homem comum inimigo meu

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Homem Comum Inimigo Meu - 1 -

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Uma pequena obra de... filosofia?

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Page 1: Homem Comum Inimigo Meu

Homem ComumInimigo Meu

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LUCAS MELOTO NEVES

HOMEM COMUM INIMIGO MEU

1ª. edição

Poços de CaldasEdição do Autor

2008

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Page 4: Homem Comum Inimigo Meu

ISBN 978-85-908678-0-7Neves, Lucas Meloto

Homem Comum Inimigo Meu / LucasNeves. – Poços de Caldas, Lucas Meloto Neves, 2008

48 p.

1. Filosofia. 2. Comportamento. 3. Sociedade.

CDD 100 102CDU 17

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I - Início

Eu estava refletindo e percebi que eu não possuo inimigos. Acredito que existam pessoas que não gostam de mim. Mas não há quem me confronte de maneira determinada e apaixonada. Numa realidade utópica, creio que isso seria bom. Mas na minha realidade, concluo agora, que a ausência de adversários é um sinal de minha profunda omissão e covardia.

Eu decidi destruir o homem comum. Não porque eu o odeie, pelo contrário, desejo vê-lo em outro estágio. Quanto à vontade dele? Será pela sua própria vontade que o homem comum deixará de sê-lo. Mas agora não me importo com sua vontade. Sua vontade está corrompida pelo estágio em que se encontra, pela essência do que se tornou. A vontade do homem comum é que ele continue a ser o que é. A minha vontade é o oposto.

O homem comum se apresenta sobre muitas formas, mas nunca sobre a sua verdadeira. Ele nunca se apresenta como homem comum. Ele se apresenta como bom, mau, certo, errado, grande, pequeno, crente, ateu, cristão, pagão, conservador e como liberal. Ele até mesmo acredita sê-los. E em algum nível ele os é. No nível comum.

O homem comum tem uma idéia errônea de si mesmo e do mundo. Mas é inútil contradizê-lo. O seu pensamento sempre retorna no mesmo lugar e dali nunca foi muito longe. O novo é sempre evitado, nublado, deturpado e diminuído pelas relações com as suas velhas idéias comuns. O novo só é aceito e bem aceito será se vier cantar em coro com tudo o que já habita a sua mente. A sua mente é como uma enorme biblioteca onde todos os livros dizem a mesma coisa. E não é boa coisa. O homem comum a tudo diminui até que chegue ao seu tamanho. O que há de mais belo fica irreconhecivelmente horrendo ao sair de sua boca.

Para combater o homem comum é preciso conhecê-lo. Entender a sua forma de pensar. Seus raciocínios, sua moral. É no que ele acredita que encontraremos a maneira de destruí-lo. Será preciso mergulhar até o fundo do lamaçal. Usaremos seus argumentos, seus juízos, suas crenças para lhe mostrar a sua verdadeira face. Em alguns momentos nos sentiremos como ele, o homem comum, eles, inumeráveis homens comuns. Eu os destruirei. Eu, o mais antigo e antropófago dos homens comuns.

Que fique claro, não são as escolhas do homem comum que eu combato. Exceto a que o caracteriza. O homem comum habita o mesmo mundo que outros homens habitaram e que habitam. O homem comum está exposto às mesmas coisas. As idéias, as conquistas, os erros e acertos da humanidade, herdou-os também o homem o comum. Durante a sua vida um homem pode defender diversas idéias, alternar entre diversos pontos de vistas, escolher diversos caminhos a trilhar. O homem comum também. Ele também escolhe um caminho. Mas ele não o trilha. O homem comum observa o musgo crescer. E torce para que vire floresta.

Todo o sangue derramado por uma posição, os infinitos detalhes de uma antiga tradição, a excitação de uma nova empreitada, os prazeres de uma

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sabedoria, as conseqüências de uma escolha, a tudo isso o homem comum denigre. A tudo isso ignora. Toda coisa é por ele coberta com a sua idéia da coisa. Por onde passa está a reformar e reconstruir. Diminuindo tudo, reduzindo tudo à sua imagem.

Aos que virão, o mundo deve ser apresentado. Para que aceitem, neguem, reneguem, destruam, construam, reconstruam, ignorem. Cada pensamento, cada idéia, cada crença e cada descrença, cada verdade e cada mentira, tudo é a herança para os que virão. Mas o homem comum estraga este presente. Ele o torna mofado. Lutarei pelas coisas que existem, concorde eu com elas ou não. Eu aceito a mudança das coisas. A sua natural ascensão e queda. O ciclo de vidas, momentos e idéias. O homem comum não entende o ciclo, não o aceita. O homem comum não entende nem mesmo a reta. O homem comum quer viver num ponto. Num ponto estático. Estático o quanto possível, mas não gelado. Nem gelado, nem quente. O homem comum teme a temperatura e tudo o que pode se fazer perceber.

Por que a denominação “homem comum”?

Como eu já disse o homem comum não se apresenta assim. Por que eu decidi assim chamá-lo? Em primeiro lugar, porque é um nome que o representa bem. Se disséssemos “homem padrão”, “homem modelo” ou mesmo “homem normal” estaríamos falando de um ser que pudesse ser usado como medida, uma referência humana. Não é esse o homem comum e mesmos esses conceitos já estão pervertidos pela atuação do homem comum. O homem comum é comum porque é comum encontrá-lo, está se alastrando. É comum também porque se inseriu na comunidade. É comum também porque é um problema comum a todos nós. Os homens que possam ser considerados modelos, ou padrões estão cada vez mais raros, com certeza não são comuns. De fato, feliz será o dia em que um homem realmente admirável será comum, comum de encontrar, comum entre nós. Nesse dia o estandarte do homem comum não será mais meu inimigo. Os mesquinhos, ignorantes e vis serão exceções e não comuns. Então por que eu não o chamo de “homem vil”, “ignorante”, “vilão”? Porque não seria elegante e também, e principalmente, porque todos ficariam a procurá-lo e não iriam encontrá-lo. Iriam procurar assassinos e ditadores, ou duendes e bestas, ou sombras e boatos. E na verdade, o alvo é um homem comum. É o homem comum. E ele está em toda parte. Eu não quero que ele se esquive. Não quero que pense que estou falando de outra pessoa.

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II - O homem comum moralmente virtuoso

Tudo o que não pode ser medido, pesado e contado é um campo promissor para o homem comum. Tudo o que se pode falar livremente, tudo sobre o que se pode mentir livremente deixa o homem comum à vontade. Tudo o que se deturpa e perde o encanto com um simples erro de interpretação é alvo e vítima do homem comum. Não é surpresa, meus caros leitores, ver o homem comum tão prolífico no campo moral. Não será nossa tarefa adentrar nas mais profundas discussões sobre moral. O homem comum desqualifica todo o esforço sério com duas frases arrogantes e um provérbio popular. É justamente porque o homem comum não entende os esforços sérios que ele sobrevive a eles e é por isso que eu sou necessário. Eu e meus esforços de pouca seriedade. Nós ainda somos compreensíveis pelo homem comum. Ainda conseguimos atingi-lo.

A categoria de homem comum moralmente virtuoso tem como característica principal a de adjetivar a si mesma como moralmente virtuosa, ou seja, é uma categoria dentro de um contexto moral atribuindo a si mesma méritos nesse contexto. Como eu já disse não iremos entrar em debates e considerações sobre a validade ou realidade de uma, toda ou qualquer moral. Iremos debater cada categoria dentro de seu habitat, de seu próprio contexto. E o homem comum virtuoso existe dentro de seu próprio contexto moral. É verdade que talvez alguns de nossos argumentos possam abalar tal estrutura e orbitar fora dela, mas todo nosso esforço será dirigido para dentro da área de compreensão do homem comum virtuoso, sem maiores ou melhores abstrações ou relativações que possam ser desqualificadas ou ignoradas pelo homem comum virtuoso.

“Eu sou um homem honesto” – Eu já cansei de ouvir isso. Talvez seja pelos numerosos escândalos de corrupção política em meu país, mas esse tema da honestidade é bem popular no Brasil. O homem comum obviamente não podia deixar de incluir essa virtude na sua coleção. Antes de mais nada vamos definir honestidade de maneira simples. Vamos definir honestidade como a virtude daquele que não rouba, não mente e não trapaceia ou descumpre regras sociais. Uma definição sucinta e inteligível.

Às vezes eu desconfio que grande parte dos pretensos, supostos e autodenominados honestos sejam ladrões e mentirosos. Mas sejamos crédulos, vamos partir da premissa que o homem comum autodenominado honesto, seja realmente “honesto”. O homem comum diz: “Sou honesto”. Ele não quer simplesmente que se compute que ele nunca roubou. Ele quer aí um reconhecimento social. Ele quer que lhe reconheçam a virtude. Mas haverá realmente virtude na honestidade do homem comum? O momento preferido do pronunciamento da honestidade do homem comum é quando se comenta sobre a desonestidade de outrem. O homem comum gosta deste contraste. Ele precisa deste contraste. É preciso da ação condenável de alguém para que a inação aceitável do homem comum seja louvada. Esse é o nosso primeiro ponto a apresentar: a honestidade do homem comum é fruto de sua passividade. O homem comum honesto não seria apenas um preguiçoso? Há de se reconhecer virtude na

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simples inatividade? Talvez tenhamos incomodado alguns homens comuns mas a maioria deles ainda está intacto. A verdade é que o ladrão não é apenas alguém que perdeu a oportunidade de ser virtuoso, ele é um infrator de uma lei. Lei geral e primária sem previsão de recompensa para os que a cumprem, apenas de punição para os que não o fazem. De maneira que ser honesto por simplesmente não roubar é simplesmente fazer o exigido, o esperado e o obrigatório dentro da maioria das comunidades. Como então pode o homem comum se vangloriar de ter uma virtude moral que tem a aparência externa e custo de execução idênticos a uma exigência básica seguida por amorais e desvirtuados pelo simples fato de estarem em sociedade? O homem comum virtuoso honesto se vangloria de uma moral já igualada pelas próprias leis básicas e gerais de sua sociedade. Qual o mérito em se ter uma moral menor ou igual ao que se exige, ao que é obrigatório? Já não estão todos igualados pela lei, inclusive os que a descumprem pois são redimidos pela punição? O homem comum virtuoso honesto é simplesmente um medíocre e um miserável que sendo obrigado a seguir uma regra, aproveita dessa imposição para se pavonear como se nisso tivesse mérito. O que impede o homem comum de roubar? É realmente sua virtude? Ou seria o medo das punições sociais? Não há como provar o motivo. Como eu já alertei, quando não se pode medir, pesar e contar, então o homem comum está ao nosso redor. Mas questionemos ainda: alguém honesto por motivos exclusivamente morais, teria esse alguém o hábito de sempre se apresentar como virtuoso e honesto a cada oportunidade de dizê-lo, a cada delito de outrem? Não é para ele a virtude uma constante? Já não era condenável a simples idéia do delito antes mesmo que alguém o fizesse? E ciente ele de sua opção moral, já não se sabe e se vê diferente dos infratores? Por que se escandalizaria com delitos? Já não espera ações diferentes do que tem opções diferentes? Já não sabe ele que delitos existem e já não é sua opção permanente evitá-los? O incansável discurso do homem honesto nas praças, bares e reuniões sociais me parece mais como prova de inveja. Ele inveja a coragem dos ladrões capturados e a astúcia e os bens dos ladrões bem sucedidos. E, covarde e impotente de igualar-lhe os feitos, resta-lhe desdenhá-los, escondido atrás de uma nebulosa opção moral, que não pode ser provada e que mesmo se fosse iguala-se a obrigação básica dos que vivem em sociedade. O homem comum virtuoso lembra de sua honestidade sempre que é lesado, roubado ou trapaceado. Incapacitado de vingar-se e fazer justiça ele é obrigado a contentar-se nessa sua tentativa de distinção. O homem comum virtuoso lembra que é honesto e faz isso com palavras porque não há em seus atos e em sua conduta uma forma de distingui-lo. Ele acaba por ser grato a ladrões e infratores, sem eles não teria oportunidade de dizer-se honesto, sem eles a vida seguiria de forma rotineira, sem virtudes destacadas.

“Eu sou trabalhador” – O que vem a ser um “trabalhador”? É simplesmente aquele que trabalha? Se for, o que há de mais nisso? Nas esquinas, nos bares, nos salões de barbeiros, nos bancos de praças, um dos assuntos prediletos é dizer que se é ou se foi muito trabalhador. Não é que trabalhar seja ruim, pelo contrário, mas a questão é: por que se gabar disso? Os historiadores e psicanalistas poderão muito

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melhor do que eu explicar esse comportamento popular. Eu vou simplesmente trazer à luz algumas questões.

Ó homem comum, nessa sua vida de homem honrado e trabalhador, você trabalhou de graça? Trabalhou sem receber salário? Plantou para que outros colhessem sem receber nada em troca? Ah! O quê? Você recebia? Ele recebia seu salário... Igual a muitos outros. A recompensa do seu trabalho não foi algo inalcançável, não foi algo somente prometido. A recompensa pelo trabalho foi um salário no final do mês. Por que, agora, ele espera que seus anos de trabalho sejam reconhecidos como anos de heroísmo e altruísmo? Ele aceitou trabalhar pelo salário, mas agora cobra algo mais. Não está no seu contrato: “será reconhecido como herói nas praças públicas”. Não, ele não fez tal exigência.

Agora, outra questão. Há dois homens sentados num banco de praça. Ambos cuidaram ou cuidam de suas famílias, tiveram origens semelhantes e encontram-se hoje em situação semelhantes. Há uma grande diferença entre eles. Um foi um grande trabalhador. O outro trabalhou só um pouco. Qual dos dois tem mais mérito? Se um deles conseguiu chegar a um resultado igual ao do outro com menos trabalho, isso, não seria mais meritório? Não foi ele mais eficaz? Não trabalhou melhor?

O homem comum trabalhador muitas vezes sofre por não ser reconhecido como um grande homem trabalhador. Ele não vê o óbvio. Ele está numa situação comum. É um homem comum, inclusive nessa sua busca por reconhecimento de suas ações comuns. Eu percebo nessa busca ainda mais uma questão. Eu vejo uma vontade oculta do homem comum. Ele quer que reconheçam que ele já trabalhou o que devia e que não precisa trabalhar mais. Ele quer que deixem de esperar que ele trabalhe. Ele quer ser um trabalhador reconhecido para passar o resto dos dias sem trabalhar.

O homem comum trabalhador... Ele quer ser conhecido como o homem que venceu ou que vence o trabalho, mas a verdade é que ele teme o trabalho. Ele quer que o trabalho acabe ou ao menos que acabe o trabalho em sua vida. A verdade é que há realmente homens comuns que são trabalhadores. Mas como eu já disse, eles esperam algo mais que seus salários. Esperam da sua família, dos amigos, dos vizinhos, do governo, de alguém, de qualquer um. E quando se frustram ficam amargos, rancorosos, sentindo-se vítimas de um mundo ingrato. A verdade é que o homem comum trabalhador tem cobrado caro demais pelo seu trabalho.

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III - O homem comum sábio

O homem comum, como já foi dito, não sabe que é comum. Mas há o que chega a acreditar ser sábio. A própria visão restrita do homem comum é ao mesmo tempo um motivo que o impede de ser sábio e o leva a crer que o é. O homem pode mesmo ter atingido o ápice da sabedoria que ele conhece. Aí está o problema, o entendimento do que o homem comum acredita ser sabedoria é extremamente limitado. O homem comum não compreende a totalidade de nada. O homem comum não consegue nem mesmo imaginar corretamente a dimensão de alguma coisa. Até mesmo quando imagina e projeta o grandioso e o infinito, o homem comum é medíocre. O homem comum não tem consciência e entendimento nem de si próprio. Não compreende corretamente as suas próprias escolhas. Não distingue origens e motivos dos seus próprios pensamentos. Talvez sejamos injustos quando lhe analisamos profundamente porque ele realmente não tem conhecimento profundo de coisa alguma. Repito que a visão parcial e embaçada do homem comum levou-o ao absurdo de se acreditar como sábio. Repito que essa mesma visão degenerada e esses ouvidos destreinados e mentirosos serão um obstáculo para qualquer influência salutar na mente do homem comum. Um obstáculo talvez grande demais para arrastar ou desviar.

Antes de começarmos, vamos entender a anatomia da sabedoria do homem comum. É importante mencionar que ela raramente é declarada. O homem comum aprendeu que a humildade e a modéstia podem ser simpáticas e adora dizer que “não é dono da verdade”, que “cada um tem um ponto de vista”, que “respeita a opinião de cada um”. O homem comum aprendeu diversos clichês e expressões que já foram marca de pessoas sensatas, ele imita, emula esses modos. Apresenta-se com a casca, com pele e superfície de alguém capaz de um real diálogo. Mas a verdade é que ele não compreende nem mesmo a totalidade do seu próprio ponto de vista. Na maioria das vezes o respeito à opinião do outro jamais significará qualquer esforço para entendê-la. Significa simplesmente que pode conviver com ela. Essas introduções e estruturas aceitáveis que ele aprendeu tornam ainda mais nebulosa e camuflada a sua situação, inclusive para si próprio. O que vemos como simples estruturas de retórica, ou repetições sem consciência podem realmente estar sobre as bases de uma credulidade nas próprias boas intenções. Ainda que a experiência nos tenha tornado capaz de reconhecer um homem comum no instante de sua aparição, seremos acusados de pré-julgamento se o execrarmos a princípio. E de fato, não teríamos dado a ele qualquer chance. Por isso, muitas vezes para um diagnóstico justo é preciso a convivência, ainda que de poucos minutos, com o homem comum e sua sabedoria. Espreitamos e esperamos o momento em que ele se revela. Aguardamos as suas contradições. Colecionamos suas próprias palavras e as guardamos como tesouros, pois é apontando a incoerência de seu próprio discurso que temos a mais comum oportunidade de ofuscá-lo com um segundo de hesitação. É a chance para que ele duvide de sua sabedoria e imagine poder haver outras.

Outra característica da sabedoria do homem comum é que ela não é algo totalmente alienígena. O homem comum não é tão criativo. Normalmente sua

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sabedoria será o fragmento de outra. Será o resultado da mal compreensão de conceitos passados ou futuros. Por mais esse motivo é comum ver o homem comum inserido como sábio e assim visto até por outras pessoas. Como um eco distorcido ele propaga outras vozes sem que necessariamente tenha sequer refletido sobre o conteúdo, origem ou conseqüências dessas informações. Portanto, é conseqüente admitir que mesmo não sendo sábio, existe a possibilidade de que o homem comum diga algo sábio em algum momento. Aliás, estatisticamente, essa probabilidade existiria independente de qualquer formação.

Comecemos agora, o processo de identificação e conseqüente combate à sabedoria do homem comum. Como já foi dito a sabedoria do homem comum geralmente tem alguma origem. Ele pode atribuir seus conceitos à “sua experiência na escola da vida”, aos “valores familiares que recebeu”, a filósofos ou intelectuais, à valores religiosos. Tenhamos em mente que a insuficiência e debilidade da sabedoria do homem comum não depende da origem e sim de sua incompleta e deturpada compreensão dessa origem, de si mesmo e de todas as coisas. A inépcia do homem comum será também contemplada no momento da sugestão ou da aplicação de sua sabedoria, que ele fará quase que invariavelmente de forma equivocada. Vejamos o que acontece: Imaginemos um homem comum sábio que pregue a prudência e a cautela. O início de tudo pode ser um empreendimento frustrado. Ao longo de sua vida, ele passa a colecionar casos em que por falta de prudência e cautela incorreu-se em desfechos trágicos. Memoriza as citações famosas sobre precaução, assim como as fábulas e contos sobre o tema. Constrói um arsenal de fontes e argumentos para tal conceito e passa a pregar e receitar sua sabedoria para todos. Mas algumas questões lhe escapam, ou melhor, ele foge delas. Coleciona casos de empreendimentos frustrados, mas e os bem sucedidos? Com certeza ele tem argumentos. “Um para cada mil”, dirá. “Casos isolados”. E as citações famosas incitando a ousadia? Tantas são quanto as que a cautela o fazem. O que diz ele a respeito? Expondo somente um lado da questão, ele a deturpa. Para cada empreendimento há riscos, talvez também custos e também as possíveis e desejáveis recompensas. Haverá homens que falharam e os que conseguiram e dirão coisas diversas sobre o assunto. Mas por mais que escolhas já tenham sido tomadas, cada homem tem que fazer as suas. E não há garantias de sucesso ou fracasso, por mais fábulas que se tenha lido a respeito. Esse homem comum sábio que descrevemos, ele ouviu também muitas histórias de riscos que compensaram ao longo de sua vida. Mas o que fez? Ele não revisou seus conceitos. Foi mais simples achar uma justificativa para o fato. Desmerecê-lo, fazê-lo menor, ignorá-lo, vê-lo como uma exceção a não ser considerada. O homem comum escolheu um lado e se acomodou. É essa a sua tendência. Ele busca incessantemente o repouso, as teias de aranha. A possibilidade de se questionar o assusta, o incomoda, o desloca. Em suma, ele tem medo. O homem comum sábio é um covarde. Na jornada de sua falsa sabedoria certamente ele se deparou com elementos para torná-la mais rica, mais abrangente, mais verdadeira, mais sábia; mas isso seria também torná-la mais complexa, mais arriscada, mais exigente, mais inquietante. Assim o homem comum sábio faz a sua escolha. Não importa que lado de uma questão ele escolha por que o que realmente escolheu foi o medo, a covardia.

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O homem comum sábio quer certezas e garantias, ele quer fórmulas prontas. Ele não quer caminhar, quer trilhos pelos quais alguma força desconhecida o faça deslizar. Tem sempre uma resposta para cada pergunta, um remédio para cada doença, uma chave para cada porta. E quando uma nova circunstância aparece, quando há um novo elemento a considerar, quando há um detalhe a mais; nesse momento o homem comum se esconde e esconde a tudo na fumaça, na neblina e no esquecimento. Nesse momento, ele passará por cima de algo, ele ignorará algo. É o momento em que ele faz uma piada. É o momento em que ele muda de assunto. É o momento em que ele se ausenta. É o momento em que ele se irrita. Não é necessariamente pelo orgulho de vencer ou perder uma querela com o interlocutor. Ele talvez fizesse o mesmo se estivesse sozinho. Ele tem medo de rever suas idéias. Tem medo de que sua própria consciência o traia no seu pacto de tranqüilidade. Por isso não é tarefa fácil despertá-lo de seu sono. Talvez somente os estágios avançados dessa tal “escola da vida” que ele tanto cita possam ajudá-lo. Faço a minha parte, acusando-o de covardia, de inércia, lembrando os assuntos que ele quer esquecer. Mas a verdade é que o homem comum sábio escolhe muitas vezes ser irremediável, “o direito de ter seu ponto de vista”, suas “opiniões pessoais”, enfim, sua sabedoria.

Já temos um entendimento capaz de englobar muitas das sabedorias do homem comum sábio, mas ainda há peculiaridades interessantes que podemos abordar. Citamos como exemplo, o uso de citações pelo homem comum sábio. De fato, há vários homens comuns sábios utilizando citações. O problema não é o simples fato de usarem citações. O homem comum sábio não vê os bons argumentos dos homens notáveis apenas como bons argumentos. Ele utiliza a força da fama e do nome desses homens para convencer a si mesmo e aos outros. Talvez até certo ponto, isso seja natural, a força de um nome pode fazer com que as pessoas parem para ouvir e refletir sobre algo que normalmente não fariam. Mas o homem comum sábio gosta de citações porque considera como irrefutáveis, indefensáveis e inquestionáveis as idéias vindas de mentes famosas. Quando dois homens comuns sábios disparam citações opostas, a discussão corre o risco de abandonar a sua temática original e terminar em uma comparação biográfica, uma competição ridícula e infundada para ver qual intelectual ou autor tem mais fama, distinção e credibilidade. Quando a citação de um homem comum sábio é questionada por um argumento relevante de seu interlocutor, ele se indigna: “Quem é você para questionar o que ele disse? Não sabe quantos livros ele já escreveu? Não sabe que ele é conhecido no mundo todo?” Mais uma vez vemos a marca inconfessada do homem comum, a covardia. Ele vê nos pensadores do passado, heróis que o libertaram do fardo e do trabalho de pensar. Ele os vê como escritores de manuais e receitas que deixaram para ele um legado de fórmulas prontas e respostas para todos os problemas. A visão deficiente e covarde do homem comum faz com que muito frequentemente ele traia o autor de suas idéias e citações favoritas, pois é comum vê-las compreendidas de maneira parcial ou deturpada ou até mesmo oposta ao sentido original. Muitas vezes o que o homem comum sábio sabe de uma citação é somente a citação, é comum que ele não tenha lido a totalidade da obra ou ao menos conheça a essência dos pensamentos do autor. Não

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conhecendo o contexto de uma citação, o homem comum comumente cita-a de forma totalmente estranha ao pensamento do autor. Comum vê-lo decorar suas citações isoladas, disparando-as como munição, com o mesmo esforço de quem aperta um gatilho e com a mesma cautela de quem atira a esmo.

A “sabedoria” do homem comum é também resultado e fruto da colaboração das suas observações e experiências no decorrer de sua vida. Sim, o homem comum observa, tira suas conclusões. Faz isso à sua maneira, é claro. As observações, análises e conclusões do homem comum possuem diversos problemas: são incoerentes, irreais, fantasiosas, envenenadas, errôneas, preconceituosas e são covardes. Não entende causas e conseqüências, não entende a seqüência dos fatos, não entende os verdadeiros motivos dos fatos, não entende os fatos. O homem comum diz coisas como: “Vejam o maldito bêbado. Perdeu o emprego de tanto beber”. O homem comum não vê os motivos daquele homem, as causas de cada estágio de sua vida. O homem comum não vê os problemas daquele homem, não vê as circunstâncias que o envolvem. Isso não lhe interessa. O que interessa ao homem comum é ver alguém em desgraça e se diferenciar do infeliz. Ele retrata a miséria alheia como fruto de falhas que ele, do alto de sua sabedoria, jamais cometeria. Dizer que as observações do homem comum são infantis é uma grosseira injustiça com a criatividade e curiosidade presente em tantos no estado pueril. Melhor chamá-las de pobres e corruptas, as observações, análises e conclusões do homem comum. Seria somente ignorância? A mazela do homem comum? Ah... Eu poderia perdoa-lhe mil vezes a ignorância, mas não é somente uma “inocente” ignorância que faz do homem comum a criatura que é. Há ali uma maliciosa covardia. Nunca é demais lembrar a covardia do homem comum, com que ele atraiçoa a si mesmo e a todos. As observações do homem comum não o levaram à lugar algum porque a vontade do homem comum é precisamente permanecer onde está. O homem comum tem medo da verdadeira compreensão. Ele está seguro e confortável com seus preconceitos, que lhe afagam e lhe traem.

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IV - O homem comum

Falarei do homem comum essencial, homem comum básico e primeiro, após já ter comentado sobre os homens comuns apresentados sobre a forma de virtuosos e sábios. É provável que a união das duas categorias já citadas abranja todos os homens comuns, mas é preciso identificar o homem comum em sua essência, nas características básicas que são a causa dele se aventurar em diversas áreas com sua maneira nociva e equivocada. O homem comum vê os tolos. Os tolos são sempre os outros. O homem comum os vê aprender de formas difíceis, esperando por doenças implacáveis para repensar a vida. Não aceitam um professor mais ameno, não lhes estará jamais à altura. O homem comum vê os intolerantes, toda a espécie esdrúxula de radicais, ele os vê. Só escutam as manifestações que se crêem dignas, radicais como eles próprios, eles as ouvem, as bombas, as pichações, as pedradas. O homem comum vê todo o impacto e poder de argumento da enfermidade, e das bombas e das pedradas, o poder de argumento que não se baseia na qualidade ou coerência do argumento e sim no puro e simples poder, todo o enorme potencial crítico sempre dirigido ao outro. Será que agora o homem comum se vê? Ainda não. Sejamos compreensíveis. Quando o homem comum olha para si mesmo de forma crítica ele vê muito trabalho a ser feito, ele vê pouco tamanho, pouco peso e pouco número. Ele não suporta tanto esforço para modificar algo tão medíocre, tão comum. O homem comum aceitaria que lhe convidassem para mudar o mundo, mas não o aborreça para mudar a si mesmo, há muito tempo se esqueceu de si mesmo, se substituiu por uma visão nublada e deturpada de si mesmo, se substituiu pela visão e pela idéia do homem comum. Eu não quero ver o homem comum doente, bombardeado ou apedrejado. Mas é preciso saber respeitar toda escolha de um homem que o leve a deixar de ser o homem comum. Os meus esforços de pouca seriedade e pouca persuasão, o que significam eles afinal? São simplesmente os meus esforços.

Diagnosticando o homem comum

Salvo algumas exceções, não há muita técnica no preconceito. E para conceitos, mas profundos, talvez somente técnica não baste. Mas a verdade é que também não faremos mal em acrescentar alguma técnica a um preconceito ou mais uma referência para um sério conceito. Arrisquemos então a traçar os sintomas mais comuns do homem comum. É sempre saudável lembrar que embora os possua não está restrito aos mesmos, pode não portar todos eles e ainda pode os possuir em diferentes intensidades. Apresentemos então os estigmas do homem comum:

Ignorância: A ignorância tem seus próprios críticos, estudiosos e especialistas. Mas qualquer lista de característica do homem comum e mesmo do homem em geral que não a conste fica por demais incompleta, portanto, ei-la. Embora o sentido geral da ignorância não seja por tão controverso, há algumas variações quanto ao seu significado e abrangência. Começarei com simplicidade: a ignorância é a falta de conhecimento. Esse sentido já abrange uma área considerável no universo do homem comum. No entanto não é para nós o sentido

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mais interessante uma vez que engloba aí também o ignorante inocente, o ignorante esforçado em vias de aprendizagem ou negligenciado pelos outros e pelas circunstâncias. Agora mais um passo: a ignorância como confusão do conhecimento, deturpação do conhecimento. A ignorância como o conhecimento parcial ou errôneo. Para a nossa tarefa, essa segunda abordagem é mais interessante, mais próxima do núcleo do homem comum. O homem comum ignorante não se vê comum nem ignorante. O ignorante ignora a própria ignorância. As suas meias verdades e conhecimentos deturpados são para ele mais nocivos do que seria uma ignorância de ausência de dados e informações. Sentado e abrigado nos destroços de conhecimento ele se distancia e se fecha para o verdadeiro saber. Daí que a ignorância seja muito frequentemente a causa de tons arrogantes e presunçosos, principalmente os mais ridículos. Segue-se outra questão: a ignorância como comodidade e conformismo intelectual. O ignorante, ainda o mais ativo e inquieto, está sempre um passo atrás, sempre obsoleto. Ainda que se ampare nos pioneiros do passado, foge desesperadamente de ser um pioneiro do seu próprio tempo. O novo o assusta. É a ignorância como covardia, que não quer saber, que tem medo do conhecimento, que está bem onde está. A ignorância é, portanto, um estado em que o doente acredita possuir o conhecimento, mas na verdade não o possui ou o possui de forma deturpada ou ainda está iludido por inverdades. Além disso, é um estado que prende o doente nesta situação, iludido, esse não vê sua deficiência e não procura, portanto, saná-la. Caro leitor, visualize o ignorante, imagine-o. Retenha essa imagem. Você está na presença do homem comum.

Covardia: Há muitas definições sobre covardia. Ela é quase sempre vista como um defeito, um vício, uma imperfeição ligada ao excesso de cautela e prudência, à dominação pelo medo, à falta de coragem ou bravura ou ainda à falta ou à corrupção do ânimo. Qual a relação da covardia com o homem comum? No que o homem comum é covarde? Essas questões são essenciais na compreensão do homem comum e é necessário estar atento a elas.

De início, afirmo: O homem comum não gosta de ser visto como covarde. Talvez não seja uma afirmação verdadeira para todo e qualquer homem comum, mas com certeza para grande parte o é. Há alguns que se sentem especialmente irritados e provocados com a acusação de covardia. Isso é mais comum nos homens do que nas mulheres por motivos que historiadores, sociólogos e psicanalistas explicarão melhor que eu. Mas mesmo entre as mulheres, a covardia não é uma característica desejável. Uma rápida e despretensiosa intromissão no campo dos estudos da mente e comportamento me permitiria arriscar que a coragem, a bravura, a confiança em si mesmo, interferem significativamente na sexualidade de um indivíduo, a falta dessas características podem determinar quantitativamente e qualitativamente a atividade sexual de um indivíduo e na sua percepção de si mesmo como produto e criatura sexual. Essa intromissão é relevante, pois permitirá demonstrar um exemplo do efeito dessa designação. É possível que haja estudioso que afirme que não há ser humano capaz de se manter alheio à questão sexual independente do posicionamento comportamental que adquira em relação a ela. Essa afirmação corre o risco de estar errada ao tratar da totalidade dos seres

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humanos, mas é absolutamente correta quando trata do homem comum. Não há homem comum vivendo de forma alheia ou paralela a uma questão sexual, mínima que seja. Se isso ocorresse, tal fato seria por si só, motivo bastante para classificá-lo como um homem não comum. A razão de tudo isso é demonstrar que ao adjetivar um homem comum de covarde ele não se ofende pelo simples significado e definição do adjetivo. Existe ali toda uma implicação mais ou menos implícita, mais ou menos consciente do valor do ofendido como produto sexual e haverá também outras implicações. Creio que os meus esforços puderam demonstrar que a reação de um homem comum à designação de covarde, geralmente, é muito mais apaixonada e pessoal do que seria se fosse chamado de desatento, desastrado, grosseiro, malicioso ou inculto.

Prosseguindo: o homem comum não é um covarde assumido, assim como não é um homem comum assumido. Não é comum ouvi-lo dizer que está apavorado com o vizinho que o desafiou para uma briga. Não é comum ouvi-lo dizer que socou uma senhora idosa. Não é comum vê-lo em atos de confessada covardia. No entanto, não teremos dificuldade para ouvir sobre como ele intimidou seu rival, ou de como ele protegeu um desfavorecido indefeso. Uma interrupção para uma observação relevante: o catedrático que esquiva de uma pergunta complicada de um aluno é algo como aquele que não quer confrontar o vizinho. O professor que usa o conhecimento da disciplina que leciona para se enaltecer sobre outrem numa festa ou reunião social é algo como aquele que soca a velhinha. Saibamos ver o homem sob todas as camuflagens. Continuando. Algum leitor, nesse momento, talvez se indague se há uma preferência especial do homem comum em se vangloriar de coragem do que de outra virtude. De fato, é uma indagação pertinente. Se alguém diz que é forte, que levante a pedra. Se alguém é rápido, que vença o outro em corrida. Mas para provar valentia é necessária uma situação de perigo ou conflito que nem sempre está disponível. Eu tenho alertado: quando não podemos contar, medir e pesar, estamos em companhia do homem comum. O homem comum é muito atento para não se passar por covarde, mas está focado, sobretudo, nas situações de ação física e concreta, nos conflitos diretos e evidentes. Possui fórmulas para os futuros conflitos, justificativas para os passados, todo um figurino e maquiagem do homem valente. Quando o observamos por mais tempo, quando o observamos com maior atenção, vemos que nos assuntos menos aparentes e talvez mais importantes e pessoais, o homem comum não nos inspira por sua coragem, nem por sua nobreza, não nos inspira em definitivo.

De que forma observamos a covardia no homem comum? Suponhamos que o homem comum esteja inserido num contexto de coletividade, por exemplo, uma fila. Suponhamos que um indivíduo com algum tipo de poder afronte ou desrespeite todo o coletivo, por exemplo, um homem robusto e de grande estatura que ignorando a fila vai logo até o que precisa. Avaliemos possíveis atitudes. Um homem pode se conter ou até mesmo ignorar o ocorrido, outro poderá se irritar agredindo o infrator, outro poderá lhe arremessar um objeto, outro ainda poderá lhe ofender diretamente, outro poderá lhe repreender de forma polida, porém direta, clara e pessoal. Não podemos afirmar nada sobre esses homens. Mas alguém pode dizer algo geral, sem destinatário específico, uma frase curta, abafada, difícil de identificar o emissor.

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Esse alguém age assim porque embora se sinta profundamente incomodado com o fato, não tem coragem de confrontar, de forma clara e objetiva, o infrator. Não quer se sentir um covarde que se cala, mas ao falar também não se arriscou em nada. Esse homem, caro leitor, é um candidato a homem comum. Suponhamos outro homem, que durante o incidente não fez nada, mas logo após, faz um comentário com um colega de situação, alguém na fila. Comenta que as pessoas deviam se unir e agir contra tais afrontas, discursa com a pose de um líder engajado e valente. Ou então, comenta que as autoridades, os governantes, os guardas, os responsáveis ou qualquer outra, sim, outra, outra e não a sua pessoa deveria ter feito algo, pois é sua obrigação, obrigação dessa outra e não sua pessoa. Pode comentar ainda que se ele não fosse um pai de família, ou se não fosse cristão, ou se não fosse educado, ou se não fosse doente, ele então, esse hipotético e imaginário ele, faria então, justiça. Poderá comentar sobre inúmeras atitudes que ele ou alguém poderia ter tomado ou que tomará, numa próxima vez, numa próxima, não na presente. Esse homem, que agora tem inúmeras palavras, mas que no momento do conflito não teve uma única ação, esse homem é também um forte suspeito para ser homem comum. O homem comum não quer que lhe vejam como uma vítima indefesa e incapaz, mas também não quer morrer aqui e agora como mártir, nem arriscar sua vida como herói. Ele quer que reconheçam que ele é mártir e herói, mas só tem provas disso no passado, no futuro, em outras condições, em outros lugares, em universos e realidades paralelas. Quer que reconheçam um valor interior, que de tão interior nunca vemos qualquer prova ou indício. Quando confrontamos os atos do homem comum com suas palavras, então frequentemente o descobrimos e nos encontramos com a sua infalível e constante covardia.

Justificação: As justificativas do homem comum. Já disse algo a respeito, mas é também um assunto que merece ser especialmente abordado. Na psicanálise, estuda-se um mecanismo de defesa chamado racionalização que significa, em síntese, substituir o motivo real de um comportamento por uma explicação racional e aceitável. Não haveria necessidade de dizer mais nada já que a psicanálise tem muito maior competência para o assunto. Mas talvez meus esforços menos sérios e minha linguagem mais grosseira possam fazer um novo eco, ainda que em uma única mente.

O homem comum é ignorante e é covarde. Mas o homem comum não se sente ignorante e covarde. Por quê? A própria ignorância e a covardia fazem com que ele não saiba onde e como olhar e que também não tenha coragem de olhar. Mas há mais do que isso. O homem comum perante si mesmo, não está em dívida, não está em decadência. Ele está redimido, ele está justificado. Ele está justificado em cada gesto, em cada conduta, em cada omissão. Ele está justificado por si mesmo. O homem comum não vê seus atos como covardes e ignorantes porque para ele, seus atos não vêm da covardia e da ignorância, ele sempre terá uma outra justificativa. O homem comum se justifica para outros e para si mesmo. Às vezes é necessário a ele se justificar aos outros, para que se possa acreditar na justificativa que se dá a si mesmo. Em grande parte das vezes, o homem comum realmente acredita na sua justificativa. Nesses momentos, ele é vítima da sua covardia e

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ignorância. Mas há no decorrer da história do homem comum momentos em que ele verá que suas justificativas não têm solidez, não são o real motivo e a real causa de seus atos. Porém, nesses momentos, ele fechará os olhos e a mente, virará o rosto e seguirá em frente, negando-se a refletir sobre a realidade. Nesses momentos, o homem comum não é uma simples vítima inocente, ele é também cúmplice de sua ignorância e covardia.

O homem comum diz que não aceitou a provocação porque é uma pessoa pacífica e contra a violência. É uma justificativa nobre e aceitável. O problema é que não é a verdade. Não é o real motivo, a real causa. O sentimento mais forte no homem comum foi de medo. Medo de ser agredido, de agredir, de entrar em confusão, de conseqüências futuras, mas foi, sem dúvida, um sentimento de medo. Não chamamos um homem de covarde porque ele se recusa a brigar, muitas vezes há valentia nisso. Nós o chamamos de covarde porque não é capaz de aceitar as causas de seus atos.

O homem comum pode ser ouvido dizendo que prefere uma vida simples e que odeia ostentação. Que ótima escolha quando é verdade, mas que covardia quando não é. Quando na verdade, ele inveja profundamente a vida luxuosa e ostensiva que agora é tão distante e fácil de desdenhar.

O homem comum às vezes é ouvido dizendo que não gosta de tal mulher porque é vulgar, de outra porque é arrogante, de uma terceira porque é inculta. Mas quantas vezes a verdade é que não seria capaz de conquistar nenhuma das três e aceitaria qualquer delas se alguma chance tivesse.

Para conviver com a sua covardia e com sua ignorância, o homem comum criou muitas justificativas, muitas vezes profundas e complexas, repletas de lógica e racionalidade. Mas que são apenas justificativas vazias que seriam até interessantes verdades, mas não são verdades, não são as verdadeiras razões de seus atos. O homem comum emprega grande esforço nas suas justificativas. Como um mestre escultor, ele as lapida. Como um compositor, ele as modifica, escolhe o melhor tom. Para torná-las cada vez mais aceitáveis aos outros. E sendo aceita pelos outros, ele mesmo tem mais facilidade de acreditar nelas.

As três características principais do homem comum, a ignorância, a covardia e a justificação; são a causa essencial de outras características peçonhentas e asquerosas que ele possa vir a ter. O homem comum é diversas vezes medíocre, até mesmo pequeno. A ignorância cega o homem comum para oportunidades de grandes coisas à sua frente. A sua ignorância é tal que lhe é difícil distinguir dimensões. A sua covardia o impede de arriscar-se ou desgastar-se em grandes feitos. E as suas justificativas apresentarão diversas razões para as oportunidades perdidas e o trabalho poupado. De maneira que o homem comum não opta invariavelmente pela pequenez ou mediocridade, mas é levado a isso pela sua ignorância, covardia e justificativas. O homem comum pode até mesmo gostar de estar envolvido em algo grande e saber valorizar isso. Pode apreciar a arte e tentar imitá-la. Mas sua ignorância o impede de compreender a totalidade dos atos em que se envolve e da arte que aprecia. É covarde para assumir a

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responsabilidade, o risco e o trabalho pelas suas próprias empreitadas e criações. E terá sempre justificativas para não se ver como ignorante e covarde.

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V - O homem comum cristão

A categoria de homem comum que agora atacarei é o homem comum cristão. Como já disse não se trata de atacar ou defender o homem ou de atacar ou defender o cristianismo. Outros já debatem estas questões. Por que o homem comum cristão? O homem comum é muito comum no cristianismo como é comum vê-lo associado a outras religiões. O cristianismo aceita todos os dispostos a aceitá-lo e hoje, comparado às perseguições na Roma Antiga, é fácil se autodenominar cristão. Aqueles que assim o fazem com alguma intenção consciente não relacionada à religião, por exemplo, para obter prestígios entre outros cristãos, não são agora nosso objeto. Trataremos dos que acreditam, em algum nível, serem cristãos.

Cristãos acreditam em Cristo. Para alguns cristãos, Cristo é Deus, para outros é um enviado de Deus, para outros é também Filho de Deus, para outros é um profeta, para outros é um exemplo. Alguns crêem na salvação pela fé em Cristo, outros pelas boas obras que ele pregou. Em geral, os cristãos se guiam pelas palavras e atos de Cristo descritos nos Evangelhos que os relatam e também pelas cartas dos seus apóstolos aos primeiros cristãos. Quase todos os cristãos também têm como válidas as palavras do chamado Antigo Testamento, que contém, entre outros, livros da religião judaica. Simplificando, os cristãos se guiam pela Bíblia.

O homem comum inserido no cristianismo tem, portanto, um grande livro, com muitas palavras, para deturpar, para editar, para não compreender, assim como faz com muitos outros livros. Contra outras categorias de homem comum, usamos e usaremos argumentos baseados na lógica, em seqüências de raciocínio. Mas o homem comum usa a Bíblia para se afastar da lógica e do raciocínio. Tente expor uma idéia, se ela lhe for inconveniente, o homem comum cristão, logo encontrará na Bíblia um trecho para renegá-la antes mesmo de tê-la ouvido até o final. O homem comum não usa a Bíblia para corrigir os seus vícios, ele a usa para protegê-los. A Bíblia é para ele como uma floresta onde se escondeu. Não lhe fale sobre outros lugares, ele não quer ouvir. É preciso então superá-lo em seu próprio terreno. Se for somente a Bíblia que ele admite, então é por ela que iremos atingi-lo.

Alguns cristãos vêem certos trechos da Bíblia como não tendo aplicação direta para o seu contexto, precisando antes de interpretação e contextualização. Outros se guiam pela exata palavra constante no livro. Os segundos, se não são maioria entre os cristãos, são ao menos, maioria entre os homens comuns cristãos. E para que não se esquivem me vendo como sofista ou deturpador, eu usarei os textos da forma mais direta possível.

Antes lembremos que o homem comum cristão já tem sido um problema, desafio ou questão para os próprios cristãos. Apesar de certas denominações cristãs possuírem procedimentos de exclusão como excomunhões e dissociações, em geral e a princípio, os cristãos não são seletivos nem excludentes. Diz a Bíblia: “E Jesus, tendo ouvido isto, disse-lhes: Os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os que estão doentes; eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores ao arrependimento.” (Marcos 2: 17). Dessa forma, primeiro se aceita as pessoas e depois se trabalha com elas. E onde pode ser aceito, lá está o homem comum. Mas

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ele não quer trabalhar nem ser trabalhado. Em sua perfeição inconfessada ele só pretende ser reconhecido e que tudo se molde à sua imagem. Alguns líderes religiosos já têm percebido o homem comum. Já têm lidado com ele. Grande parte dos discursos religiosos e sermões não são propriamente pregações doutrinárias. Muitos deles são esforços para que se entenda o que já se está a proclamar, o que já se aceitou, são aulas de interpretação de texto. Outros são desabafos, apelos ao bom senso, à lógica. Mas há também alguns padres, pastores e ministros que não pretendem corrigir, educar ou mesmo incomodar o homem comum, pelo contrário, lhe incentivam nas idiotices, tais que alguns tenham nisso algum interesse. O número desses líderes “coniventes” está aumentando. E é justamente por que os responsáveis de cada área não combateram ali o homem comum e suas manifestações que eu devo então me intrometer em seus ofícios e executar o meu.

“Eu sou bom” – Nem todo homem comum cristão se vê como bom. Mas grande parte o faz. E destes nem todos o dirão. Preferem que outro o diga. Para diversas categorias não cristãs, que possuem seu próprio entendimento sobre o que é bom, ser bom, não será algo raro, sendo talvez até corriqueiro. Mas aos cristãos, aos “bons cristãos”, a eles diz a Bíblia: “E perguntou-lhe um dos principais: Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão um, que é Deus.” (Lucas 18: 17-19). É preciso dizer mais? A figura central do cristianismo retira de si mesmo o título de bom para conferi-lo unicamente a Deus. O que terão a dizer os seguidores? “Jesus estava errado. Assim como Deus eu também sou bom.”? Não, não dirão. Ainda que assim pensem, não dirão.

O essencial já foi dito. A discussão foi ganha. Mas já ouvi muitas palavras do homem cristão comum. Devo retribuir. Não serei parcimonioso. O que ainda diz a Bíblia aos bons cristãos: “Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus.” (Mateus 7: 17). Ainda: “Porque não há árvore boa que dê mau fruto nem tampouco árvore má que dê bom fruto.” (Lucas 6: 43). “Venci!”, dirá o homem comum cristão. “Vejam meus bons frutos, vou enumerá-los!”. Eu sou quem ganhei mais uma vez, homem comum, teus “bons frutos” estão visíveis demais e diz a Bíblia: “Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita; para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mateus 6: 2-4). Ainda sobre os frutos “visíveis demais”: “Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? E em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade. “ (Mateus 7: 21-23.)

Se, mesmo após o que já foi dito, aceitássemos, por hipótese, que um certo homem comum cristão é bom. O que diz a Bíblia? “Porventura agradecerá ao servo, porque este fez o que lhe foi mandado? Assim também vós, quando fizerdes tudo o

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que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis; fizemos somente o que devíamos fazer.” (Lucas 17:9-10).

Neste momento, talvez o leitor não cristão esteja surpreso em ver que o próprio cristianismo combate a afetação, a hipocrisia, tão comum em vários de seus membros, estará principalmente surpreso se sua única referência de cristão forem os homens comuns que dizem sê-lo. Aí está. É essa a característica do homem comum, tudo o que ele assume, ele deturpa. Molda tudo para o seu conforto. Se o homem comum se disser poeta, espere palavras rudes. Se ele se disser bárbaro, espere poesias. Não cabe uma só idéia inteira no homem comum. Tudo deve ser reduzido para que ele entenda ou suporte ou aceite. Tudo é grande demais para que nele caiba. Tudo é complicado demais para que ele entenda. Tudo é simples é demais para que ele aceite.

Ainda não me cansei. Ainda ouço o homem comum cristão: “Sou bom”. Mas em que oportunidade ele diz ou mais comumente, insinua, que ele “é bom”? Normalmente não quando ele o é, mas quando visivelmente alguém do seu conhecimento deixa de sê-lo. O homem comum cristão, para se distinguir, muito freqüentemente apontará falhas alheias. Longe dele, julgar os outros, ele diz. Apenas um comentário, ele diz. Todo esse pudor, toda essa “imparcialidade” na informação é porque decerto conhece as palavras de seu livro: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” (Mateus 7:1-5). O homem comum cristão, portanto, evita sempre ser o “juiz”, mas está sempre a “lembrar” as falhas alheias, está sempre a falar dos erros, dos deslizes, das desgraças, dos escândalos. Como tem olhos e boca para isso. Ah! E como vivenciam, em sua narração, os detalhes “dos pecados” que os “escandalizam”. Parecem invejar. E lhes diz a Bíblia: “O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, do seu mau tesouro tira o mal; pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca.” (Lucas 6:45). O homem comum cristão muitas vezes não é diferente do objeto de seu discurso a não ser pelo fato que este ao menos teve a coragem e a competência de realizar o ato que o homem comum cristão só pode invejar e que agora desdenha, do alto de sua hipocrisia, hipocrisia que ele tenta tornar respeitável usando ou deturpando sua religião. O homem comum cristão muitas vezes faria o que critica se pudesse, se ousasse. Ele se esconde dizendo que não ousa e que não pode pelos mandamentos da sua religião, mas se essa fosse sua verdade pessoal, porque então a evidente inveja, o despeito? Se estivesse assim tão seguro de que seus atos ou omissões são frutos de seus princípios religiosos, não estaria ele tranqüilo? Quem saberá o que habita o coração e a mente do homem comum? Lá habita, ao menos, na melhor das hipóteses, a covardia. A covardia de agir como um homem sem religião e também a covardia de agir como um homem religioso.

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“Deus fez justiça!” “Deus fará justiça” – Sim, segundo a Bíblia ele fará justiça. Está escrito: “E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele de dia e de noite, ainda que tardio para com eles? Digo-vos que depressa lhes fará justiça. Quando porém vier o Filho do homem, porventura achará fé na terra?” (Lucas 18: 7-8). E também: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.” (Mateus 5:6). Ora, se eu concordo com o homem comum quando este diz que a Bíblia lhe promete justiça, então o que é desta vez? A questão principal é a idéia que o homem comum cristão tem do que venha a ser justiça. Ele acredita que Deus fará justiça. Mas a justiça do homem comum é algo deturpado, empobrecido, desvirtuado.

Vou começar perdendo essa discussão. Começarei perdendo porque inicialmente usarei argumentos sem fundamentação bíblica que são automaticamente refutados pelo homem comum cristão. Eventos ocorrem a todo instante, eventos que podem ser favoráveis ou desfavoráveis a um ou mais indivíduos. Atribuir ou não a Deus ou a qualquer força sobrenatural a causa de eventos tem sido uma longa discussão entre céticos e religiosos. Não vou me intrometer nessa discussão. Deixemos que eles a continuem. O que demonstraremos agora é como o homem comum cristão interpreta os eventos na sua vida e na vida alheia. Se algo bom lhe acontece dirá: “Deus me fez justiça”, “Deus é fiel”. Se algo ruim lhe acontece dirá que Deus está lhe provando, ou que Deus lhe reserva bonança no futuro ou dirá ainda que é “coisa do inimigo”. Se algo ruim acontece a um inimigo ou desafeto, dirá: “Deus lhe fez justiça”, “Deus me fez justiça”, “É castigo divino”. Se algo bom acontece a seu desafeto, citará: “Ai de vós, os que agora estais fartos porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides porque vos lamentareis e chorareis.” (Lucas 6: 25). Essas são as quatro hipóteses, as quatro condicionais com que o homem comum cristão enquadra todos os eventos ao seu redor. É assim que ele deturpa o acaso e a justiça divina, sempre se colocando como justo e aos seus desafetos como alvos presentes ou futuros da punição divina. A Bíblia fala de muitos eventos, de muitos atos e de muitas conseqüências. O homem comum cristão sempre se coloca no lugar dos “bem aventurados” da narrativa bíblica e seus desafetos são aqueles para os quais toda a advertência bíblica é destinada. O homem comum cristão, pelo simples fato de se autodenominar cristão, se põe como destinatário de toda palavra de consolo, se põe no lugar de todo herói bíblico. Pelo simples fato de se autodenominar cristão... Não é demais repetir: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? E em teu nome não expulsamos demônios? E em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade.” (Mateus 7: 21-23).

“Eu verei os maus sofrendo pelas mãos de Deus” – Eis algo bem comum entre os homens comuns: muitas vezes eles não têm coragem de ferir, de fazer o mal, mas se regozijam no sofrimento alheio. Os homens comuns cristãos citarão:

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“Faze recair o mal sobre os meus inimigos; destrói-os por tua verdade.” (Salmos 54:5). Eles citarão: “E perseguireis os vossos inimigos, e cairão à espada diante de vós.” (Levítico 26:7). Eles não se preocuparão com o contexto da passagem. Aliás, eles estão sempre a se inserir nos contextos que lhes são favoráveis e a deturpar os demais contextos para que favoráveis lhe sejam. Diga-se de passagem, raramente o homem comum se preocupa de maneira séria. O homem comum cristão quando tomado pelo sentimento da vingança ou do ódio, não combate sinceramente esses sentimentos. Ele espera que seu Deus, tomado pelos mesmos sentimentos, faça o mal que ele apenas tem coragem e poder de desejar. O homem comum cristão se vê como justo. É freqüente em todas as categorias de homem comum o entendimento restrito ao seu próprio ponto de vista, tal qual o homem comum cristão que não sente o adjetivo cristão como um lembrete para a constante autocrítica, pelo contrário, é para ele um emblema da sua inquestionável virtude. Como poderia alguém, principalmente um não cristão, estar com razão frente a ele? E pensando assim ele espera que Deus lhe faça “justiça”. O homem comum cristão quer fazer um deus à sua imagem. Portanto, quer um deus pequeno, quer um deus mesquinho, quer um deus de visão restrita, de ação irrefletida. O homem comum cristão não faz a vontade de seu deus, ele faz um deus que lhe faça as vontades. O homem comum cristão... Podemos vê-lo brigando com seu vizinho por causa da cerca. Não distinguimos um do outro. Ambos a discutir como pessoas que discutem. Mas o homem comum cristão quer se distinguir, se esconde atrás do adjetivo cristão, do crente, do católico, do evangélico, do servo de Deus, do ungido. O homem comum cristão... Não pode brigar por uma cerca sem evocar o seu deus. O homem comum cristão... Ele cria deuses para intervir em brigas de cerca, em filas de banco, em todo tipo de mesquinharia. E se esquece: “Não tomarás o nome do SENHOR teu Deus em vão; porque o SENHOR não terá por inocente ao que tomar o seu nome em vão.” (Deuteronômio 5:11). O homem comum cristão... Quer se vingar do mundo, desse mundo mal que não lhe reconhece as virtudes... É verdade que está escrito: “Minha é a vingança e a recompensa, ao tempo em que resvalar o seu pé; porque o dia da sua ruína está próximo, e as coisas que lhes hão de suceder se apressam a chegar.” (Deuteronômio 32:35). Pois se Deus tomou para si a vingança talvez seja porque não confie sua execução aos que se apresentam como seus... E lembremos ao homem comum cristão que também está escrito: “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:18). E também está escrito: “Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus pensamentos, e se converta ao SENHOR, que se compadecerá dele; torne para o nosso Deus, porque grandioso é em perdoar.” (Isaías 55:7). E também está escrito: “Amai, pois, a vossos inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes, e será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os ingratos e maus.” (Lucas 6:35).

“Deus me fará prosperar”, “Deus me recompensará materialmente” – O homem comum tem desejos. O homem comum cristão tem desejos. Desejos comuns. Ele quer dinheiro, quer bens, quer sucesso, quer prosperidade. Mas não vê

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isso como desejo. Para ele, são “bênçãos às quais ele está destinado”, “bênçãos que merece”, “bênçãos que Deus lhe reservou”. Ele acredita que Deus lhe ajudará com essas coisas. Sendo esse, muitas vezes, o motivo oculto ou revelado, consciente ou inconsciente, pelo qual aderiu a uma religião. O homem comum cristão dirá que está escrito: “E o SENHOR te dará abundância de bens no fruto do teu ventre, e no fruto dos teus animais, e no fruto do teu solo, sobre a terra que o SENHOR jurou a teus pais te dar.” (Deuteronômio 28: 11). E também: “E viu o seu senhor que Deus era com ele, e que fazia prosperar em sua mão tudo quanto ele empreendia.” (Gênesis 39: 3). E também: “Não se aparte da tua boca o livro desta lei, antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem sucedido.” (Josué 1:8). E também: “e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu, e lhe darei todas estas terras; e por meio dela serão benditas todas as nações da terra” (Gênesis 26: 4). Será relevante para o homem comum cristão que a primeira promessa aqui citada (Deuteronômio 28: 11) se destinava ao povo de Israel (Deuteronômio 27: 1; 9; 11; 14) numa época específica, num contexto específico? Ele levará em conta que no segundo exemplo (Gênesis 39: 3), o texto se refere a José? E que no terceiro (Josué 1:8), o destinatário é Josué? No quarto, Isaac? Irá reparar o homem comum cristão que, se lidos na totalidade de seu contexto, estes trechos não dizem “todo aquele”, “qualquer um”? Irá reparar que tem destinatários certos? Baseado em que o homem comum cristão pode ser Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, Josué? Está ele no mesmo lugar que eles? Ou pode ele se por no lugar de todo um povo? Ora não trapaceemos... Há realmente trechos que falam sobre prosperidade de forma geral na Bíblia. Por exemplo: “Honra ao Senhor com os teus bens, e com as primícias de toda a tua renda; assim se encherão de fartura os teus celeiros, e transbordarão de mosto os teus lagares.” (Provérbios 3: 9-10). Mas também encontramos: “Considera as obras de Deus; porque quem poderá endireitar o que ele fez torto? No dia da prosperidade regozija-te, mas no dia da adversidade considera; porque Deus fez tanto este como aquele, para que o homem nada descubra do que há de vir depois dele.” (Eclesiastes 7: 13-14).Quanto, porém, ao que é realmente necessário para o sustento, está escrito: “Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? Ou: Que havemos de beber? Ou: Com que nos havemos de vestir? (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso. Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mateus 6: 31-33).Sobre a recompensa, ainda em vida, nesse mundo, para as ações aqui feitas, vejamos a seguinte passagem: “Porque Quem quer amar a vida, E ver os dias bons, Refreie a sua língua do mal, E os seus lábios não falem engano. Aparte-se do mal, e faça o bem; Busque a paz, e siga-a. Porque os olhos do Senhor estão sobre os justos, E os seus ouvidos atentos às suas orações; Mas o rosto do Senhor é contra os que fazem o mal. E qual é aquele que vos fará mal, se fordes zelosos do bem? Mas também, se padecerdes por amor da justiça, sois bem-aventurados. E não temais com medo deles, nem vos turbeis; Antes, santificai ao SENHOR Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor

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a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós, Tendo uma boa consciência, para que, naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, fiquem confundidos os que blasfemam do vosso bom porte em Cristo. Porque melhor é que padeçais fazendo bem (se a vontade de Deus assim o quer), do que fazendo mal.” (1 Pedro 3: 10-17). Observemos que apesar da prescrição do bem para conseguir o bem, vista, além de espiritual, também como prescrição lógica (“E qual é aquele que vos fará mal, se fordes zelosos do bem?”), o autor adverte que não há garantias: “Mas também, se padecerdes...” E deixa isso claro: “melhor é que padeçais fazendo bem (se a vontade de Deus assim o quer), do que fazendo mal.”

Dinheiro – Não se vê o homem comum cristão dizendo: “Eu quero dinheiro mais do que tudo”. Não o ouvimos dizer: “Faço tudo por dinheiro”. Ele não diz tais porque acredita não ser condizente com sua condição de cristão. No entanto, tem se tornado comum entre os homens comuns cristãos um discurso bastante permissivo, bastante complacente quanto à riqueza. Quando um homem comum cristão é pobre pode se ouvi-lo a falar contra os excessos e descaminhos do rico. Mas quando tem algum dinheiro ou quanto às suas intenções de ganhar algum, o homem comum cristão justifica e certifica a validade moral e religiosa de suas ações e pretensões. É verdade o que está escrito quanto ao necessário ao sustento, repetindo: “Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? Ou: Que havemos de beber? Ou: Com que nos havemos de vestir? (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso. Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mateus 6: 31-33). Note-se já que a prioridade é a busca do reino e justiça do pai. O resto é acréscimo. Muitos homens comuns cristãos têm visto aí, neste acréscimo, casas luxuosas, carros caros, prestígio, poder. Mas o texto fala simplesmente sobre o que haverão de comer, beber e vestir.

Citarão: “O Senhor tem abençoado muito ao meu senhor, o qual se tem engrandecido; deu-lhe rebanhos e gado, prata e ouro, escravos e escravas, camelos e jumentos.” (Gênesis 24-35). É a fala do servo referindo-se ao seu senhor Abraão, especificamente. Não se refere a qualquer pessoa. Havia propósito pra a riqueza de Abraão: “E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção.” (Gênesis 12-2). Citarão: “E o SENHOR te dará abundância de bens no fruto do teu ventre, e no fruto dos teus animais, e no fruto do teu solo, sobre a terra que o SENHOR jurou a teus pais te dar.” (Deuteronômio 28: 11). Essa é uma promessa coletiva a todo um povo não a um indivíduo. Ainda que dela se possam tirar valor doutrinário, foi feita em determinada época e determinado local. O homem comum cristão poderá citar muitos, muitos outros trechos e versículos para justificar o dinheiro que tem ou que pretender ter. Em Provérbios e Eclesiastes, por exemplo, várias vezes é lembrada a utilidade prática do dinheiro na vida do homem em sociedade. Um lembrete que encontramos também fora das religiões e para o qual não há necessidade de qualquer crença ou inclinação espiritual ou metafísica. Há, porém, outros versículos a falar de bens e dinheiro: “Mas ai de vós que sois ricos! Porque já recebestes a vossa consolação.” (Lucas 6: 24). “E disse ao povo: Acautelai-vos e guardai-vos de toda espécie de cobiça;

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porque a vida do homem não consiste na abundância das coisas que possui.” (Lucas 12: 15). “Porque nada trouxe para este mundo, e nada podemos daqui levar; tendo, porém, alimento e vestuário, estaremos com isso contentes. Mas os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, as quais submergem os homens na ruína e na perdição. Porque o amor ao dinheiro é raiz de todos os males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.” (1 Timóteo 6: 7-10). “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mateus 6: 24). “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca. Como dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu;” (Apocalipse 3: 16 – 17).

Falemos agora sobre um trecho que tem causado alguma discussão: “E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna? E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. Disse-lhe ele: Quais? E Jesus disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho; Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades. Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no reino dos céus. E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Mateus 19: 16 - 24). “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus.” (Marcos 10: 25). “Porque é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Lucas 18: 25). Essa é uma passagem particularmente interessante. Há uma tese de que a agulha seria na verdade um portão secundário em Jerusalém pelo qual um camelo só passaria depois de descarregado, de joelhos e sob empurrões. Outra tese é de que na verdade a palavra em questão não seria camelo e sim corda tendo havido um erro de grafia ou tradução havendo troca entre as palavras gregas kámelos que significa camelo e kámilos a palavra para corda. Há quem defenda e negue ambas as teses. Porém, estudiosos afirmam que os textos mais antigos utilizam a palavra para camelo. Quanto à agulha, segundo estudiosos, os textos gregos de Mateus e Marcos utilizam a palavra raphis, rafic, agulha de costura, enquanto em Lucas, a palavra empregada foi belone, agulha cirúrgica. Para os estudiosos da questão a idéia de que a agulha seria um portão ou uma passagem pelas muralhas é posterior aos textos mais antigos, não tem fundamento bíblico ou arqueológico e teria origem numa observação alegórica de São Jerônimo.

O leitor que pesquisar irá encontrar detratores e defensores de ambas as teses. O que eu considero interessante apontar é a vontade de alterar, de amenizar

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e de facilitar existente em ambas as teses. É a vontade do homem comum cristão de “consertar”, de se livrar dessas inconvenientes palavras. O homem comum cristão quer ser cristão, mas como todo homem comum que decide ser algo ele quer ser à sua maneira, à maneira comum, facilitada, diminuída, medíocre. O homem comum cristão aos poucos consertará de tal modo a passagem que será fácil passar uma corda (ou será um linha?) por um pequeno portão (será então pequeno?). Mas vejamos a seqüência da passagem: “Os seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, dizendo: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível.” (Mateus 19: 25 – 26). Como nota-se pela reação dos ouvintes, o homem que disse estas palavras estava falando de coisas difíceis, de coisas impossíveis, tais como passar um mamífero da família Camelidae pelo pequeno orifício no extremo de uma hastezinha de metal. O homem comum cristão que tem ou quer ter posses se incomoda com essa questão. Ele quer ser cristão, mas também quer ser rico. Quer o que acredita haver de melhor nesse e no outro mundo. As palavras o incomodam, mas jamais dirá: “Era um louco a dizer besteiras”. Esse é o homem comum cristão, esse é o homem comum, um covarde, covarde para seguir uma religião, covarde para negá-la, covarde para dizer sim, covarde para dizer não. Não tem coragem para viver nem para morrer sem garantias.

Para o homem comum que é cristão ainda tenho mais a dizer. Apresento uma citação final sobre o assunto do dinheiro no cristianismo. Essa citação é particularmente interessante porque não é uma ordem, nem um mandamento, nem mesmo uma sugestão. É uma pergunta, um questionamento: “Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe cerrar as suas entranhas, como estará nele o amor de Deus?” (1 João 3:17) .

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VI - O homem comum reformador do mundo

Um tipo menos nocivo e algo mais cômico de homem comum, o homem comum reformador do mundo não é por isso menos digno de atenção. Essa categoria de homem comum está muitas vezes protegida pela sua aparente ou real boa intenção. De fato, quem poderá repreender quem quer mudança quando as coisas não estão bem? Tendo isso em comum com tantos notáveis da história, o homem comum reformador do mundo camufla-se entre eles. É um tipo com ares de revolucionário e educador, mas atenção, ele não é, ao menos não bom, revolucionário nem educador.

O homem comum reformador vê um problema e tem a solução. Ora, não é um nobre homem? Lembremos-nos da essência do homem comum... Quando o homem comum reformador vê o problema ele vê com sua visão deturpada, curta, míope. Ele vê a conseqüência mais visível do problema e a vê pois está a meio metro de si, porque o toca, o atinge. Ele vê uma única face de um cubo, vê somente a ponta do bloco de gelo submerso, vê somente uma abelha de todo o enxame. Quando o homem comum reformador propõe uma solução, ele propõe uma solução para a conseqüência e não para a causa, para o sintoma e não para a doença. Além disso, ele não especifica os meios de implantar suas soluções, não prevê conseqüências, não prevê os gastos e custos.

O homem comum reformador do mundo, ele se incomoda, por exemplo, com uma fila. Filas nascem de uma demanda de atendimento maior que uma oferta de atendimento. Também são frutos dos consensos de igualdade, sem o qual o mais poderoso seria atendido primeiro. O homem comum reformador do mundo acha filas um absurdo, algo anormal. Note-se aí sua visão míope, as filas são formadas de seres reais, uma conseqüência real e natural a uma maior demanda real. O homem comum reformador sente-se um pioneiro e um gênio quando diz: “deveria haver mais atendentes”. Ora, se a fila é longa e freqüente muitos já pensaram nisso. Mas pensaram também que mais atendentes implicam num maior custo que será revertido quase sempre para o usuário. Um usuário consciente muitas vezes opta por esperar mais por um atendimento do que arcar com um custo mais alto de atendimento. O homem comum reformador não é um usuário consciente, ele é deslumbrado, sua visão e raciocínios curtos fazem com que ele se veja um gênio incompreendido, sempre vendo os problemas, sempre sabendo as soluções que nunca são postas em prática pelos tolos que habitam a terra.

O homem comum reformador do mundo, ele facilmente verbaliza o seu descontentamento com o estado de preservação da praça de seu bairro e da mesma forma fácil, ele sonega ou atrasa os impostos municipais; quando paga, sempre se lembra de usar bastante os serviços garantidos por eles. O homem comum reformador do mundo, ele debate nos bares e nos pontos de táxi sobre métodos educacionais revolucionários para as crianças, mas quando convocado para a reunião de pais na escola de seu filho, ele se ausenta; se comparece, se cala; se fala, e é confrontado por um bom argumento, justificará no momento ou depois para terceiros que não há boa vontade dos outros em investir nas suas boas idéias.

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O homem comum reformador do mundo, ele fala sobre como suas idéias são práticas, eficazes e fáceis, mas se desafiado a provar o que diz, executando ele próprio suas idéias, ele se esquivará com muitas justificativas e coisas a fazer. Até mesmo por isso, o homem comum reformador do mundo prefere ter idéias sobre coisas que estejam fora da execução de um indivíduo isolado, preferindo dissertar sobre obrigações governamentais, tendências da sociedade e costumes dos povos. Nunca está disposto a reformar a si mesmo, a tecer planos de melhoria para a sua própria vida. Nunca está disposto a pequenos feitos reais, teme ser autor de obra feita, porque esta estaria sujeita à crítica, assim como tudo o que está feito é alvo da sua crítica. O homem comum reformador do mundo é um eterno teórico, a prática o assusta, a prática o desafia por demais, o expõe por demais, o revela.

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VII - A necessidade de aprovação do homem comum

Outra característica do homem comum é uma grande necessidade de aprovação. A pedra não aprova o homem comum. A árvore não aprova o homem comum. O silêncio não aprova o homem comum. As mitocôndrias e os ossos do homem comum não o aprovam. O homem comum não está em sintonia com a natureza, com o ar, com a terra. O homem comum sente a desarmonia do mundo com ele e isso atrapalha o seu conforto, o seu sossego. O homem comum deturpa a realidade para adequá-la à sua pequenez e a sua ignorância, mas a verdade o assombra. A luz por entre as brechas de sua cabana o incomoda. Um olhar neutro lhe parece incriminador. Um silêncio lhe parece uma censura.

O homem comum precisa de aprovação para viver confortavelmente. Ele evita e se afasta das pessoas com potencial crítico, com uma sinceridade sagaz, com disposição para confrontos. Ele procura outros como ele ou mais ignorantes que ele. À medida que se formam os laços de confiança, o homem comum, aos poucos, se expõe. Um narrador de si mesmo, ele apresenta suas condutas e pensamentos, todos já devidamente justificados, encapsulados com argumentos defensivos, ainda que necessitando de algum exagero, de alguma omissão, de alguma deturpação para que fiquem mais comercializáveis, mais aprováveis. Não é raro que o homem comum encontre um interlocutor com as mesmas necessidades e aí, o inevitável acontece: o escambo, a troca, o comércio, a aliança. Está consumado o círculo vicioso de aprovação. O homem comum apresenta suas covardias sob a maquiagem das justificativas, maquiagem tão frágil, mas para isso encontrou um cúmplice, alguém para aprová-lo, para dizer verdadeiro o que até ele próprio desconfia. E assim seguem, se aprovando, carimbado e selando um modo de vida, se é possível chamar de vida esse estado mofado de estagnação, esse acordo de putrefação. Ainda que a falha ou ignorância do outro esteja saltando aos seus olhos e o cheiro invadindo-lhe os pulmões, o homem comum releva e aprova, pois tem ele próprio os seus próprios cadáveres, o seu próprio bolor, também precisando ser mais do que ignorado, ser comprado, ingerido, aprovado.

A troca de aprovações entre homens comuns não se restringe a grupos de dois. Outros podem se juntar, formando verdadeiras redes de aprovação. Devemos ressalvar que é natural haver afinidades em grupos que se reuniram pelas mesmas. De forma que entre os fãs de um esporte é raro um crítico do mesmo esporte. Um grupo que não recebe críticas ou influências exteriores corre o risco da dissociação com a realidade e a sociedade, o que não será de todo mal se o grupo possuir uma autocrítica que o leve a um desenvolvimento ainda que não um aprovado pelo exterior. Os grupos de aprovação do homem comum evitam a crítica exterior, a autocrítica grupal, a autocrítica individual e a crítica enunciada de um para com outro. Enfim, evitam toda a crítica. É criada assim uma atmosfera de fantasia tenebrosa, uma hipocrisia institucionalizada.

Quem entra num ambiente dominado pela rede de aprovações dos homens comuns sente estar num sonho, num pesadelo. A verdade latente nunca é dita. Há sempre justificativas do que se está fazendo, louvores aos bons resultados do passado, alertas sobre o futuro. E todas essas justificativas, louvores e alertas

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pregam a manutenção do “bom caminho” em que estão, o caminho das aprovações do homem comum.

Recomendo cuidado àquele que tenta o diálogo à sós com um membro de uma rede de aprovações. Provavelmente ele não irá atacar, não irá gritar, não irá morder. As suas falas serão divididas em racionais e bem esculpidas justificativas dos próprios atos e ao mesmo tempo uma certa concordância e boas considerações para com a fala do seu interlocutor. Cuidado, o que há de mais perigoso vindo de alguém dessas teias são as palavras: “Seja Bem-vindo”.

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VIII - Alguns Perfis do Homem Comum

Iremos apresentar alguns perfis que servem como exemplos e ilustrações do homem comum. É prudente alertar que para descrever um personagem, iremos descrever e citar vários detalhes que por si só não teriam qualquer relação com a essência do homem comum. Se dissermos, por exemplo, que a pessoa é acrobata, não estamos dizendo que os acrobatas são homens comuns, estamos simplesmente descrevendo aquele homem comum que, nesse caso, é acrobata.

Talvez seja polêmico descrever pessoas como sendo reprováveis. Porém deve-se deixar claro que não é a aparência e a condição externa de um estereótipo que procuramos denegrir. O mais interessante aqui é exemplificar como alguns possíveis perfis de homens comuns vêem a si mesmos e ao mundo.

Primeiro Perfil – Chefe de Família, Trabalhador, Classe Média Baixa, Meia Idade

Sexo masculino. 47 anos. Casado. Empregado. Mecânico Automotivo. Ensino Médio Incompleto. Começou a trabalhar com 16 anos. Casou-se aos 22. Uma filha de 24 anos. Um filho de 11 anos. Casa própria. Carro. Torcedor e espectador de futebol. Católico não praticamente. Pai agricultor, mãe dona de casa. Dois irmãos mais velhos, um irmão mais novo, um irmã.

Trabalha quarenta horas semanais. Freqüenta o bar de sua rua por quatorze horas semanais, aproximadamente. Visita os seus pais, que agora moram na cidade, uma vez por semana, aproximadamente. Vai à missa nos dias santos. Joga futebol no sábado à tarde.

Nada do que foi citado, o torna um homem comum. Mas vejamos mais de suas atitudes e de seu cotidiano. Acha que deveria receber um salário maior, mas recebe mais do que a média das pessoas com mesma escolaridade. Acha que deveria ser o supervisor de equipe no seu trabalho, mas não cogita completar o Ensino Médio no ensino supletivo, noturno, gratuito, com sede a seis quarteirões de sua casa. Vê a si mesmo como um trabalhador injustiçado pelas políticas governamentais. Acredita que pelo que trabalhou até hoje deveria possuir mais do que um carro e uma casa próprios. No entanto, não se recorda em que votou para senador e deputado nas eleições passadas. Lembra-se de quem votou para vereador pois foi em um primo de sua esposa e para presidente, lembra-se por causa dos noticiários, pois votou no candidato vencedor.

No trabalho, secretamente, deseja a jovem funcionária do departamento pessoal, sempre que tem a oportunidade faz um comentário ambíguo para ver a reação dela, que sempre sorri ou diz algo evasivo por educação. Porém, para os amigos do bar, relata que a moça é receptiva às suas intenções. No trabalho, espalha calúnias contra um jovem colega, questionando e colocando em dúvida a capacidade profissional do rapaz. Porém, a verdadeira indisposição contra seu colega se deve ao fato que este tem tido mais progressos românticos com a jovem do departamento pessoal.

No bar, se junta com outros em situação semelhante. Eles se justificam pelas situações em que se encontram, sempre se aprovando mutuamente. Culpam o

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governo e talvez alguém que lhe tenha pedido dinheiro no passado pela sua atual situação financeira. Os problemas com suas esposas e sogras, atribuem ao modo de ser de toda mulher e consolam-se dizendo que as coisas são assim mesmo.

Aprecia ser visto como valente e vigoroso, reivindica o que acredita ser seu ou dos seus com autoridade e arrogância, apresentando-se como alguém experiente, destemido e ameaçador. Mas quando encontra alguém mais disposto a entrar em conflito ou a fazê-lo de forma mais comprometedora, passa então a buscar um diálogo em tom de igualdade ou então recua e pede auxílio a terceiros. Relata todas as suas brigas, discussões e conflitos com acréscimos, omissões e deturpações que o retratam como alguém justo, valente e ponderado.

Tem sempre na memória familiares, vizinhos e colegas que trabalham menos ou que não trabalham, que são menos honestos ou que não possuem honestidade nenhuma. Sempre que pode se compara a eles para que seja visto como superior. Quanto aos mais honestos e trabalhadores, procura desqualificá-los, apontando deles, qualquer deslize e rotulando-os como hipócritas ou tolos.

Esse perfil de homem comum é realmente comum neste país. Racionaliza, justifica e verbaliza, verdadeiramente esculpindo um mundo onde ele é mais do que realmente é. Não consegue enxergar e assumir as suas limitações e as diversas oportunidades que perde. É o tipo de homem comum que se vê como trabalhador. Como possui pouco poder e pouca influência no seu meio, lhe é vantajoso defender a moral e a virtude e não é raro encontrá-lo fazendo. Não tem consciência plena dos seus verdadeiros motivos e acredita realmente em muitas das suas racionalizações e justificativas. Compara-se aos outros exagerando suas virtudes e desqualificando as alheias. Da mesma forma, possui sempre boas razões para as suas próprias falhas, mas nem sempre é assim tão compreensível com as falhas dos demais.

Segundo Perfil – Adolescente Introvertido de Baixa Auto Estima

Quinze anos, normalmente se estendendo até os dezoito ou vinte mas com possibilidade de ir até os trinta ou mais. Sexo masculino. Abaixo ou acima do peso ideal, ou ainda, peso ideal, porém insatisfeito com o corpo. Má postura física. Não pratica esporte ou não é reconhecido no esporte que pratica, ou ainda, pratica um esporte que não é popular no seu meio. Mora com os pais ou com um deles. Geralmente não é de família extremamente rica, podendo ser desde pobre até pertencente à classe média alta.

Aprecia histórias em quadrinhos, principalmente às de super-heróis. Assiste e é fã filmes de ficção científica e fantasia medieval. Interessa-se por tudo o que diz respeito aos seus heróis prediletos do cinema e dos quadrinhos, lendo artigos em revistas e sítios na internet, colecionando objetos relacionados. Gosta de música, alguma vertente do rock ou do pop. Pode apreciar os gêneros imediatamente mais próximos de sua vertente favorita, mas quase sempre repudia os demais. Assim como faz com os quadrinhos e cinema, também tende a se interessar por materiais e produtos relacionados aos seus músicos favoritos, usando camisetas e acessórios. Tende a gostar de jogos eletrônicos ou de tabuleiros ou de cartas colecionáveis ou

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de jogos de interpretação com regras. Muitas vezes, dedica muito tempo e energia ao seu jogo favorito.

Por que é um homem comum? Não é devido a qualquer de seus gostos ou preferências. Ainda iremos apresentá-lo melhor. Esse tipo de perfil é muito mais facilmente entendido pela psicanálise que lhe identifica os mecanismos de defesa. Mas, repito, as vozes mais eruditas tem sido pouco ouvidas e divulgadas. Eu devo fazer meu trabalho.

Primeira denúncia. Esse tipo sempre tem o que dizer sobre o mundo e as pessoas. Apontará inúmeras corrupções dos sistemas de convívio e sociedade. Fará críticas a tradições e costumes obsoletos. Censurará preconceitos e incoerências. Enfim, todo um arsenal de reprovação contra o mundo e as pessoas. Mundo real e pessoas reais. Embora os critique muito, gasta muito mais tempo e energia com seus hobbies e jogos do que se empenhando para mudar a realidade que tanto lhe desagrada. Ou seja, apesar das inúmeras acusações sofridas pela realidade por esse tipo, eu faço dela, ao menos esta defesa: ela é mais forte. Impõe-se ao acusador por sobre toda a sorte de fantasias e ilusões em que ele se enreda e se baseia.

Segunda denúncia. É comum, embora não seja regra, vê-lo criticar o capitalismo e a sociedade de consumo ou as injustiças sociais por eles geradas. Porém, se séria e longamente questionado raramente apresenta uma contraproposta consistente para essas questões. Censura ou secretamente renega atitudes de seus pais quanto à dinheiro e trabalho, mas depende financeiramente deles. Além disso, é ele próprio um consumidor ávido, comprando as bugigangas e parafernálias de seus músicos e heróis fantasiosos, alimenta as engrenagens do mundo real que não aprova.

Terceira denúncia. Inspirado por seus heróis dos quadrinhos, dos cinemas e dos jogos, é muitas vezes, proclamador da justiça e de valores interiores. É contra a exploração do fraco pelo forte. Seria por profunda e verdadeira crença nesse ideal? Ou seria por ser ele próprio um fraco? Alguém que tem pessoalmente muito a lucrar cada vez que o forte é impedido de agir? É contra a ostentação dos jovens ricos que impressionam as mulheres de sua idade com carros e freqüentando lugares caros. Seria, esse desdém, a sua verdadeira opção? É sua íntima opção, não possuir um carro e não ter dinheiro em abundância? Para que fosse uma opção, no sentido mais imediato, deveria ser algo que estivesse em seu alcance... Quem saberá como agiria se estivesse do outro lado? Recrimina as mulheres que se relacionam por interesse, mas a verdade é que não possui, ele, esse pobre infeliz, qualidade interior significativamente superior aos seus rivais, evidentemente materialmente mais providos. Entre um homem sem posses e o mesmo com elas, não é absurdo que o segundo leve vantagem em alguma disputa.

Quarta denúncia. Ainda inspirado por suas fantasias e também referente a mulheres, esse jovem homem comum se vê como diferente dos outros homens. Vê-se como um homem de maior sensibilidade, maior romantismo e maior fidelidade. Indigna-se com a forma abrutalhada e insensível dos demais homens. Um olhar crítico sobre esse jovenzinho. Não é conveniente, apresentar-se fiel, quando não se tem uma única mulher? Não tendo uma única mulher e sabendo que grande parte

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delas aprecia romantismo, não é compreensível apresentar-se romântico, principalmente sendo o romantismo uma característica muito inclinada à simples disposição e escolha e não algo mais mensurável e mais arduamente conquistado? Toda essa sensibilidade. Serei eu cruel ao suspeitá-la inflacionada? Uma supervalorização da companhia feminina simplesmente pela falta da mesma em sua vida?

Quinta denúncia. Esse tipo aprecia os heróis e os grandes feitos. Aprecia os grandes esforços pelas nobres causas, os combates épicos com vilões tirânicos e superpoderosos, as longas jornadas em busca da verdade. Os trabalhos rotineiros num escritório ou os afazeres domésticos lhe parecem medíocres. Mas analisemos o nosso jovem homem comum. Quais são seus feitos? Na fantasia dos seus jogos, filmes e livros, ele idolatra todo um mundo de árduas conquistas. Mas o que ele conquistou? Desdenha as causas da vida cotidiana, seria porque não têm elas, o brilho da fantasia? Ou porque, é nelas, incapaz e derrotado? A energia e o tempo que dedica aos seus jogos, revistas e passatempos, qual seria o resultado se a empregasse em um causa real? Ainda que uma simples e mundana, como o trabalho num escritório? Seria o resultado, tão impressionante quanto o de seus heróis? O jovem homem comum desdenha os desafios reais, porque os teme. Teme falhar, teme descobrir-se menor do que seus heróis e menor do que acreditava ser.

Terceiro Perfil – Viúva Quase Idosa Moralista

Sexo Feminino. 59 anos. Católica, mas poderia ser também evangélica. Viúva. Sustenta-se com a pensão deixada pelo marido. Dois filhos. Uma filha de 38 anos, casada, morando com o esposo. Mora com o filho de 23 anos que não estuda e está desempregado. Vai à missa aos domingos. Participa de novenas todas as semanas. Assiste novela televisiva todos os dias.

Acredita que o mundo está cheio de corrupção e perdição, que os bons valores estão sendo esquecidos. Diz que no seu tempo os jovens eram mais respeitadores e educados.

Essa mulher, homem comum, está atrás de máscaras. É hora de quebrá-las. Ela se vê como uma cristã benevolente, uma pessoa de bem, gente decente, de respeito e de família. Para ela, cinco sextos do mundo estão podres. Ou seria o seu olhar que vê podridão em tudo? Diz que as jovens de hoje não se dão o respeito, que são vulgares, que o mundo está corrompido pela luxúria. Será todo esse rancor, preocupação sincera com as jovens e com os rumos do mundo? Ou será algo bem mais simples? Com menos ares de altruísmo? Seria inveja da juventude que já não tem? Será inveja dos prazeres que nunca sentiu ou que não sente mais? A amargura e o azedume de quem sente que seu tempo passou?

Essa mulher, homem comum, está atrás de máscaras. É hora de quebrá-las. Ela aponta e condena os vícios do mundo. Os cachaceiros, os maconheiros, os jogadores, vê a todos como perdidos, distantes dela em caráter e moralidade. Mas antes que o bêbado volte ao bar, ela assistiu dois episódios de novela. Antes que o jogador faça sua segunda aposta, ela já o denegriu três vezes em conversa com a vizinha. Se o bêbado, o maconheiro e o jogador recorrem ao vício para suportar ou

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fugir da realidade; ela também não precisa das novelas e das conversas fiadas e afiadas com as vizinhas para preencher o vazio dos seus dias? Se aqueles são réprobos que em nada contribuem à sociedade; no que então, ela tanto ajuda? Assim como no bar, os freqüentadores se aprovam, se justificam, e pelas palavras, se embriagam numa visão fantasiosa da realidade; ela faz o mesmo, denegrindo, junto com suas vizinhas, toda postura e conduta que a incomoda, se comparando e achando superior a todo aquele que erra e vendo com malícia as intenções de todo aquele que acerta. Se os jovens rebeldes e perdidos escutam músicas desrespeitosas e subversivas, ela, quando assiste suas novelas, não busca preencher o mesmo tipo de vazio? Ocupar as mesmas unidades de tempo? Diz que é cristã e que segue a Jesus. Não sabe ela que Jesus conversava e comia ao lado dos tido como reprováveis de sua época?

Quarto Perfil – Intelectual respeitado arrogante

Agora, um enquadramento bem geral. Vamos tratar aqui do juiz renomado, do médico que é referência na especialidade, do catedrático com livros publicados. Enfim, daqueles que exercem trabalho intelectual e que nele conseguiram notoriedade.

Deve-se ter um cuidado especial ao analisar e criticar esse tipo. Já há alguma hostilidade contra ele. Começaremos por entendê-lo e defendê-lo. Um profissional bem sucedido é motivo de orgulho para sua família, mas já entre os familiares, esse tipo é alvo de inveja e assim também no meio social e profissional. É comum dos invejosos censurarem e depreciarem comentários ou opiniões daqueles que invejam. Isso gera no invejado, uma conseqüente defesa, uma reserva e uma desconfiança que pode se tornar padrão conforme a freqüência dos ataques que receba. Daí, um exemplo de motivo para o ar arrogante com que esse tipo se apresenta. Outro motivo comum, não lhe é exclusivo. Todo que está bem financeiramente teme interesseiros e sanguessugas que se aproximam para pedir dinheiro. Lembremos também dos interesseiros que se aproximam por poder, status, favores, enfim, lembremos-nos deles. Por fim, esse indivíduo adquire um ar de arrogância e superioridade, muitas vezes porque vê nisso, sua melhor escolha. É verdade que às vezes o indivíduo realmente se envaidece, mas o favoreçamos com o benefício da dúvida.

Enquanto ele é criticado por “ares” de arrogância e “aparência“ de superior, procuremos nós a sua verdadeira arrogância, revelemos onde lhe falta a superioridade. Deixemos que o pobre homem desfrute do prestígio e do dinheiro do seu trabalho. Essa não é a questão. Esse não é o mal que ele faz. Esse tipo muitas vezes congela a sua própria caminhada, perdendo a oportunidade de superar-se, trai a si mesmo. Enquanto alguns, de início idêntico, se tornam homens raros, o nosso homem comum se apequena. Para todos ainda será um homem tão grande quanto seus colegas de currículo similar. Escondido atrás dessa distância e diferença com a maioria, ele acredita estar realmente anônimo e tranqüilo na nojenta, asquerosa e repugnante incubação do homem comum.

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Primeira denúncia. “A tranqüilidade do dever cumprido”. Comum a todo homem, esse, disso também não escapa, mas a estabilidade financeira do sucesso faz com que o descanso merecido se transforme num sono longo, triste, lamurioso e tedioso. “Cumpri o meu dever com a sociedade, fiz minha parte.” Se eu puder me chamar de sócio da tal sociedade, eu votaria por devolver-lhe a contribuição, pois não quero ser cúmplice da corrupção de alguém por ele mesmo. A sociedade saudável é feita de homens em evolução e não dos que estagnados vivem das glórias do passado, seja remoto ou recente. “Fiz a minha parte”. O mundo segue mesmo sem partes feitas, porém quando termina a parte que um homem tem com si mesmo?

Segunda denúncia. “O entendimento das coisas”. Com uma observação mais analítica e uma visão mais ampla, esse tipo vê e entende o funcionamento das coisas. Vê como operam os interesseiros e como tramam os invejosos ao seu redor. Sabe como agem as pessoas e sabe se proteger delas. Mas esquece: um homem mais protegido do mundo vive num mundo protegido dele. A distância imposta, pelos seus ainda que justos preconceitos, é a mesma que o impede de descobrir as improváveis, raras, mas gratificantes exceções na manifestação humana. O trato com o homem comum diminuiu suas expectativas, tolheu-lhe as ambições. Deixar o homem comum pintar o horizonte à sua frente, é tornar-se como ele. Quantos de potencial raro acreditam combater o homem comum, mas deixam o homem comum ditar as proporções e os moldes do combate, que se torna pequeno, covarde, comum.

Terceira denúncia. “O reconhecimento de si mesmo”. Nosso tipo intelectual sabe o seu valor, se diferencia dos ignorantes. Ele se reconhece e se orgulha de se ter destacado de uma massa inculta e iludida. Comemoremos com ele, mas até quando? Ele bem sabe que é próprio do ignorante a dificuldade em mudar. Vai ele esperar que o ignorante mude para dar o seu próximo passo? Passará o resto dos seus dias se comparando com o ignorante e se descobrindo superior? Qualquer covarde pode se orgulhar de como é melhor do que o homem que já foi. A ousadia e o risco estão em envergonhar-se diante do homem que ainda se pode vir a ser. Quem olhar para trás e tomar, como medida das coisas, o homem comum; terá tamanhos, meramente, comuns; e a grandeza será a de um homem comum. Olhemos, ao menos às vezes, para frente!

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IX - Conduta frente ao homem comum

Para aquele que se opõe aos hábitos e pensamentos nocivos do homem comum, para aquele que combate a corrupção e o apodrecimento promovidos pelo homem comum, a principal e primeira regra de conduta é simples: não seja um homem comum.

Essa primeira recomendação pode parecer desnecessária, mas não é. É típico do homem comum apontar ignorantes sendo ele próprio, um deles; apontar tolos, sendo ele próprio, um deles. Aquele que combate o homem comum é principalmente um combatente e vigilante de si mesmo. A crítica ao outro é típica do homem comum, para combatê-lo é preciso diferenciar-se dele. Cada crítica que a ele lançarmos, no-la façamos antes dez vezes. Essa primeira regra é, de fato, valiosa. O que se segue, são algumas especulações e experiências minhas, ainda extremamente questionáveis.

Há quem pense em agressividade. Eu não recomendo. A agressividade já existe no mundo. Quando os homens comuns não são do mesmo grupo de aprovações, comum é que eles mesmos se agridam. Nem por isso melhoram. Possuem um arsenal de justificativas para terem razão em todo conflito. Ainda que da agressividade direta possua resultar algum benefício indireto, eu realmente não recomendo, ainda porque como eu já disse, já há agressividade no mundo e quem só aprende por ela, a terá em tempo oportuno.

Agora um alerta importante. Para esclarecer um homem comum, muitos adotam uma técnica que consiste em aguardar um momento propício, uma oportunidade em que o homem comum alvo está mais vulnerável, mais suscetível a reflexões e considerações de outros pontos de vista. Esta técnica não é de todo mal, não posso simplesmente desqualificá-la, pois já vi gerar resultados bem sucedidos. Mas sugiro aqui, muito cuidado. Esse aguardo, essa espreita, de que não só o homem comum pode ser alvo, mas todos nós, inclusive porque o próprio homem comum usa o método com freqüência, enfim, esse aguardo acaba se transformando muitas vezes num desejo e numa torcida pela desgraça alheia, pelo fracasso e miséria do alvo. O executor precisa da vulnerabilidade do alvo para se aproximar dele e passa então a esperar pela sua queda, a mesmo desejar isso, como um urubu aguardando o último suspiro do animal moribundo. Ainda que essa tática nojenta seja uma arma comum do homem comum eu a considero demasiadamente baixa e também não aprovo o seu uso nem mesmo contra ele. É verdade que nem sempre o momento propício é precedido de uma torcida e desejo pela desgraça alheia, mas é tênue a distinção das intenções aqui envolvidas. Outra crítica contra esse procedimento é que pode gerar uma posterior revolta na vítima, um sentimento de ter sido atacado de surpresa quando estava mais vulnerável. Esse proceder não é raro entre alguns pretensos religiosos, que sob o pretexto de levar consolo e solidariedade a alguém em infortúnio, acabam por também o afligirem com meia dúzia de alfinetadas entre sermões, conselhos, exemplificações e mensagens mais ou menos indiretas. Portanto, eu sugiro cuidado com esse tipo de abordagem e acredito que melhor se faz em abandoná-la do que usá-la mal e se comportar como um abutre.

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Como então proceder com o homem comum? Eu também não sei. Por ora, minhas tentativas tem sido que não se alimente a sua sede de aprovações vãs e não se mostre crédulo com suas justificativas vazias. Exige-se alguma cautela para não se parecer rude e mesma com toda cautela é por vezes inevitável causar alguma má impressão. Não é necessário gritar em voz alta os cem motivos pelos quais se reprova um homem comum quando ele buscar aprovação, nem esbravejar todos os seus defeitos quando ele se esconde em um comentário hipócrita, nem acusá-lo de mentiroso a cada vez que se aventura em uma justificativa vazia. Um comentário ponderado e contido gera normalmente mais reflexão do que confrontos explícitos, diretos e agressivos que normalmente acuam qualquer indivíduo a uma postura defensiva. Sempre em mente que por vezes o silêncio é a melhor opção. Censurar ou criticar diretamente o homem comum não é, na maioria das vezes, muito produtivo. Talvez não seja também útil e bom. Afinal todas as aprovações e justificativas que o homem comum coleta são justamente para protegê-lo de censuras e críticas. No entanto, acredito no benefício que se faz quando não se aprova levianamente, pelo simples aprovar, um ato, dito, pensamento ou justificativa de um homem comum. Atitudes desse tipo podem ser severas demais para com algumas pessoas, portanto revalido a minha menção de cautela para com os momentos de infortúnios alheios. Deixar de apoiar alguém em momentos de fragilidade pode ser trágico. O homem comum não é meu inimigo porque precisa de conforto às vezes, mais sim porque busca o conforto a todo preço mesmo quando não precisa. Por fim, a sinceridade para consigo mesmo é que deve atravessar todas as cautelas e que deve reunir toda severidade, rigor e vigor que forem necessários.

Outro método usado para influenciar pessoas, e que, portanto, dele poderia cogitar-se, é o de ser um exemplo, um modelo. Agir de forma que inspire os outros a imitá-lo. Ser o seu próprio comportamento, uma referência de comportamento. Não há nada a reprovar do método em si. Mas há alguns alertas a respeito. Aquele que age conforme seus princípios, sejam quais forem, é deles um bom exemplo, mesmo que não se atente ao fato. Porém quando se age pensando em ser exemplo e modelo, corre-se o risco de com o tempo agir-se mais devido ao exterior do que ao interior, de agir para ser exemplo e não porque acredita na conduta. Esse risco pode aumentar e os males agravarem, quando a conduta em si é difícil e apagada mais o seu exterior, sua aparência é de fácil execução e grande repercussão. Ainda menciono aqueles que, tendo atingido em alguns momentos com condutas admiráveis, sentem posteriormente, o peso de manter o padrão de conduta e não conseguindo, se corrompem revestindo-se de aparências e exteriores. Novamente digo que aquele que age conforme o que acredita, sem fazer disso alarde, será bom exemplo do que se é. Ainda que muito permaneça oculto, nisso não há mal, pois os homens vêem até onde podem ver e não mais.

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X - Reflexões e Aforismos Avulsos sobre o Homem Comum

1 - Há homens comuns que acreditam que para um sentimento ser verdadeiro e valoroso, deve sobrepujar-lhes a razão. Quando a razão lhes questiona um sentimento ou o rumo a que ele conduz, envergonham-se da própria razão e a escondem de si mesmos. Sem a razão, não compreendem os próprios sentimentos e depois culpam esses mesmos sentimentos por os terem conduzido para algum infortúnio.

2 – O homem comum não é incapaz de reflexão e raciocínio. Às vezes, o homem comum reflete, raciocina e vislumbra uma nova verdade pessoal. Mas se tal verdade for incômoda, arriscada, se demandar por demais, ele preferirá ignorá-la, como se nunca a tivesse vislumbrado, como se nunca houvesse refletido e raciocinado.

3 – O homem comum, mais do que a oportunidades futuras, busca que seu passado seja reconhecido. Agindo assim tem um passado cada vez menos digno de reconhecimento.

4 – Terá havido outra época em que tanto se buscou a fama e a notoriedade? A discrição e o anonimato, que antes eram apenas escolhas, são vistos ou com desdém ou com desconfiança. Como todo pequeno mérito é levado ao mercado onde se troca por fama, passam a crer que todo desconhecido não tem mérito algum, que se tivesse já teria projetado seu nome e sua imagem. As pessoas estão perdendo o prazer de descobrirem os méritos umas das outras. Só reconhecem o que lhes é apresentado, precisam de referências de críticos e comunicadores. Abdicaram da própria crítica e da própria comunicação.

5 – Mesmo nas circunstâncias propícias, o homem comum em geral não aceita que um trabalho possa ser a sua própria recompensa. O homem comum busca sempre a indenização pelo trabalho, isso por vezes faz com que por vezes veja no trabalho um sofrimento e quando não o vê assim inicialmente, se esforça.

6 – Quando o homem comum descobre algum direito seu, imediatamente concentra-se em gozar-lhe os benefícios e passa a ignorar que tal direito teve alguma origem. Extrai, abusa, suga de tal forma seu direito que o poder que lhe deu origem não mais tem o poder de manter-lhe. E quando perde seu direito, aí então, o homem comum lembra-se de buscar-lhe a origem, para reclamá-lo, para lamuriar-se. Vê-se traído e não consegue enxergar que traiu a si mesmo. O homem comum gosta que as coisas melhorem, mas não entende que a continuidade disso depende dele melhorar-se com elas.

7 – O homem comum parece ter uma dificuldade especialmente maior em enxergar as relações que existem entre a sua conduta e as conseqüências que ela lhe acarreta. Enxerga causas exteriores, que ainda que justas, estão sempre fora do

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alcance de sua ação. Admitir a possibilidade de influenciar sua própria vida é, para ele, também admitir os seus fracassos.

8 – O homem comum não consegue ser justo ao falar de seus adversários, sente que não cabe a ele essa justiça. O homem comum não consegue ser justo ao falar de seus adversários, como acredita que eles o retratam sempre deslealmente, acredita fazer justiça ao fazer o mesmo.

9 – O homem comum evita os homens bem sucedidos, pois evidenciam seu fracasso. O homem comum evita os homens inteligentes, pois evidenciam sua tolice. O homem comum evita os homens fortes, pois evidenciam sua fraqueza. Buscando comparações favoráveis, o homem comum se regozija na companhia de fracassados, tolos e doentes para que ele pareça vencedor, inteligente, saudável. O homem comum torce pelo malogro. O homem comum se alegra com a decadência. O homem comum comemora doenças.

10 - O homem comum quer mesmo que até a mediocridade se torne mais acessível.

11 – O homem comum, quando sedento de fama, não busca o mérito a ela referente, busca a fama em si, ainda que não tenha o mérito. Quando consegue a fama, sofre porque o mérito então lhe faz falta.

12 – O homem comum tem dificuldade com novos conceitos porque a tudo conceitua segundo os seus velhos conceitos. Não pode desprender-se de suas idéias para conhecer uma nova. De alguma forma ele teme cair, teme afogar-se.

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XI - Além do Homem Comum

Talvez as linhas seguintes estejam fora do objetivo dessa pequena e modesta obra. Até aqui traçamos uma referência para aqueles que estão se libertando do comodismo, da ilusão, da mentira e da hipocrisia cultivadas nos ambientes e contextos menos luminosos, menos vitalizados, da existência humana. Não dissemos, pois nos foge de competência e objetivo, o que há além dessa barreira, o mundo além do homem comum.

Grande parte do que denominamos essência do homem comum, são estratagemas e ilusões consciente ou inconscientemente projetadas para amenizar, esconder ou evitar sofrimento. Sendo assim, ao abandonar essas condutas é muito possível que se encontre o sofrimento, até agora contornado, ignorado, negligenciado. Alguns podem passar por um período de euforia e entusiasmo com um mundo novo vindo de uma nova visão do mundo. Porém, cedo ou tarde terá que se fazer a escolha, ainda que de adiar a mesma, de como conduzir sua vida, seu tempo no mundo.

Como eu já disse, não irei indicar caminhos. Eu respeito à coragem de cada decisão fora do comodismo e covardia reinantes na farsa mental do homem comum. As minhas observações além do homem comum não são tão claras e definidas para serem compartilhadas ainda nessa obra. A realidade, além das ilusões e saídas fáceis do homem comum, essa realidade é, para mim também, um desafio. Eu faço minhas escolhas a cada dia, a cada momento, faço o melhor que posso, e apenas isso.

É possível que essa nova realidade, de escolhas reais, pareça árdua ao novo caminhante. Mas ele sentirá também o deslocamento, o movimento dos próprios passos, a evolução ao longo do tempo, o próprio sentimento da vida.

Eu vejo muitos andarilhos em diversos tipos de sofrimento. Alguns recuam para trás dos muros da covardia do homem comum, mesmo sabendo que jamais se sentirão completos ali. Outros padecem de diferentes formas. Outros seguem por caminhos diversos, mais ou menos felizes, mais ou menos satisfeitos. Em muitos, em quase todos, há alguma solidão. Enquanto para as mais covardes empreitadas, os homens, por conveniência mesmo, se unem; nos caminhos além do homem comum, eu vejo pouca união. Questão esta, para a qual eu não tenho solução, mas sou otimista quanto ao futuro.

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XII - Considerações finais

Mais poderia ser dito, menos também. Ainda que a obra termine, poderei expandi-la posteriormente. Muito do que eu pretendia dizer foi dito.

Nota-se, com razão, que eu não sou um bom escritor, tampouco, um bom filósofo ou um bom pensador. Na verdade, não me vejo nem mesmo como medíocre escritor. No entanto, bons escritores, bons filósofos e bons pensadores estão muitos deles esquecidos e outros longe por demais do povo, das pessoas das ruas. Mesmo os raciocínios mais claros, mesmo as linguagens mais simples, mesmo as idéias mais óbvias parecem distantes demais da realidade, da realidade da rua, do mercado, da praça, da cidade. Talvez esta obra, rude e mal acabada, seja mais incômoda, menos ignorável. A minha pretensão não é influenciar todas as pessoas, nem mesmo influenciar muitas delas. Uma única pessoa que, ainda que não concorde com nada contido nessa obra, venha a refletir por causa dela, essa já me é, ambição suficiente.

Mencionamos o hábito humano de justificar seus atos, mesmo que a justificativa não seja o real motivo do ato. Eu também queria poder justificar mais e melhor essa obra, ou melhor, colocá-la acima de justificativas. Mas ela é concreta demais para que eu possa dissipá-la e maquiá-la e para que fosse concluída foi necessário e conseqüente que eu a expusesse da forma como está. De forma que ela já nasce tendo o seu maior crítico, o próprio autor. Guardei por algum tempo essas idéias. Agora buscarei outras novas, sabendo que essas ficam aqui registradas a salvo dos riscos da memória de quem de novo se aventura.

Os alertas contidos nessa obra falam de atos na sua maioria primários e infantis. Porém, a maioria dos atos que vejo são primários e infantis. De forma que embora rústica, a obra seja ainda contemporânea. Algo a se criticar aqui seria que embora eu aponte problemas em muitas condutas, eu mesmo pouco fiz no sentido de indicar alguma. Justo, porém creio que com o tempo e energia salvo ao se evitar cair em certas ilusões, pode-se por si mesmo arriscar-se em outras e até mesmo suceder-se melhor que isso.

Há sem dúvida na obra muito conteúdo que teve origem com o desenvolvimento de idéias oriundas de fontes escritas. E, guardadas as proporções de minhas limitações, percebe-se até mesmo no estilo, algumas influências mais claras. Mas, parte do conteúdo provém de observações, observações mesmo da teoria na prática, observações da prática sem teoria, observações da vida cotidiana em geral. As idéias vindas dessas observações foram expostas em diálogos na própria vida cotidiana. Com o tempo, o caráter crítico dessas idéias começou a torna-se incômodo aos interlocutores mesmo quando tratadas no campo teórico, sem qualquer alvo definido. Assim, não considero errôneo dizer que um dos motivos dessa obra é desenvolver o caráter crítico dessas idéias sem o risco e o obstáculo de constranger ou perturbar qualquer interlocutor de corpo presente. Faculta-se ao leitor a escolha de esconder ou queimar essa obra e fingir nunca tê-la conhecido. Aquele que sentir-se desmascarado, lembre-se que ainda o está, como leitor anônimo, destinatário desconhecido do remetente. A sede de verdade de algumas dessas idéias podem gerar conflitos e muitas vezes a hipocrisia prática do dia-a-dia

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se mostra justamente mais prática do que essa, e de qualquer outra, defesa da verdade. E é talvez porque eu mesmo muitas vezes desanime dessa busca pela verdade nos atos, pensamentos e relações, é talvez por isso que registro aqui algumas idéias que buscam de alguma forma a verdade. Assim, independente de mim, a obra segue por si mesma, lutando, ainda que em vão, por uma maior clareza, uma maior claridade, uma maior luminosidade. Que ela faça por si mesma o por vezes árduo convite repleto de conseqüências: “Venha para a luz!”.

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Referências Bibliográficas

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