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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 9 - Dezembro de 2006 253 HOBBES E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O DIREITO PENAL – UM ESTUDO DO “LEVIATÔ E “DO CIDADÃO” * Marcelo Lessa Bastos ** SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As idéias sobre as leis, as penas e o inimigo. 3. Os princípios da legalidade e da anterioridade. 4. O iter criminis. A punição pela tentativa. Os crimes comissivos e omissivos. 5. As “desculpas” e “atenuantes” de Hobbes. 5.1 A teoria do erro. 5.2 Coação irresistível. 5.3 Legítima defesa. 5.4 Estado de necessidade. 5.5 Tipos simples, qualificados e privilegiados. Atenuantes e agravantes. 6. As penas (punições). 7. Conclusão. Referências. RESUMO: * Escrito em 30/07/2006. ** O autor é Mestre em Direito pela FDC,Doutorando pela UGF e professor da FDC. O presente estudo tem por escopo demons- trar algumas refexões feitas por Tomas Hobbes, em seus livros “ O Leviatã” e “Do Cidadão”, que permeiam as ciências penais contemporaneamente. Palavras-Chave: Direito Penal; Hobbes ABSTRACT: The present work is directed at presenting some reflections by Tomas Hobbes, on the books “Leviathan” and “Citizenship”, which runs through contemporary Criminal Sciences. Key-words: Criminal Science; Hobbes

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 9 - Dezembro de 2006

MARCELO LESSA BASTOS 253

HOBBES E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA ODIREITO PENAL – UM ESTUDO DO “LEVIATÔ E

“DO CIDADÃO”*

Marcelo Lessa Bastos**

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As idéias sobre as leis, aspenas e o inimigo. 3. Os princípios da legalidade e da anterioridade.4. O iter criminis. A punição pela tentativa. Os crimescomissivos e omissivos. 5. As “desculpas” e “atenuantes” deHobbes. 5.1 A teoria do erro. 5.2 Coação irresistível. 5.3 Legítimadefesa. 5.4 Estado de necessidade. 5.5 Tipos simples, qualificadose privilegiados. Atenuantes e agravantes. 6. As penas (punições).7. Conclusão. Referências.

RESUMO:

* Escrito em 30/07/2006.** O autor é Mestre em Direito pela FDC,Doutorando pela UGF e professor da

FDC.

O presente estudo tem por escopo demons-trar algumas refexões feitas por Tomas Hobbes, em seus livros “O Leviatã” e “Do Cidadão”, que permeiam as ciências penaiscontemporaneamente.Palavras-Chave: Direito Penal; Hobbes

ABSTRACT: The present work is directed at presentingsome reflections by Tomas Hobbes, on the books “Leviathan”and “Citizenship”, which runs through contemporary CriminalSciences.Key-words: Criminal Science; Hobbes

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1. Introdução

O estudo do “Leviatã” relevou algumas das contribuiçõesde Hobbes para o Direito Penal que, malgrado mostrarem-sebem atuais, não têm tido o devido reconhecimento. TomasHobbes, ícone do pensamento político inglês, dedicou doiscapítulos do “Leviatã” a reflexões que, até hoje, permeiam asCiências Penais, sem que os penalistas modernos dêem,rotineiramente, o crédito que Hobbes merece por tais reflexões.São os capítulos XXVII (“Dos crimes, Desculpas e Atenuantes”)e XXVIII (“Das Punições e Recompensas”).

Hobbes já havia se dedicado a reflexões inerentes aoDireito Penal em sua obra “Do Cidadão”, publicada antes do“Leviatã”. Nesta primeira obra, na Parte II (“Domínio”), o item“16” do capítulo VI (“Do Direito de Quem Detém o PoderSupremo na Cidade, seja um Conselho, seja um único Homem”)é dedicado a reflexões sobre o princípio da legalidade, voltandoHobbes a se dedicar ao Direito Penal no capítulo XIV, entitulado“Das Leis e dos Crimes”.

Ainda que aquelas idéias hoje recebam uma outra roupagem,fruto do amadurecimento das relações sociais desde a Inglaterra doséculo XVII até os dias atuais, certo é que muito do que se ensinahoje em Direito Penal já havia sido refletido por Hobbes.

O objetivo deste trabalho é, pois, demonstrar algumasdessas reflexões, com vistas a dar ao autor inglês o crédito queele merece.

2. As Idéias sobre as Leis, as Penas e o Inimigo

Hobbes acreditava que o homem, em estado de natureza,vivia em situação de beligerância constante, num estado de guerrade todos contra todos. Daí, precisava se agregar em Repúblicas,para garantir a própria sobrevivência do grupo, através doestabelecimento de regras de convivência, que eram as leis civis,criadas pelo homem, já que as leis da natureza não seriamsuficientes para garantir a preservação do grupo.

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Para ele, as leis eram classificadas primeiramente emdivinas e humanas, conforme proviessem de Deus ou dos homens.

As leis divinas, por sua vez, eram divididas em naturais –“aquela que Deus declarou a todos os homens através de suapalavra eterna, com eles nascida”1 – ou positivas – aquelasreveladas aos homens através das profecias. As leis naturais,por seu turno, eram dividas por Hobbes em leis dos homens, queele chamava de leis da natureza, e leis das cidades, quedenominada “direito das gentes”, embora tal distinção fossemeramente formal, na medida em que Hobbes acreditava queas cidades assumiam a condição de pessoas humanas e, portanto,as leis dos homens (ou da natureza), aplicadas às cidadesenquanto cidades, assumiam a denominação de direito das gentes.

Já as leis humanas, chamadas de leis civis, eram, paraHobbes, classificadas em leis sagradas e seculares. As leissagradas eram as leis humanas sobre coisas da religião, tais comocultos, cerimônias, regras eclesiásticas, só sendo possível aohomem dispor sobre isto naquilo que as leis divinas positivassilenciassem. As leis seculares eram as leis civis propriamenteditas – as leis dos homens sobre as coisas dos homens.

Estas, as leis civis, por sua vez, embora unas,apresentavam-se sob dois aspectos: distributivo e punitivo. Erana parte distributiva que o legislador – e Hobbes afirmava que“no governo civil o único legislador é a cidade, isto é, aquelehomem ou conselho a quem o poder supremo da cidade estavacometido”2 – estabelecia os direitos e deveres que cada homemtinham e deveriam respeitar, definindo, em síntese, o que cadaum podia legalmente fazer ou se omitir. E na parte punitiva olegislador definia o castigo a ser infligido àqueles que violavam aparte distributiva da lei civil.

Hobbes acreditava que toda a lei tinha que impor umasanção: “é inútil impor qualquer proibição aos homens, se ao

1 HOBBES, THOMAS. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. SãoPaulo: Martins Fontes, 2002, p. 218/219.2 HOBBES, Thomas. Op cit. p. 219/220.

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mesmo tempo não se induz neles um medo ao castigo”3. Daí,concluía ser inútil uma lei civil que não tivesse essas duas partes:

Hobbes chega, assim, talvez despretenciosamente, àestrutura da lei penal, onde, no que chama de parte distributiva,poder-se-ia encontrar o preceito primário, ou seja, a definiçãodo comando proibitivo, na fórmula como hoje se conhece dostipos penais, e no que chama de parte punitiva, o preceitosecundário, ou seja, a cominação da sanção penal diante daviolação do preceito primário.

De se observar que Hobbes percebe a punição como merocastigo à inobservância das proibições contidas na partedistributiva da lei civil:

O que depois seria chamado de teoria absoluta ouretributiva da pena.

3 HOBBES, Thomas. Op cit. p. 221.4 Loc cit.5 HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz

Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 262/263.

Uma proibindo que se cometam injúrias, eoutra castigando quem as praticar. Aprimeira delas chama-se distributiva, éproibitória, e fala a todos; a segunda, quetem por nome punitiva ou penal, émandatória, e dirige-se apenas aosmagistrados públicos4

Uma punição é um dano infligido pelaautoridade pública, a quem fez ou omitiuo que pela mesma autoridade éconsiderado transgressão da lei, a fim deque assim a vontade dos homens fiquemais disposta à obediência5

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Sobre esta teoria, explica, nos dias de hoje, Cezar RobertoBitencourt:

O Estado, tendo como objetivo político ateoria do contrato social, reduz suaatividade e matéria jurídico-penal àobrigação de evitar a luta entre osindivíduos agrupados pela idéia deconsenso social. O indivíduo quecontrariava esse contrato social eraqualificado como traidor, uma vez que comsua atitude não cumpria o compromissode conservar a organização social,produto da liberdade natural e originária.Passava a não ser considerado mais comoparte desse conglomerado social e simcomo um rebelde cuja culpa podia serretribuída com uma pena. Segundo esteesquema retribucionista, é atribuída àpena, exclusivamente, a difícilincumbência de realizar a Justiça. A penatem como fim fazer justiça, nada mais. Aculpa do autor deve ser compensada coma imposição de um mal, que é a pena.6

E conclui sua exposição atribuindo a teoria a Kant e Hegel:

Destacam-se tradicionalmente Kant eHegel como os principais representantesdas teorias absolutas da pena. No entanto,é notória uma particular diferença entreuma e outra formulação: enquanto emKant a fundamentação é de ordem ética,em Hegel é de ordem jurídica. De acordocom as reflexões kantianas, quem não

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva,

2003, v. 1, p. 68.

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cumpre as disposições legais não é dignodo direito de cidadania. Nesses termos, éobrigação do soberano castigar“impiedosamente” aquele que transgrediua lei. (...) A tese de Hegel resume-se emsua conhecida frase: “a pena é a negaçãoda negação ao Direito”. A fundamentaçãohegeliana da pena é – ao contrário dakantiana – mais jurídica, na medida em quepara Hegel a pena encontra sua justificaçãona necessidade de restabelecer a vigênciada “vontade geral”, simbolizada na ordemjurídica e que foi negada pela vontade dodelinqüente. A pena vem, assim, retribuirao delinqüente pelo fato praticado, e deacordo com o quantum ou intensidade danegação do direito será também o quantumou intensidade da nova negação que é apena.7

Ora, Kant e Hegel escreveram depois de Hobbes. Daí,por mais que tivessem aperfeiçoado suas idéias, deveriam ter-lhe dado o devido crédito. Até hoje parece passar despercebidaa contribuição de Hobbes no que tange a este aspecto. Provadisto é que, prosseguindo na exposição da teoria, Cezar RobertoBitencourt, após citar Kant e Hegel como “os mais expressivos”defensores desta teoria, passa a enumerar outras tesesretribucionistas da pena, citando Carrara, Binding, Mezger, Welzele Jescheck. Nenhuma palavra é dita sobre Hobbes8.

Ainda que incidentalmente, os adeptos da teoria retributivada pena viam no criminoso um inimigo, um “traidor”. Daímerecer a punição pelo ato praticado.

Hobbes, em “Do Cidadão”, classificava como traidoraquele súdito que se voltava contra o seu soberano ou contra a

7 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit, p. 69/72.8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit, p. 74/75.

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sua cidade, declarando não mais obedecê-lo total ou parcialmente(renegando, por exemplo, seu direito de declarar guerra, importributos, legislar, nomear funcionários públicos e magistrados, etc).Apenas isto já era considerado traição. Considerava, também,traidor o que pegasse em armas contra a cidade, o quedebandasse para o lado inimigo durante a guerra, ou o quecometesse algum ato de violência contra o soberano ou alguémsob suas ordens. Sustentava que a traição era uma violaçãonão das leis civis, mas das leis naturais (aquelas que nasceramcom os homens, declarada por Deus em sua palavra eterna, comoexposto acima). Por conta disto, concluía Hobbes que os traidoresdeveriam ser punidos não pelo direito civil, dos homens, maspelo direito natural, ou seja, pelo direito de guerra, por que eraminimigos das cidades.

Veja-se por suas próprias palavras:

Os rebeldes, traidores e todas as outraspessoas condenadas por traição não sãopunidos pelo direito civil, mas pelo natural:isto é, não como súditos civis, porém comoinimigos ao governo – não pelo direito desoberania e domínio, mas pelo de guerra.9

Séculos depois, percebe-se que o discurso de Hobbes,reforçado pelo dos adeptos do teoria retribucionista da pena, érecuperado por Jakobs, em seu direito penal do inimigo.

Luís Greco, de forma didática, assim sintetiza a teoria deJakobs, em dois momentos distintos:

Em 1985 tentou Jakobs fixar limitesmateriais a “criminalizações no estágioprévio à lesão a bem jurídico” por meio dopar conceitual direito penal do cidadão e

9 HOBBES, THOMAS. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São

Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 233.

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direito penal do inimigo. Para Jakobs, épossível caracterizar o direito penalsegundo a imagem de autor da qual eleparte. O direito penal pode ver no autorum cidadão, isto é, alguém que dispõe deuma esfera privada livre do direito penal,na qual o direito só está autorizado aintervir quando o comportamento do autorrepresentar uma perturbação exterior; oupode o direito penal enxergar no autor uminimigo, isto é, uma fonte de perigo paraos bens a serem protegidos, alguém quenão dispõe de qualquer esfera privada,mas que pode ser responsabilizado atémesmo por seus mais íntimospensamentos. “O direito penal do inimigooptimiza proteção de bens jurídicos, odireito penal do cidadão optimiza esferasde liberdade”. (...) O artigo de 1985 cunha,portanto, o conceito de direito penal doinimigo com propósitos primariamentecríticos (...). O direito penal do inimigo“só se mostra legitimável com um direitopenal de emergência, vigendo em caráterexcepcional, e deve ser tambémvisivelmente segregado do direito penaldo cidadão, para reduzir o perigo decontaminação.Não foram, porém, estas manifestaçõesque acenderam a atual polêmica, e sim osestudos mais recentes, que parecemrelativizar em muito o tom crítico e,segundo a interpretação que se lhescostuma dar, buscam mesmo uma extensalegitimação do direito penal do inimigo.Jakobs repete a antiga exigência de que odireito penal do cidadão e do inimigo sejamvisivelmente separados, pois só assim sepode evitar que o direito penal do inimigopenetre no direito penal do cidadão. Mas

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agora Jakobs sublinha que a distinçãoserve apenas a fins descritivos, e nãocríticos. Em seu estudo mais extenso,realiza Jakobs uma incursão à história dafilosofia política iluminista, de Hobbes atéKant, apresenta diversas fundamentaçõespara um tratamento diferenciado paracidadãos e inimigos, e em seguida formulaa sua própria explicação. A seu ver, normassão, em primeira linha, parâmetros deinterpretação, que fazem do mundo danatureza um mundo de sentido ou decomunicação. É a norma que faz dacausação de uma morte um homicídio, éela que fundamenta a expectativa e aconfiança em que tais fatos não serãocometidos pelos outros, possibilitando,assim, a orientação num mundo complexo,e é ela que faz de um sistema psico-físicouma pessoa, que pode ser autor ou vítimade um delito. Tais atribuições não ocorremno plano da natureza, e sim no dacomunicação, não sendo, portanto,falsificáveis em razão de contingênciasrelativas aos dados naturais ou fáticos –elas vigoram, portanto, também contra anatureza, contra os fatos:contrafaticamente. Mas apesar destaestrita separação entre natureza e sentido,o plano do sentido não é tão independentedo plano da natureza quanto se poderia àprimeira vista imaginar. Por ex., sehomicídios fossem cometidosrepetidamente, em algum momento estariaafetada a confiança na vigência daproibição do homicídio. E o mesmo valepara a personalidade do autor. Pessoa,em Jakobs, é um termo técnico, quedesigna o portador de um papel, isto é,aquele em cujo comportamento conforme

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a norma se confia e se pode confiar. “Umindivíduo que não se deixa coagir a vivernum estado de civilidade, não podereceber as bênçãos do conceito depessoa”. Inimigos são “a rigor não-pessoas”, lidar com eles não passa de“neutralizar uma fonte de perigo, como umanimal selvagem”. Características dodireito penal do inimigo são uma extensaantecipação das proibições penais, sem arespectiva redução da pena cominada, e arestrição das garantias processuais doestado de direito, tal qual é o casoprincipalmente nos âmbitos dadelinqüência sexual e econômica, doterrorismo e da chamada legislação decombate à criminalidade. (...) “Quem nãogarante de modo suficientemente seguroque se comportará como pessoa, não sónão pode esperar ser tratado comopessoa, tampouco tendo o estado o direitode trata-lo como pessoa, pois doutromodo estaria violando o direito àsegurança das outras pessoas”.10

O traidor de Hobbes, é, sem dúvida alguma, o inimigo deJakobs. Aliás, o inimigo de Jakobs é até mais do que o traidor deHobbes. Este, pelo menos, fecha mais o conceito de traidor –aquele que se volta contra o soberano (por palavras, comorenegando sua autoridade total ou parcialmente, ou por ações,como praticando alguma violência contra ele ou quem executasuas ordens) ou a cidade (pegando em armas ou se debandandopara o lado do inimigo em caso de guerra). Já Jakobs deixa o

10 GRECO, Luís. Sobre o Chamado Direito Penal do Inimigo. Artigo publicadona Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56. São Paulo: editora Revista dos

Tribunais, 2005, p. 81/87.

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conceito de inimigo aberto a interpretação de quem seriam as“não-pessoas”, ou seja, aquelas incapazes de inspiraremconfiança acerca de se deixarem “coagir a viver num estado decivilidade”, aquelas “fontes de perigo” que precisam ser“neutralizadas”. Hobbes definia o traidor a partir do crime(“pecado”) que cometia; Jakobs define o inimigo a partir de simesmo, num conceito jurídico indeterminado e sujeito, portanto,a variáveis interpretativas, como as próprias expressões“criminalidade organizada” e “terrorismo”, comumente usadaspara apontar quem são estes inimigos, sugerem. O grau deindeterminação de Jakobs não se limita apenas à configuraçãode quem seja o inimigo, no que, por si só, já supera o traidor deHobbes; mas prossegue nas conseqüências a que estão sujeitasessas “não-pessoas”, que podem ir desde as restrições a garantiasprocessuais, até a legitimação das prisões de Guantánamo11.

Ao negar ao inimigo as “bênçãos” de cidadão, Jakobs osubtrai da proteção e das garantias do estado de direito, tal comofaz Hobbes ao negar ao traidor a punição segundo as leis civis(das cidades) e lhe impor a punição segundo o direito natural (deguerra).

Este parece ser o discurso da atualidade, compatível comum novo modelo de Estado que tem se desenhado a partir doEstado Social, que é o Estado de Segurança. Esta nova propostade Estado tem ganhado força ultimamente, principalmente a partirdo crescimento da denominada criminalidade organizada, dotráfico de entorpecentes e do terrorismo. Não é difícil deenxergar a influência e a estreita ligação que há entre DireitoPenal e os novos desafios do Estado contemporâneo, a partir damudança de perfil do Estado, cuja tônica deixou de ser apromoção de novos direitos, para novos grupos sociais, e passou,paradoxalmente, a ser a restrição de direitos individuais:

11 Como observa Luís Greco no artigo citado.

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Un tercer elemento del Estado deseguridad consiste en que se construyeen tensión con los derechos y libertadesde los individuos. Las manifestacionesmás evidentes de los objetivos de laseguridad se han mostrado en laelaboración de un legislación restrictivade derechos. Si bien el Estado protectorhasta la fecha se ha construido a partir dela lucha y conquista de nuevos derechospara nuevos sectores sociales, se halogrado a partir de la extensión yprofundización en el reconocimientouniversal de los derechos, en la nuevarealidad de Estado de seguridad se invierteesta trayectoria para justificar una politicarestrictiva de los derechos y libertades delos individuos. ¿Quiénes ven restringidoes estatuto universal de derechos? Losextranjeros, los inmigrantes, los“peligrosos” cualquiera que sea sunacionalidad. El peligro puede venir decualquier lado. Las nuevas politicas deseguridad se dirigen “peligrosamente”hacia el supuesto enemigo interior. Lorelevante de todo ello es que la tensiónseguridad-libertad parece oscilar el primerpolo y que, con ello, se justifica larestricción de derechos de los sujeitos endetrimento de la historia institucional ycultural de las sociedades occidentales.12

12 PISÓN, José Martínez de. Las Transformaciones del Estado: del EstadoProtector al Estado de Seguridad. Artigo publicado no livro La Tensión EntreLibertad y Seguridad. Una aproximación socio-jurídica, coordenado porBENEITEZ, Maria José Bernuz, e CEPEDA, Ana Isabel Pérez, Colección Jurídica,

nº 22, da Universidade de La Rioja, 2006.

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3. Os Princípios da Legalidade e da Anterioridade

Em “Do Cidadão”, Hobbes parece apresentar um ensaiodo que seria o princípio da legalidade, ao afirmar:

O roubo, o assassínio e todas as injúriassão proibidos pela lei de natureza; mas oque há de se chamar roubo, o que éassassínio, adultério ou injúria a umcidadão não se determinará pela lei natural,porém pela civil. Pois roubar não é tirar deoutra pessoa qualquer coisa que elapossui, mas apenas o tirar-lhe os bens;ora, o que é nosso e o que é dele competeà lei civil dizer. Da mesma forma, oassassinato não é qualquer homicídio, masapenas aquele que a lei civil proíbe; nemtoda união carnal com uma mulher constituiadultério, apenas a que está proibida nalei civil.13

No “Leviatã”, Hobbes retoma o assunto. Ao diferenciarcrime de pecado, Hobbes afirma que “um crime é um pecadoque consiste em cometer (por atos ou palavras) algo que a leiproíbe, ou em omitir-se de algo que ela ordena”. E prossegueafirmando que “onde acaba a lei civil acaba também o crime,pois na ausência de qualquer lei que não seja a lei de naturezadeixa de haver lugar para a acusação”14.

Também no “Leviatã”, Hobbes avança, rumo ao princípioda anterioridade da lei penal, a afirmar que:

Nenhuma lei feita depois de praticado umato pode transformar este num crime, pois

13 HOBBES, Thomas. Op. cit, p. 112.14 HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz

Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 247/248.

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se o ato for contrário à lei de natureza a leiexiste antes do ato, e uma lei positiva nãopode ser conhecida antes de ser feita,portanto não pode ser obrigatória. Mas,quando a lei que proíbe o ato é feita antes deeste ser praticado, quem praticou o ato estásujeito à pena estabelecida posteriormente,caso já não seja conhecida uma pena menor,por escrito ou pelo exemplo, pela razãoimediatamente antes apresentada.15

Se não com tanta clareza no tocante à anterioridade dapena, ao menos no tocante à anterioridade do crime a lição deHobbes é clara.

Os princípios da legalidade e da anterioridade da lei penalsão, hoje, dogmas do Direito Penal, constando, no caso do Brasil,de cláusula pétrea, insculpida no art. 5o, XXXIX, da ConstituiçãoFederal vigente – “não há crime sem lei anterior que o defina,nem pena sem prévia cominação legal”.

Sobre os princípios, assim se pronuncia Francisco de AssisToledo, dando os créditos somente a Feuerbach peloaprimoramento das idéias de Hobbes:

O princípio da legalidade, segundo o qualnenhum fato pode ser considerado crimee nenhuma pena criminal pode seraplicada, sem que antes desse mesmo fatotenham sido instituídos por lei o tipodelitivo e a pena respectiva, constitui umareal limitação ao poder estatal de interferirna esfera das liberdades individuais. Daísua inclusão na Constituição (...). Oprincípio da legalidade costuma serenunciado por meio da expressão latinanullum crimen, nulla poena sine lege, esta

15 HOBBES, Thomas. Op. cit. p. 250.

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última construída por Feuerbach, nocomeço do século XIX.16

Não se pode afirmar ter sido Hobbes o criador do princípio,em sua dimensão inicial (relativamente ao crime). Aliás,Magalhães Noronha aponta sua origem na Magna Carta, impostapela nobreza ao Rei João Sem Terra:

Aponta-se como sua origem a MagnaCarta do Rei João, em 1215. Asúa, porém,reivindica para o direito ibérico aprioridade, dizendo que já em 1188, nascortes de Leão, pela voz de Afonso IX, seconcedida ao súdito o direito de não serperturbado em sua pessoa ou bens, “antesde llamado por cartas a mi curia para estara derecho, según lo que ordenare mi cúria(...)”. Não se pode negar, todavia, ainfluência de haver também sidoproclamada, na Inglaterra, naquela Carta,a regra de ninguém seria julgado a não ser“por seus pares e pela lei da terra”.17

Todavia, não se justifica o silêncio, por parte da doutrinapenal, do acolhimento de tal princípio por Hobbes em sua obra,ao menos no tocante à primeira de sua angulação, qual seja, ocrime. Sim porque, tocante à pena, Hobbes admitia punição aotalante do Soberano, a não ser que a Lei contivesse previsãoespecífica acerca dela ou ela fosse comumente aplicada a casossemelhantes18.

17 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 1, p.69.18 “A ignorância da pena, quando a lei é declarada, não é desculpa para ninguém.Pois quem infringir uma lei, a quem sem o medo de uma pena disso resultante nãoseria uma lei, mas palavras vãs, estará submetido à pena, mesmo que não saibaqual é, porque quem pratica voluntariamente uma ação aceita todas asconseqüências conhecidas dessa ação. Ora, em qualquer república, a punição é

16 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo:Saraiva, 1987, p. 21.

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4. O Iter Criminis. A Punição pela tentativa. OsCrimes Comissivos e Omissivos

Na sua definição de crime e pecado, Hobbes apresentaum extraordinário esboço do que, mais tarde, seria conhecidocomo iter criminis. Sabe-se que todo o crime tem um itinerário,um caminho a ser percorrido. A fixação desse caminho ou,melhor dizendo, dos momentos temporais do crime, desde suacogitação até sua consumação, serve para estabelecer o marcoatravés do qual instalar-se-á a perspectiva da punição penal.

Assim, num primeiro momento nasce na mente do indivíduoa idéia sobre a prática da infração penal, que se denomina cogitaçãoou, em latim, cogitatio. A partir daí cerca-se ele dos meios materiaisde que necessita para pôr em prática suas idéias, passando paraos atos preparatórios ou conatus remotus. Segue-se a etapa emque o indivíduo exterioriza no mundo dos fenômenos tais idéias,colocando-as efetivamente em prática e adotando a ação ouomissão aptas a produzir o resultado pretendido, assumido ou nãoevitado, denominada execução ou conatus proximus. Porderradeiro, na hipótese de não sobrevir circunstância alheia àvontade do agente que a impeça, segue-se a produção do resultado,denominada consumação ou meta optata.

Ao Direito Penal são estranhas a cogitação e os atospreparatórios, só passando a infração penal a ser passível depunição a partir do momento em que inicia-se a execução19.

19 Ao contrário do que alguns professores de Direito Penal ensinam (o próprioMagalhães Noronha: vide, na obra citada anteriormente, p. 125: “há casos emque se observa já constituir delito o desígnio ou propósito de vir a cometê-lo,como sucede com ... o bando ou quadrilha ... e ainda outros, em que há o propósitodelituoso, ou a intenção revelada de vir a praticá-lo. A impaciência do legislador,então, antecipa-se e não espera que ele se verifique, punindo, em última análise,

uma conseqüência conhecida da violação das leis, e se essa punição já estiverdeterminada pela lei é a ela que se está submetido, caso contrário se está sujeitoa uma punição arbitrária. Pois manda a razão que quem pratica dano, sem outralimitação a não ser a da sua própria vontade, sofra punição sem outra limitaçãoa não ser a vontade daquele cuja lei foi violada. Mas quando a pena está associadaao crime na própria lei, ou quando ela costuma ser aplicada em casos semelhantes,o delinqüente fica desculpado de uma pena maior.” (HOBBES, Thomas. Op. cit,p. 249).

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Hobbes afirma isto, com singeleza, a partir das reflexõesabaixo transcritas:

Um pecado não é apenas umatransgressão da lei, é também qualquermanifestação de desprezo pelo legislador.Porque um tal desprezo é uma violação detodas as leis ao mesmo tempo. Podeportanto consistir, além da perpetração deum ato, ou do pronunciar de palavrasproibidas pela lei, ou da omissão do que alei ordena, também na intenção oupropósito de transgredir. (...) Um crime éum pecado que consiste em cometer (poratos ou palavras) algo que a lei proíbe, ouem omitir-se de algo que ela ordena. Assim,todo crime é um pecado, mas nem todopecado é crime. A intenção de roubar oumatar é um pecado, mesmo que nunca semanifeste em palavras ou atos, porqueDeus, que vê os pensamentos doshomens, pode culpá-los por eles. Masantes de aparecer por meio de algumacoisa feita ou dita, em que um juiz humanopossa descobrir a intenção, não se podefalar em crime (...). Ora, não há lugar paraacusação humana de intenções que nuncase tornam visíveis em ações exteriores.

a intenção, o projeto delituoso”), nem mesmo no crime de quadrilha ou bando hápunição nos atos preparatórios. Este equívoco parte da não percepção de que ocrime de quadrilha ou bando também tem o seu iter criminis, correndo paralelamenteao iter criminis das infrações penais para cuja prática o bando se reúne, sendo queo iter da quadrilha ou bando atinge o seu momento consumativo, por coincidência,por ocasião dos atos preparatórios – do planejamento – de tais outras infraçõespenais. O equívoco não se justifica, porquanto é lição preliminar de DireitoPenal que cada crime tem o seu iter criminis e o crime de quadrilha ou bando éabsolutamente autônomo e independente em relação aos crimes pretendidos pelaassociação.

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A singeleza de Hobbes está em sua justificativa para anão punição do pecado, quer dizer, das intenções que não seexteriorizam. Isto não seria possível, segundo ele, pelo fato deao juiz humano simplesmente não ser dado conhecer opensamento. Daí é que o pensamento precisaria se exteriorizar,a fim de que o crime – todo crime era um pecado, segundo ele –pudesse ser conhecido do juiz humano e, daí, pudesse ser punido.O que ficasse apenas no terreno dos pensamentos não seriacrime, mas somente pecado, porque conhecido somente pelopecador e por Deus. Hobbes parece propor uma separaçãoentre o Direito e a Moral.

Por evidente, o fundamento atual da não punição dos atospreparatórios e da cogitação de um crime é outro, e repousa norisco efetivo a que o bem jurídico fora ou não submetido emvirtude da ação do agente. Enquanto não iniciada a execuçãodo delito a que se propõe o agente, entende-se não haver riscosuficiente ao bem jurídico tutelado que justifique a intervençãopenal. Assim explicita Luigi Ferrajoli:

O segundo requisito substancial, nãomenos importante do que a lesividade,exigido pelo nosso sistema SG dejustificação do “quando” e do “que”proibir, encontra sua expressão noprincípio da materialidade, enunciado noaxioma A5, nulla iniuria sine actione, bemcomo nas teses de que dele derivam: nullapoena, nullum crimen, nulla lex poenalis,nulla necessitas sine actione. De acordocom este princípio, nenhum dano, pormais grave que seja, pode-se estimarpenalmente relevante, senão como efeitode uma ação. Em conseqüência, os delitos,como pressupostos da pena, não podemconsistir em atitudes ou estados de ânimointeriores, nem sequer, genericamente, emfatos, senão que devem se concretizar emações humanas – materiais, físicas ou

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externas, quer dizer, empiricamenteobserváveis – passivas de seremdescritas, enquanto tais, pela lei penal. (...)Somente a ação externa está em condiçõesde produzir uma modificação do mundoexterior qualificável de lesão.”20

A grande dificuldade se mostra, exatamente, em identificara conduta do agente e classificá-la nos atos preparatórios ou noinício da execução do delito. A barreira entre os atospreparatórios e executórios é uma das linhas mais tênues doDireito Penal, sendo a doutrina rica de discussões e teorias. Aquestão crucial, para se avaliar o risco efetivo corrido pelo bemjurídico protegido e legitimar a punição penal, consiste emdeterminar se os atos externados pelo agente foram dotados deidoneidade para a produção do resultado e permitem aferir ainequivocidade de sua intenção em com eles alcançá-lo.Sintetizando as discussões, assim se expressa Júlio FabbriniMirabete:

A distinção entre atos preparatórios –usualmente impunes – e atos de tentativa– observam Zaffaroni e Pierangelli – é umdos problemas mais árduos da dogmáticae, seguramente, o mais difícil da tentativa.Vários critérios são propostos para adiferenciação, considerando-se como atospreparatórios os distantes daconsumação e atos de execução como ospróximos desta; os primeiros não seriamperigosos em si, enquanto os atosexecutórios colocam em risco o bemjurídico; os atos preparatórios seriamequívocos e os de execução inequívocos

20 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Tradução deAna Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. SãoPaulo: editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 384.

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etc. Nenhum desses critérios, contudo, édefinitivo, podendo apenas auxiliar adistinção em casos concretos. Os critériosmais aceitos são os do ataque ao bemjurídico, critério material, quando severifica se houve perigo ao bem jurídico,e do início da realização do tipo, critérioformal, em que se dá pelo reconhecimentoda execução quando se inicia a realizaçãoda conduta núcleo do tipo: matar, ofender,subtrair etc.21

Superada a dificuldade de diagnóstico da cronologia daconduta e verificada a não produção do resultado porcircunstâncias alheias à vontade do agente, ter-se-á a tentativado delito, a desafiar a punição do autor. Sobre a tentativa, ensinaJohannes Wessels:

Por tentativa designa-se a manifestaçãoda resolução para o cometimento de umfato punível através de ações que se põemem relação direta para com a realização dotipo legal, mas que não tenham conduzidoà sua consumação. Característico natentativa é um defeito no tipo de injustoobjetivo, com total preenchimento dospressupostos do tipo subjetivo. Trêselementos essenciais devem, pois, seapresentar: uma determinada resoluçãopara o fato, um postar-se em atividadedireta para a realização do tipo e a ausênciade consumação do fato.22

21 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2000,v. 1, p. 157.22 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Tradução de Juarez Tavares.Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1976, p. 133.

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E tal punição deve observar a devida proporção entre opar conceitual desvalor da ação e desvalor do resultado. UmDireito Penal que concentrasse seu juízo de reprovaçãoexclusivamente no desvalor da ação, não distinguiria, em termosde punição, entre o crime consumado e sua tentativa. E umDireito Penal que concentrasse seu juízo de reprovaçãoexclusivamente no desvalor do resultado, não distinguiria, parafins de punição, os crimes dolosos dos culposos, por não levarem conta a intenção do agente enquanto realizadora do tiposubjetivo. Vale menção a lição de Paulo José da Costa Júnior:

Num sistema penal subjetivo, nega-sequalquer diferença entre o crime tentadoe o consumado. Em face da ênfase que sedá ao elemento intencional, pouco importaque o evento não se tenha verificado. Apunição será a mesma (...). É oposicionamento adotado pelospositivistas, que partem de um direito penalda periculosidade, bem como dosseguidores do Willensstrafrecht (direitopenal da vontade), principalmente naAlemanha nazista. (...) Ao revés, numsistema penal objetivo, alicerçado na lesãoefetiva do bem tutelado pela norma, atentativa poderá até mesmo ficar isenta depena (Erfolgsstrafrecht). Sistemas penaismistos, como o nosso, adotam para oconatus uma solução intermediária: pune-se a tentativa, de forma abrandada...23

A punição da tentativa com a redução de um terço a doisterços da pena do crime consumado, na proporção inversa doiter criminis percorrido24, foi a forma encontrada para

23 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. São Paulo:Saraiva, 1987, v. 1, p. 149/150.24 Segundo orientação pacífica na doutrina e jurisprudência pátrias.

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compatibilizar os desvalores da ação e do resultado, os sistemaspenais subjetivo e objetivo, observando uma proporcionalidadeentre o binômio ação-resultado e a respectiva punição.

Em tempos de sociedades de risco, é crescente apreocupação quanto ao rompimento do até então dogma da nãopunição usual dos atos preparatórios e da cogitação, e da puniçãoabrandada da tentativa em relação ao crime consumado, mercêdo chamado direito penal do inimigo, objeto de estudo no item 1deste trabalho. Relembrando, agora nas palavras de Jesús-MaríaSilva Sánchez:

As características do Direito Penal deinimigos seriam, então, sempre segundoJakobs, a ampla antecipação da proteçãopenal, isto é, a mudança de perspectivado fato passado a um porvir; a ausênciade uma redução da penacorrespondente a tal antecipação; atransposição da legislação jurídico-penalà legislação de combate; e o solapamentodas garantias processuais.25

Vê-se, portanto, uma tendência de retorno ao direito penaldo autor, com a punição inflexível de seus mais íntimos pensamentos,fulcrada no desvalor da ação, na periculosidade do delinqüente e nanecessidade de garantir a segurança dos demais cidadãos, numaespécie de retorno ao estado de natureza de Hobbes.

E, voltando a falar em Hobbes, ao definir o crime comosendo “um pecado que consiste em cometer (...) algo que a leiproíbe, ou em omitir-se de algo que ela ordena”26, estava eleenxergando os crimes comissivos e omissivos, cuja denominaçãoé auto-explicativa, na própria lição hobbesiana.

25 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal. Aspectos daPolítica Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. Tradução de Luiz Otávio deOliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 149.26 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 247.

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5. As “Desculpas” e “Atenuantes” de Hobbes

Embora sem a devida clareza conceitual, o que só se iriaalcançar mais tarde, as reflexões de Hobbes, no “Leviatã”, acercadas “desculpas” e “atenuantes”, lançam sementes férteis para odesenvolvimento de uma teoria do erro, coação irresistível, tipossimples, qualificados e privilegiados, circunstâncias atenuantese agravantes, e até legítima defesa e estado de necessidade.

5.1 A Teoria do Erro

Não se pode dizer exatamente que Hobbes tenhaconstruído uma teoria do erro. No entanto, algumas de suasreflexões levam a identificar uma pequena semente lançada aeste respeito no “Leviatã”. Hobbes afirma que:

A ignorância da lei de natureza não podeser desculpa para ninguém, pois devesupor-se que todo o homem capaz de usara razão sabe que não deve fazer aos outroso que jamais faria a si mesmo. (...) Mas aignorância da lei civil serve de desculpa aquem se encontrar num país estranho, atéque ela lhe seja declarada, pois até essemomento nenhuma lei civil é obrigatória.(...) A falta de meios para conhecer a leidesculpa totalmente, porque a lei da qualnão há meios para adquirir informação nãoé obrigatória. Mas a falta de diligênciapara se informar não pode ser consideradacomo falta de meios, e ninguém quepretenda possuir razão suficiente paradirigir os seus próprios assuntos pode serconsiderado como carente de meios paraconhecer as leis da natureza, pois estassão conhecidas através da razão que elepretende possuir. Só as crianças e os

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loucos estão desculpados de qualquerofensa à lei natural.27

Ao não permitir qualquer justificativa (“desculpa”) paraas violações da lei da natureza, Hobbes parece antever asfórmulas “o desconhecimento da lei é inescusável”28 e “ninguémse escusa de cumprir a lei, alegando que a não a conhece”29. Origor de Hobbes em relação àquele que viola as leis da natureza,que hoje seria destinatário das fórmulas acima explicitadas, éabrandado em relação àquele que viola as leis civis, quando nãopossuía meios de alcançar o seu conteúdo. Neste ponto, Hobbesparece antever a figura do erro de proibição, disciplinada no art.21 do vigente Código Penal, a partir da idéia da potencialconsciência da ilicitude30, presente na denominada “teorianormativa pura da culpabilidade”, também chamada de “teoriaextrema” ou “teoria estrita da culpabilidade”, relacionada à teoriafinalista da ação.

Sobre tais teorias, expõe Damásio de Jesus:

Retira o dolo da culpabilidade e o colocano tipo penal. Exclui do dolo a consciênciada ilicitude e a coloca na culpabilidade. (...)Então, resta à culpabilidade o juízo devaloração (elemento normativo). Assim, aculpabilidade é um juízo de valor que incidesobre um tipo psicológico que existe ou falta.No tipo doloso, a ação é censurável pelavontade de cometer o fato; no culposo, aconduta é reprovável porque o sujeito nãoevitou o fato por meio de um comportamento

27 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 248/249 e 255.28 BRASIL, Código Penal, art. 21, primeira parte.29 BRASIL, Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657/42), art. 3o.30 BRASIL, Código Penal, art. 21: “O desconhecimento da lei é inescusável. Oerro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderádiminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável oerro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quandolhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”

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regido de maneira finalista. (...) No juízo deculpabilidade a valoração é feita da seguinteforma: o sujeito devia agir de acordo com anorma porque podia atuar de acordo comela. No juízo de ilicitude, a situação valorativaé a seguinte: o sujeito agiu em desacordocom a norma, deixando aberta a questão:podia ter agido de forma diferente? Como avontade da conduta é um fator puramentepsicológico, e como essa vontade, de acordocom o finalismo, corresponde ao dolo, trata-se de um dolo natural, despido de valornormativo, isto é, despido da consciênciada antijuridicidade. Tendo em vista que aconsciência da antijuridicidade é excluída dodolo, integrando a culpabilidade, e como estaconstitui puro juízo de valor, segue-se que oconhecimento do injusto deve ter a mesmanatureza daquela. Cuida-se de potencialconsciência da ilicitude, não real e atual. Ésuficiente que o sujeito tenha a possibilidadede conhecer a ilicitude da conduta, não seexigindo que possua real conhecimentoprofano do injusto.31

Desde modo, não socorrerá ao delinqüente a alegação deque não conhecia a lei, tal como não socorreria àquele violadordas leis da natureza no pensamento de Hobbes, aplicando-se odogma ignorantia legis neminem excusat. Todavia, se escusável(inevitável), o erro quanto à ilicitude do fato praticado isentará odelinqüente de pena, se a ele não foram dadas condições de atingir,potencialmente, a consciência de tal ilicitude, ou seja, ante aimpossibilidade do sujeito conhecer a regra de proibição.

31 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 1,

p. 460/461.

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5.2 Coação Irresistível

Hobbes afirmava que:

Ainda que de forma não muito clara e em aparente confusão como estado de necessidade, adiante delineado, Hobbes parece ter esboçadoa idéia de coação irresistível, hoje prevista no art. 22 do Código Penal33.

5.3 Legítima Defesa

Ao falar do medo como a paixão que menos leva o homema cometer crime, mas, ao revés, o dissuade de tal idéia (referindo-se ao medo do castigo), Hobbes ensaia reflexões sobre a legítimadefesa. O medo do sofrimento corporal, a que Hobbes denomina“medo físico”, justifica as ações que produz. Ao exemplificareste medo de que está falando, Hobbes formula uma hipóteseinteiramente pertinente à figura da legítima defesa, prevista noart. 25 do vigente Código Penal34:

32 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 255.33 BRASIL, Código Penal, art. 22: “se o fato é cometido sob coação irresistível ouem estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico,só é punível o autor da coação ou da ordem”.34 BRASIL, Código Penal, art. 25: “entende-se em legítima defesa quem, usandomoderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente,a direito seu ou de outrem”.

Quando um homem se encontra emcativeiro, ou em poder do inimigo (e encontra-se em poder do inimigo quando a sua pessoaou os seus meios de vida assim se encontram),se não for por sua própria culpa, cessa aobrigação da lei. Porque é preciso queobedeça ao inimigo para não morrer, e emconseqüência disso tal obediência não écrime; porque ninguém é obrigado (quandofalta a proteção da lei) a deixar de se proteger,da maneira que puder.32

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E, em seguida, formula outra hipótese, fora dos parâmetroslegais mencionados, afirmando, já àquela época, que o crimeestaria presente, não ficando excluído:

Percebe claramente Hobbes que falta, nesta últimahipótese, o requisito, hoje explicitado na norma legal permissiva,da atualidade ou da iminência para justificar a ação dodelinqüente. E não é só. Prosseguindo, Hobbes formula outrahipótese em que nega a legítima defesa a partir da ausência dorequisito da proporcionalidade entre o bem jurídico atingido e aofensa irrogada, afirmando subsistir o crime:

35 HOBBES, Thomas. Op. cit. p. 253.36 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

Um homem é atacado, teme uma morteimediata, e não vê maneira de escaparsenão ferindo quem o ataca; logo, se oferir de morte não há crime. Porque não sesupõe que ninguém, ao criar umarepública, haja renunciado à defesa da suavida e dos seus membros, quando não hátempo para a lei vir em seu auxílio”35

Mas, matar um homem porque, por seusatos ou ameaças, posso concluir que eleme matará quando puder, é um crime(considerando... que disponho de tempoe de meios para pedir proteção ao podersoberano...)36.

Além disso, se alguém sofre palavrasdesagradáveis, ou algumas pequenasinjúrias (...) e tem medo, caso não sevingue, de se tornar objeto de desprezo,(...) protegendo-se a sim mesmo para o

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Enxerga Hobbes, neste último caso, a ausência dosrequisitos da moderação e do uso dos meios necessários à repulsada agressão, recomendando o que hoje a doutrina chama decommodus discessus38.

5.4 Estado de Necessidade

Do mesmo modo, Hobbes ensaiou uma reflexão sobre oestado de necessidade, ao ensinar que:

Se alguém for obrigado, pelo terror de umamorte iminente, a praticar um ato contrário àlei, fica inteiramente desculpado, porquenenhuma lei pode obrigar um homem arenunciar à sua própria preservação. (...)Quando alguém se encontra privado doalimento e de outras coisas necessárias àsua vida, e só é capaz de se preservar pormeio de um ato contrário à lei, como obterpela força ou pelo roubo, durante uma grandefome, o alimento que não consegue comdinheiro ou caridade, ou em defesa da própriavida arrancar a espada das mãos de outrem,

37 HOBBES, Thomas. Loc. cit.38 “Diante da agressão injusta, não se exige a fuga. No sentido do texto (...). Conformeas circunstâncias, entretanto, é conveniente o commodus discessus, que constitui, notema da legítima defesa, o cômodo e prudente afastamento do local, distinguindo-se dafuga...” (JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva,1997, p. 90/91.)

futuro pelo terror de sua vingança privada,neste caso trata-se de crime. Porque oprejuízo não é corpóreo, e sim imaginário,e (...) tão insignificante que um homemcorajoso, e seguro da sua própriacoragem, não pode levá-lo a sério37.

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nesses casos o crime é totalmentedesculpado, pela razão acima apresentada.39

Suas idéias preenchem a definição legal da excludente deantijuridicidade, prevista no art. 24 do Código Penal.40 : a situaçãode perigo atual é representada pelo “terror da morte iminente” epelo estado de “grande fome”; a não causação deste perigo e aimpossibilidade de evitá-lo por outro modo são representadaspela incapacidade de se preservar senão “por meio de um atocontrário à lei, como obter pela força ou pelo roubo”; e a nãorazoabilidade de exigir-se, pelas circunstâncias, o sacrifício dodireito é representada pela afirmação de que “nenhuma lei podeobrigar um homem a renunciar à sua própria preservação”.

5.5 Tipos Simples, Qualificados e Privilegiados.Atenuantes e Agravantes

Hobbes enxergava diversas modalidades de cometimentode um delito, a merecer tratamento diferenciado, ora mais severo,ora mais brando. Naturalmente que sem o rigor técnico dedeterminar quando essas diferenças deveriam ditar a formulaçãode tipos simples, formas privilegiadas e qualificadas do tipo, oumeras circunstâncias atenuantes ou agravantes genéricas, o que,aliás, nem se pode afirmar já se ter alcançado tamanho rigortécnico nos dias atuais, certo é que já havia em Hobbes a noçãode que a reprovabilidade do crime poderia variar conforme suamotivação ou circunstâncias de sua execução.

Hobbes partia da origem do crime, para determinar o graude sua reprovabilidade. Afirmava ele, em premissa:

39 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 255/256.40 BRASIL, Código Penal, art. 24: “Considera-se em estado de necessidadequem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou porsua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio,cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”

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A fonte de todo crime é algum defeito doentendimento, ou algum erro de raciocínio,ou alguma brusca força das paixões. Odefeito de entendimento é ignorância, e ode raciocínio é opinião errônea. Alémdisso, a ignorância pode ser de trêsespécies: da lei, do soberano e da pena.41

Dizia ele que alguns crimes eram motivados pela crença,por parte dos ricos, de poderem escapar de seu castigo, “mediantea corrupção da justiça pública ou a obtenção do perdão em trocade dinheiro ou outras recompensas”42. E também pelo tráfico deinfluência:

Nada mais atual! E pela vontade deliberada de enganaros menos inteligentes, por parte daqueles que superestimavamsua própria sabedoria, “imaginando que os seus desígnios sãodemasiado sutis para serem percebidos”44. Noutro enfoque,Hobbes via na causa do crime paixões como a ira, o ódio, aconcupiscência, a ambição e a cobiça:

44 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

41 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 248.42 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 251.43 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 252.

Os que têm multidões de parentespoderosos, assim como os homenspopulares, que adquiriram boa reputaçãojunto à multidão, adquirem coragem paraviolar as leis devido à esperança dedominar o poder ao qual compete mandá-las executar43.

É tão óbvio quais são os crimes capazesde produzir, para a experiência e o

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Partindo desta premissa, Hobbes constatava que:

As “desculpas” mencionadas por Hobbes eram o que hojeconhecemos com causas que excluem o crime ou isentam o réude pena (excludentes da antijuridicidade ou da culpabilidade). Comodemonstrado acima, Hobbes tocou claramente, nas reflexões quefez, em institutos como a legítima defesa, estado de necessidade,

45 HOBBES, Thomas. Loc. cit.46 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 254/255.

entendimento de qualquer um, que nada épreciso dizer sobre eles, a não ser que sãodoenças tão inerentes à natureza, tantodo homem como de todas as outrascriaturas vivas, que os seus efeitos sópodem ser evitados por um extraordináriouso da razão ou por uma constanteseveridade no seu castigo45.

Nem todos os crimes são da mesmalinhagem, ao contrário do que pretendiamos antigos estóicos. Não apenas há lugarpara as desculpas, mediante as quais seprova não ser crime aquilo que parecia sê-lo, mas também para as atenuantes, medianteas quais um crime que parecia grande setorna menor. Pois, embora todos os crimesmereçam igualmente o nome de injustiça, talcomo todo o desvio de uma linha reta implicaigual sinuosidade, conforme acertadamenteobservaram os estóicos, não se segue daíque todos os crimes sejam igualmenteinjustos, tal como nem todas as linhas tortassão igualmente tortas. Por deixarem deobservar isto, os estóicos consideravamcrimes igualmente graves matar uma galinha,contra a lei, e matar o próprio pai.46

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coação irresistível e obediência hierárquica. As “atenuantes” quemenciona, sem rigor técnico se compararmos com o conceito queatualmente se tem de circunstância atenuante, queriam designaras diversas expressões dos tipos penais como hoje se mostram,em suas formas simples, qualificadas e privilegiadas, ou mesmoas circunstâncias atenuantes genéricas hoje arroladas na legislaçãopenal47. Isto nada mais é do que um rascunho do princípio daproporcionalidade, aplicado ao direito penal na formulação dadescrição típica dos crimes e conseqüente distribuição de suaspenas, o que talvez seja o maior desafio do penalista moderno:encontrar harmonia no sistema de crimes e penas, distribuindo asrespectivas sanções penais de forma proporcional às ofensas aosbens jurídicos tutelados, o que é uma utopia, posto que, mesmoque se consiga, num determinado momento, chegar-se a tal requintede perfeição da lei penal, pouco tempo neste estágio duraria, jáque a lei penal é sempre uma obra inacabada, novos tipos penaissurgirão, com novas penas, necessitando o sistema, para se manterproporcional, de uma reformulação completa de todo ele48. Talpreocupação, em Hobbes, se mostra evidente, quando cita osestóicos e faz lembrar uma passagem de Drácon49.

Dizia Hobbes:

47 Vide arts. 65 e 66 do Código Penal.48 Com o perdão do pleonasmo, usado propositadamente para enfatizaro problema!49 Legislador grego (Atenas, século VII a.C.) que promulgou certo códigoem que estatuiu pena de morte para todos os crimes. Indagada a razãopela qual sempre previa a pena de morte, de um pequeno furto ao maisterrível dos homicídios, respondeu: “creio que um furto mereça a mortee não encontrei nada mais grave do que a pena de morte para ohomicídio. Assim, estou satisfeito que se aplique apenas a pena demorte para os homicidas!” Drácon passou para a História e seu nome,até hoje, é sinônimo de rigor inflexível.

Os graus do crime distribuem-se em váriasescalas, e são medidos, em primeiro lugar,

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Deste modo, advogava que eram mais graves os crimesoriundos da crença da impunidade, seja pela “presunção de força,riqueza e amigos capazes de resistir aos que devem executar alei”51, eram também mais graves os crimes premeditados (aocontrário daqueles impelidos por súbita paixão)52, bem comoaqueles em que era plena a consciência da ilicitude (“um crimeque sabemos sê-lo é maior do que o mesmo crime baseado numafalsa persuasão de que o ato é lícito”53). Quanto a este últimoenfoque, até hoje é reduzida a pena de quem incorre em erro deproibição evitável54.

De outra banda, Hobbes afirmava que mereciam puniçãomais severa os crimes que eram constantemente punidos, ao passoem que aqueles que não o eram, não mereciam punição severa:

50 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 257.51 HOBBES, Thomas. Loc. cit.52 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 258.53 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 257.54 Vide o já mencionado art. 21 do Código Penal.55 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 258.

O mesmo ato, se tiver sidoconstantemente punido em outros casos, éum crime maior do que se houver muitosexemplos precedentes de impunidade.Porque esses exemplos são outras tantasesperanças de impunidade, dadas pelopróprio soberano. E quem dá a um homemtal esperança e presunção de perdão,animando-o a cometer a ofensa, tem a suaparte nesta última, portanto não é razoávelque atribua a culpa inteira ao ofensor55.

pela malignidade da fonte ou causa; emsegundo lugar, pelo contágio do exemplo;em terceiro lugar, pelo prejuízo do erário; eem quarto lugar pela concorrência de tem-pos, lugares e pessoas.50

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Era o “contágio do exemplo”, que professava:

Hobbes parecia sustentar a existência de uma espécie deco-culpabilidade, não no sentido que se tem defendido hoje – co-culpabilidade como atenuante na reprovação das infrações penaisem virtude das condições de exclusão ou desigualdade social dodelinqüente, co-responsabilizando o Estado pela prática da infraçãopenal e, como medida compensatória, punindo menos severamenteo agente57 – e, sim, no sentido de responsabilizar o soberano pelofato de não punir adequadamente crimes precedentes da mesmanatureza, o que geraria no delinqüente o estímulo à sua prática,

56 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 259.57 Neste sentido, a lição de Adriano Gouveia Lima, citando Zaffaroni:“Considera-se co-culpabilidade ou culpabilidade delinqüencialatenuada o fato de, o delinqüente, analisado em seu contexto social demaneira conglobante, não ser o único responsável pela prática delituosa,imputando-se ao Estado, indiretamente, como provedor da formaçãosocial geral, uma parcela de responsabilidade sobre a conduta praticadapelo infrator (ZAFFARONI). Desta forma, estatui o Código Penal que‘a pena poderá ser atenuada em razão de circunstâncias relevante,anterior ou posterior ao crime, embora não prevista em lei’ (art. 66).”(LIMA, Adriano Gouveia. A co-culpabilidade ou culpabilidadedelinqüencial atenuada? Conceitos e características. Artigopublicado no site do IBBCrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais– disponível em www.ibccrim.org.br, acessado em 28/07/06).

Os exemplos dos príncipes são e sempreforam, para quem os vê, mais fortes comomotivos da ação do que as próprias leis. E,embora o nosso dever seja fazer, não o queeles fazem, mas o que dizem, este é um deverque só será seguido quando aprouver aDeus dar aos homens uma graçaextraordinária e sobrenatural, para obedecera este preceito56.

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justificando uma punição menos severa, igualmente como medidade compensação:

Noutro enfoque, Hobbes comparava o crime segundo oresultado ocasionado, para concluir que aquele que gerasseprejuízo para muitos era mais grave do que o que gerasse prejuízopara poucos. Tal prejuízo mais amplo poderia advir tanto pelocrime em si (objetivamente), como tendo em conta a pessoa queo cometeu (subjetivamente). Nesta linha, sustentava que erammais graves os crimes cometidos por “um professor de direito”59

ou por um homem de grande reputação, do que por uma pessoaqualquer, “porque tais homens não se limitam a cometer crimes,mas ensinam-nos como leis a todos os outros homens”60. Erammais graves, também, os crimes que provocassem escândalo, osatos de hostilidade à república e de atentado a pessoa do soberanoou assembléia (ou crimes de “lesa-majestade”, “porque o prejuízose estende a todos”61), o suborno e o falso testemunho (“crimesque invalidam os julgamentos são mais graves do que os danoscausados a uma ou mais pessoas ... Pois não apenas se cometeinjustiça a quem sucumbe por causa desse julgamento, mas alémdisso todos os julgamentos se tornam inúteis, dando-seoportunidade ao uso da força e da vingança pessoal”62), os crimesque causassem prejuízo ao erário (“porque roubar o público é

59 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 260.60 HOBBES, Thomas. Loc. cit.61 HOBBES, Thomas. Loc. cit.62 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

58 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

E não digo isto por desejar a liberação dasvinganças privadas, nem nenhuma outraespécie de desobediência, e sim por desejarque os governantes tenham o cuidado denão sancionar obliquamente o quediretamente proíbem58.

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roubar muitos ao mesmo tempo”63), e os que importassem emse passar por agentes públicos, falsificar selos públicos ou amoeda nacional (“porque a primeira fraude vai prejudicar amuitos”64). Dos crimes cometidos contra particulares, Hobbesdizia que “o maior crime é o que provoca maior dano, segundo aopinião comum entre os homens”65. Daí, dizia que o maior delesera o homicídio; se fosse com tortura era ainda mais grave; alesão corporal era mais grave do que os crimes contra opatrimônio; dentre estes, as subtrações violentas eram mais gravesdo que as clandestinas; estas, as subtrações clandestinas, eram maisgraves do que as fraudulentas; a violência sexual forçada era maisgrave do que a sedução; mais ainda se a mulher fosse casada66.

Num último enfoque, Hobbes percebia, nos crimescometidos contra particulares, uma diferença de gravidade emvirtude do parentesco com a vítima (“matar os próprios pais éum crime maior do que matar qualquer outro, dado que o paideve ter a honra de um soberano ... pois a tinha originalmentepor natureza”67), das condições econômicas da vítima (“roubarum pobre é um crime maior do que roubar um rico, pois para opobre o prejuízo é mais importante”68); e das própriascircunstâncias de tempo e lugar em que fora cometido (“umcrime cometido num momento e num lugar reservados à devoçãoé maior do que se cometido noutro momento e noutro lugar, poisrevela maior desprezo pela lei”69).

6. As Penas (“Punições”)

Já foi dito que Hobbes concebia a punição como ummero castigo ao delinqüente, podendo ser facilmente classificadodentre os adeptos da denominada teoria retributiva da pena, quecostuma ser atribuída a Kant e Hegel, como visto acima.

66 HOBBES, Thomas. Loc. cit.67 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 262.68 HOBBES, Thomas. Loc. cit.69 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

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Dizia Hobbes:

Uma punição é um dano infligido pelaautoridade pública, a quem fez ou omitiuo que pela mesma autoridade éconsiderado transgressão da lei, a fim deque assim a vontade dos homens fiquemais disposta à obediência.70

Está claro, no conceito de Hobbes, que a pena tinha porfinalidade dissuadir o indivíduo da transgressão à lei, o que hojese aponta como sendo sua função de prevenção geral.

Na visão de Hobbes, o Estado surgia a partir do momentoem que os homens resolviam deixar o denominado estado denatureza – situação em que viviam antes, num estado de guerrade todos contra todos, onde cada um podia fazer o que bementendesse, sem qualquer limite – e, para se protegerem delespróprios, criavam a República, depositando nas mãos dosoberano, que era um homem como eles, a missão de criar eexecutar as leis civis, instrumentos pactuados em prol da garantiada sobrevivência da própria república e da proteção de seuscidadãos. Deste modo, através do pacto, os homens renunciavamao estado de natureza e, por conseguinte, renunciavam ao direitode punir, deixando que só o soberano exercitasse o seu direito,“da maneira que achar melhor, para a preservação de todoseles”71. Aí está, na doutrina hobbesiana, a origem do poder depunir do soberano.

Hobbes tinha convicção de que a punição erasimplesmente um mal. Tanto é assim que não via como puniçãoo fato de alguém ser “esquecido ou desfavorecido pelo favorpúblico”, porque assim “não se faz mal a ninguém, apenas se odeixa na situação em que estava antes”72.

71 HOBBES, Thomas. Loc. cit.72 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 264.

70 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 262/263.

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A punição tinha, para ele, que ser decorrente de“condenação pública anterior”, eis que só se deveria aplicar emalguém uma pena se, antes, seu ato fosse “julgado pela autoridadepública como transgressão da lei”73.

Tudo isto nada mais é do que a consagrada fórmula donulla poena sine judicium, brocardo já incorporado aovocabulário dos penalistas.

Alertava Hobbes que a punição tinha, necessariamente,que causar no apenado um dano maior do que o proveito auferidocom a prática da infração penal, sob pena de não conseguir realizarsua função preventiva e dissuasiva, acabando por estimular aprática do delito:

Se o dano infligido for menor do que obenefício ou satisfação naturalmenteresultante do crime cometido, tal dano nãoé abrangido pela definição, e é mais preçoou resgate do que punição aplicada porum crime. Porque é da natureza da puniçãoter por fim predispor os homens aobedecer às leis, fim esse que não seráatingido se forem menores do que obenefício da transgressão, redundando apunição no efeito contrário.74

Essa reflexão hobbesiana ganha contornos de extremaatualidade, considerando o fracasso da proposta dos JuizadosEspeciais Criminais, devido a banalização do instituto datransação penal, em grande parte deles.

As punições, segundo Hobbes, eram classificadas emdivinas e humanas. Estas últimas, que interessam ao presenteescrito, eram classificadas em corporais, pecuniárias, a ignomínia,a prisão e o exílio.

74 HOBBES, Thomas. Loc. cit.73 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

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As punições corporais, na literatura hobbesiana, variavamdesde as penas capitais – a morte, que podia ser simples ou comtortura – até castigos físicos menores, como o flagelo, ferimentosou a simples privação dos “prazeres do corpo”75.

As penas pecuniárias implicavam em confisco de terras,dinheiro ou qualquer outro bem “que geralmente são compradosou vendidos por dinheiro”76.

A ignomínia consistia numa desonra imposta ao condenadoou numa supressão de honrarias outrora a ele concedidas.Exemplificava Hobbes com a supressão de insígnias, títulos ecargos, ou mesmo declaração de indignidade deles para ofuturo77, no que muito se aproxima das idéias de penas de perdado cargo, inelegibilidade, suspensão de direitos políticos etc,sanções que fazem parte da literatura jurídica atual, não só penal,como também extrapenal, haja vista a vigente Lei de ImprobidadeAdministrativa.

Tocante à prisão, Hobbes já enxergava, ainda que de formacatecúmena, uma espécie de prisão como pena (punição) e outraespécie de prisão destinada a garantir a “segura detenção doacusado”, deixando entrever os contornos de uma autênticaprisão cautelar, nos moldes hoje concebidos. Eis suas palavras,bem auto-explicativas:

A prisão ocorre quando alguém é privadoda liberdade pela autoridade púbica, e podeser imposta tendo em vista dois finsdiferentes, sendo eles a segura detençãodo acusado e o outro infligir um mal aocondenado. No primeiro caso não se tratade uma punição, pois não é possível puniralguém antes de ser judicialmente ouvido edeclarado culpado. (...) Mas no outro casotrata-se de uma punição, porque é um dano

77 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 267.

75 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 266.76 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

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infligido pela autoridade pública, em virtudede algo que foi pela mesma autoridadeconsiderado transgressão da lei.78

Considerava ele como prisão qualquer espécie deconfinamento, fosse em uma casa, ilha ou lugar destinado atrabalhos forçados.

O exílio era o banimento dos limites territoriais da república,temporária ou permanentemente. Hobbes sustentava que nãoseria uma pena, quando aplicada isoladamente, sem o confiscodos bens e rendimentos do banido. E mesmo quando havia talconfisco, a pena seria somente este confisco, classificando-secomo uma punição pecuniária. Sustentava ele que o banimentoem si era uma fuga autorizada para evitar a aplicação de umapena, advertindo que “muitas vezes constitui um prejuízo para arepública. Porque um homem banido é um inimigo legítimo darepública que o baniu, não sendo mais um de seus membros79”.

Encerrando suas contribuições para o direito penal, Hobbescondenava as punições aplicadas a súditos inocentes, queconsiderava contrárias à lei da natureza, já que:

7. Conclusão

O estudo dos clássicos pensadores – Hobbes, Locke,Machiavelli, Montesquieu, Rousseau, Benjamin Constant etc –revela que muito do que hoje se doutrina, em diversos campos

79 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 268.80 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

78 HOBBES, Thomas. Loc. cit.

As punições só podem ser aplicadas portransgressão da lei, não podendo assimos inocentes sofrer punições. (...) Apunição de um inocente equivale a pagarum bem com um mal80.

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do direito e de outras ciências afins, tem suas raízes na ebuliçãodo pensamento iluminista.

Chega a impressionar como eles foram capazes, séculosatrás, de ter a clarividência de refletir sobre situações que,passado tanto tempo, conseguem, algumas delas, se manter bematuais.

O estudo de Hobbes, por suas obras “Leviatã” e “DoCidadão”, revelou isto, como espera-se ter demonstradoconclusivamente no corpo deste escrito.

No campo do direito penal, inúmeras foram ascontribuições de Hobbes e muitas tantas ilações se podem fazerentre as idéias hobbesianas e clássicas e modernas doutrinaspenais. A exemplo, cita-se o direito penal do inimigo de Jakobs,apoiado na figura do traidor de Hobbes, como ele próprio, Jakobs,cita em seu estudo mais aprofundado, consoante informação deLuis Greco. Nem sempre a Hobbes foram e são dados os devidoscréditos pelas idéias, senão pioneiras, ao menos inspiradoras: atal respeito, cita-se a teoria retributiva da pena, comumenteatribuída a Kant e Hegel, sendo inexplicável o silêncio que semantém, quando do exame desta teoria, a respeito de suas raízeshobbesianas.

Das reflexões de Hobbes, emergem autênticos esboçosde institutos como o estado de necessidade, a legítima defesa, oerro sobre a ilicitude do fato, coação irresistível, etc.

Impressiona, também, a idéia do princípio daproporcionalidade no que tange à distribuição das penas doscrimes, em virtude do bem jurídico ofendido, e a idéia da nãopunição dos atos preparatórios, a partir da não lesividade daconduta nesta fase do iter criminis, idéias estas incorporadasao Garantismo de Ferrajoli.

Sobre o iter criminis, aliás, Hobbes o desenha com singelezaímpar, ficando raízes que frutificaram através dos tempos.

Dignas de nota, também, são suas reflexões acerca daspunições, vistas tão-somente como um mal, um castigo,necessário, todavia, à manutenção dos objetivos da república,que era a preservação de seus cidadãos, razão pela qual

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resolveram se reunir e, através do pacto, entregar ao soberano opoder de elaborar e executar as leis necessárias a tal desiderato,aplicando as respectivas penas a quem as transgredissem.

E, por derradeiro, impende salientar a preocupação deHobbes com a anterioridade da lei, o princípio da legalidade e aatribuição exclusiva do soberano para aplicar as punições aosinfratores. Formulam-se, aí, as idéias do nullum crimen, nullapoena sine lege e do nulla poena sine judicium, princípiosbásicos do direito penal e que, hoje, estão erigidos à categoria denormas constitucionais.

Tudo isto é o que se espera ter demonstrado neste trabalho,cujo desiderato foi dar a Hobbes os créditos e as honras penaisque lhes são devidas.

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