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O OLHAR CONSTITUCIONAL BRASILEIRO SOBRE A PROPRIEDADE RURAL E AGRÁRIA CARLOS EDUARDO SILVA E SOUZA Mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso Coordenador do Curso de Direito Campus Pantanal da Universidade de Cuiabá Professor da Faculdade de Direito (Graduação e Pós-Graduação) da Universidade de Cuiabá Advogado do Escritório Silva Neto e Souza Advogados [email protected] RESUMO: O presente artigo objetiva a analisar especificamente a atenção conferida pelo constituinte brasileiro para a propriedade agrária e rural, ao mesmo tempo em que se busca observar, de forma crítica, cada um dos apontamentos e previsões conferidos pela Carta Magna brasileira sobre o assunto, de forma a se averiguar, nesse ponto, a aplicabilidade prática e efetividade da indigitada norma, especialmente considerando a relevância desse tipo de domínio no cenário nacional. Nesse sentido, objetiva-se compreender como a legislação maior brasileira enxerga e delimita a propriedade agrária, a fim de que se possa adequá-la a todas as suas finalidades. Com esse foco, dez perspectivas foram identificadas, as quais são discutidas ao longo do presente trabalho, esperando contribuir para a melhor compreensão da legislação sobre o assunto. ABSTRACT: This article aims to analyze specific attention given to the constituent Brazilian agrarian and rural property at the same time that we checked in a critical way, each of the notes and predictions given by the Brazilian Constitution on the subject, so to ascertain, at this point, the practical applicability and effectiveness of the nominated standard, especially considering the relevance of this kind in the national domain. In this sense, the objective is to understand how the law sees and defines most Brazilian landed property, so that you can adapt it to all your purposes. With this focus, ten prospects were identified, which are discussed throughout this work, hoping to contribute to a better understanding of the legislation on the subject. PALAVRAS-CHAVE: Propriedade. Imóvel. Agrariedade. Ruralidade. Constituição. KEYWORDS: Property, Property; Agrariedade; Rural Affairs; Constitution. SUMÁRIO: Introdução. 1. A expressão adotada pela Constituição Federal. 2. Os reflexos constitucionais sobre a propriedade agrária e rural. 3. A impenhorabilidade da pequena propriedade rural. 4. A competência privativa para legislar sobre direito agrário. 5. O imposto territorial rural progressivo. 6. A função social da propriedade agrária. 7. A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. 8. Diretrizes gerais da política agrária. 9. Normas referentes às terras públicas devolutas. 10. Limites referentes à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros. 11. A usucapião constitucional agrária. 12. A expropriação das glebas de terras onde forem cultivadas ilegalmente plantas psicotrópicas. Considerações finais. THE LOOK OF BRAZILIAN CONSTITUTION ABOUT OF THE CONSTITUTIONAL PROPERTY AND RURAL LAND

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  • O OLHAR CONSTITUCIONAL BRASILEIRO SOBRE A

    PROPRIEDADE RURAL E AGRRIA

    CARLOS EDUARDO SILVA E SOUZA

    Mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso

    Coordenador do Curso de Direito Campus Pantanal da Universidade de Cuiab Professor da Faculdade de Direito (Graduao e Ps-Graduao) da Universidade de Cuiab

    Advogado do Escritrio Silva Neto e Souza Advogados [email protected]

    RESUMO: O presente artigo objetiva a analisar especificamente a ateno conferida pelo

    constituinte brasileiro para a propriedade agrria e rural, ao mesmo tempo em que se

    busca observar, de forma crtica, cada um dos apontamentos e previses conferidos pela

    Carta Magna brasileira sobre o assunto, de forma a se averiguar, nesse ponto, a

    aplicabilidade prtica e efetividade da indigitada norma, especialmente considerando a

    relevncia desse tipo de domnio no cenrio nacional. Nesse sentido, objetiva-se

    compreender como a legislao maior brasileira enxerga e delimita a propriedade

    agrria, a fim de que se possa adequ-la a todas as suas finalidades. Com esse foco, dez

    perspectivas foram identificadas, as quais so discutidas ao longo do presente trabalho,

    esperando contribuir para a melhor compreenso da legislao sobre o assunto.

    ABSTRACT: This article aims to analyze specific attention given to the constituent Brazilian

    agrarian and rural property at the same time that we checked in a critical way, each of

    the notes and predictions given by the Brazilian Constitution on the subject, so to

    ascertain, at this point, the practical applicability and effectiveness of the nominated

    standard, especially considering the relevance of this kind in the national domain. In this

    sense, the objective is to understand how the law sees and defines most Brazilian landed

    property, so that you can adapt it to all your purposes. With this focus, ten prospects

    were identified, which are discussed throughout this work, hoping to contribute to a

    better understanding of the legislation on the subject.

    PALAVRAS-CHAVE: Propriedade. Imvel. Agrariedade. Ruralidade. Constituio.

    KEYWORDS: Property, Property; Agrariedade; Rural Affairs; Constitution.

    SUMRIO: Introduo. 1. A expresso adotada pela Constituio Federal. 2. Os reflexos

    constitucionais sobre a propriedade agrria e rural. 3. A impenhorabilidade da pequena propriedade

    rural. 4. A competncia privativa para legislar sobre direito agrrio. 5. O imposto territorial rural

    progressivo. 6. A funo social da propriedade agrria. 7. A desapropriao por interesse social para

    fins de reforma agrria. 8. Diretrizes gerais da poltica agrria. 9. Normas referentes s terras pblicas

    devolutas. 10. Limites referentes aquisio de imveis rurais por estrangeiros. 11. A usucapio

    constitucional agrria. 12. A expropriao das glebas de terras onde forem cultivadas ilegalmente

    plantas psicotrpicas. Consideraes finais.

    THE LOOK OF BRAZILIAN CONSTITUTION ABOUT OF THE CONSTITUTIONAL PROPERTY AND RURAL LAND

  • Introduo

    O presente artigo objetiva apreciar a ateno conferida pelo legislador constitucional

    brasileiro para a propriedade agrria e rural, apreciando a relevncia conferida por ele no texto

    da Carta Magna, bem como apreciando, em sntese, a aplicabilidade prtica de suas

    imposies.

    nesse sentido que, primeiramente, se trata de delinear qual a expresso adotada

    pela Constituio Federal brasileira, para, em seguida, se apreciar cada um dos reflexos (ou

    apontamentos) realizados pela Constituio Federal para o aludido imvel rural.

    Realizando-se esse estudo, espera-se compreender o papel desse especfico tipo de

    propriedade no cenrio brasileiro, especificamente sobre o norte constitucional, que deve ser o

    fio condutor de todas as demais legislaes existentes, das aes governamentais e do trato

    que aquela deve receber pelo particular.

    1. A expresso adotada pela Constituio Federal

    Apreciar o olhar constitucional sobre determinado assunto de extrema relevncia,

    pois a Carta Magna revela as linhas mestras e fundamentais de determinado povo, sob as

    quais este deseja viver1. assim que se inclina o presente estudo, com o intento de apreciar as

    normas guias sobre determinado assunto. Antes, porm, reserva-se, em momento inicial, para

    se verificar qual a expresso que foi adotada para a propriedade, que o foco do presente

    trabalho.

    Em detida anlise do texto constitucional brasileiro, pode-se perceber, sem grandes

    dificuldades, que o mesmo adotou, ao longo de todo a sua extenso, a expresso imvel

    rural e propriedade rural.

    Isso no quer dizer que o sentido da expresso rural seja nico. Pelo contrrio. Ao

    se deparar com o texto constitucional, o intrprete deve ter o cuidado para averiguar se a Carta

    Magna brasileira objetiva se referir ao imvel localizado na zona rural (aqui propriamente se

    referindo ao imvel rural) ou quele que se destina a produo agrcola ou pecuria, que

    necessariamente no precisa estar localizado na rea rural (da porque, nessa ltima direo, o

    sentido empregado est relacionado ao imvel agrrio). Sobre a questo, merece anotao a

    1 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e cincia poltica. 3 ed. So Paulo: Saraiva, 1995. p. 32.

  • lio de Gustavo Elias Kalls Rezek:

    Sob a mesma designao de imvel rural, a legislao brasileira confunde o imvel localizado na zona rural com aquele destinado atividade agrria.

    Mistura-se, em meio a um emaranhado de contradies, o tratamento

    jurdico conferido a ambos.2

    Assim, o fato do constituinte ter adotado uma nica expresso (qual seja, imvel

    rural) no implica necessariamente dizer que o sentido da sua utilizao seja nico, de forma

    que ora possa estar sendo empregado o elemento da ruralidade e ora o da agrariedade.

    2. Os reflexos constitucionais sobre a propriedade agrria e rural

    Realizada a observao sobre a terminologia constitucional, imprescindvel anotar

    que a propriedade3 rural e a agrria tiveram, pelo menos, dez apontamentos realizados pela

    Constituio da Repblica Federativa do Brasil, o que revela o tamanho da ateno

    dispensada pelo constituinte em relao a esse especfico tipo de domnio.

    A noo do que aqui apontado ganha contornos novos e variados, especialmente

    quando se tem em vista a lio de Roberto Marquesi:

    (...) o exame do direito de propriedade hoje no se pode fazer sob a

    perspectiva do Direito Privado apenas. Relegado histria jurdica o carter

    estritamente individual do domnio, que caracterizou o instituto desde a sua

    gnese at as teorias de humanizao do sculo XIX, os interesses coletivos

    no devem ser descurados na pesquisa do instituto, cuja vocao, cada dia

    mais se compreende, reside no justo equacionamento entre os interesses do

    proprietrio e os anseios da sociedade.

    o fato que o Direito Privado est se impregnado de um contedo social,

    visto que o egosmo, o individualismo e a patrimonializao, idias presentes

    nas razes do Direito Privado, esto cedendo espao para novas tendncias,

    dentras as quais se destacam a repersonalizao e a funcionalizao dos

    institutos privados. Esse novo modelo, fundado na valorizao da pessoa,

    postula a aplicao de uma principiologia, parte presente no sistema privado,

    parte gravitando na rbita constitucional. No mundo contemporneo, a

    Constituio no tem mais aplicao residual s situaes privadas; agora,

    2 REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio: agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba: Juru, 2011. p.

    36-37. 3 Abordando a questo da legitimidade da propriedade, Maria Helena Diniz esclarece que a propriedade foi

    concebida ao ser humano pela prpria natureza para que possa atender s suas necessidades e s de sua

    famlia. Por todas essas razes, pela sua funo social e pelo servio que presta s sociedades civilizadas,

    justifica-se, plenamente, a existncia jurdica da propriedade (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil:

    direito das coisas. v. 4. 26 ed. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 125).

  • ela a fonte em que se abebera o aplicador do Direito.4

    Esses reflexos so especificamente: (i) a impenhorabilidade da pequena propriedade

    rural (art. 5, XXVI, CF); (ii) a competncia privativa para legislar sobre direito agrrio (art.

    22, I, CF); (iii) o imposto territorial rural progressivo (art. 153, VI e 4); (iv) funo social

    da propriedade agrria (art. 186, CF); (v) desapropriao por interesse social para fins de

    reforma agrria (art. 184, CF); (vi) diretrizes gerais da poltica agrria (art. 187, CF); (vii)

    normas referentes s terras pblicas devolutas (art. 188, CF); (viii) limites referentes

    aquisio de imveis rurais por estrangeiros (art. 190, CF); (ix) a usucapio constitucional

    agrria (art. 191, CF); e (x) a expropriao das glebas de terras onde forem cultivadas

    ilegalmente plantas psicotrpicas (art. 243, CF).5

    Nos prximos tpicos, cada um dos mencionados reflexos sero analisados

    individualmente, a fim de se perceber, ainda que sinteticamente, o olhar constitucional

    brasileiro sobre a propriedade agrria e rural.

    3. A impenhorabilidade da pequena propriedade rural

    A pequena propriedade rural6 est amparada pela impenhorabilidade de dvidas

    decorrentes da atividade produtiva que nela produzida e que eventualmente pudessem recair

    sobre a mesma, conforme se infere do artigo 5, XXVI da Constituio Federal:

    Art. 5 (...)

    XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que

    trabalhada pela famlia, no ser objeto de penhora para pagamento de

    dbitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios

    de financiar o seu desenvolvimento;

    Note-se que o imvel aqui pode ser tanto o rural, quanto o agrrio, mas que a

    4 MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios & funo social. 2 ed. rev., atual. e ampl. Curitiba:

    Juru, 2009. p. 98-99. 5 Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 119-120.

    6 John O. Browder expe interessante relao em o pequeno proprietrio de terras rurais e as polticas pblicas

    florestais, seno vejamos: While Brazilian Amazon development policy has emphasized the expansion of large-

    scale capitalist enterprises, settlement by small farmers also has been significant in regional development efforts

    and an important cause of tropical forest conversion. Colonization programs have been motivated by four

    national concerns: a growing landless peasant class, idled by drought and agro-industrial land consolidation

    (mainly in the Northeast and South); seasonal labor shortages in the Amazons growing extractive industries; agricultural subsidies to stimulate domestic and export food crop production; and the military regimes desire to secure national sovereignty in a frontier region sharing undefended borders with seven neighboring nations

    (BROWDER, John O. Public policy and desforestation in the Brazilian Amazon. In: REPETTO, Robert &

    GILLIS, Malcolm. Public policies and the misuse of forest resources. Word Resources Instiute: Nova Iorque:

    1998. p. 278).

  • impenhorabilidade no plena, j que ela se refere apenas aos dbitos que so oriundos da

    atividade produtiva nele exercida.7

    No h previso legislativa expressa sobre qual seria a pequena propriedade rural a

    que o aludido o mencionado dispositivo constitucional faz referncia, razo pela qual cabe ao

    intrprete realizar tal tarefa.

    nesse sentido que surgem trs possibilidades para a compreenso do que viria a ser

    pequena propriedade rural: (i) a primeira seria lanada na previso contida no Estatuto da

    Terra, em seu artigo 4, II, que trata da propriedade familiar8; (ii) a segunda estaria

    relacionada com a noo de pequena propriedade, cuja previso est relacionada na Lei

    8.629/939; (iii) por fim, a terceira se relacionaria com o conceito de pequenas glebas, que se

    encontra prescrita na Lei 9.393/9610

    .11

    Colocadas essas possibilidades sobre a anlise jurisprudencial, o Supremo Tribunal

    Federal inclinou-se pela segunda possibilidade, isto , a impenhorabilidade prevista no

    indigitado dispositivo constitucional seria direcionada para os imveis que se encaixassem na

    prescrio contida na Lei 8.629/93, conforme se infere da seguinte deciso:

    DECISO - PENHORA - PEQUENA PROPRIEDADE RURAL -

    DEFINIO AGRAVO DESPROVIDO. 1. O recurso extraordinrio cujo trnsito busca-se alcanar foi interposto,

    com alegada base na alnea "a" do permissivo constitucional, contra acrdo

    proferido pelo Tribunal de Alada do Estado do Paran, assim sintetizado:

    IMPENHORABILIDADE - PEQUENA PROPRIEDADE RURAL -

    DEFINIO DE MDULO RURAL - INCIDNCIA DO ART. 649, X,

    DO CPC - APELAO IMPROVIDA.

    O mdulo do imvel rural referenciado como impenhorvel, segundo o

    inciso X do art. 649 do CPC, no se confunde com frao mnima de

    parcelamento de solo, reservada esta a desmembramento da menor parte

    possvel da rea agrcola, tendo aquele sua dimenso definida segundo

    fatores especficos de apurao, entre os quais se enfeixam o de localizao,

    7 Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 121.

    8 Esse artigo do Estatuto da Terra possui a seguinte redao: Art. 4 Para os efeitos desta Lei, definem-se: (...) II

    - "Propriedade Familiar", o imvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua famlia,

    lhes absorva toda a fora de trabalho, garantindo-lhes a subsistncia e o progresso social e econmico, com

    rea mxima fixada para cada regio e tipo de explorao, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros; 9 A Lei 8.629/93 prev, em seu artigo 4, II, o conceito de pequena propriedade, seno vejamos: Art. 4 Para os

    efeitos desta lei, conceituam-se: (...) II - Pequena Propriedade - o imvel rural: a) de rea compreendida entre 1

    (um) e 4 (quatro) mdulos fiscais. 10

    Por sua vez, a Lei 9.393/96 prescreve, em seu artigo 2, a noo de pequenas glebas, cujo teor o seguinte:

    Art. 2 Nos termos do art. 153, 4, in fine, da Constituio, o imposto no incide sobre pequenas glebas rurais,

    quando as explore, s ou com sua famlia, o proprietrio que no possua outro imvel. Pargrafo nico. Para

    os efeitos deste artigo, pequenas glebas rurais so os imveis com rea igual ou inferior a : I - 100 ha, se

    localizado em municpio compreendido na Amaznia Ocidental ou no Pantanal mato-grossense e sul-mato-

    grossense; II - 50 ha, se localizado em municpio compreendido no Polgono das Secas ou na Amaznia

    Oriental; III - 30 ha, se localizado em qualquer outro municpio. 11

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 121.

  • tipo de cultura e espcie de explorao rural incidente sobre o imvel,

    definidos atravs da complexa lei agrria (folha 23).

    Articula-se com o malferimento do artigo 5, inciso XXVI, da Carta Poltica

    da Repblica, insistindo-se na possibilidade de penhorar-se a gleba em

    questo. Alude-se ao fato de no encontrar justificativa plausvel para os

    parmetros utilizados pela Corte de origem relativamente fixao do

    mdulo mnimo da pequena propriedade rural a ser protegido. Sustenta-se

    ainda haverem sido desprezados os demais requisitos previstos no preceito

    para ter-se por impenhorvel o imvel (folha 29 34). (...)

    2. (...) A norma evocada pela Agravante implica garantia constitucional

    da parte contrria ao dispor que: A pequena propriedade rural, assim

    definida em lei, desde que trabalhada pela famlia, no ser objeto de

    penhora para pagamento de dbitos decorrentes de sua atividade produtiva,

    dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.

    Pois bem, cumpre, ento, perquirir o que se entende como pequena

    propriedade rural. A Lei n 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, define-a com

    base na rea compreendida entre um e quatro mdulos fiscais e muito

    embora tal diploma diga respeito desapropriao-pena do artigo 185 da

    Constituio Federal, iniludivelmente, fixa os parmetros concernentes

    pequena propriedade, e esta no pode ser considerada de forma distinta,

    tendo em conta tratar-se de desapropriao ou penhora. que est prevista

    em um mesmo diploma, ou seja, na Constituio Federal e, por isso mesmo,

    deve ter definio nica. Tenho como aplicvel espcie a citada lei, no

    conferindo referncia desapropriao eficcia restritiva. De qualquer

    modo, mesmo que no se adote essa ptica, h de distinguir-se entre pequena

    propriedade e mdulo rural mnimo, definido pela legislao competente. A

    coincidncia no necessria. As regras concernentes s posturas municipais

    podem direcionar de maneira a chegar-se a extenso menor que a definidora

    da pequena propriedade. (...). No artigo 4 da Lei n 4.504, de 30 de

    novembro de 1964 - estatuto da terra -, alude-se ao mdulo rural, definindo-

    se como propriedade familiar o imvel que, direta e pessoalmente explorado

    pelo agricultor e sua famlia, absorva-lhes toda a fora do trabalho,

    garantindo-lhes a subsistncia e o progresso social e econmico, com rea

    mxima fixada para cada regio e tipo de explorao e, eventualmente,

    trabalhado com a ajuda de terceiros. (...).12

    Assim, resta claro que eventuais dvidas, oriundas da atividade produtiva

    desenvolvidas na pequena propriedade rural, isto , aquela compreendida entre 1 e 4 mdulos

    fiscais, no devem culminar em penhora do imvel em questo, sob de pena de incorrer

    violao expressa do texto constitucional.

    4. A competncia privativa para legislar sobre o direito agrrio

    Tema sem grande dificuldade de compreenso o que se encontra prescrito na

    Constituio Federal, em seu artigo 22, I, isto , que Unio cabe, privativamente, legislar

    12

    Brasil. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 220.115/PR. Disponvel em:

    . Acesso em 19 jun. 2011.

  • sobre o direito agrrio, de tal forma que apenas mesma que se incumbe tal tarefa, no

    podendo, ademais, ser delegvel.

    Apreciando a questo, argumenta Edson Ferreira de Carvalho o seguinte:

    (...) sob o ponto de vista formal, foi a EC 10/64 que erigiu o Direito Agrrio

    condio de ramo especfico do Direito, incluindo-o na Constituio ao

    lado dos demais ramos existentes. Dessa forma, foi consagrada a autonomia

    legislativa do Direito Agrrio. Na Constituio de 1988, o dispositivo

    repetido no art. 22, I (...).13

    Deve-se notar que no se trata de competncia exclusiva, na qual haveria a

    possibilidade de delegao para legislar sobre determinado assunto, ainda que, a princpio,

    coubesse a algum ente federativo.

    5. O imposto territorial rural progressivo

    A Lei Maior brasileira, em seu artigo 153, VI, 4 tratou de prever o imposto14

    territorial rural progressivo, com duplo objetivo, quais sejam: (i) desestimular a propriedade

    produtiva15

    ; (ii) conferir imunidade fiscal s pequenas glebas.16

    Deve-se compreender que, nesse imposto, o elemento da ruralidade est presente na

    incidncia, ao passo que o da agrariedade se encontra na progressividade. Isto quer dizer que

    os imveis tributados so aqueles que se encontram na zona rural (da o elemento da

    ruralidade), mas as alquotas so distribudas segundo o grau de utilizao (o que faz

    evidenciar a presena do carter agrrio).17

    importante observar, entretanto, que o Senado editou a Resoluo 9, em junho de

    2005, a qual revigorou o Decreto-lei 57/1966, no qual se possibilita a imposio do imposto

    13

    CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual didtico de direito agrrio. Curitiba: Juru, 2010. p. 72. 14

    Para Arnaldo Wald, em viso eminentemente civilista, o Estado cerceia a plenitude do direito de propriedade

    por certas emanaes de sua soberania, que so a tributao, a desapropriao e a requisio (WALD,

    Arnaldo. Direito civil: direito das coisas. v. 4. 12 ed. reform. So Paulo: Saraiva, 2009. p.149). 15

    Edson Ferreira de Carvalho entende a Constituio Federal de 1988 adotou abordagem bastante estreita, ao

    estabelecer como objetivo principal do ITR apenas o de desestimular a manuteno de propriedades

    improdutivas. Lgica que se resume dimenso economicista da funo social da terra, que, como se sabe, no

    se reduz ao aspecto produtivo (CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual didtico de direito agrrio..., cit. p.

    363). 16

    Interessante a advertncia de Benedito Ferreira Marques, que argumenta que consignar o carter reformista

    que deve ter a tributao. Infelizmente, em nosso pas, essa caracterstica no tem sido levada a srio.

    Propriedades improdutivas de grande extenso continuam em poder de poucos, e no se tem notcia de que uma

    tributao pesada tenha sido aplicada, de modo a cumprir os objetivos assinalados no 4 do art. 153 da Carta

    Magna do Pas, no sentido de desestimular a manuteno das propriedades improdutivas (MARQUES,

    Benedito Ferreira. Direito agrrio brasileiro. So Paulo: Atlas, 2011. 9 ed. rev. e ampl. p. 200). 17

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 129.

  • territorial rural ao imvel agrrio que se encontrar na zona urbana.18

    Outra constatao de grande relevncia, em relao a esse aspecto, que a

    progressividade tem sido verificada at os presentes dias, segundo declarao emitida pelo

    prprio proprietrio, o que, por razes bvias, faz comprometer as polticas agrria e a

    fundiria.

    Para tanto, imprescindvel a realizao de cadastro impecvel e fiscalizao

    constante do imvel agrrio. verdade que essa tarefa no nenhum um pouco fcil de ser

    concretizada, mas no h nenhuma dvida de que ela necessria, especialmente para que se

    possa verdadeiramente analisar o cumprimento da funo social da propriedade, a

    implementao das retro citadas polticas, bem como a real aplicao da progressividade no

    imposto territorial rural19

    . Sobre o assunto, observe-se a lio de Gustavo Elias Kalls Rezek:

    A construo de uma estrutura fundiria racional e justa, base para o

    progresso do campo brasileiro, passa necessariamente pela existncia e

    atualizao de um cadastro rural e agrrio condizente com os reais fatos

    presentes na vivncia diria da terra. O Direito Agrrio, desde o seu

    reconhecimento como disciplina jurdica, sempre se preocupou com a

    viabilizao de um cadastro de imveis agrrios, realizado atravs de

    minuciosa fiscalizao no campo.20

    Soluo nesse sentido, proposta h no muito tempo, foi realizada pela Lei

    10.267/2001, que instituiu o CNIR Cadastro Nacional do Imvel Rural, cuja implementao

    incumbiria conjuntamente ao INCRA e a Receita Federal. da indigitada lei, que surgiu a

    necessidade de utilizao do GPS para os casos de parcelamento, desmembramento e

    remembramento de imveis rurais, bem como em aes judiciais que versem sobre os limites

    e confrontaes de tais imveis. A idia, conquanto bastante interessante, tem surtido efeitos

    prticos mnimos; constatao essa, alis, que se faz com suporte no II Plano de Reforma

    Agrria 2004/200721

    , onde se concluiu, depois de se apontar inmeras anomalias e

    irregularidades, o seguinte:

    A importncia de um recadastramento de todos os imveis rurais e da

    reviso das normas que regem o processo de registro das propriedades

    ainda maior quando se observa que as possibilidades de obteno de terras

    18

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 130. 19

    Benedito Ferreira Marques adverte que, embora se compreenda o propsito do legislador de resto, salutar , para o doutrinador agrarista as leis editadas que envolvem imveis rurais nos quais se realizam as atividades agrrias devem ser analisadas com o olhar de quem trabalha na terra, de quem produz, de quem faz cumprir a funo social (MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrrio brasileiro. So Paulo: Atlas, 2011. 9 ed. rev. e

    ampl. p. 199). 20

    REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 152. 21

    Ibidem. p. 154-155.

  • para Reforma Agrria esto condicionadas por dois indicadores que

    dependem das informaes contidas no Cadastro do INCRA: o mdulo fiscal

    e os ndices de produtividade.

    Por isso, o Plano Nacional de Reforma Agrria tem como uma de suas

    prioridades a constituio do Cadastro Nacional de Imveis Rurais CNIR de uso mltiplo com a utilizao de imagens de satlite e do

    georeferencimanto de todos os imveis rurais, que resultar

    progressivamente num novo mapa fundirio do pas e em referncia

    obrigatria para a formulao e implementao de polticas de

    desenvolvimento rural.22

    Pelo exposto, a idia de se ter a progressividade no imposto territorial rural de

    extrema relevncia, para fins diversos, especialmente o de estimular o cumprimento da funo

    social da propriedade (que ser analisada a seguir), mas h que se dar operacionalidade ao

    objetivo proposto pela lei, a fim de que ela no se afigure na condio de letra morta.

    6. A funo social da propriedade agrria

    A funo social23

    da propriedade24

    agrria est expressamente prevista na

    Constituio da Repblica Federativa do Brasil no artigo 186, onde tambm se prev os

    requisitos necessrios para que a mesma seja considerada como adimplida, seno vejamos:

    Art. 186. A funo social cumprida quando a propriedade rural atende,

    simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em

    lei, aos seguintes requisitos:

    I - aproveitamento racional e adequado;

    II - utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do

    22

    Brasil. II Plano Nacional de Reforma Agrria. Disponvel em

    . Acesso em: 19 jun. 2011. 23

    interessante a exposio de Fbio Ulhoa Coelho sobre a viso ideolgica e ontolgico da funo social da

    propriedade. Ele explica que os pensadores de inspirao liberal tendem a ver a funo social como limite ao

    direito, procurando caracteriz-la como acessria e temporria. Os limites, nessa perspectiva, podem ser

    flexibilizados ou reduzidos, a fim de que a propriedade ilimitada encontre brechas a reaparecer. De outro lado,

    os de inspirao neoliberal ou socialista afirmam a funo social como elemento da estrutura do direito de

    propriedade porque a querem definitivamente incorporada ao instituto. Sob o ponto de vista ontolgico, isto ,

    da definio das pautas para nortear a superao dos conflitos de interesses relacionados matria, um tanto

    indiferente a qualificao dada funo social, se limitao ou elemento estrutural. Nas duas hipteses, se

    determinado o uso da propriedade no se admitir por incompatvel com a funo social, pouco importa se nisso

    foi extrapolado um limite imposto pela ordem jurdica ou desconsiderada do direito. Tal uso no se admite e

    pronto (COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de direito civil: direito das coisas, direito autoral. v. 4. 2 rev. e atual.

    So Paulo: Saraiva, 2009. p. 69). 24

    Interessante a lio de Jos Luis Serrano sobre o princpio proprietrio, do qual se destaca o seguinte: la

    autonomia de lo econmico inaugura el principio proprietario aquel en virtud del cual el sistema econmico permite la disponibilidad de sus objetos y permite su utilizacin racional en ventaje de algunos hombres y, al hacerlo, produce una verdadera mutacin antropologica (SERRANO, Jos Luis. Principios de derecho

    ambiental y ecologia jurdica. Madrid: Trotta, 2007. p. 49).

  • meio ambiente25

    ;

    III - observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho;

    IV - explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos

    trabalhadores.

    Deve-se ter em mente que a funo social da propriedade26

    princpio primordial do

    Direito Agrrio direcionado ao imvel rural27

    , isto , aquele localizado na zona rural. H

    quem entenda, entretanto, que o imvel agrrio que se localizasse na zona urbana deveria

    atender, simultaneamente, a funo social da propriedade urbana28

    e rural.29

    Impera-se anotar

    a lio de Gustavo Elias Kalls Rezek sobre o assunto, que explica o seguinte:

    (...) podemos reconhecer trs preocupaes fundamentais do constituinte, ao

    estruturar a funo social do imvel agrrio: a primeira, de ordem

    econmica, centrada na produtividade de bem, no seu aproveitamento

    racional e adequado; a segunda, de ordem ambiental30

    , localizada no respeito

    ao meio ambiente e na conservao dos recursos naturais; a terceira, de

    ordem social em sentido estrito, focada no respeito s relaes de trabalho,

    visando o bem-estar de trabalhadores e proprietrios.31

    25

    Ricardo Luis Lorezentti denomina essa variante como funo ambiental, apontando anotaes a respeito em relao ao sistema argentino (LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral de direito ambiental. So Paulo:

    Revista dos Tribunais, 2010. p. 51-53). Para Paulo Affonso Leme Machado, a funo social da propriedade

    um princpio que, de forma operante e contnua, emite sua mensagem para juzes, legisladores e rgos da

    Administrao, alm de ser dirigido aos prprios proprietrios (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito

    ambiental brasileiro. So Paulo: Malheiros, 2011. 19 ed. rev., atual. e ampl. p. 163). 26

    Nelson Nery Jnior e Rosa Maria de Andrade Nery recordam que a Constituio Federal estabelece como

    garantia fundamental e como princpio da ordem econmica a funo social da propriedade. A regra vem do

    art. 153, in fine da Constituio alem de 1919 (NERY JNIOR, Nelson & NERY, Rosa Maria de Andrade.

    Cdigo civil comentado. 7 ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 938). 27

    Com esse posicionamento concorda Edson Ferreira de Carvalho, que leciona tambm que a funo social da

    propriedade no se confunde com a afetao de seus caracteres tradicionais (absoluto, exclusivo e perptuo).

    Estes, dizem respeito ao exerccio do direito pelo proprietrio e no, estrutura interna do direito de

    propriedade, que est subordinada funcionalidade social. A funo social intrnseca propriedade privada,

    de modo que no basta apenas o ttulo aquisitivo para conferir-lhe legitimidade. Exige-se que seu titular, ao

    utilizar o feixe dos poderes nsitos ao direito de propriedade, esteja em conformidade com o dever social

    imposto pela Constituio Federal (CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual didtico de direito agrrio..., cit.

    p. 93). 28

    A funo social da propriedade urbana encontra-se prevista no artigo 182, 2 da Constituio Federal. 29

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 123-128. 30

    A nosso ver, andou bem o legislador nesse sentido. O direito de propriedade no pode se propor existncia

    da prpria humanidade e, nesse sentido, o meio ambiente possui papel de indiscutvel relevncia, uma vez que

    est intrinsecamente ligado qualidade de vida e da sade de todos. Assim, pensar-se e prever-se de tal forma,

    nada mais do que se observar, com acuidade, que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado um

    direito humano fundamental. Essa ilao pode ser obtida no seguinte texto: SOUZA, Carlos Eduardo Silva e.

    Meio ambiente e direitos humanos: dilogo entre os sistemas internacionais de proteo. In: MAZZUOLI,

    Valerio de Oliveira. O novo direito internacional do meio ambiente. Juru: Curitiba, 2001. p. 13-58. Semelhante

    posicionamento tambm pode ser obtido no seguinte texto: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A proteo

    internacional dos direitos humanos e o direito internacional do meio ambiente. In: MARQUES, Claudia Lima,

    MEDAUAR, Odete & SILVA, Solange Teles da. O novo direito administrativo, ambiental e urbanstico:

    estudos em homenagem Jacqueline Morand-Deviller. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. Para a

    compreenso da distino entre direito humano e direito fundamental, vide THEODORO, Marcelo Antonio.

    Direitos fundamentais & sua concretizao. Curitiba: Juru, 2002. p. 26-28. 31

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 125.

  • Observao interessante que o legislador constituinte incorreu em impreciso

    terminolgica ao tratar da funo social da propriedade32

    , pois, em conformidade com o

    dispositivo constitucional encontra-se previsto que, para atender a funo social, o imvel

    deve atender os requisitos ali previstos, mas, em verdade, quem deve atender tais exigncias

    o titular do domnio.

    Por fim, deve-se anotar que, uma vez descumprida33

    a funo social da

    propriedade34

    , o Poder Pblico tem sua disposio mecanismos para exigir a sua

    observncia ou penalizar no caso de sua inobservncia, na qual se encontra, entre eles, a

    prpria desapropriao para fins de reforma agrria.

    7. Diretrizes gerais da poltica agrria

    O conceito de poltica agrria encontra-se previsto no Estatuto da Terra, em seu art.

    1, 2. Nos termos do indigitado dispositivo legal, a poltica agrria (ou agrcola) seria um

    conjunto de providncias de amparo propriedade da terra, que se destinem a orientar, no

    interesse da economia rural, as atividades agropecurias, seja no sentido de garantir-lhes o

    pleno emprego, seja no de harmoniz-las com o processo de industrializao do pas.

    A poltica agrria encontra-se desenhada pela Constituio Federal no seu artigo 187,

    32

    Roberto Senise Lisboa lembra que, conforme o pensamento socialista, a apregoada funo social da

    propriedade a partir das lies de Duguit nada mais do que uma manobra hbil a esconder a substncia da

    propriedade capitalista, j que legitima o lucro e mantm a propriedade individual, descentralizando a

    produo de bens e o seu planejamento (LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direitos reais e

    direitos intelectuais. v. 4. 4 ed. reform. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 80). Por sua vez, Andra Vulcanis

    argumenta que a funo social da propriedade, mais do que mera adaptao do capitalismo, processa

    alteraes externas, mas fundamentalmente internas, de mrito e contedo, modificando a estrutura da

    propriedade de maneira que o reconhecimento e proteo desta passa a estar associado ao imperativo de que o

    bem se encontra aplicado exclusivamente no cumprimento de sua funo social (VULCANIS, Andra.

    Instrumentos de promoo ambiental e o dever de indenizar atribudo ao Estado. Belo Horizonte: Frum, 2008.

    p. 247) 33

    Mrcia Dieguez Leuzinger e Sandra Cureau lecionam que independentemente de entender-se a funo social

    da propriedade como elemento constitutivo da prpria estrutura do direito ou como consectria das limitaes

    administrativas ao direito de propriedade, importante compreend-la como dever imposto ao proprietrio,

    tendente a que atenda no apenas s suas necessidades e aos seus interesses, como tambm, at certo ponto, s

    do corpo social (LEUZINGER, Mrcia Dieguez & CUREAU, Sandra. Direito ambiental. Rio de Janeiro:

    Elsevier, 2008. p. 34). 34

    Patryck de Arajo Ayala argumenta que, especialmente em determinadas situaes, a funo social da

    propriedade no pode ser concebida como um nus exclusivo imposto ao proprietrio pelo Poder Pblico, nem

    tampouco pode ser o resultado de aes pblicas excessivas e arbitrrias. Mas, mesmo que no se trate de nus

    exclusivo imposto do proprietrio, deve-se enfatizar que subsiste sua condio de dever atribudo primeiro ao

    proprietrio, cuja concretizao (e, mais especificamente, defeito de) passvel de controle pelos Poderes

    Pblicos ou de sua execuo pelos Poderes Pblicos e pelos particulares (AYALA, Patryck de Arajo. O novo

    paradigma constitucional e jurisprudencial ambiental do Brasil. In: CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes &

    LEITE, Jos Rubens Morato. Direito constitucional brasileiro. 3 ed. rev. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 420).

  • onde se prescrevem as suas diretrizes gerais, conforme se depreende da sua redao:

    Art. 187. A poltica agrcola ser planejada e executada na forma da lei, com

    a participao efetiva do setor de produo, envolvendo produtores e

    trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercializao, de

    armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:

    I - os instrumentos creditcios e fiscais;

    II - os preos compatveis com os custos de produo e a garantia de

    comercializao;

    III - o incentivo pesquisa e tecnologia;

    IV - a assistncia tcnica e extenso rural;

    V - o seguro agrcola;

    VI - o cooperativismo;

    VII - a eletrificao rural e irrigao;

    VIII - a habitao para o trabalhador rural.

    1 - Incluem-se no planejamento agrcola as atividades agro-industriais,

    agropecurias, pesqueiras e florestais.

    2 - Sero compatibilizadas as aes de poltica agrcola e de reforma

    agrria.

    Importante se notar que a poltica agrria brasileira no construda

    unilateralmente, pois seu fomento deve ser realizado com a participao dos produtores35

    , dos

    trabalhadores, bem como dos setores de comercializao, de armazenamento e de transportes,

    de tal forma a tentar se revelar aquela que se encontra mais apropriada para os objetivos que

    dela so esperados.

    8. Normas referentes s terras pblicas e devolutas

    A Constituio Federal, em seu artigo 188, tambm demonstrou preocupao com as

    terras pblicas e devolutas36

    , orientando que sua destinao deveria estar em consonncia com

    a poltica agrcola e com o plano nacional de reforma agrria37

    .

    Deve-se observar, nos termos do artigo 22, I da Lei Maior brasileira, que as terras

    devolutas indispensveis defesa das fronteiras, das fortificaes e construes militares,

    das vias federais de comunicao e preservao ambiental, definidas em lei so

    consideradas bens da Unio e, aquelas que no se compreendidas a tal ente, so, por

    35

    Interessante, nesse ponto, observar a exposio de Juliana Santilli, para quem a participao de representantes

    dos agricultores em rgos e conselhos responsveis por decises polticas previstas em alguns instrumentos

    legais aprovados pelo Brasil, ressoando, em diversas reas, a necessidade de sua atuao (SANTILLI, Juliana.

    Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. So Paulo: Petropolis, 2009. p. 342). 36

    Vide REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 122. 37

    Nos termos da Lei 11.952/2009, art. 3, IV, as terras devolutas localizadas em faixa de fronteira so passveis

    de regularizao fundiria, sendo, inclusive, aplicveis na Amaznia Legal. Sobre o assunto, recomenda-se

    consulta da seguinte obra: MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrrio brasileiro..., cit. p. 201-210.

  • consequncia, atendendo-se ao que dispe o artigo 26, IV, pertencentes ao Estado. Edson

    Ferreira de Carvalho esclarece que

    (...) a terra devoluta uma espcie de terra pblica includa na categoria de

    bens dominicais, no patrimoniada, porque nunca constou dos registros

    administrativos do patrimnio da Unio ou dos Estados.

    (...) Ao serem discriminadas e arrecadadas as terras devolutas passam a

    integrar o patrimnio pblico disponvel, incorporando-se aos bens

    dominicais ou dominiais. 38

    Prescreve-se, no artigo 188, 1 da Constituio Federal, que a alienao ou

    concesso de terras pblicas para pessoas fsicas ou jurdicas, ainda que por interposta pessoa,

    quando contarem com rea superior a dois mil e quinhentos hectares, depende de prvia

    autorizao do Congresso Nacional, excepcionando-se, desta condio, aquelas destinadas

    para fins de reforma agrria.

    Impera-se, ainda, anotar que, nos termos da Carta Magna brasileira, em seu artigo

    225, 5, que so indisponveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por aes

    discriminatrias39

    , necessrias proteo dos ecossistemas naturais.

    Por fim, anotao relevante quanto a hiptese de transferncia das terras devolutas

    aos agentes privados se efetivar por intermdio do instituto da legitimao da posse, o qual se

    encontra devidamente previsto no artigo 29 da Lei 6.383/76, permitindo a aquisio da licena

    de ocupao, com durao de quatro anos, legitimando a posse de quem a possuir (documento

    esse, alis, inalienvel), o qual pode conduzir a preferncia na aquisio da propriedade, desde

    que observados os valores mnimos estipulados pelo INCRA.

    9. Limites referentes aquisio ou arrendamento de imveis rurais por estrangeiros

    Considerando a importncia do imvel rural, a Constituio Federal, em seu artigo

    190, prescreveu que os estrangeiros, sejam na condio de pessoa fsica ou jurdica,

    necessitam de autorizao do Congresso Nacional para a sua aquisio.40

    A razo de ser dessa limitao bastante simples. Os aludidos imveis esto

    diretamente relacionados com as questes inerentes defesa da segurana nacional, a

    38

    CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual didtico de direito agrrio. Curitiba: Juru, 2010. p. 233-234. O

    autor em questo tambm lembra que no existem mais terras pblicas municipais. 39

    Considerando-se que as terras devolutas so aquelas no inventariadas pelo poder pblico, tem-se disposio

    para a reverso dessa situao o processo discriminatrio, que pode ser encartado pela via administrativa ou

    judicial, alm do que se encontra regulamentado pela Lei 6.383/76. 40

    Vide REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 122.

  • proteo do territrio brasileiro, alm de ser mecanismo de verdadeira defesa dos meios de

    produo pelos nacionais41

    . Sobre o assunto, importante destacar a lio de Rafael Augusto de

    Mendona Lima:

    Estas restries objetivam em primeiro lugar impedir que estrangeiros

    adquiram imveis rurais para simples especulao. Alm disto, estas

    restries objetivam impedir o afluxo excessivo de pessoas estrangeiras para

    o Brasil, principalmente as jurdicas, com a finalidade de adquirir imveis

    rurais, isto , de bens de produo de bens vitais e de matrias primas.

    Finalmente, estas restries visam proteger os nacionais, como evidente

    das disposies que vedam a ocupao de mais de das reas dos

    municpios por pessoa estrangeiras, e as que vedam a ocupao de 40% de

    das reas dos municpios por pessoas estrangeiras de uma mesma

    nacionalidade e esta ltima restrio visa impedir o excesso de concentrao

    de estrangeiros de uma mesma nacionalidade em uma regio determinada.42

    Vale dizer que o assunto em questo tambm tratado pela Lei 5.709/71, que trata

    de fixar limites para a aquisio em questo tanto s pessoas fsicas, quanto jurdicas. No

    artigo 3 da mencionada lei, tem-se que, quando permitida, a aquisio de imvel rural por

    pessoa fsica estrangeira no pode exceder a cinquenta mdulos de explorao definitiva, em

    rea contnua ou descontnua (segundo o que o informa o caput do indigitado artigo)43

    ,

    permitindo, porm, livre aquisio, quando o mesmo no ultrapassar 3 (trs) mdulos (j em

    conformidade com o pargrafo terceiro do mesmo dispositivo legal)44

    . J no que se referem s

    pessoas jurdicas estrangeiras45

    , a lei em comento, em seu artigo 5, teve o cuidado de

    restringir-lhes a possibilidade de aquisio de imveis rurais que fossem destinados

    implantao de projetos agrcolas, pecurios, industriais, ou de colonizao, vinculados aos

    seus objetivos estatutrios.

    41

    No tocante ao tema em questo, Benedito Ferreira Marques tece a seguinte crtica: se o que inspirou a

    legislao restritiva foi a segurana nacional e a proteo dos brasileiros, urge repensar esses motivos, na atual

    quadra da histria, em que se propala a abertura do mercado a todos os setores da economia, inclusive at

    mesmo na explorao do petrleo (MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrrio brasileiro. So Paulo: Atlas,

    2011. 9 ed. rev. e ampl. p. 111). 42

    LIMA, Rafael Mendona Augusto de. Direito agrrio e colonizao. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1875.

    p. 239. 43

    H, entretanto, a possibilidade de aquisio de extenso territorial maior, no caso de se tratar de imvel rural

    vinculado a projetos julgados prioritrios em face dos planos de desenvolvimento do Pas, nos termos do artigo

    12, 3 da Lei 5.709/71. Outra observao de mpar anotao que a aludida limitao no se aplica aos casos

    de sucesso legtima, como prescreve o artigo 1, 2 da mencionada lei. 44

    A lei esclarece, em seu artigo 3, 3, que a aquisio entre 3 e 50 mdulos rurais ser regulamentada por

    norma editada pelo Poder Executivo. Para tanto, editou-se o Decreto 74.965/74, no qual se prescreve que

    necessria a aprovao do INCRA, nos termos do artigo 7, 2, bem como liberam os portugueses de tal

    restrio, como se observa do seu artigo 13, h. Importante registrar, ainda, que, inclusive, o arrendamento de imveis rurais por pessoas fsicas e jurdicas estrangeiras segue critrios semelhantes, conforme prescreve a Lei

    8.629/1993. 45

    Vale observar que, depois do advento da Emenda Constitucional n. 6, que suprimiu o artigo 171 da Carta

    Magna brasileira, no h mais qualquer diferenciao entre pessoas jurdicas de capital nacional ou estrangeiro.

  • Deve-se, ainda, esclarecer que a pessoa fsica estrangeira residente ou domiciliada

    no Brasil e a pessoa jurdica estrangeira autorizada a funcionar no pas esto autorizados a

    adquirir imvel agrrio no territrio nacional.46

    10. A usucapio constitucional agrria

    A usucapio47

    constitucional agrria encontra amparo no texto constitucional, em seu

    artigo 191 e prova evidente de que a funo social da propriedade prestigiada em nosso

    pas.

    Os requisitos para se alcanar a propriedade, por essa modalidade de usucapio, so

    extrados do prprio dispositivo constitucional, isto , o exerccio da posse mansa, pacfica,

    justa e ininterrupta, pelo prazo de cinco anos, sobre determinado imvel rural, cuja extenso

    no seja superior a 50 hectares, devendo o possuidor nele empregar destinao produtiva e

    habitacional, alm de no poder ser proprietrio de nenhum outro imvel na rea urbana ou

    rural.48

    Cumpridos tais requisitos e manejada a pertinente ao de usucapio, a posse49

    em

    questo pode levar o seu titular condio de proprietrio. evidente, pois, a conotao

    social contida nessa figura jurdica, isto porque revela, ao mesmo tempo, uma sano e um

    prmio: aquela para o proprietrio que descuidou do cumprimento do dever constitucional da

    funo social da propriedade e este para o trabalhador rural que fez o papel que competia ao

    titular do domnio.50

    de se esclarecer que as terras devolutas no podem ser usucapidas, uma vez que

    estas so consideradas imveis pblicos, os quais, por explcita previso constitucional (artigo

    46

    Cf. CARVALHO, Edson Ferreira. Manual didtico de direito agrrio..., cit. p. 484. 47

    O objetivo da usucapio lembrado por Edson Ferreira de Carvalho, qual seja: pr fim incerteza jurdica

    que pende sobre a propriedade, assim como, assegurar a paz social, pelo reconhecimento da propriedade em

    relao pessoa, que, de longa data, seu possuidor, nos casos juridicamente admissveis (Ibidem. p. 445). 48

    Silvia C. B. Optiz e Oswaldo Optiz lecionam que no por ser inculta a terra particular que o usucapio

    especial vai recair; necessrio se torna que essa propriedade rural tenha incorporado a si o trabalho do

    agricultor, que este a tenha tornado produtiva e que nela tenha sua morada com sua famlia, clula mater, por

    excelncia, da sociedade. A finalidade da lei tornar uma realidade a propriedade familiar, consistente no

    imvel rural, como tal definido no art. 4 do ET, no superior a 50 hectares, que, direta e pessoalmente

    explorado pelo agricultor e sua famlia, lhes absorva toda a fora de trabalho, garantindo-se-lhes a subsistncia

    e o progresso social e econmico (OPTIZ, Silvia C. B. & OPTIZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrrio.

    5 ed. rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 101). 49

    Carlos Roberto Gonalves lembra que a usucapio especial rural no se contenta com a simples posse. O seu

    objetivo a fixao do homem no campo, exigindo ocupao produtiva do imvel, devendo neste morar e

    trabalhar o usucapiente. Constituiu a consagrao do princpio ruralista de que deve ser dono da terra rural

    quem a tiver frutificado com o seu suor, tendo nela a sua morada e a de sua famlia (GONALVES, Carlos

    Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. v. 5. 6 ed. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 262). 50

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 133.

  • 191, pargrafo nico), no so bices a configurao de tal instituto.51

    11. A desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria

    Como registrado em linhas anteriores, o imvel rural precisa atender a funo social

    da propriedade e, caso tal exigncia no seja satisfeita pelo seu titular, o mesmo pode ser

    desapropriado52

    por interesse social e ser destinado para os fins de reforma agrria53

    ,

    conforme se extrai da Constituio Federal, em seu artigo 18454

    .

    Nos exatos termos da Lei Maior, quem deve se encarregar de tal atribuio a Unio

    e, para tanto, deve pagar, previamente, a indenizao justa do proprietrio, a qual realizada

    em ttulos da dvida agrria, resgatveis por at vinte anos, depois do segundo ano de sua

    emisso, os quais devem ter clusula de preservao do valor real e observando-se que as

    benfeitorias devem ser reparadas em dinheiro. Sobre assunto, note-se o seguinte julgado:

    A desapropriao de imvel rural, por interesse social, para fins de reforma

    agrria, constitui modalidade especial de interveno do poder pblico na

    esfera dominial privada. Dispe de perfil jurdico-constitucional prprio e

    traduz, na concreo do seu alcance, uma reao do Estado

    descaracterizao da funo social que inere propriedade privada. A

    expropriao-sano foi mantida pela Constituio de 1988, que a previu

    para o imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social (art. 184,

    caput), hiptese em que o valor da justa indenizao embora prvia ser pago em ttulos da dvida pblica. A exigncia constitucional da justa

    51

    Sobre o assunto, Rezek argumenta que essa questo muito polmica, explicando que, segundo a posio

    majoritria de nossos tribunais, no possvel o usucapio em terras pblicas, mesmo nas devolutas, apesar da

    m redao do art. 188, caput, do mesmo texto, o qual prefere separar as terras devolutas das pblicas. Em

    verdade, as primeiras so uma subespcie dotada de grandes peculiaridades das segundas, enquanto gnero (Ibidem. p. 134-135). 52

    Refletindo sobre a natureza da desapropriao, Slvio de Salvo Venosa entende que se trata de modo de

    aquisio originrio da propriedade, porque desprezado o ttulo anterior (VENOSA, Slvio de Salvo. Direito

    civil: direitos reais. v. 5. 10 ed. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 269). 53

    Para Benedito Ferreira Marques, do ponto de vista epistemolgico, reformar advm de reformare (re +

    formare), que significa dar nova forma, refazer, restaurar, melhorar, corrigir, transformar. A afirmao de que

    o Direito Agrrio tem um compromisso com a transformao explica-se por sua preocupao primordial com a

    reforma agrria, cujo sentido maior reside na reformulao da estrutura fundiria. Mas o conceito de Reforma

    Agrria no se prende apenas ao aspecto da distribuio das terras. mais abrangente, porque envolve a

    adoo de outras medidas de amparo ao beneficirio da reforma, que so chamadas de Poltica Agrcola (...).

    perfeitamente compreensvel que, em qualquer conceito que se d Reforma Agrria, se coloque, em primeiro

    plano, a modificao da estrutura fundiria, ou como diz o texto legal (...), modificao do seu regime de posse e uso, bem como a sua redistribuio, porque, se assim no fosse, no seria reforma. Mas no se pode abstrair a sua finalidade precpua, que o prprio legislador cuidou em determinar: atender aos princpios da justia

    social e ao aumento da produtividade (MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrrio brasileiro..., cit. p. 129-

    130). 54

    Silvia C. B. Optiz e Oswaldo Optiz orientam que para tornar possvel o acesso do trabalhador rural terra

    improdutiva a CF de 1988 em seu art. 5, XXIV, permite a desapropriao por interesse social, mediante prvia e justa indenizao em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 184. O direito de desapropriao decorre

    do princpio da funo social da propriedade, consubstanciado no art. 170, III da mesma Carta Magna (OPTIZ,

    Silvia C. B. & OPTIZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrrio..., cit. p. 101).

  • indenizao representa conseqncia imediatamente derivada da garantia de

    conservao que foi instituda pelo legislador constituinte em favor do

    direito de propriedade. A inexistncia das leis reclamadas pela Carta Poltica

    (art. 184, 3 e art. 185, n. I) impede o exerccio, pela Unio Federal, do seu

    poder de promover, para fins de reforma agrria, a modalidade especial de

    desapropriao a que se refere o texto constitucional (art. 184). (MS 21.348,

    Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-9-93, Plenrio, DJ de 8-10-

    1993)55

    Entretanto, questo interessante, que tem merecido intenso debate nas Cortes

    brasileiras, se a desapropriao para tal finalidade pode ser tambm realizada pelos Estados

    e Municpios. Numa primeira anlise, entende-se que no seria possvel essa situao, uma

    vez que no citado dispositivo constitucional no incluiu os indigitados entes federativos.

    Entretanto, apreciando a questo, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se favoravelmente

    s desapropriaes realizadas por Estados e Municpios, ainda que destinadas para a reforma

    agrria, apenas colocando como exigncia a necessidade de que a indenizao seja realizada

    em dinheiro, j que os ttulos da dvida agrria reservam-se apenas Unio.56

    Note-se o

    seguinte trecho da deciso:

    (...) Encontra ressonncia na doutrina e na jurisprudncia a competncia dos

    demais entes da Federao para proceder desapropriao, por interesse

    social, de imvel rural, com pagamento de prvia e justa indenizao em

    dinheiro. Aqui no se cogita se a propriedade produtiva, se latifndio ou

    no. No se trata de sano pelo mau uso da propriedade. Na realidade, o

    ente estatal, para desenvolver polticas pblicas relacionadas com interesse

    social especfico, expropria e paga a devida indenizao ao expropriado,

    como no caso, sem que com isso invada competncia prpria da Unio

    Federal.57

    Essa possibilidade, entretanto, dos Estados e Municpios realizarem a desapropriao

    por interesse social para fins de reforma agrria tem merecido crticas, pois haveria sria

    possibilidade de desvio de poder58

    , ao passo que o titular que tivesse cincia de que seu

    imvel poderia ser desapropriado pela Unio, teria a possibilidade de envidar esforos no

    sentido de que essa fosse procedida por aqueles, uma vez que, nessa ltima hiptese, ver-se-ia

    indenizado em dinheiro e no em ttulos da dvida agrria. Entretanto, como se percebe, a

    55

    BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Desapropriao para a reforma agrria. Braslia: Secretaria de

    Documentao, Coordenadoria de Divulgao de Jurisprudncia, 2007. p. 23. 56

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 138-139. 57

    Brasil. Supremo Tribunal Federal. Suspenso de Segurana. Disponvel em

    . Acesso em 19 jun. 2011. 58

    Para Jos dos Santos Carvalho Filho, desvio de poder a modalidade de abuso em que o agente busca

    alcanar fim diverso daquele que a lei lhe permitiu (CARVALHO FILHO, Jos dos Santos. Direito

    administrativo. 10 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 31).

  • indigitada censura no tem guiado as decises judiciais.59

    H que se observar que o argumento da reforma agrria no pode ensejar a

    desapropriao de imvel localizado em zona urbana, conquanto muito se argumente de que

    ela estaria direcionada a imveis agrrios, rurais e rsticos.60

    No se deve tambm entender satisfeita a reforma agrria em sentido mais amplo

    quando realizada a desapropriao aqui noticiada, pois nesse sentido deve ser compreendida

    aquela que desenhada pelo Estatuto da Terra61

    , em seu artigo 1, 1, que prescreve ser esta

    o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuio da terra, mediante

    modificaes no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princpios de justia social e

    ao aumento de produtividade.

    Assim, a reforma agrria que propiciada pela desapropriao dos imveis rurais,

    que no cumprem com a sua funo social, deve ser entendida em seu sentido estrito, porm

    sem perder a sua relevncia para tal finalidade62

    .

    Grande apologia contrria indigitada desapropriao realizada, como se esta fosse

    uma forma de se findar com a propriedade privada produtiva, o que, na verdade, constitui em

    inquestionvel engodo, pois aquele imvel que for assim considerado (isto , for explorado de

    forma produtiva) encontra-se imune desapropriao, conforme se depreende do artigo 185,

    II da Lei Maior brasileira. H, porm, quem pense que, essa previso constitucional deve ser

    repensada, a exemplo de Roberto Marquesi, seno vejamos:

    A postura do constituinte deve ser revista. No se pode conceber que

    determinados imveis. No se pode conceber que determinados imveis,

    onde no se observem os demais requisitos da funo social, estejam imunes

    desapropriao apenas por apresentarem bons ndices de produtividade.

    No h de descurar da produo de riquezas com o escopo maior de qualquer

    estrutura fundiria. A poltica agrcola brasileira, cujas diretrizes foram

    aprovadas pela Lei 8.171, de 17.01.1991, fundamenta-se, dentre outros,

    pressupostos, na premissa de que o adequado abastecimento alimentar

    condio bsica para garantir a tranqilidade social, a ordem pblica e o

    processo de desenvolvimento econmico social (art. 2, inc. IV).63

    59

    Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio..., cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 138-139. 60

    Ibidem. p. 136. 61

    Idem. 62

    Sobre o assunto, Edson Ferreira de Carvalho orienta o seguinte: Para que o imvel possa ser desapropriado,

    mister se faz que no esteja cumprindo a sua funo social, prevista no art. 186. na inobservncia da funo

    social da propriedade que reside o fundamento primordial da desapropriao por interesse social. O Supremo

    Tribunal Federal j reconheceu que o direito de propriedade no se reveste de carter absoluto e que sobre ele

    pesa relevante hipoteca social, a significar que, descumprida a funo social que lhe inerente, legitimar-se- a

    interveno estatal na esfera dominial privada (CARVALHO, Edson Ferreira de. Manual didtico de direito

    agrrio..., cit. p. 324). 63

    MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios..., cit. p. 176-177

  • De igual forma, a pequena e a mdia propriedade rural devem ser consideradas

    imunes desapropriao, especialmente se o proprietrio no possuir outro imvel, nos

    termos do artigo 185, I da Constituio Federal.

    Os imveis devolutos, assim na usucapio, no podem ser objeto de desapropriao,

    eis que so considerados bens pblicos, os quais no se encontram sujeitos s citadas figuras

    jurdicas.

    Comparativamente a usucapio, no h como se negar que a desapropriao, nesses

    termos, medida menos gravosa do que aquela, pois ao passo que a primeira vem

    desacompanhada de qualquer compensao, para a aplicao da segunda tem-se a

    imprescindibilidade de indenizao do proprietrio, da porque muito se questiona sobre o

    fato da desapropriao ser efetivamente uma indenizao.

    O procedimento adotado para o processo judicial de desapropriao deve ser

    contraditrio especial, de rito sumrio, tal como prescreve a Constituio Federal, em seu

    artigo 184, 3.

    12. A expropriao das glebas de terras onde forem cultivadas ilegalmente plantas

    psicotrpicas.

    Os imveis rurais que se destinarem ao plantio de plantas psicotrpicas esto sujeitas

    expropriao64

    , sem direito a qualquer indenizao, as quais devem ser destinadas ao

    assentamento de colonos, especialmente para o cultivo de produtos alimentcios e

    medicamentosos, tal como prescreve o artigo 243 da Constituio Federal.

    H quem argumente que esta seria a hiptese de desapropriao-sano, j que

    aplicada pelo Poder Pblico, mas que no daria direito a indenizao, razo pela qual se

    diferenciaria das demais. Em verdade, justamente pela falta do elemento indenizatrio que

    esta no seria uma hiptese de desapropriao.

    Outra denominao corriqueiramente utilizada que essa seria uma possibilidade de

    confisco, hiptese esta extremamente restrita e excepcional admitida em nosso ordenamento

    jurdico. Conquanto esteja denominado no pargrafo nico do retro citado dispositivo

    constitucional, entende-se que a melhor alcunha , sem sombra de dvidas, expropriao, a

    qual representa, sem vcios e senes, a melhor definio para a hiptese em referncia.

    64

    Rezek prefere denominar essa hiptese como confisco (Cf. REZEK, Gustavo Elias Kalls. Imvel agrrio...,

    cit. Curitiba: Juru, 2011. p. 140-141).

  • Consideraes finais

    O imvel agrrio e rural possui, sem sombra de dvidas, grande importncia no texto

    constitucional, de tal forma que, ao longo de todo o seu teor, so apontados regramentos

    especificamente direcionados ao mesmo.

    No presente trabalho, cuidou-se de apontar aqueles que so considerados diretamente

    relacionados com o imvel rural e agrrio, de tal forma que se impera anotar que h uma srie

    de outros dispositivos constitucionais que tem relao com a citada espcie de propriedade.

    Exemplo disso o prprio artigo 3, I da Constituio Federal, que prescreve que um dos

    objetivos da Repblica Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e

    igualitria, o que, diante dos latifndios e minifndios ainda presentes nos presentes dias,

    certamente no se pode afirmar concretizado, inclusive das falhas contidas na poltica agrria

    e fundiria desempenhada pelo nosso pas.

    Idia que tambm deve ser superada que inexiste qualquer contraposio entre a

    propriedade familiar e a grande empresa agrria. Em verdade, no h preferncia e nem

    protecionismo de uma ou de outra. A propriedade familiar, como se viu, impenhorvel em

    relao aos dbitos oriundos de sua atividade produtiva e tambm imune em relao ao

    imposto territorial rural. Doutra quadra, a grande empresa agrria, se evidentemente

    produtiva, encontra-se imune desapropriao e, ainda, progressividade contida no mesmo

    tributo anteriormente citado. Mais uma vez, o que falta aqui ao governamental, a fim de

    observar, na prtica, o mandamento constitucional.

    De qualquer ngulo que se veja, percebe-se que o legislador constituinte cuidou de

    fixar parmetros diferenciados para o imvel rural e agrrio, de tal forma que vrios so os

    apontamentos que podem ser realizados, sob a seara constitucional.

    O importante a se fixar, entretanto, de que a funo social da propriedade, j que se

    elegeu o modelo capitalista para se empregar economicamente no Brasil, deve ser fielmente

    observado, a fim de que se possa, com sabedoria, desenhar e executar as polticas agrria e

    fundiria, tal como prescreve a Constituio Federal, a fim de que efetivamente todos tenham

    acesso igualitrio ela e que a renda seja efetivamente distribuda. No muito. Em verdade,

    muito pouco. Pois, ento, que seja assim verdadeira e concretamente.

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