honneth, axel. luta por reconhecimento

147
  

Upload: calendargirl

Post on 18-Jul-2015

3.354 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

-re?Axe1 HonnethLUTAPORRECONHECIMENTOA gramtica moral dos conflitos sociaisTradUf;aoLuiz RepaEDITORA 34Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592]ardim Europa CEP 01455-000Sao Paulo - SPBrasil Tel/Fax (11) 3816-6777www.editora34.com.brCopyright Editora 34 Ltda.(edico brasileira), 2003Kampf umAnerkennung Suhrkamp Verlag, 1992Traduco Luiz Repa, 2003A FOTQCPIA DE QUALQUER FLHA OESTELIVRO ILEGAL, E CONFIGURAUMAAPROPRIA. Nos escritos filosficosdo ltimo Sartre, encon-tra-se, verdade, umconceitonormativode reconhecimento rec-procofreqentemente sugerido,masnuncadesenvolvidononvelexplicativo queserianecessrio parapoder fazer umusoapuradodele nas anlises destinadas ao diagnstico de poca. Da Sartre tersucumbidoporfim, em seusescritospolticos, amesma confusoconceitual que j haviamarcado taotenazmente a rcoria poltica deSorel: vistoquetampouco Sartre tracou analiticamenteurnaclaralinhaseparatria entre as formas jurdicas e transjurdicas doreco-nhecimento recproco, tanto para ele quanto para aquele a meta daauto-realizaco individual ou coleriva acabou se misturando de ma-neira indeslindvel com aquela daarnpliaco dosdireitos de liber-dade. Porisso, assim como Sorel, Sartre nao pode conceder ao for-malismododireitoburgusa significnciamoralquevem atonanamedidaemque, comHegel e Mead,saodistinguidasna "lutapor reconhecimento"aquelas tresetapas diferentes. verdade que a corrente de pensamento caracterizada exem-plarmente por Marx, Sorel e Sartre acrescentou ao modelo de urnalutapor reconhecimento, que comarrojo Hegelhavia contrapostoemseusescritosde [ena afilosofiasocial moderna, urnasriedenovasidias e arnpliaces: Marx conseguiu, peloconjuntointeirode seus conceitos bsicos, tornar transparente o trabalho como me-dium central do reconhecimento recproco, malgrado a sobrelevaco251da filosofa da histria; Sorel fo capaz de patentear, como aspectoafetivodoprocesso deluta queHegel colocara ern vista, os senti-mentos coletivos dodesrespeito sofrido, dos quais s raramente asteorias acadmicas tomam conhecimento; e Sartre, finalmente, comseu conceito de "neurose objetiva", pode preparar o caminho paraurnaperspectiva naqual parece possvelpenetrar as estruturas so-ciais da dominaco, considerando-as urna patologa das relaces dereconhecimento. Mas nenhum dos trs autores pode contribuir paraumdesenvolvimento sistemtico do prprio conceito fundado porHegel e aprofundadoporMeadnoplanodapsicologia social; asmplicaces normativas do modelo de reconhecimento, do qual elesfizeram amide um uso virtuoso em termos empricos, permanece-ram-lhes demasiado opacas e mesmo estranhas para queeles pr-prios pudessem coloc-lo numa novaetapa de cxplicaco.Luta porreconhecimenro Axe1 Honneth 2508.DESRESPEITO E RESISTENCIA:A LGICA MORAL DOSCONFLITOS SOCIAISMarx, Sorel e Sartre, os tresrepresentantes da tradico teri-ca h poueo exposta, detiveram-se igualmente, num nve1 pr-cien-tfico, aexperienciadequeaautocornpreensodos movimentossociais desuapocaestavaatravessadafortementepelopotencialsemntico do vocabulrio conceitual do reconhecimento: para Marx,queacompanhoubemde pertoosprimeiros ensaios deorganiza-codaclasseoperria, esravafora dequestoqueasfinalidadesamplas do rnovimento emergente pudessem sintetizar-se no conceitode"dignidade";Sorel, umcompanheirotericodosindicalismofrancs, empregou durante a sua vida a categoria de "honra", soandoa conservantismo, para conferir expresso aocontedo moral dasexigenciaspolticasdomovimentooperrio; e oSartredosanos1950, finalmente, deparounofamosolivrodeFranrzFanonarmesmo umpanfleto anticolonialista, queprocuravainterpretar asexperiencias dos negros oprimidos da frica recorrendo diretamenteadoutrina do reconhecimenro de Hegel-". Porm, se foi um elementoessencialda percepco poltica cotidiana dos tres tericos o fatodeque os conflitos sociais podem remontar ainfraco das regras impl-citasdo reconhecimento recproco, urna tal experiencia dificilmen-te se sedimentou no quadro conceitual das ciencias sociais emergen-tes: onde a categoria de luta social desempenhou aqui, de modo geral,36 Franrz Fanon,DieVerdammten deser Erde. Frankfurt, 1966; sobre arecepco de Hegel por Fanon, d. tambm:id., Schwarze Haut, wei(5e Masken.Frankfurt, 1988, cap. VII.Luta porreconhecimento25337 Max Weber,Wirtschaft und Gesellschaft. Grundri5der verstehendenSoziologie. Tbingen,1976, pp. Z-L38 Georg Simmel, Soziologie: Untersuchungen ber die Formender Ver-gesellschaftung.Leipzig, 1908, cap. IV:"Der Streit'' (p. 247 ss).umpapelconstitutivo paradecifrararealidadesocial, elaesteveligada, sob a influencia dos modelos conceituais darwinista ouutili-tarista, ao significado de urna concorrncia por chances de vida oude sobrevivncia.NemmileDurkheimnemFerdinandTonnies, quedioin-cio ambos aconstruco deurnasociologa emprica com oprop-sitodediagnosticar criticamente a crisemoral dassociedades mo-dernas, concederam ao fenmeno dos confrontos sociais umpapelsistemticonodesenvolvimentodeseus conceitosfundamentais;tantas saoasidiasacerca dos pressupostos moraisdaintegracosocial queeles puderam obter, tao poucas sao as inferencias teri-cas que tiraram disso para urna categoria de conflito social. Por suavez, Max Weber, queviuoprocesso dasocializacoinscrito dire-tamente num conflito de grupos sociais por formas concorrentes decondutadevida, deixadeconsiderar emsuadefinicoconceitualde "luta" todo aspecto de urna rnotivaco moral; segundo as conhe-cidas forrnulaces da"Doutrina das categorias sociolgicas", a re-laco social seria umaluta sobretudo ali onde a "irnposico da pr-pria vontade contra a resistencia do ou dos parceiros" se orienta pelaintencode elevar o poder dedispor daspossibilidades de vida37.Finalmente,emGeorgSimmel, queatdedicouumcaptulocle-bre de sua Sociologia afunco socializadora dadisputa, uma "sen-sibilidade social para a diferenca"encontra realmente, aolado do"impulso dahostilidade", urnaconsideraco sistemtica enquantofonte de conflitos; masessadimenso daidentidade pessoal ou co-letiva taopoucoatribudapor ele aospressupostosintersubjeti-vosdoreconhecimento, que asexperienciasmorais dodesrespei-topodem entrar ainda menos no campo de viso como motivos deconflirossociais38. Tambmnesse ponto, comoemtantosoutros39 Umaconvincente valorizaco da Escola de Chicago foi feta por HansJoas: "Symbolischer Interaktionismus. VonderPhilosophie des Pragmatismuszu einer soziologischen Forschungstradition". In: Klner Zeitschrift [urSozio-logie und Sozalpsycbologie, n. 40,1988, p. 417 ss.40 Robert E. Park, Emes! W. Burgess (orgs.), Introduction to the Scienceot Sodoogy.Chicago, 1969, p. 241.255aspecros-", os trabalhos sociolgicos da Escola de Chicago, influen-ciada pelopragmatismo, constituem maisurna vez urnanotvel ex-ceco: no manual editado por Robert Park e Ernest Burgess, que trazottuloIntroductiontotheScience of Sociology, fala-seafinaldeumastruggleforrecognitionsobarubricaConflict40, quandosetrata docasoparticular de confrontas tnicos ounacionais; no en-tanto, para alm damera menco de"honor, glory, and prestige",nessecontextonaosepodesaber essencialmentealgomais sobrecomo determinar adequadamente a lgicamoral daslutas sociais.Portanto, j nos cornecos dasociologia acadmica, foi cortado teo-ricamente, emlargamedida, onexoquenaoraroexisteentreosurgimento de movimentos sociais e a experiencia moral de desres-peito: osmotivos paraarebelio, o protesto e aresistencia foramtransformados categorialmente em"interesses", quedevemresul-tar da distribuico desigual objetiva de oportunidades materiais devida, sem estar ligados, de alguma maneira, arede cotidiana das ati-tudes morais emotivas. Peranre o predominio que o modelo concei-tual hobbesiano pode adquirir assimnateoriasocialmoderna, osprojetosdeMarx,Sorel e Sartre,emsi inacabados e mesmo erro-neos, permaneceram fragmentos de urnatradico terica subterr-neae nuncarealmente desenvolvida. Por isso, quemprocurahojereportar-se a essa histria darecepco do contramodelo hegeliano,a fim de obrer os fundamentos de urna teoria social de teor norma-tivo, depende sobretudo de uro conceito de luta social que toma seuponto de partida de scntimentos morais de injustica, em vez de cons-telaces deinteresses dados. A seguir, pretendo reconstruir os tra-cosbsicos deumtal paradigmaalternativo, orientadopor HegelLurapor reconhecimento AxelHonneth254e Mead, at o limiar em que se comeca a entrever que as novas ten-dencias nahistoriografia podem comprovar historicamente o nexoafirmado entre desrespeito moral e luta social.Nossa tentativa de urna fenomenologia empiricamente contro-lada das formas de reconhecimento j deixou claro quenenhum dostresdomnios daexperiencia pode ser exposto de maneira adequa-dasem tomar referencia a umconflito internamente inscrito:sem-preesteveinseridanaexperienciadeurna determinadaformadereconhecimento a possibilidade de urnaabertura de novas possibi-lidadesdeidentidade, desortequeumalutapelo reconhecimentosocial delas tinha deser a conseqiincia necessria. Ora, nemtodasas tres esferas dereconhecimento contrn emsi, demodo geral, otipo de tenso moral quepode estar em condices de pr emmar-chaconflitos ouquerelas sociais:urnaluta spode ser caracteriza-dade"social"namedida em queseusobjetivos se deixam genera-lizar para alm dohorizonte dasintences individuais, chegando aumpontoemqueelespodemse tornar abasedeummovimentocoletivo. Segue-seda primeiramente, com o olhar voltado para asdistinces efetuadas,queoamor, comoformamais elementar doreconhecimento, nao contm experiencias morais quepossam levarporsi s aforrnacesdeconflitossociais: verdadequeemtodarelaco amorosa estinserida urna dirnenso existencial de luta, namedidaemqueoequilbriointersubjetivoentrefusoe delimita-co do ego pode ser mantido apenas pelavia de urna superaco dasresistencias recprocas; os objetivos e os desejos ligados a isso, po-rm, nao se deixam generalizar para almdocrculo tracadopelarelaco primria, demodo quepudessem tornar-se alguma vez in-teresses pblicos. Em contrapartida, as formasde reconhecimentododireitoe daestimasocial jrepresentamumquadromoraldeconflitossociais, porquedependemdecritriossocialmente gene-ralizados, segundo oseumodofuncional inteiro; aluzdenormascomo as que constituem o princpio daimputabilidade moral ou asrepresentaces axiolgicas sociais, as experiencias pessoais de des-respeitopodemser interpretadase apresentadascomoalgocapazde aferar potencialmente tambm outros sujeitos. Portante, se aqui,narelaco jurdica e na comunidade de valores, as finalidades indi-viduaisestoaberrasemprincpioparauniversalizacessociais,entoali, narelacodoamor, elasestoencerradasdemodone-cessrio nos limites estreitos deurria relacoprimria, Dessa deli-miraco categorial j resulta um primeiro conceito preliminar e ru-dimentar doque deve ser entendido por luta social no contexto denossas consideraces: trata-se do processo prtico no qual experien-cias individuais de desrespeito sao interpretadas como experienciascruciais tpicasdeumgrupointeiro, deformaqueelaspodem in-fluir, como motivos diretores da aco, na exigencia coletiva por re-laces ampliadas de reconhecimento.Nessa definico conceitual preliminar, chama a atenco antesde tuda apenas a circunstancia puramente negativa de queela pro-cedecomneutralidadeemrelacoasdisrincesconvencionaisdeurnateoria sociolgica do conflit041. Se a luta social interpretadada maneira mencionada a partir de experiencias morais, ento issonaosugeredeincionenhumapr-decisoafavordeformasnaoviolentas ouviolentas de resistencia; antes, continua totalmente emaberro, numnvel descritivo, se saopelosmeiosprticosdaforcamaterial, simblica oupassiva queos grupos sociais procuram ar-ticular publicamente osdesrespeirose as Ieses vivenciadoscomotpicos e reclamar contra eles. Mesmo ern relacoeldistinco tradi-cional de formasintencionais e nao intencionais de conflito social,o conceito proposto procede de maneira neutra, urna vez que ele naofaz nenhum enunciado sobre em quemedida os atores rrnde estarconscientes dosmotivosmoraisdesua prpriaaco; antes, naodifcil imaginar casos em que de cerro modo os movimentos sociaisdesconhecem intersubjetivamente o cerne moral de suaresistencia,pelofatodeinterpretarem-no por si mesmos segundo a semnticainadequada dasmeras categorias de interesses. Por fim, a alternati-va entre finalidades pessoais e impessoais tampouco inteiramente41Cf. o casoexemplar deLewis A. Coser, Theoriesozialer Konflikte.Neuwied/Berlim, 1972.256Axel Honneth Luta porreconhecimento 257pertinente em relaco a urna luta assim entendida, visto que em prin-cpio esta s pode ser determinada por idias e exigencias gerais, emque os diversos atores vernpositivamente superadas suas experien-ciasindividuisdedesrespeito;entreasfinalidadesimpessoaisdeum movimento social e as experiencias privadas que seus membrostrn daleso, devehaver urna ponte semntica quepelo menos sejatao resistente quepermita a constituico de urna identidade coletiva.No entanto, aabertura descritiva que caracteriza assim o con-ceito proposto de luta social se contrapee, por outro lado, o ncleofixo de seu contedo explanatrio. Diferentemente de todos os mo-delos explicativos utilitaristas, ele sugere a concepco segundo a qualos motivos daresistencia social e da rebelio se formam noquadrodeexperienciasmorais queprocedemdainfracodeexpectativasdereconhecimentoprofundamentearraigadas. Taisexpectativasestoligadasna psiquescondicesda forrnacoda identidadepessoal, demodoque elasretrnospadr6essociaisdereconheci-mento sobos quais umsujeito pode se saber respeitado em seu en-torno sociocultural como umser aomesmo tempo autnomo e in-dividualizado; se essasexpectativasnormativassaodesapontadaspelasociedade, issodesencadeia exatamente o tipo de experienciamoral quese expressanosentimentodedesrespeito. Sentimentosdelesaodessaespciespodem tornar-seabasemotivacional deresistenciacoletivaquandoosujeito capazdearticul-losnumquadrodeinterpretacointersubjetivaqueos comprovacomot-picos de um grupo inteiro, nesse sentido, o surgimento de movimen-tos sociaisdependeda existenciadeurna semnticacoletivaquepermite interpretar as experiencias de desapontamento pessoal comoalgoque afetanaosoeuindividual mastambmumcrculodemuitosoutrossu jeitos. ComoviuGeorgeH. Mead, preenchemacondicodessas semnticasas doutrinas ouidiasmorais capazesde enriquecer normativamente nossasrepresenraces da comunidadesocial;pois, junto com aperspectivaderelacesampliadasdere-conhecimento, elasabrem aomesmo ternpo urnaperspectiva exe-gtica soba qual se tornam transparentes as causas sociais respon-sveispelos sentirnentos individuais deleso. Portanto, assimqueidias dessa espcie obtrn influencia no interior de urna sociedade,elas geram um horizonte subcultural de interpretaco dentro do qualasexperinciasdedesrespeito, atentodesagregadase privada-mente elaboradas, podern tornar-se os motivos morais de urna"Iutacoletiva por reconhecimento".Contudo, se tentamos apreender o processo de surgimento delutassociaisdessamaneira, elas trnaver comaexperienciadoreconhecimento nao s noaspecto mencionado: a resistencia cole-tiva, procedente dainterpretaco socialmente crtica dos sentimen-tos dedesrespeito partilhadosem comum, nao apenasuromeioprtico de reclamar para o futuro padres ampliados de reconheci-mento. Como mostram as reflexes filosficas, a par dasfontes li-terriase dahistriasocial42, oengajamentonas acespolticaspossuiparaosenvolvidos tambmafuncodi retadearranc-losdasituacoparalisante dorebaixarnentopassivamente tolerado edelhes proporcionar, porconseguinte, urna auto-relaconovaepositiva. A razo dessa rnotivaco secundria daluta estligada aprpria estrutura da experiencia de desrespeito. Na vergonha social-viernos a conhecer osentirnentomoral emquese expressaaqueladiminuico doauto-respeito queacompanha de modo tpico a to-leranciapassivadorebaixamentoe da ofensa; seumsemelhanteestado de inibico da aco superado agora praticamente pelo enga-jamento naresistencia cornum, abre-se assim para o indivduo urnaforma de rnanifestaco com base naqual ele pode convencer-se in-diretamentedovalormoralousocialdesi prprio: noreconheci-mento antecipado de urna comunidade de cornunicaco futura paraas capacidades queele revela atualrnente, ele encontra respeiro so-cial como a pessoa a quem continua sendo negado todo reconheci-mentosobas condicesexistentes. Nesseaspecto, oengajamento42 Limito-me aqui aindicaco da literatura filosfica: Bernard R. Boxbill,Self-Respect and Protest, ed. cit.; d. rambm Hil1,Jr., Thomas E., "Serviliry andSelf-Respect". lo: Autonomy and Se/f-Respect. Cambridge, 1991, p. 4 ss; An-dreas Wildt, "Recht undSelbstachtung", ed. cit.258AxelHonnethLutapor reconhecimento 259individualnalutapolticarestituiaoindividuouropoucodeseuauto-respeitoperdido, vistoqueeledemonstraempblicoexata-menteapropriedadecujodesrespeito experienciadocomournavexaco. Naturalmente, aqui seacrescentaainda, comumefeitoreforcativo, a experiencia de reconhecimento que a solidariedade nointerior dogrupo polticopropicia,fazendoosmembros alcancarurnaespciede estima mtua.Doquefoi dito at aqui parece resultar agora a idiadequetodososconfrontossociaise todasasformasdeconflitoseriamconstitudos em principio segundo o mesmo modelo de urna luta porreconhecimento: nesse caso, todo ato coletivo de resistencia e rebe-haoseriaatribudo, segundosuaorigem,aumquadroinvariantede experiencias morais, dentro do qual a realidade social interpre-tadaconformeurnagramticahistoricamente cambiantedereco-nhecimento e de desrespeito. Urnasemelhante teselevaria, porm, conseqncia fatal de contestar de anterno a possibilidade de lu-tas sociaisqueobedecemmaisoumenosapersecucoconscientede interesses coletivos; que empricamente nao possa ser assim, isto, quenemtodas as formas de resistencia possam remontar a lesodepretenses morais, oquej mostram osmuitos casos histri-cosemquefoi a purasegurancadasobrevivnciaeconmica quese tornou o motivo doprotesto e darebelio emmassa. Interessessaoorientaces bsicas dirigidas a fins, j aderidas acondico eco-nmica e social dos indivduos pelofato de que estesprecisam ten-tar conservar pelomenos as condices de sua reproduco; esses in-teresses vrn a ser atitudes coletivas, namedida em queos diversossujeitos dacomunidade se tornam conscientesdesuasituaco so-cial e se vempor isso confrontados com omesmo tipode tarefasvinculadas areproduco. Ao contrario, sentimentos de desrespeitoformamo cerne de experiencias morais, inseridas naestrutura dasinreraces sociais .porque os su jeitoshumanos se deparam com ex-pectativas de reconhecimento as quais se ligam as condices de suaintegridade psquica;esses sentimentosdeinjusticapodemlevar aaces coletivas, namedida emquesao experienciadas por umcr-culointeiro de sujeitos como tpicos da prpria situaco social.Os43 Com clarezadesejvel, mas num intento afirmativo, Markus Schwingelmostrou isso atualmente na teoria sociolgica de Bourdieu: Analytik der Kmp]e.Die strukturale SoziologiePierre Bourdieus als Paradigma des scaialen Kampfesund ibrBeitragzueinerkritischenAna/yse vanMacht und Herrschaft. Saar-brcken, 1991.modelosdeconflitoquecornecampelosinteressescoletivossaoaqueles que atribuem o surgimento e o curso das lutas sociais a ten-tativadegrupossociaisdeconservarouaumentarseupoderdedispor de determinadas possibilidades de reproduco; por isso, hojese encontram na mesma linha todas as abordagens que querem am-pliar o espectro dessas lutas dirigidas por interesses, incluindo bensculturaise simblicos nadefinicodaspossibilidades dereprodu-coespecficas dos grupos'l-', Pelo contrrio, ummodelo de confli-ro que corneca pelos sentimentos coletivos de injustica aquele queatribui o surgimento e o curso das lutas sociais as experiencias moraisque os grupos sociais fazem perante a denegaco do reconhecimentojurdico ousocial. Ali se trata daanlise de urnaconcorrncia porbens escassos, aqui, porm, daanlise de urnaluta pelas condicesinrersubjerivas da integridade pessoal. Mas esse segundo modelo deconflito, baseadonateoriadoreconhecimento, naopodeprecisa-mentesubstituiroprimeiro, omodeloutilitarista, mas somentecomplementa-lo: poispermanece sempre urnaquesto emprica sa-ber atquepontoumconflito socialseguea lgicadapersecucode interesses oua lgicadaforrnaco dareaco moral. Todavia, afixacodateoriasocial nadimensodointeressetambmacabaobstruindooolharparaosignificadosocialdossentimentosmo-rais, e de maneira tao tenaz queincumbe hojeaomodelo de confli-to baseado na teoria do reconhecimento, alm da tunco de comple-rnentaco, tambm a tarefa de urna correco possivel: mesmo aquiloque, naqualidadedeinteressecoletivo, vemaguiaraaconumconflito nao precisa representar nada de ltimo e originrio, sena oquej pode terse constitudo previamente num horizonte de expe-rienciasmorais, emque estoinseridaspretensesnormativasde261 Luta porreconhecimenro Axel Honneth 26044 Cf. EdwardP. Thompson, Plebejische Kultur und moralische Okono-mie. Aufsiitze zurenglischenSozialgeschichtedes18. und 19. fahrhunderts.Frankfurr/BerlimNiena, 1990.enfoque dapesquisa'l". Thompson se deixou guiar pela idiade quearebelio social nuncapode serapenas urnaexteriorizaco direrade experiencias damisria e daprivaco econmica; aocontrrio,oque consideradoumestadoinsuportvel desubsistenciaeco-nmica se mede sempre pelas expectativas morais queos atingidosexpern consensualmente aorganizaco dacoletividade.Por isso,o protesto e a resistencia prtica s ocorrem em geral quando urnamodificacodasituacoeconmica vivenciada comournalesonormativades seconsensotacitamenteefetivo; nessesentido, ainvestigacodas lutassociaisestfundamentalmenteligadaaopressuposto deurnaanlise doconsenso moral que, dentro deumcontexto social de cooperaco, regula de formanao oficial o modocomo saodistribudos direitos e deveres entres os dominantes e osdominados.No entanto, s essamudanca de perspectiva nao podia aindalevar aresultados quecomprovassem historicamente a tesesegun-doa qual os confrontos sociais se deixam compreender emprinc-piosegundo o padro moral de umluta por reconhecimento; paratanto, precisava-seaindada dernonstracocomplementardequeaquel a violaco de um consenso tcito vivenciada pelos atingidoscomo um processo que os priva de reconhecimento social e, por isso,os vexano sentimento de seu prprio valor. A primeira abordagemvoltada aexplicaco desse nexomotivacional foi apresentada entre-mentes por estudos histricos queampliaram o quadro depesqui-saabertopor Thompson, adicionandoadimensoda identidadeindividualoucoletiva;pois,comainclusodoscomponentesdaauto-relaco prtica, mostrou-se logo que o consenso historicamenteexistente em cada casopossui para os implicados o sentido de urnaregulaco normativa quedefineas relaces doreconhecimento m-tuo. Barrington Moore, que com seuconceito de"contrato social263,_..Juta por reconhecimenro262reconhecimento e respeito - esse o caso, por exemplo, em todaparte onde a estima social de urnapessoa ou de um grupo estcor-relacionadademodotaounvococomamedidadeseupoder dedispor de determinados bens ques a sua aquisico pode conduzirao reconhecimento correspondente. na direco de urna semelhanteinrerpretaco retificadora dos conflitos sociais que aponta hojeurnasrie de investigaces histricas cujaatenco estdirigida aculturamoralcotidiana dascamadassociaisbaixas;osresultadosdessesestudos podem contribuir para justificar empiricamente umpoucomaiso modelo deconflito desenvolvido aqui e defend-lo em facede objeces bvias,Tambm soba influencia dos motivos conceituais utilitaristas,a pesquisa histrica dosmovimentos polticos esteve por longo tem-po tao fortementepresa aomodelo referencial dapersecuco cole-tivade interesses, queacabou lhepermanecendo oculta a gramti-camoraldas lutassociais. Issospodealterar-sedefinitivamentedepois que, com o entrelacarnento dos mtodos de pesquisa daan-tropologia social e dasociologia da cultura, se originou hduas d-cadasurna formadehistoriografia capaz depor emevidencia,demaneiramaisamplaeadequada, ospressupostosnormativosdocomportamento queas camadas sociais baixas adotam no conflito.O queessa abordagem temde vantajoso em comparaco com a his-toriografia convencional aatenco elevada comquese investigao horizonte dasnormas morais de aco, discretamente inseridas nocotidianosocial;vistoqueosmeiosda pesquisadecampoantro-polgica passam a terlugar nasinvesrigaces histricas, podem viraluzasregrasimplcitasdoconsensonormativo, doqualdepen-dia historicamenteocomportamentoque asdiversassubculturasassumemna reacopoltica. Semdvida, foi ohistoriadoringlesE. P. Thompson quem deuo impulso para urnareorienraco dessaespcie, atravs da qual os pressupostos utilitaristas da tradico an-terior puderam ser substitudos por premissas normativas; com seusestudos sobreasrepresenracesmorais cotidianas quemotivaramas camadasbaixasinglesas aresistencia contraos cornecosdain-dustrializacocapitalista, ele preparouocaminhoparatodooimplcito" nao por acaso segue a idia de Thompson deurna"mo-ral economy"; realizou nessa rea um trabalho pioneiro; seus estu-dos comparativos acerca dos levantes revolucionrios na Alemanhadoperodo de1848 a1920 chegaram concluso deque se enga-jaram demodoativoe militante sobretudoaquelessubgruposdooperariado que emsua aurocornpreenso atento reconhecida sesentiram gravemente arneacados pelas rnodificaces sociopolricas't-.Moore trata o contrato social implcito, isto , o consenso normativoentre os grupos cooperativos deurnacoletividade, como umsiste-made regras tibiamente organizado que determina as condices doreconhecimento recproco; por isso, assim que um semelhante con-senso tcito ferido por inovaces politicamente impostas, isso levaquase inevitavelmente aodesrespeito social daidentidade herdadade alguns subgrupos; e s a arneaca possibilidade doauto-respei-tocoletivo o que gera, aosolhos deMoore, resistencia poltica erevoltas sociais com largabase.Hoje a concepco de Barrington Moore fortalecida por inves-tigaces histricas que procuram a causa motivacional dos levantespolticos natransgresso deidias dehonra especficas degrupos;esses trabalhos de pesquisa, dos quais o estudo de Andreas Griesin-gersobre osartesos aprendizes nosculo XVIIl umbom exem-pl046, ampliam o enfoque de Thompson, abarcando um componenteligado teoria da identidade, porque estabelecem um nexo sistem-ticoentreodesapontamentopolticodeexpectativasmoraiseoabalo de relaces de reconhecimento tradicionalmente constitudas.Deinvestigacesdessaespciepode-seextrairmaterialilus-45BarringtonMoore, Ungerechtigkeit. Die sazialenUrsachen vanUn-terordnung und Widerstand. Frankfurt, 1982. Cf. a respeita meu ensaio-resenha:Honneth, Axel, "Moralischer Konsens und Unrechtsempfindung. Zu Barring-tonMooresUntersuchung 'Ungerechtigkeit'".In: Almanach. SuhrkampWis-senschaft. WeijSesProgramm. Frankfurt, 1984, p. 108 ss.46AndreasGriefsinger, Das symbolische Kaptal der Ehre. Streikbewe-gungen und kollektives BewujStseindeutscher Handwerksgesellen im 18. [obr.hundert. Frankfurt/BerlimNiena, 1981.trativoO suficiente a fim de obter pelo menos as primeiras compro-vaces empricas para a tese de que os confrontos sociais se efetuamsegundo o padro deurnaluta por reconhecimento; urna grave des-vantagem resulta, entretanto, dofato de os trabalhos mencionadosconcederem especificidade estrutural darelaco de reconhecimentoumlugar demasiado pequeno para estar em condices de algomaisdo que urnaapreenso histrica de mundos da vida particulares. Osresultadosexpostos, sejamrevoltasespontneas, greves organiza-dasou formas passivas deresistencia, mantm sempre alguma coi-sade carter meramente episdico, j quesuaposico no desenvol-vimento moral dasociedade nao se torna clara como tal. O abismoentre osprocessos singulares e o processo evolutivo abrangente spode ser fechado quando a prpria lgica da ampliaco de relacesde reconhecimentovemaserosistema referencialdasexposiceshistricas.Vai depar comessadisposicodas tarefasanecessidadedeconceber o modelo de conflito at agora apresentado nao mais ape-nas como um quadro explicativo do surgimento de lutas sociais, mastambm como quadro interpretativo deumprocesso de forrnaco.Somente a referencia a urnalgica universal da ampliaco das rela-ces de reconhecimento permite urna ordenaco sistemtica do que,caso contrrio, permaneceria um fenmenoincompreendido; poisaslutas e osconflitos histricos, sempre impares, s desvelamsuaposico na evoluco social quando se torna apreensivel a funco queelesdesempenham para o estabelecimento deumprogresso moralnadimensodoreconhecimento. Oalargamentoradicaldapers-pectiva soba qual osprocessos histricos devem ser consideradosrequer, no entanto, tambm urnaalteraco de nosso ponto de vistasobre o material primrio depesquisa: ossentimentos de injusricae as experiencias de desrespeito, pelos quais pode cornecar a explica-co daslutas sociais, j nao entram mais no campo de viso somentecomomotivosdeaco, mastambmsaoestudadoscomvistaaopapel moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramentodasrelaces dereconhecimento. Com isso, os sentimentos morais,at aqui apenas a matria-prima emotiva dos conflitos sociais,per-264 Axel Honneth Lura porreconhecimenro 265dem suasuposta inocencia e se tornam momentos retardadores ouaceleradores num processo evolutivo abrangente. Certamente, essaltima forrnulaco tambm torna inequivocamente claro quais exi-gencias se colocam aurnaabordagem terica que deve reconstruira luta por reconhecimento, de maneira exemplar, como um processohistricodoprogressomoral: parapoderdistinguirmotivospro-gressivos e retrocessivosnaslutas histricas, precisoumcritrionormativo que permita marcar urnadireco evolutiva com a ante-cipaco hipottica deumestado ltimo aproximado.Por conseguinte, o quadro interpretativo geral de que depen-demosdescreveoprocessodeformacomoral atravsdoqualsedesdobrou o potencial normativo doreconhecimento recproco aolongodeurnaseqnciaidealizadadelutas. Nasdistinces teri-casque puderam ser obtidasdas reflexes deHegel e Mead, urnasemelhante construco encontra seuponto departida sistemtico.De acordo com isso, sao as tresformas de reconhecimento doamor,dodireito e da estima que criam primeiramente, tomadas emcon-junto, as condices sociais sob as quais os sujeitos humanos podemchegar aurnaatitude positiva para com elesmesmos; pois sgra-casa aquisico cumulativa de auroconfianca, auto-respeito e auto-estima, como garante sucessivamente a experiencia das tres formasdereconhecimento, urna pessoa capazdese conceberdemodoirrestrito comoumserautnomo e individuado e dese identificarcom seus objetivos e seus desejos. Ora, essa tripartico se deve a urnarerroprojeco terica de diferenciaces que s puderam ser obtidasem sociedades modernas sobre umestado inicial aceito hipotetica-mente; pois emnossa anlise vimos que arelacojurdica spodese desligar doquadro tico daestima social nomomento em que submetidaas pretens6esdeurna moral ps-convencional. Nessesentido, natural adotar para a situaco inicial doprocesso de for-rnaco a ser descrito urnaforma de interaco social em que aquelestres padres de reconhecimento estavam ainda entrelacados uns nosoutros de maneira indistinta; a favor disso pode depor a existenciadeurnamoralarcaicae internadegrupo, nointeriorda qualosaspectos da assistncia nao estavam separados completamente nemdos direitos de membro da tribo nern de sua estima social47. Por isso,o processo deaprendizadomoral, queo quadro interpretativo emvista deve expor como modelo, teve de render duas realizaces intei-ramente distintas de urna vez s: provocar urna diferenciaco dos di-versos padres dereconhecimento e, aomesmo tempo, dentro dasesferas deinreraco assimcriadas, liberar o respectivo potencial in-ternamente inscrito. Se ns distinguimos nesse sentido entre o esta be-lecimento de novas nveis de reconhecimento e o destacamento de suasestruturas intrnsecas, nao difcil reconhecer que somente o segundoprocesso se pode atribuir diretamente aoimpulso daslutas sociais.Enquanto a diferenciaco dos padrees de reconhecimento re-monta a lutas sociais que podem ter a ver com as exigencias de reco-nhecimentoapenasnosentidomuitoamplodeurnadeslimitacodospotenciais da subjetividade, com seu resultado alcancado umnvel sociocultural emquepodemtornar-seefetivasasestruturasintrnsecas respectivas: assim que o amor as pessoas separado, aomenos em princpio, doreconhecimento jurdico e da estima socialdelas, surgem as tresformas dereconhecirnento recproco, nointe-riordas quaisestoinscritos, junto comos potenciaisevolutivosespecficos, osdiversos generas deluta. S agoraesto embutidasnarelaco jurdica, com as possibilidades deuniversalizaco e ma-terializaco, e na comunidade de valores, com aspossibilidades deindividualizacoeigualizaco, estruturasnormativasquepodemtornar-seacessveisatravsdaexperienciaemocionalmentecarre-gadado desrespeitoeser reclamadasnaslutasda resultantes;ohmus dessas formas coletivas de resistencia preparado por semn-ticas subculturais em que se encontra para os sentimentos de injus-ticaurna linguagem comum, remetendo, por mais indiretamente queseja, aspossibilidadcs deurnaampliacodas relaces dereconhe-cimento. A tarefadoquadrointerpretativo erovista descreverofio idealizado atravs doqual puderam liberar-se os potenciais nor-47 Cf., porexemplo, ArnoldGehlen, Moral undHypermoral. Eine plu-ralistische Ethik. Frankfurt, 1969.266Axel Honneth Lutapor reconhecimento 267mativosdo direito moderno e da estima; ele faz com que se origineumnexo objetivo-intencional, no qual os processos histricos j naoaparecem como meroseventos, mas como etapas emum processode formacoconflituoso, conduzindo a urnaarnpliaco progressi-va dasrelaces de reconhecimento. O significado que cabeas lutasparticulares se mede, portanto, pela contribuico positiva ou nega-tivaqueelas puderamassumirnarealizaco de formas naodis-torcidasde reconhecimento. No entanto, urn tal critrio nao podeser obtido independentemente daantecipaco hipottica de um es-tado comunicativo em que as condices intersubjetivasda integri-dadepessoal aparecemcomopreenchidas. Dessemodo, enfim, adoutrinahegelianade urna luta por reconhecimento s poder seratualizada mais urnavez, sob pretenses mitigadas, se seu conceitodeeticidadealcancarnovamentevalidadenumaformaalterada;dessubstanciada.9.CONDl