homilia do 18º domingo do tempo comum ano...

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1 Homilia do 18º Domingo do Tempo Comum Ano C Na 1ª Leitura da Liturgia de hoje, o Livro de Qohelet (que significa aquele que convoca a assembleia) (e que conhecemos como Eclesiastes, em grego latinizado) marca uma fase de desenvolvimento do pensamento religioso de Israel. Surgindo no momento (Séc. III por volta do ano 300 a.C) em que o helenismo espalhava ideias novas e abalava à solidez das antigas crenças, a Palestina estava sendo absolvida pelo império de Alexandre Magno. Ele oferece a todos uma mensagem de desapego das coisas da terra. Seu refrão preferido é: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.”. A literatura do Antigo Testamento geralmente demonstra apreço e gratidão pela vida. Prova disso é a primeira página da Bíblia, o hino da criação (Gn 1). O Eclesiastes, porém, parece demonstrar certo ceticismo. Ataca o leitor com perguntas inoportunas: que é o

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Homilia do 18º Domingo do Tempo Comum – Ano C

Na 1ª Leitura da Liturgia de hoje, o Livro

de Qohelet (que significa aquele que convoca a

assembleia) (e que conhecemos como

Eclesiastes, em grego latinizado) marca uma

fase de desenvolvimento do pensamento

religioso de Israel. Surgindo no momento (Séc.

III por volta do ano 300 a.C) em que o

helenismo espalhava ideias novas e abalava à

solidez das antigas crenças, a Palestina estava

sendo absolvida pelo império de Alexandre

Magno. Ele oferece a todos uma mensagem de

desapego das coisas da terra. Seu refrão

preferido é: “Vaidade das vaidades, tudo é

vaidade.”.

A literatura do Antigo Testamento

geralmente demonstra apreço e gratidão pela

vida. Prova disso é a primeira página da Bíblia,

o hino da criação (Gn 1). O Eclesiastes, porém,

parece demonstrar certo ceticismo. Ataca o

leitor com perguntas inoportunas: que é o

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homem? Por que existe? Aonde vai? Para que

servem a riqueza e o saber, dificilmente

alcançados e tão facilmente perdidos na hora

da morte? É como um vento que passa

“vaidade”. Que sobra? Essas perguntas nos

preparam para valorizar o “tesouro junto a

Deus” de que fala o evangelho.

Quando os negócios vão bem, é difícil

aceitar o questionamento do Eclesiastes. Ele

insiste no vazio das riquezas deste mundo, não

só as riquezas financeiras, mas também o

poder e o saber. O judaísmo apreciava bastante

a riqueza, vendo nela uma recompensa de Deus

(a assim chamada “teologia da retribuição”).

Porém, uma obra mais ou menos

contemporânea do Eclesiastes, o livro de Jó,

põe em xeque a ideia de que a riqueza e a

honra sejam recompensas por uma vida justa:

Jó era um justo e recebeu o contrário da

riqueza e do poder. Com base nisso, o livro de

Jó nos abre ao mistério de Deus, que nos

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transcende (Jo 38,1-42,6). Eclesiastes, por sua

vez, expõe lucidamente a precariedade das

riquezas financeiras e culturais. Mas não

conhece a visão de Jó, nem propõe alternativa

ao tradicional pensamento judaico, nem vê

outra riqueza que mereça nosso empenho. Por

isso, apregoa uma fruição prudente e um

comportamento sem problemas e sem

perspectiva maior.

A grande lição que o “Qohélet” nos deixa

é a demonstração da incapacidade de o

homem, por si só, encontrar uma saída, um

sentido para a sua vida. O pessimismo do

“Qohélet” leva-nos a reconhecer a nossa

impotência, o sem sentido de uma vida voltada

apenas para o humano e para o material.

Constatando que em si próprio e apenas por si

próprio o homem não pode encontrar o sentido

da vida, a reflexão deste livro força-nos a olhar

para o mais além. Para onde? O “Qohélet” não

vai tão longe; mas nós, iluminados pela fé, já

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podemos concluir: para Deus. Só em Deus e

com Deus seremos capazes de encontrar o

sentido da vida e preencher a nossa existência.

Retorno às primeiras perguntas do inicio

dessa reflexão sobre a vaidade da riqueza. Para

que tanto trabalhar, se nada podemos levar e

devemos deixar o fruto de nosso trabalho para

outros? Os pais arrecadam, os filhos

aproveitam, os netos põem a perder… No

evangelho, Jesus ilustra essa realidade com a

parábola do homem que chegou a assegurar

sua vida material, mas na mesma noite iria

morrer…

No Evangelho de hoje, nota-se um

costume do povo em recorrer à arbitragem de

um rabino para decidir em questões de

partilhas de bens, como esta a que se refere o

texto. Jesus escusa-Se, delicadamente, a

envolver-Se em questões de direito familiar e a

tomar posição por um irmão contra outro

(“amigo, quem me fez juiz ou árbitro das vossas

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partilhas?” – vers. 14). O que estava em causa

na questão era a cobiça, a luta pelos bens, o

apego excessivo ao dinheiro (talvez por parte

dos dois irmãos). Não basta dizer que o homem

tinha já o suficiente para viver e, por isso, Jesus

não quereria ajudá-lo a alimentar a cobiça que

o dominaria (cf. v. 15). A atitude de Jesus revela

a natureza da sua missão e torna-se

paradigmática: a missão de Jesus é uma missão

salvadora, que não tem como objetivo a

resolução técnica dos diversos problemas

temporais dos homens; limita-se a apontar

claramente os princípios superiores de ordem

moral que, ao serem assumidos

responsavelmente, conduzem com eficácia ao

bem integral do ser humano. Este indivíduo

recorreu a Jesus como juiz de partilhas; Jesus

apresenta-se como o Mestre da Verdade que

salva, libertando o homem de cair nas malhas

da ambição, do egoísmo e do pecado; assim Ele

aponta critérios do mais elementar bom senso

humano – «a vida de uma pessoa não depende

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da abundância dos seus bens» (v. 15) -, assim

como critérios do mais elevado sentido

sobrenatural da fé – «tornar-se rico aos olhos

de Deus» (v. 21), «dando os bens em esmola»

(v. 33).

A parábola do rico insensato põe a nu a

loucura do homem que vive de cálculos para

gozar esta vida, esquecendo que esta não lhe

pertence e lhe pode ser tirada repentinamente.

Herança, sucesso, safra… não livram o homem

do perigo maior: endurecer-se, romper a

comunhão com os irmãos e com Deus. Quem

liga para esses “tesouros” é um bobo (12,20).

Assim é quem adora a sociedade do consumo.

Embora talvez frequente a Igreja, no fundo não

se importa com Deus (cf. Sl 14[13],1). Possuído

por suas posses (cf. Tg 4,13-15), o ser humano

já não percebe o que Deus lhe quer mostrar. O

contrário disso, porém, a doação, a comunhão

e tudo que daí procede nos garantem um

tesouro junto a Deus. Por isso, na narração da

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parábola do rico insensato, o qual, depois de

uma boa safra, achou que poderia descansar

para o resto da vida e viver do que recolhera.

(Coitado! Na mesma noite Deus viria reclamar

sua vida…) Não que Jesus critique o desejo de

viver decentemente; antes denuncia a mania

de depositar a esperança nas riquezas desta

vida, perdendo a oportunidade de reunir

tesouros (= o que se deposita para guardar)

junto a Deus.

As riquezas não são um mal em si, mas nos

desvia a atenção da verdadeira riqueza, a

amizade de Deus, à qual alcançamos pela

dedicação a seus filhos (nesse sentido, convém

completar a parábola de hoje com aquela do

rico avaro e Lázaro, Lc 16,19-31).

Vem bem a propósito o que diz S. Paulo

na 2ª leitura de hoje: «Afeiçoai-vos às coisas do

alto e não às da terra» (Col 3, 2). Em

continuidade com a segunda leitura de

domingo passado, Paulo nos expõe hoje a vida

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nova em Cristo. A vida nova do cristão é morrer

e cor- ressuscitar com Cristo. A comunhão com

ele não é só para a vida futura; já somos a nova

criação em Cristo, embora ela esteja ainda

escondida em Deus, como o próprio Cristo. Mas

essa vida nova já age, e sua configuração já está

definida. Para isso, o velho homem deve

morrer, não por uma mortificação que diminui

a dignidade humana, mas pela vida nova na

comunhão. Isso é o que nos garante um

tesouro junto a Deus.

O evangelho nos ensina a rever os

critérios de nossa vida. Precisamos acreditar

que nossa existência é diferente daquilo que o

materialismo nos propõe. A segunda leitura nos

fornece uma base sólida para tal fé.

Corressuscitados com Cristo, devemos procurar

as coisas do alto: o que é de valor definitivo,

junto a Deus. E isso não está muito longe de

nós. Nossa verdadeira vida é Cristo, que está

“escondido” junto a Deus, na glória que se há

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de manifestar no dia sem fim. Se essa é nossa

vida verdadeira, embora escondida, ela

determina nosso agir desde já. Em vez de

buscar interesses próprios (Cl 3,5.7 faz o elenco

destes), devemos buscar o que é de Deus (3,12-

17, continuação da presente leitura). Nossa

vida já é dirigida por critérios diferentes,

embora sua figura definitiva ainda não seja

visível. Por isso, o cristão é incompreensível

para o mundo. Ele mesmo, porém, deve

compreender e sondar a precariedade dos

“tesouros” deste mundo. Por ser assim

“diferente”, ele será rejeitado; portanto,

precisa de uma fé sólida na autêntica vida – a

de Cristo ressuscitado e de todos os

verdadeiros batizados, sem distinção (Cl 3,11).

Será que isso significa desprezo pelo

mundo? Não. Nem teríamos o direito de

desprezar o que Deus criou. É apenas uma

questão de realismo: importa saber onde está a

vida verdadeira, o sentido último do existir, e

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relativizar o resto em função dessa vida

verdadeira. Esta é a do Filho de Deus. Nós a

partilhamos se nos dedicamos à vontade do Pai

em tudo. E essa vontade é o amor para com

nossos irmãos. O amor nos engaja muito mais

neste mundo do que a busca de riquezas e de

saber ilustrado.

Queridos irmãos e irmãs, diante da

reflexão hoje, proposta pela liturgia da Palavra,

devemos rever nossas vidas, e nos perguntar: O

que importa para nós? Devemos tomar o

cuidado de não nos deixarmos levar pelo

consumismo absurdo, de não sermos

influenciados por pessoas que vivem da inveja,

da soberba, da avareza, cujo deus é o ter, o

poder e o prazer. Devemos buscar nossas

riquezas em Deus e aprendermos que sem Ele,

nada somos e nada temos. Não possuímos uma

bola de cristal para sabermos quando será o dia

de nossa partida, por isso, a cada dia devemos

nos revestir do homem novo, devemos buscar a

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conversão, devemos acumular nossas riquezas

junto de Deus, para assim nos prepararmos

para o grande retorno. Termino hoje com uma

reflexão de Santa Tereza DÁvila: “Neste mundo

tudo passa, somente Deus nos Basta.”

AMÉM