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o HOMEM NA EVOLUÇÃO GEOLÓGICA

por

ORLANDO RIBEIRO *

RESUMO

Achados recentes recuam cada vez mais o aparecimento do primeiro Hominídeo e das suas indústrias (Australopitecos e Pebbles Tools). Esboço rápido da evolução geológica quaternária desde mantos de derrame dos planaltos villafranquianos e das praias calabrianas. «Emergência» das quatro espécies do género Homo. Relações delas com as indústrias pré-históricas e a cronologia geral do Quaternário.

RESUMÉ

Les trouvailles récentes reculent de plus en plus l'apparitiondu premier Hominidé et de ses industries (Australopithéque et Peb­bles T~ols). Esquisse rapide de l'évolution géologique quaternaire depuis les nappe$ d'épandage des plateaux villafranchiens et les plages calabrlennes. «Emergence» des quatre espêces du genre Homo. Leurs rapports avec les industries préhistoriques et la chronologie géné­rale du Quaternaire.

I

O género Homo é, no tempo geológico, a derra­deira aparição entre as espécies superiores. Exaustão da natureza ou perspectiva falseada pelo lapso, relativamente muito curto, da sua existência, eis o que só o futuro (dentro do mesmo tempo geológico) permitirá decidir - se ainda houver na Terra seres capazes de pensamento científico... Essa aparição, que uma cronologia aproximada situava entre seis­centos mil a um milhão de anos, ascende, com as descobertas africanas dos últimos decénios, à ordem de três milhões.

Lineu viu perfeitamente a semelhança entre os Homens e os Símios, constituindo com ambos a or­dem dos Primatas. O transformismo - que depois de ser uma teoria ousada e coerente se consolidou como um axioma da Biologia - começou por esta­belecer uma ordem de filiação a que, no tempo de Darwin, faltava contudo o missing link - que o holandês Dubois julgou ter encontrado com o achado, verdadeiramente revolucionário, do Anthropopithe­cus erectus de Java. Aplaudido por uns, impugnado por outros, confirmado decisivamente pelas desco­bertas de Chu-ku-Tian, perto de Pequim, as designa­ções de Anthropopithecus e Pithecanthropus mostram a hesitação na maneira de o situar taxonomicamente. Tal como sucedera com o Homem de Neanderthal, em que alguns pré-historiadores pretenderam ver uma espécie de grande símio «domesticado» pelo Homo sapiens, único responsável pela indústria moustierense a' que anda asso'ciado,' Obermaier sus-

tentou, contra Breuil (então as duas maXlmas auto­ridades na matéria), a ideia de que, entre outros des­pojos de caça, figurava aquele grande antropóide, que apontava sem dúvida para o humano sem o ter ainda alcançado. A controvérsia resolveu-se em sentido contrário, mas reacendeu-se com os achados do Australopithecus, muito mais antigo, mas que Piveteau considera uma «escama», ainda abortada, no sentido da evolução humana. Uma vez mais a Pré-história resolveu a controvérsia, confirmada por novos achados em que, indubitavelmente, este Hominídeo está associado à mais primitiva e fruste das indústrias - os seixos simplesmente afeiçoados por truncatura com outro seixo contundente (pebble tools). Os autores de língua inglesa não hesitaram em considerar a Pebble Culture como a mais antiga forma de «civilização» - portanto de humanidade; daí se haver proposto, para esta remota espécie humana, a designação, sem dúvida mais conforme com a rea­lidade, de Australanthropus, que todavia se não gene­ralizou. E assim temos, dentro da evolução dos Pri­matas no sentido humano, cada vez mais recuada no tempo, «escamas» (sucessivas e ainda em parte simul­tâneas) de três espécies de Hominídeos que prece­deram a última - Homo sapiens.

Que resta destes «homens fósseis» ? Extinção total dos Australopitecos e dos Neanderthalenses, em condições ignoradas; Breuil lançou a sugestiva

• Professor jubilado da Universidade de Li,sboa, Director honorário {fundádoi:)do centro de' EStudos Geográficos.

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SGP
Referência bibliográfica
Boletim da Sociedade Geológica de Portugal, Vol. XXII, 1980-1981.
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ideia de um provavel extermínio violento destes pelo Homo sapiens; de possíveis mestiçagens, alguns autores aceitam a dos Neanderthalenses com o Homo sapiens em achados da Palestina e dos Pitecantropos com o mesmo nos Australianos - que representa­riam assim o tipo, ao mesmo tempo mais antigo e mais primitivo, dentro da humanidade actual.

II

Como se insere esta «emergência» de Hominídeos nas vicissitudes da cronologia geológica e qual foi o motor principal da sua evolução? Há cinquenta anos, no meu tempo de estudante, aceitava-se geral­mente que o homem derivaria do tronco dos grandes símios antropóides pelo «ajustamento» resultante da passagem de arborícola das selvas tropicais aos espaços descobertos das savanas e do bush de mato espinhoso.

O processo compreendia a especialização da mão no sentido do fabrico de instrumentos e, correlati­vamente, com a estação cada vez mais próxima da vertical nos sucessivos Hominídeos, também a espe­cialização da boca, que deixou de ter a função preen­sil, trituradora, transportadora, reservada apenas, ou principalmente, à mão. Donde aligeiramento da mandíbula, redução dos músculos respectivos e sua inserção cada vez mais baixa nas paredes laterais do crânio, o que possibilitaria maior desenvolvimento do encéfalo e do seu lóbulo frontal - sede das formas superiores de psiquismo. E assim se passaria, pouco a pouco, da mandíbula saliente e pesada e da fronte fugidia, da estação ainda inclinada e da redução do braço em relação à perna, para a atitude vertical, as pernas longas, os braços curtos, o queixo e a testa do Homo sapiens.

Esta elegante construção do espírito tem muito de conjectural e nada se sabe dos complexos proces­sos biológicos que ela pressupõe. No entanto pode considerar-se verosímil nas grandes linhas. A exis­tência de Hominídeos no Villafranquiano (pelo menos do Australopiteco) é mais uma presunção a seu favor: como se sabe, caracterizam este período imensos derrames em regime semi-árido ou mesmo árido em áreas muito vastas do Globo: não pode deixar de ter-se produzido uma retracção dos bosques tropicais. Os achados de Australopitecos que se encontram nos confins norte e sul da África tropical, fora e na orla deste ambiente, inculcam mais uma presunção favorável a tal modo de ver.

O Calabriano, equivalente marinho das casca­lheiras de planalto, situa-se, onde não está deformado, em torno de 120 metros e é a primeira pausa na sucessão de níveis eustáticos do Quaternário a que, sejam quais forem as dificuldades da interpretação, não pode negar-se a evidência. Por descidas e subidas alternadas do nível do mar (que na última glaciação baixou de 80 a 100), observa-se um escalonamento de, pelo menos, cinco níveis de praias levantadas e quatro de terraços fluviais, às vezes enquadrados nos imensos planaltos cascalhentos do Villafranquiano, correlativos, pelo menos, de desorganização da dre­nagem: mantos de inundação esporádicos, difluência nas suas extremidades; os primeiros correspondem a grandes acumulações caóticas de blocos sub-angu­los os e apenas boleados, de todos os tamanhos, alguns de dimensões muito superiores ao que permite o transporte fluvial, às vezes envoltos numa massa de

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alteração ou «flutuantes» nel a; os segundos orde­nam-se dentro de certo rolamento e calibragem. A partir do centro da Espanha, onde alcançam o máximo desenvolvimento e espessura observados na Europa, generalizou-se a designação de ranas apli­cada a estas formações.

O escalonamento de uiveis tanto mais modernos quanto mais baixos não pôde ainda ser explicado de maneira satisfatória. Há níveis mais antigos (pelo menos para os convictos do eustatismo!) em torno de 150,200, 300,400m! Não é possível explicá-los por abaixamento sucessivo do nível do mar desta ordem de grandeza; o solevamento epirogénico, que se pode compreender pelo espessamento das «raízes leves» devido à orogénese terciária, fez-se por ajustamentos isostáticos em grandes e pequenas áreas - o que é pouco favorável ao escalonamento regular de vastos níveis de erosão. Mais ou menos por toda a parte a pesquisa revela deformações cada vez mais numerosas e existe sem dúvida uma neotectónica, não apenas à escala do Quaternário mas de algumas gerações ou momentos da vida humana: variação de altitude dos pontos geodésicos, rupturas durante grandes sis­mos - como o jogo da famosa falha de Santo André na Califórnia. Mas na querela entre mobilistas e fixistas o grande geomorfólogo Baulig disse algo de definitivo: o eustatismo não é infirmado pela exis­tência de deformações mas é confirmado pelo esca­lonamento, a idênticas altitudes, dos mesmos níveis de erosão em lugares diferentes e particularmente estáveis. Quanto à segurança das correlações dis­tante'S fazem-se muitas e justas reservas e a causa. do eustatismo permanece obscura. Mesmo a do próprio glácio-eustatismo. Investigações modernas permiti­ram anteceder de mais duas as quatro glaciações clássicas.

Cada crise glaciária produzirá um aumento das geleiras circumpolares e de alta montanha; o abaixa­mento de temperatura nunca permitirá voltar ao clima anterior. Por outras palavras: parte do gelo novamente acumulado não fundirá; cada nova gla­ciação terá assim como consequência uma retenção cada vez maior de gelo, pois se adiciona ao efeito da anterior. Esta hipótese, que há quarenta anos enun­ciei no ensino da Geografia física na Universidade de Coimbra, foi confirmada por sondagens recentes através da calote da Antártida, onde se tem encon­trado gelo cada vez mais antigo e mais espesso. Assim, ao nivel do mar, nos períodos interglaciários (calcu­lado com exactidão, por métodos independentes e convergentes, em 80 a 100 metros abaixo do actual no máximo da regressão würmiana), sucede­rão subidas que nunca voltarão a alcançar a situação anterior. Só assim se poderá entender o escalona­mento e a sucessão de praias e terraços vestibulares, cada vez mais baixos, com uma componente geral de abaixamento do mar. A não ser que se tenha andado por duvidosos caminhos de explicação e que esta possa. vir a ser muito outra e insuspeitada ...

No lapso de tempo de uns três milhões de anos, e não por ilusão resultante da sua modernidade, o ambiente dos Hominídeos aparece extremamente mutável e conturbado. O uiveI do mar oscilou pelo menos 200 m (do Calabriano ao máximo da regres­são würmiana), arrastando consigo, depois da mise en place dos enrugamentos da orogénese alpina, uma erosão furiosa em que os rios se encaixaram pelo menos outro tanto, grandes praias descobriram du­rante as fases de nivel baixo do mar, varridas por

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ventos impetuosos que construiram dunas, depois consolidadas, galgando e cobrindo arribas e entu­pindo vales vigorosamente incisos. As zonas climato­-vegetais sofreram uma espécie de movimento em har­mónio, retraind o-se e dilatando-se a partir do Equa­dor e dos Polos. Aos períodos glaciários e periglaciá­rios, cujos vestígios alcançam os litorais das latitudes médias e as médias montanhas tropicais, corres­pondem, grosso modo, períodos iluviais nos desertos, que permitem a sedentarização, desde muito cedo, de grupos humanos de certa dimensão (adiante se referirá um exemplo). Desde quando não se sabe, mas muito antes da invenção da agricultura, o ho­mem utilizou combustões naturais e produziu quei­madas, para clarear matas impenetráveis e acuar animais de caça. São infindas as controvérsias sobre o factor natural e humano na formação e desenvol­vimento das savanas. Se a selva equatorial arde difi­cilmente, desde que existe uma estação seca as quei­madas apoderam-se da vegetação, permitindo a extensão de gramíneas e alterando arvoredos por selecção de espécies resistentes ao fogo.

Adiante se tentará mostrar como estas rápidas transformações, num lapso geológico muito breve, podem ter contribuído não só para o «transformismo» mas para a «evolução» (isto é, orientada no sentido da diferenciação e aperfeiçoamento) dos Hominídeos.

III

Os Australopitecos cobriram mais de dois terços da evolução humana. Tem aparecido vestígios ósseos que ascendem ao Villafranquiano e seixos afei­çoados tanto nas cascalheiras como nas praias cala­brianas. Na pausa seguinte - Siliciano - são fre­quentes, já rolados pelo mar: um sítio clássico, des­coberto por Breuil e Zbyszewski é a praia de 90 me­tros de Magoito, ao norte de Sintrfl.. Portugal possui assim vestígios de indústria que se contam entre os mais remotos da humanidade. O afeiçoamento inten­cional de instrumentos, por muito frustes que sejam, não existe entre os grandes antropóides, tão próxi­mos, em certos aspectos, do humano. Muitos ma­nuais de psicologia mostram fotografias de chim­panzés exprimindo, por idêntico jogo fisionómico, sentimentos «humanos» como serenidade, conten­tamento, cólera, terror. Os gorilas emitem uns quinze sons que correspondem a situações psíquicas diversas, antecedentes remotos da linguagem articulada; ma­chos e fêmeas acasalam-se com certa permanência, construindo nas árvores camas de ramos e folhas onde vêm, com regularidade, dormir com as crias.

Provavelmente não se saberá nunca quando apa­receram o uso do fogo, que afugenta todos os ani­mais bravios, a sua produção voluntária, a linguagem, que, para além da herança biológica dos instintos, será um repositório de experiências que se transmitem de geração em geração e permite a vida gregária com permanência - isto é, a passagem do bando, ocasio­nalmente reunido, para a horda mais ou menos estável. Também é impossível saber quando se redu­ziu a cobertura de pelos - o «Símio nu», como chamou ao homem um vulgarizador inglês.

IV

A Paleontologia considera como fósseis tanto os vestígios de seres vivos como pistas de vermes e crus­táceos e pegadas de sáurios gigantescos. Da mesma

maneira, e muitissimo mais abundantes do que os restos de esqueleto (sobretudo crâneo e mandíbula), as indústrias constituem o principal e mais seriado dos vestígios da presença humana. Algumas vezes em camadas ou no interior de cascalheiras, muitas mais à superfície: tratando-se de «andares» muito recentes geológica mente, ou permaneceram expostos ao ar ou removeram-se os delgados materiais finos que os cobriam. Nestas circunstâncias, os geólogos não podem aplicar os seus métodos mais correntes e daí a reserva ou indiferença com que alguns encaram o labor dos pré-historiadores: se são os métodos que orientam a pesquisa, os achados podem inflecti-los no sentido mais adequado a ela; por isso a Pré-his­tória deve-se a uma convergência de atitudes de investigadores procedentes tanto da Arqueologia e da Antropologia como da Paleontologia e da Estra­tigrafia. Muito mais do que os princípios de sobrepo­sição, em que se funda a Geologia desde os seus alvo­res no século XVII, a tipologia é muitas vezes o único recurso de seriação cronológica.

Ao Australopiteco andaria associada apenas a indústria de seixos afeiçoados. Os instrumentos do Paleolitico inferior corresponderiam ao Pitecan­tropo; percutindo grandes seixos, notam-se já, no talhe intencional e complexo, duas preferências: desbatá-Ios, aguçando-os em ambas as faces e dei­xando uma «pega» intacta que se ajusta à mão fecha­da, ou separar e trabalhar, a partir deles, as lascas desprendidas. Abbevillense e Clactonense, na lingua­gem mais corrente dos pré-historiadores, em parte contempOJ;âneos, poderiam indicar, nesta remota humanidade, duas «civilizações»: a coexistência de ambas em algumas jazidas mostra que elas estive­ram ocasionalmente em contacto.

É importante notar que estas técnicas persistiram até muito tarde. Os picos asturienses, característicos do litoral desde as Astúrias até ao Minho, abundantes em praias de seixo emersas na maré baixa que desa­fiam a avidez de colecionadores, são como uma degra­dação do coup-de-poing, pois o seixo é aguçado, con­serva a pega, mas é talhado dum lado só no sentido do comprimento. Destinados principalmente a des­prender as lapas dos rochedos, constituem uma indús­tria fruste e arcaizante, aparecida quando os homenns deixaram o abrigo das grutas no fim da última gla­ciação e persistem até ao fim da Idade da Pedra. Eles ilustram particularmente bem a teoria do grande geógrafo americano Carl Ortwin Sauer que considera os litorais ricos em mariscos de fácil captura como o habitat mais antigo da humanidade.

Leroi-Gourhan mostrou brilhantemente que o «progresso» em Pré-história consiste em obter instrumentos cada vez menos volumosos e dotados de cada vez maior extensão de gume. Esta seriação pode seguir-se, ininterruptamente, dos simples seixos afeiçoados e dos pesados bifaces ou grossas lascas do Paleolitico mais antigo ou mais arcaico, até (para além já da duração do Homem fóssil) aos micrólitos característicos do Mesolítico, às maravilhas de con­cepção e execução das pontas de seta neolíticas; pelo menos o emprego ritual de facas de pedra polida chegou à História: dissecção anterior à mumi­ficação, entre os Egípcios, abertura do peito e arran­que do coração, que os Espanhóis presenciaram horrorizados entre tantas formas de vida superior das cidades aztecas.

A despeito da perfeição a que chegaram os coups-de-poing acheulenses, todo este material é

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pesado e pode ultrapassar as dimensões da mão. Ao Acheulense pertence uma das mais extraordi­nárias estações pré-históricas, El Beyed, descoberta por Théodore Monod em pleno Sáhara da Mauri­tânia, que a apresentou aos membros do Congresso do Quaternário e Pré-história africanos, celebrado em Dakar em 1967.

Numa depressão rodeada de dunas e escarpas de arenito, em torno de um poço utilizado pelos nómadas cameleiros, montou-se um acampamento para mais de meio cento de pessoas: bastava andar um pouco para encontrar, à superfície do solo endurecido, cen­tenas de belos bifaces, das dimensões de um punho ao dobro, talhados a golpes largos em formas níti­das: muitos pré-historiadores encheram caixotes com que enriqueceram as colecções dos respectivos pai­ses. De tal abundância podem tirar-se escassas con­clusões e arriscadas hipóteses: num período pluvial acumulou-se muita gente em espaço restrito, com carácter permanente, constituindo uma verdadeira «oficina» - talvez a mais antiga que se conhece com segurança? Habitat fixo ou ajuntamento, como os nómadas actuais em épocas mais favoráveis do ano? A produção de bifaces em tal quantidade cobre um lapso de tempo muito longo, da ordem de cen­tenas de milhar de anos, durante os quais se deu a evolução de formas frustes e pesadas para outras, mais apuradas e leves. Foi a erosão em mantos nas «rampas» e a deflacção desértica que puseram à superfície uma abundância de material de modo nenhum contemporâneo.

O Paleolítico médio (Moustierense) anda, com bastante segurança, associado ao Homem de Nean­derthal. Caracterizam-no núcleos e lascas, às vezes talhadas com finura, geralmente de pequena dimen­são; é de supor que não fossem apenas utilizadas directamente, como as indústrias anteriores, mas «encabadas» em madeira, presas com fibras vege­tais; são como o ferro ou o aço de instrumentos históricos: quem poderia, apenas pela relha metálica, reconstituir a forma e o uso dos arados de madeira? Aparecem as mais antigas sepulturas (culto dos mortos e ideia da sobrevivência da alma?) e «covi­nhas» dispostas geometricamente, com intenção ornamental ou mágica.

O Paleolítico inferior cobriu a maior duração do Quaternário clássico, isto é, sem a inclusão recente do Villafranquiano. Impossível indicar quando começa e acaba. O Moustierense, pelo menos na Europa média onde é melhor conhecido, aparece em esta­ções ao ar livre e, mais tarde, em grutas: corresponde portanto ao último interglaciário e foi ainda contem­porâneo do começo da derradeira glaciação, quando o frio obrigou o Homem a procurar abrigos naturais.

Muito mais curta ainda é a duração do Paleolí­tico superior, caracterizado pelo talhe, a partir de núcleos, de lâminas finas e leves (donde a designação de Leptolitico proposta para este período). O mate­rial diversifica-se: pontas de seta, zagaia e lança, raspadores, furadores, que indicam o uso de peles como cobertura, no final objectos de osso, na «idade da rena» (máximo da glaciação würmiana), numa civilização que persistiu até aos nossos dias na vida tradicional dos esquimós. Aparição da pintura mural animalista e da escultura de barro, às vezes com o máximo de expressividade possível e finas cambiantes de cores na arte franco-cantábrica, grandes cenas de composição, danças rituais e cerimónias de magia a par de formas da vida quotidiana, na arte do

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Levante espanhol. Portanto, na mesma Península, dois estilos contemporâneos - siglas de civilizações distintas mas próximas no espaço.

Numerosas sepulturas permitem reconstituir com segurança o Homo sapiens, responsável pelo fabrico de finos, elegantes e engenhosos instrumentos e por manifestações artísticas e religiosas. No fim do período extinguem-se espécies importantes, como a hiena das cavernas e o mamute, o mais corpulento dos animais terrestres, que o Homem ainda caçou e desenhou, aproveitando dele a carne e as defesas (estatuetas de marfim).

Com os restos de esqueleto, as indústrias da pedra e do osso, as manifestações artísticas, insuperadas na representação de certos animais, e o fim da derra­deira glaciação, terminam os Homens fósseis. Boule, que lhes consagrou um tratado ainda clássico, quis ver, nos caracteres antropométricos dos Homens de Cro-Magnon, de Chancelade e de Grimaldi um «apontar» para as três grandes raças da humanidade actual: branca, amarela e negra. As raças de pe­quena estatura, com caracteres que aparentam umas aos amarelos, outras aos pretos, não parecem existir ainda- o que fala mais em favor de regressão do que de arcaismo.

v

O Paleolítico superior caracteriza-se tanto pela continuidade da espécie humana até ao presente como pela sua ubiquidade. De facto, a favor do abaixa­mento do nível do mar würmiano, pela «ponte» do estreito de Bering e talvez de navegação de cabota­gem no arco das Aleutas, quebrou-se o isolamento do Novo Mundo relativamente às formas de huma­nização. Faltam na América não só as espécies ante­riores ao Homo sapiens como os grandes antropoides, seus mais próximos parentes biológicos. Aqui difun­de-se uma única grande raça, a amarela. A despeito da baixa estatura, a face achatada, os olhos oblí­quos dos esquimós, os mais «mongoloides» de todos os Ameríndios, da estatura elevada e do nariz saliente de outros grupos, todos têm de comum o cabelo de secção em tubo e portanto corredio e a pigmentação. Ao contrário do Velho Mundo ela é uniforme e não revela como neste qualquer «ajustamento» ao ambi­biente (mas por que mecanismos e com que vanta­gens ?), que vai da pele, olhos e cabelos claros dos nórdicos europeus, passando pelos morenos medi­terrâneos, todos de cabelo ondulado, e pelos Hamitas trigueiros, aos negros, de pigmentação escura e cabe­los de secção em fita e portanto encarapinhados. Tudo se passa como se os caracteres das três grandes raças se definissem num lapso de tempo muito mais vasto do que aquele que integrou a América na «ecúmena», tornando ubiquista a espécie humana.

Através da estação cada vez mais próxima da vertical, da redução progressiva do prognatismo e do torus supraorbital, do aumento do volume do cérebro (excepto para os Neanderthalensis, que o tinham maior do que raças actuais), do desenvolvi­mento da fronte e da altura do crânio (no Homosapiens a face está como «suspensa» do crânio), existe incon­testavelmente progresso ao longo do tempo. Da mesma forma está patente no aperfeiçoamento das indústrias liticas.

A ideia do progresso resulta da· interpretação estritamente científica de dados objectivos, sem quaisquer implicações metafísicas : doseando genial-

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mente rigor e imaginação, atributos do homem de ciência, tirou-as ousadamente Teilhard de Chardin, também homem de fé ardente e esclarecida. Acei­tando uma evolução ainda em curso para formas cada vez mais elevadas de psiquismo, acrescentou à noção naturalista de «biosfera» a de «noosfera» - o espírito que tudo envolve, ilumina e orienta. (Para contrapor a supostas querelas entre a Igreja e o transformismo, é importante notar o contributo decisivo que trouxeram à génese da humanidade três sacerd otes católicos: Obermaier, Breuil, Teilhard).

Qual terá sido o mecanismo biológico do pro­gresso humano? O grande paleontólogo Piveteau que, no monumental tratado sob a sua direcção, reservou para si o volume consagrado aos Hominí­deos, baseia-o essencialmente na coordenação do cérebro e da mão: aquele pensa, esta executa. Na escala biológica e psíquica entre o Homem e os Símios superiores, é alguma coisa que marca for­temente o derradeiro período da evolução da super­fície terrestre.

Parece-me importante insistir ainda em dois pontos: a transmissão de técnicas do Australopiteco aos Homens actuais supõe, desde uma humanidade remota, contactos de civilização e propagação, por aproximações sucessivas, do seu património; se são exactas as hipóteses de mestiçagem de Pitecantropos e Neanderthalensis com o Homo sapiens, existe forte afinidade biológica entre espécies próximas, capazes de produzir híbridos fecundos.

Sem dúvida que o ambiente mutável do Quater­nário, pondo às hordas humanas problemas de adaptação a novas condições ou migrações para seguir as antigas, pode ter sido aguilhão muito forte do engenho humano.

Uma comparação entre a evolução biológica e a história humana ajudará a compreender esta ideia. Das duas grandes teorias da História do século actual, a de Spengler está fortemente impregnada de meta­física, a de Toynbee pretende ser apenas estritamente científica. O autor trata comparativamente umas vinte «sociedades ou civilizações históricas», insistindo na «aventura» de tentar, a partir de número tão escasso de casos, uma interpretação de conjunto. A ascenção ao nível das formas superiores de vida colectiva fez-se pelo «desafio» que um povo encontra em condições que podem ir do ambiente ao corpo social. Unicamente a primeira vem ao nosso propó­sito: há embriões de civilizações abortadas «pelo esforço exigido para responder a uma série de pro­vocações de severidade excessiva», «civilizações imo­bilizadas» pelas «rupturas e desafios levados ao extremo limite entre o grau que apresenta ainda um estimulante e o grau que põe em jogo a lei do ren­dimento não proporcional».

Utilizando um simile do comportamento psíquico a oposição «estatismo - dinamismo» exprime-a a sabedoria chinesa tradicional pelos conceitos Yin e Yang. As pessoas Yin, alcançando, numa subida penosa, uma cornija difícil, aí permanecem estáticas; as pessoas Yang procuram vencê-la e alcançar um estádio superior. Apenas os grupos humanos Yang são capazes de elevar-se às formas superiores e com­plexas das «sociedades ou civilizações históricas», seguindo um paralelismo evolutivo que o autor, por demasiado espírito sistemático, procura em todos.

Podemos imaginar, à luz destes conceitos inova­dores e vigorosos, uma hominização de algum modo paralela:

1) Persistência dos grupos humanos Yin, degra­dados quando não conseguiram acompanhar a mudança das condições do ambiente a que se ajus­taram - espécies que sobrevivem (Australopitecos e Pitecantropos tardios), arcaísmo e imobilidade dos produtos da invenção humana, de que a indústria asturiense, já aludida, indica a regressão ou per­sistência de formas muito frustes, errando as hordas humanas ao longo de litorais rochosos: caracteres que se filiam na técnica abbevillense e persistem até ao Neolitico.

2) Transformação, ao «desafio» do ambiente, dos grupos Yang, que «emergiram» nas quatro prin­cipais «escamas» da hominização e no progressivo desenvolvimento, com momentos de grande dina­mismo, de indústrias cada vez mais engenhosas e diferenciadas.

VI

O assunto que me propus tratar, para fazê-lo com segurança e em profundidade (embora em síntese brevíssima) necessita uma séria especialização e o domínio de uma bibliografia de mais de um século, cada vez mais abundante e em maior número de línguas, algumas pouco acessíveis, como o russo. Estou longe de possuir estes recursos. Mas o pro­blema da prigem e da evolução dos hominídeos foi abordado por arqueólogos, antropólogos e geólogos: porque não há-de também ter o geógrafo alguma coisa a dizer? O meu escasso conhecimento da biblio­grafia aludida e o aproveitamento de leituras que ascendem a meio século e foram esporadicamente actualizadas explica o recurso a hipóteses e teorias que podem ter passado de moda (não sem deixa­rem o resíduo de ideias válidas e fecundas) e o ter apresentado como minhas sugestões que antes ocorreriam a outros.

O tema parece-me caber na colectânea de escritos em honra de Carlos Teixeira, o maior impulsionador, depois do grande pousio que se seguiu a iniciadores de génio, da Geologia de Portugal. Com ele fiz, durante três decénios, numerosas excursões em que confrontamos (às vezes com grande vivacidade!) observações de Geologia e de Geomorfologia. Mas devo ainda a este minhoto insigne (e sei quanto esta qualificação lhe era grata!), criado numa familia de lavradores modestos, ter-me ajudado a abranger a riqueza e complexidade da vida rural da sua pro­víncia - uma das bases da compreensão da nossa Geografia.

Propositadamente alinhavei um escrito que corres­ponde à minha dupla formação e vocação de natura­lista e de historiador. Para mostrar como as ciências formam um continuum e não uma justaposição, e muito menos oposição, de «especialidades», como o Homem, que se elevou pela vida do espírito acima da animalidade, se insere, por muito fundas raízes, na evolução física e biológica do Globo, de que cons­titui a derradeira vergôntea. Uma das faces afinal da Natureza: a natureza humana.

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