ter confissão ou dinheiro, mesmo quando oúnico crime foi a negação de um suborno.

Atirar sobre os pés é praticamente um ri-tual, sobretudo nas esquadras – onde se mis-

turam presos preventivos com condenados,menores com adultos e onde só recentemen-te as mulheres foram separadas dos homens.Em Junho de 2009, reclusos invadiram a alafeminina de uma prisão durante uma revol-ta e violaram quase todas as mulheres.

Em países africanos, Duarte Nuno Vieiratem encontrado das mais inesperadas le-sões: «A certa altura, detectei em múltiplos detidos queimaduras circulares interrompi-das por estrias. Embora a medo, lá confessa-ram ter levado tiros de pólvora seca com a ponta de metralhadoras». Não é raro a equi-pa ‘tropeçar’ em chicotes e toda a espécie deinstrumentos de tortura. Mas as condiçõesmiseráveis, garante, são por vezes a maiorde todas as chagas: «Em muitas prisões, de-zenas de reclusos dormem no chão, fazem as

necessidades à frente uns dos outros para garrafas ou sacos de plástico, que despejam depois para um balde».

Novembro de 2008. O médico e os colegasda ONU (especialistas em direitos humanos,intérpretes, de ambos os sexos, e pessoal desegurança) mergulharam nos confins daGuiné Equatorial, onde a ditadura continuaa manchar as prisões daquele que é o tercei-ro maior exportador de petróleo de África. Apunição acontece muitas vezes sem razãoaparente. Amarrados a um pilar, os presossão golpeados nas costas com bastões ou su-jeitos a choques nas nádegas com fios des-carnados.

Nas esquadras, garrafas cheias de uri-na e sacos usados para evacuar infestamas celas. Nalgumas, de tão sobrelotadas, é

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telefone’ (estaladas simultâneas nos dois ou-vidos), os choques eléctricos nos genitais e oasfixiamento com sacos pulverizados compimenta.

Espancado e mordidonas nádegasCertas histórias são como um murro no es-tômago. Numa prisão do Rio de Janeiro, umhomem deu pela falta dafotografia da filha e de 20reais após a revista à suacela. Gritou, inconforma-do, e acabou brutalmenteespancado: desmaiouquatro vezes e vomitousangue. Não satisfeito, umguarda ainda o mordeunas nádegas, ao mesmotempo que lhe introduziuum dedo no ânus. Duran-te dias, o recluso padeceusem tratamento. Denunciado pela ONU, ocaso deu origem a um inquérito por torturae à demissão do director da cadeia.

Até hoje, porém, pouco mudou – apesarde o Governo construir prisões cada vezmais modernas. Continuam os abusos depoder e a corrupção das autoridades numpaís onde pessoas ainda são presas semmandado. E onde homens, mulheres e me-nores dividem as mesmas celas. Em 2007, omundo parou ao saber que uma raparigade 15 anos fora repetidamente violada du-rante um mês enquanto esteve numa celacom 20 homens.

Duarte Nuno Vieira perdeu a conta aonúmero de vítimas que examinou e aju-dou a salvar em mais de duas dezenas depaíses – em missões da ONU, mas tam-bém da Cruz Vermelha e do Conselho daEuropa. «Infelizmente, nenhum país é imune à tortura. Nos mais pobres, en-contramos formas mais primárias. Nos mais desenvolvidos e aparentemente

mais democráticos, os métodos tendem a ser mais sofisticados e psicológicos».

Quando parte emmissão, chega a au-sentar-se 15 dias, mui-tas vezes privado docontacto com a famí-lia. «Na maior parte das viagens, nem nós sabemos o destino no dia seguinte. É o rela-

tor especial que vai desenhando o plano de visitas para impedir que as autoridades tentem controlar. E por isso mesmo é que às vezes temos de estar dias sem telefonar, se há suspeitas de que estamos sob escuta».

Tudo depende do país. «Umas vezes anda- -se em carros das Nações Unidas, com escol-ta especial [assim foi, por exemplo, na Nigé-ria, Guiné Equatorial ou Papua-Nova Gui-né]; outras disfarçados de turistas, em carros alugados a agências».

O desafio começa assim que se obtêm ascartas de livre-trânsito, emitidas pelo Gover-no. No terreno, com as orientações de ONG e

de ex-reclusos, nem sempre é fácil fazer va-ler o princípio das non anounced visits (visi-tas não anunciadas), que podem acontecerna calada da noite e mais do que uma vez àmesma cadeia.

Tendões de Aquiles cortadosEm Maio do ano passado, na Papua-NovaGuiné, Duarte Nuno Vieira esteve no fioda navalha quando o guarda de uma pri-são o tentou agredir por não querer queuma ala fosse visitada. Foi travado pelosseguranças da ONU e enfrenta um proces-so disciplinar.

Tirando isso, sentiu-se recuar séculosnum país com centenas de línguas tribais euma natureza luxuriante mas traiçoeira –«na maioria dos locais não há estradas, anda-se de jipes e com rádios de longo al-cance». E com formas de tortura a condi-zer: presos eram cortados, com catanas, nostendões de Aquiles – castrada assim qual-quer pretensão de fuga ou rebelião.

Uma selvajaria entrecortada por bonsexemplos. «Uma prisão feminina perdida no meio da selva tinha camas de madeira feitas pelas próprias reclusas, mas condi-ções de higiene notáveis», recorda NunoVieira. «Normalmente, quando as condi-ções são más, todos os directores tentam desculpar-se com a falta de dinheiro. Mas o dinheiro não pode ser desculpa para a fal-ta de limpeza e cuidado. A maneira de ser do próprio director e o respeito pelos direi-tos humanos pode fazer a diferença».

Há países, como Cuba e o Zimbabué, quepura e simplesmente não aceitam este es-crutínio. Em Guantánamo, o relator espe-cial da ONU esteve à porta, mas não entrouporque os EUA não autorizaram entrevis-tas individuais e privadas com os prisionei-ros. Na terra das oportunidades, de resto, asNações Unidas nunca inspeccionaram umaúnica esquadra ou prisão.

Já na China, visitada em Novembro de2005 – dez anos depois do primeiro pedidoda ONU –, houve uma marcação cerrada:a equipa chegou a ser seguida no hotel eteve de ser acompanhada por membros doGoverno para poder circular nas prisões.As visitas a esquadras foram tudo menosinopinadas, porque os directores eramavisados com uma hora de antecedência.Vítimas, familiares, advogados e activis-tas de direitos humanos foram intimida-dos e impedidos de se encontrarem com orelator especial.

Dissidente chinêsamarrado 85 dias à camaPreso em Novembro de 2002, um membro dopartido democrático chinês esteve 85 dias

confinado a uma cama, guardado por quatropolícias. Obrigado a manter mãos e pés forado cobertor, sob pena de ficar sem ele, e maistarde suspenso cinco horas com a cabeça vi-rada para o chão, não confessou e foi conde-nado a oito anos por subversão. No momen-to da visita, partilhava a cela de dois metrosquadrados com outros nove reclusos.

Antes de ser condenado a dez anos de pri-são pelo mesmo crime, um escritor e jorna-lista foi torturado com bastões eléctricos nassolas dos pés e genitais, durante os interro-gatórios. Aguentou dois anos em prisão se-creta. Impedido de ver o advogado, estavamagro e exausto, em greve de fome.

Nenhum pôde ser fotografado, condiçãoimposta por Pequim. Os que, como eles,aceitaram falar fize-ram-no, confirmou aONU, sob um «nível palpável de medo e auto-censura». Nãoserá para menos. Cho-ques eléctricos, quei-maduras de cigarros,uso de correntes nostornozelos, imersão em poços e esgotos, po-sições forçadas e privação de sono são umaamostra da tortura à chinesa, que abrangeos métodos mais perversos e sofisticados,como o isolamento prolongado e a reedu-cação em campos de trabalho. «Muitos de-tidos», alegou em Janeiro de 2006 o gover-no chinês, «são conduzidos a uma vida de crime porque amam a diversão e odeiam o trabalho».

Não há limites quando se trata de aniquilaro livre-arbítrio: psicoterapeutas credenciadoscomeçaram entretanto a ser treinados paratrabalharem nas prisões de todo o país. Medi-da que ajudará, diz Pequim, a eliminar todasas formas de tortura. A ONU chamar-lhe-iaantes «tortura mental» e «tratamentos desu-manos», à luz da Convenção contra a Torturae Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degra-dantes, de 1984.

«As piores cicatrizes estão na minha mente» – habituou-se a ouvir Duarte NunoVieira, ciente de que a ‘ausência de evi-dência (de tortura) não é evidência de au-sência’: «Cada vez mais os agressores usam métodos que não deixam sinais físi-cos. Lamentavelmente, nestas missões, a avaliação psicológica é mais difícil de con-cretizar face ao pouco tempo disponível para as visitas».

Nessas alturas, agarra-se como nunca àmedicina – único esteio para quem passou aadormecer sobre o leito morno das própriasferidas. «Se vejo uma queimadura nas costas de um só preso, apenas posso afirmar que é compatível com a alegação. Mas se dez pre-

sos têm lesões semelhantes, posso fazer um diagnóstico claro de tortura. Não se queima-riam os dez acidentalmente nas costas».

Outras vezes, as provas chegam indirecta-mente: «Um dia entrámos numa esquadra onde tínhamos informação de existir tortu-ra sistemática. As celas estavam vazias e o director garantia que há três anos não havia ali ninguém, que as histórias que corriam eram inventadas pelas ONG. Reparámos en-tão que as paredes tinham inscrições da se-mana anterior, coisas como ‘bateram-me, estou aqui há três dias sem comer’. Esva-ziou as celas, mas esqueceu-se de pintar as paredes».

As surpresas, na Ásia, são do tamanho docontinente. Indonésia. Novembro de 2007.

Esquadra de Java:oito celas, 48 presos.Os seis oficiais de ser-viço nunca deixaramque a equipa da ONUfalasse em privadocom os detidos. Pelomenos três, com osolhos ensanguenta-

dos, tinham sido espancados. Outros doisexibiam marcas de tiros levados a curta dis-tância nas pernas.

Os enigmas da liberdadeMas no diário de uma prisão nem tudo é apreto e branco. A liberdade que mais podenasce da imaginação. Uma verdade difícilde descrever na terceira pessoa, paraquem não esteve naquela prisão sobrelo-tada da América do Sul. «Conheci um ve-lhinho, preso há quase 50 anos, que per-deu tudo. Era advogado, a mulher morreu na miséria, não tinham filhos. Aos 70 anos, deram-lhe a liberdade. Não quis sair. Tinha passado a maior parte da vida ali e já não conhecia bem o mundo. Os di-rectores foram-no deixando ficar. Vivia fora das celas, ajudando em pequenos tra-balhos e dando aulas aos presos que não sabiam ler. Coleccionava livros. Não era um homem rancoroso, mas extraordina-riamente interessante e filosófico. Meses depois, agradeceu-me por carta os livros que lhe comprei antes de sair do país. Es-crevi-lhe, mas não tive resposta. Imagino que terá falecido».

O que pode afinal a ONU contra os torcio-nários? Este pode muito bem ter sido temade conversa entre ambos. Habituado a ver ooutro lado das coisas, Duarte Nuno Vieiraprovavelmente terá respondido: «Quando tudo falha, há a esperança».

NACHINA, OS PRESOS SÃOREEDUCADOS EM CAMPOS

DETRABALHO EACOMPANHADOSPORPSICOTERAPEUTAS

Ásia: em cima e à direita,

alimentos infestadosde larvas de minhocas.

À esquerda, as

instalações médicasde uma prisão nunca

haviam sido utilizadas.

A ONU avalia a

assistência médica,alimentação e as

condições de higiene.«Há presos que podem usar a mesma roupa

dois ou três anos até

que se desfaça

no corpo»

‘NENHUM PAÍSÉ IMUNEÀTORTURA:NOSMAIS POBRESHÁ FORMASMAIS

PRIMÁRIAS; NOSMAISDESENVOLVIDOS, OSMÉTODOS SÃOMAISSOFISTICADOS’

EUROPA:CIVILIZAÇÃOINTOCÁVEL?

COMECEMOS pelas fotos de cima. À es-querda, cela iluminada com flash; à direi-ta a realidade: sem iluminação, uma jane-la sem vidros e nenhum aquecimento.Neste país da antiga União Soviética, astemperaturas descem aos -20ºC.Eraseguramenteacenárioscomoestequese referia o ex-relator especial da ONUManfred Nowak quando classificou de«alarmantes» as condições em que vivemos10 milhõesde presosem todo o mundo.A Europa não está excluída. Isso mesmoatestaCelsoManata,eleitoem2005mem-bro do Comité Europeu para a Prevençãoda Tortura (CPT), que faz visitas inopina-das a prisões e esquadras dos 47 estados--membrosdoConselhodaEuropa:«Na Eu-ropa de Leste, as situações são mais difí-ceis, ao nível da violência física mas tam-bém das condições logísticas. A Ocidente, a violência não é sistémica. Mas por vezes as autoridades abusam de medidas de se-gurança como a fixação e o isolamento; se forem aplicados durante muito tempo e sem fundamento, podem resvalar para tor-tura». Na Suécia, foram encontrados pre-sosem isolamentohá18meses.NaIrlandado Norte, a Polícia despia e amarrava deti-dos a cadeiras para evitar automutilações,prática condenada pelo CPT. «A área da psiquiatria foi a que mais me impressio-nou: autênticos depósitos de pessoas à es-pera da morte, vestidas de sobretudo, que raramente vêem o Sol», acrescenta o ex--director-geral dos serviços prisionais. Asvisitas do Comité estão sujeitas a confi-dencialidade, mas os países podem autori-zaradivulgaçãodosseusrelatórios.Quasetodos o fazem. A Rússia distancia-se: dei-xou publicarapenasum relatóriodeum to-tal de 20 visitas.Portugal também está longe de ser refe-rência. O CPT confirmou práticas conti-nuadas de violência e maus tratos em2003 e em 2008: um recluso foi agredidoaté desmaiar ao sair de uma sala de iso-lamento na cadeia de Monsanto; tacosde basebol, uma pistola de plástico emocas foram encontrados numa salade interrogatórios da Polícia Judiciária.

[email protected]* Os factos relatados no artigo constam dos relatórios

oficiais da ONU, consultados pelo SOL

ë

34 l SOL 10/05/13 10/05/13 SOL l 35

Maria nuncamais foi a mesma depoisdaquelaviagemàGuiné-Conacri.Certodia,deregressoaPortugal,segredouaumafun-cionária da escola: «Fui lá para fazer um ri-tual que fazem às meninas quando deixam de ser meninas». Tinha apenas sete anosquando foi levada pela mãe para ser muti-lada no país de origem.

Os técnicos da Segurança Social – que jáacompanhavamafamíliaporcausadocom-portamento negligente da mãe – notaramque a criança estava perturbada e evitavaperguntas. Em Outubro de 2010, o tribunalde família e menores do Seixal (onde a me-nor vivia) comunica a suspeita de mutila-ção ao Departamento de Investigação e Ac-

ção Penal (DIAP) de Lisboa, dando origema um inquérito por suspeitas de ofensa gra-ve à integridade física. A mãe nunca cola-borou com as autoridades, o que obrigou aprocuradora a passar um mandado paraque a criança pudesse ser examinada noInstituto de Medicina Legal.

A menor explicou então à médica comolhe fizeram o ‘fanado’, termo usado pelastribos islamizadas de África que praticama excisão. «Fui cortada na vagina. Sei que me doeu ainda um bocadinho... Eles cor-tam com tesoura ou lâmina, se houver. Eu acho que fui [cortada] com tesoura. Depois metem uma roupa branca e ficas alguns dias em casa. Vão desinfectando, não con-segues fazer xixi alguns dias. Eu brincava à mesma, ardia e foi passando. Quando vim para Portugal, já estava bem».

No relatório, a perita confirmou a ausên-cia do capuz do clítoris e de metade dos pe-quenos lábios por causa do «traumatismo corto-contundente», mas considerouque aslesões não se enquadravam no artigo 144 doCódigo Penal (ofensa grave). «Porque não foi excisado o clítoris, em nosso entender não foi afectada a fruição sexual», escreveua médica, acrescentando não ter «elemen-

tos que levem a presumir a ocorrência de perigo» para a vida da menor.

Em Dezembro de 2011, e com base apenasnoresultadodoexame,aprocuradoraarqui-vou liminarmente o inquérito por estar emcausaemabstractoumcrimedeofensaàin-tegridade física simples. A lei portuguesapode aplicar-se a casos de mutilação, mes-mo que praticados fora do país, mas paraisso o crime tem de ser qualificado como denatureza pública – o que não aconteceu.

EspecialistasdiscutemalteraçãodaleiEste foi um dos três casos de mutilação quechegaram até hoje aos tribunais portugue-

ses – todos eles arquivados. «É muito difí-cil a um magistrado contrariar uma perí-cia. É preciso que seja conhecedor deste fe-nómeno para enquadrar a mutilação como prática nefasta que é», disse ao SOL CarlaFalua, directora da Escola de Polícia Judi-ciária. E salienta: «Mesmo que seja removi-do apenas o prepúcio do clítoris, se isso foi feito com objecto não desinfectado, sem con-dições de higiene, se a criança não teve apoio médico, correu perigo de vida, o que só por si é suficiente para integrar o crime de ofensa grave».

«Dar um murro a uma pessoa será igual a retirar-lhe parte dos genitais? A mutila-ção não é uma cirurgia, é feita com instru-mentos numa criança a espernear, corta-da às cegas», corrobora a ginecologista Li-sa Vicente, que representa a Direcção-geralda Saúde no grupo de trabalho criado pelaComissão para a Cidadania e Igualdade deGénero (CIG) para executar o segundo pla-no nacional de combate à mutilação.

Entre os membros deste grupo já se dis-cute a possibilidade de propor ao Governoa criação de uma lei específica para puniros autores desta prática. «A vantagem se-ria ter um regime que considere crime pú-blico qualquer mutilação independente-mente da lesão, e que introduza a possibili-dade, que já existe para alguns crimes sexuais, de a vítima apresentar queixa já depois de atingir a maioridade, até perfa-zer 23 anos», explica Carla Falua.

A este propósito, Mendes Bota, deputadoe relator geral do Conselho da Europa paraaViolênciaContraasMulheres, lembraquePortugalratificouaConvençãodeIstambul,o que significa que terá de adoptar legisla-ção específica para prevenir este e todos oscrimes contra as mulheres: «Deverá ficar muito claro no quadro jurídico que a cultu-ra, a religião, a tradição ou a chamada ‘hon-ra’ jamais poderão ser invocados como jus-tificação para crimes de género». E subli-nha, por comparação, «as vantagens que se obtiveram no combate à violência domésti-ca a partir do momento em que mereceu uma tipificação autónoma no Código Penal».

Denunciouopaiaos19anosIsso teria evitado o arquivamento de outroprocesso que correu termos no DIAP de �

Mutilação genital feminina:

CRIME SEM CASTIGOAos sete anos, Maria foi levada para a Guiné e mutilada a sangue frio.Mas o crime não foi qualificado como ofensa grave. É um dos trêscasos arrepiantes de mutilação genital feminina que chegaram até hojeaos tribunais portugueses – todos eles arquivados. Os especialistasreclamam alterações na lei e actuação ao nível da prevençãoTexto de Sónia Graça

Durantemeses, Aliceteve «dores horríveis».A avó esfregava-lhea vagina com água aferver e umas palhasAMUTILAÇÃOé geralmente feita com facas

DR

l justiça

36 l SOL 10/05/13 10/05/13 SOL l 37

«Lembro-meque foi a primeira vez que disse asneiras. Foram precisas quatro mu-lheres para me segurar. Cortaram-me com uma faca de serra. Sangrei muito». Nestaaltura,a voz deJoana (nomefictício) jáestáembargada ao recordar ao SOL como foimutilada por volta dos sete anos.

A viver em Portugal desde os 11, esta gui-neense nunca mais esqueceu o momentoemqueamãeeaavóalevaramparaumaal-deia do Senegal, supostamente para passarférias. Quando entrou numa casa de estra-nhos, percebeu tudo. «No meu caso, não houve tambores nem festa. Foi tudo priva-do». Ficou lá mais de uma semana, a recu-perar: «Punham-me água quente e ervas. O mais difícil foi fazer xixi nos dias seguin-tes». A mãe, recorda, «chorava e só dizia ‘tem de ser, somos muçulmanos’».

Mas ela nunca aceitou esta herança. «É uma forma de castrar a mulher, para não ter a tentação de procurar outros homens. E o pior é que relacionam isto com a religião, quando nem sequer está escrito no Alcorão».Em 2009, Joana foi obrigada a reviver estedramaquandoasograeoutrosmembrosdafamílialhedisseramqueestavanaalturadea filha, então com um ano, ser mutilada:

«Nunca deixarei que lhe façam o mesmo. E avisei-os que se lhe fizessem mal, denuncia-va-os». Por precaução, quando volta à terranatal Joana nunca deixa os filhos sozinhos.«Nem para tomar banho».

Inês (nome fictício) sente a mesma revol-ta. Veio para Portugal com dez anos, masnunca se reconciliou com o passado. Saiude casa aos 17 e cortou relações com a mãe:«Ela nunca me pediu desculpa. Vemos o mundo de forma muito diferente».

Aos21anos,portrásdosorrisomeigoedovisual europeu, esta guineense, mutiladaaos cinco anos, carrega uma tristeza vela-da. «Sinto muita dor durante as relações e não consigo ter prazer. Quando explico isso aos meus namorados, a relação muda logo. Um já me deixou por causa disso».Paraela,«não é o fim do mundo, mas é o fim de mui-ta coisa». «Não nos tiram só um bocado de pele, arrancam-nos a alma».

«Já há muitas mulheres que querem pou-par as filhas»,confirmaFilomenaDjassi, lí-

der do Movimento das Mulheres da Guiné--Bissau (Musqueba).

Também ela mutilada, defende que «as tradições nefastas devem ser alteradas com consciência social». «As sogras são as matriarcas e geralmente ditam as re-gras, é muito difícil contrariá-las. Se uma mulher denunciar, corta com a família e toda a comunidade. E como sobrevive de-pois? Muitas estão desenquadradas, de-pendem dos maridos. É muito difícil faze-rem-no sozinhas».

Semmedodedaracara,Filomenatemaju-dado muitas mulheres a lutar contra esteflagelo: «Deve existir debate público, mas não como tem acontecido até agora, com es-pecialistas que têm um discurso conceptual, porque isso não chega às mulheres que têm de tomar a decisão. Tem de ser feito por pes-soas que já passaram por isso».

Por outro lado, sublinha, os médicos têmum «contributo muito importante, porque podem esclarecer as mulheres, dar-lhes ar-gumentos, e é disso que elas precisam».

Já Lisa Vicente, da DGS, acrescenta: «É importante que os profissionais saibam dia-gnosticar e tratar, mas também devem aprender a abordar este assunto».

Desde o ano passado que os médicos têmorientações para registar nos processos clí-nicostodososcasosdemutilaçãoqueencon-tremnoshospitaisecentrosdesaúde.Alémdisso, desde Abril podem fazê-lo através daPlataformadeDadosdeSaúde,ondeestádis-ponívelumformuláriocriadoparasinalizarestescasos.«Os dados serão anónimos e ser-virão para efeitos estatísticos, para sabermos quantas mulheres foram excisadas, onde, o tipo de lesão…», explica Lisa Vicente.

Mas tratando-se de um crime público, osmédicos também não devem denunciar?«Tem de haver uma reflexão… E depois a criança é retirada à família tout-court? Es-tamos preparados para isso? Não se pode denunciar só por denunciar. É importante criar uma rede deapoio com outros serviços para que a denúncia faça sentido».

Lisa Vicente prefere falar em prevenção:«As filhas de mulheres mutiladas devem ser sinalizadas aos núcleos de apoio às crian-ças dos hospitais, que articulam com os cen-tros de saúde. O objectivo é acompanhar aquela família para que não aconteça o mes-mo às segundas gerações».

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Lisboa, em 2006. Aos 19 anos, depois de terfugido de casa do pai ao fim de nove anosde maus tratos, Alice revelou à Polícia quefora mutilada, a mando do pai, que estavaem Portugal. Teria cerca de sete anos. A de-núncia deu origem ao primeiro caso de mu-tilação investigado em Portugal. Mas o cri-me, ocorrido em 1993 numa aldeia da Gui-né Bissau, já tinha prescrito. O pai foicondenado a uma pena suspensa de 20 me-ses de prisão, apenas pelo crime de maustratos.

Mesmo assim, a jovem foi sujeita a perí-cia e recordou o pesadelo da sua vida. Amãe levou-a para um «descampado» e alifoi cercadapor quatromulheres, que a imo-bilizaram. Cortaram-lhe «primeiro o clíto-ris e depois o lábio direito».Aliceesperneoue conseguiu escapar. Mas «o sangue jorra-va». Durante meses teve «dores horríveis».Para curar as feridas, a avó esfregava-lhe avagina «com água a ferver e umas palhas».Perdeu «a sensibilidade» na área genital.

A revolta veio na adolescência. Alice nãoconseguia ter namorados nem sequer to-mar banho na escola, «por vergonha»de semostrar.

Natural da Guiné-Bissau, Braima Injai,obstetra de Santa Maria, não subestima operigo deste ritual de iniciação: «Isto é fei-to numa casa-de-banho, num quintal ou mesmo na mata. As meninas ficam lá pelo menos uma semana, têm hemorragias abundantes, por vezes apanham infecções e algumas morrem. Muitas vezes, é usado o mesmo canivete para todas».

MutiladascadavezmaiscedoO grande problema, avisa o médico, é quea excisão «faz-se cada vez mais cedo, para não chamar a atenção das autoridades»:«Às vezes em recém-nascidos de dois ou três meses. O pior é que a infecção pode ser fatal para um bebé».

Ana tinha apenas dois anos quando foimutilada na Guiné-Conacri. E talvez porisso não se lembra de nada. O caso foi de-nunciado já depois de a família se mudarpara Portugal. Em Maio de 2011, uma de-núncia anónima chegava à Comissão deProtecção de Crianças e Jovens (CPCJ) daAmadora avisando que a menina, entãocom 16 anos, fora mutilada e a família pre-parava-se para a vender para se casar naGuiné. Como a mãe se esquivou dos técni-

cos e da Polícia, a CPCJ alertou o tribunal,o que originou um inquérito. O exame con-firmou que Ana não tinha clítoris – e con-siderou a lesão compatível com os pressu-postos do crime de ofensa grave, por afec-tar «de maneira grave e permanente a capacidade de fruição sexual».

A mãe chegou a ser constituída arguida,mas alegou nada ter que ver com a mutila-ção da filha. Tinha sido a avó, que entretan-tomorrera,aresponsávelpelo ‘fanado’.Aosinspectoresda Judiciária,a mulher contouque quando um dia chegou a casa, encon-trou a filha, em lágrimas, ao colo da avó. Oinquérito,maisum,foiarquivadopeloDIAPdaAmadoraporfaltadeindícios «de que te-nha sido a mãe a cometer o crime» e por«não se ter apurado a identidade de tercei-ros participantes»– escreveu o procurador.Ana continua a viver na Brandoa com amãe,doisirmãoseumairmã,decincoanos.À Polícia, a mãe garantiu que não pretende

sujeitar a filha mais nova ao mesmo ritual,embora não entenda por que razão a socie-dade ocidental condena «uma tradição».

«É muito difícil ao tribunal e mesmo às CPCJ actuarem em abstracto, com base em perigos potenciais»,disseaoSOLMiguelPe-reira, procurador do Tribunal de Família eMenores da Amadora, que acompanhou oprocessodepromoçãoeprotecçãodamenor,que entretanto também foi arquivado.

A comissão de protecção de crianças e jo-vens de Sintra Oriental foi a única do dis-

trito de Lisboa que identificou meninasem risco de serem mutiladas. «Estavam institucionalizadas por outras situações de perigo. A suspeita surgiu quando fami-liares insistiram muito para que a crian-ça saísse para estar presente num ritual muito importante para a família», disse aoSOL Helena Vitória, ex-presidente da co-missão. Entre 2006 e 2011, dez a 20 meni-nas guineenses mereceram uma atençãoredobrada dos técnicos e, nos casos em quea suspeita foi mais evidente, a comissãoinformou o Ministério Público.

«Grande parte das mutilações acontece no país de origem das famílias e as crianças são levadas durante as férias. O que não quer di-zer que não haja ‘fanatecas’ pagas para o fa-zer cá. Mas não havendo queixas é muito di-fícil detectar estas situações», admite CarlaFalua, da Escola de Polícia Judiciária.

Segundo a Organização Mundial de Saú-de, Portugal é um país de risco nesta área,por acolher muitos imigrantes oriundosde países conotados com a excisão, sobre-tudo da Guiné-Bissau. A verdade é que ain-da ninguém sabe quantas mulheres a resi-direm no país foram excisadas nem quan-tas meninas estão em risco de ser

condenadas à mesma sorte das mães.«As condições de grande secretismo em que é praticada a mutilação po-

dem explicar a sua não detecção e a não punição dos autores» – sublinha Fá-

tima Duarte, presidente da CIG, adiantan-do que nos próximos meses será lançadoum estudo de prevalência para identificara dimensão e as características do fenóme-no em Portugal.

«Osmédicos têm um contributoimportante. Podem esclareceras mulheres, dar-lhesargumentos»

«Aexcisão faz-se cada vezmaiscedo para não chamar a atençãodas autoridades», diz o obstetraBraima Injai. «A infecção podeser fatal para um bebé»

‘Nunca deixarei que façamOMESMOÀMINHAFILHA’Há cada vez mais vítimas de mutilação que recusam sujeitaras filhas ao mesmo ritual. Uma mulher contou ao SOLcomo enfrentou a família Texto de Sónia Graça

MARVILACAR/GETTY

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