hobbes e a liberdade republicana

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Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, set./dez. 2011 154 Diogo da Silva Roiz * 11 SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Trad. de Modesto Florenzano. São Paulo: Edunesp, 2010, 213p. A história intelectual tem buscado forjar padrões de análise que a convertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros já consagrados, a exemplo da história política, da econômica, da social e da cultural. Por suas íntimas aproximações com a história filosófica e com a história das ideias, definir seguramente suas fronteiras teórico- metodológicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seu corpus documental, torna-se, além de um problema tenso e contraditório, um desafio para o estudioso da temática. Se mesmo entre os lugares principais de produção, a história intelectual é ao mesmo tempo ambígua, sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, como se observa nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália, como então se deveria proceder ao seu estudo e à sua apropriação? A obra de Skinner está entre aquelas que, desde os anos 60 (séc. XX), tem se debruçado com afinco sobre a questão. Agrupando-se ao que ficou definido como contextualismo linguístico inglês, ele se esforçou para a criação de procedimentos adequados para que a história intelectual fosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo do pensamento e da ação política no tempo. Estudioso da história moderna, preocupou-se com a investigação do pensamento renascentista, reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneira como estabeleceriam relações com seu contexto. Para ele, somente ao se agrupar o contexto de produção das obras é que se torna possível visualizar * Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). E-mail: [email protected]. conjectura_v16_n3_set_dez_2011.pmd 24/10/2011, 10:02 154

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Artigo de grande valia para interpretação do pensamento de Thomas Hobbes, com análise original sobre a interpretação do direito e as contribuições de Hobbes nesta seara.

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  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, set./dez. 2011154

    Diogo da Silva Roiz*

    11SKINNER, Q.

    Hobbes e a liberdade republicana.Trad. de Modesto Florenzano.

    So Paulo: Edunesp, 2010, 213p.

    A histria intelectual tem buscado forjar padres de anlise que aconvertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros jconsagrados, a exemplo da histria poltica, da econmica, da social eda cultural. Por suas ntimas aproximaes com a histria filosfica ecom a histria das ideias, definir seguramente suas fronteiras terico-metodolgicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seucorpus documental, torna-se, alm de um problema tenso e contraditrio,um desafio para o estudioso da temtica. Se mesmo entre os lugaresprincipais de produo, a histria intelectual ao mesmo tempo ambgua,sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, comose observa nos Estados Unidos, na Frana, na Inglaterra, na Alemanha ena Itlia, como ento se deveria proceder ao seu estudo e suaapropriao?

    A obra de Skinner est entre aquelas que, desde os anos 60 (sc.XX), tem se debruado com afinco sobre a questo. Agrupando-se aoque ficou definido como contextualismo lingustico ingls, ele se esforoupara a criao de procedimentos adequados para que a histria intelectualfosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo dopensamento e da ao poltica no tempo. Estudioso da histria moderna,preocupou-se com a investigao do pensamento renascentista,reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneiracomo estabeleceriam relaes com seu contexto. Para ele, somente ao seagrupar o contexto de produo das obras que se torna possvel visualizar

    * Doutorando em Histria pela Universidade Federal do Paran (UFPR). Bolsista doCNPq. Mestre em Histria pela Universidade Estadual de So Paulo (Unesp). Professorna Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). E-mail: [email protected].

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    os jogos lingusticos usados pelos letrados e polticos do perodo ereconstituir como agem e se movimentam no campo de produo dasobras e da ao poltica, estabelecer os nexos de ao do grupo e doindivduo, analisar os discursos e as estratgias de ao, alm de permitirdefinir quais so as intenes dos agentes sociais em sua escrita, por jformar nela uma ao poltica, com desdobramentos sociais profundos,ao ser apropriada pela sociedade.

    Evidentemente, a proposta analtica do autor consistente earticulada, o que no quer dizer que seja isenta de fragilidades. O ponto,talvez, mais criticado em sua proposta justamente a de agrupar e definiras intenes dos agentes sociais, por meio do estudo de seus escritos.Por certo, em vrias ocasies, Skinner (2005) procurou rebater as crticase demonstrar as vantagens (e desvantagens) de suas propostas. Se oacompanharmos desde Razo e retrica na filosofia de Hobbes (1999) atHobbes e a teoria clssica do riso (2002), veremos uma parte dessadinmica, entre os avanos e as continuidades metodolgicos, tericos einterpretativos apresentados.

    Com a publicao de Hobbes e a liberdade republicana, oferece-semais uma boa oportunidade para se revisitar a proposta do autor e analisarseus procedimentos. Sua principal inteno com essa obra foi contrastarduas teorias rivais sobre a natureza da liberdade humana (p. 9), queestariam em tenso na Inglaterra do perodo, mas tambm estariamintimamente relacionadas ao movimento interno das obras de Hobbes.De Os elementos da lei natural e poltica, sua obra mais antiga que circuladesde 1640, a Do cidado, que reformula parte dos argumentos dessetexto inicial e data de 1642, at Leviat, cuja edio inglesa data de1651, e a latina revisada, de 1668, para Skinner, as metamorfoses emseus argumentos seriam evidentes e facilmente circunstanciadas, pormeio da comparao e do estudo sistemtico das obras. Por esse motivo,a anlise de Hobbes da liberdade no Leviat representa no uma reviso,mas um repdio ao que ele havia anteriormente argumentado, e queesse desenvolvimento reflete uma mudana substancial no carter deseu pensamento moral. (p. 14). Nesse sentido, eu abordo a teoriapoltica de Hobbes no simplesmente como um sistema geral de ideias,mas tambm como uma interveno polmica nos conflitos ideolgicosde seu tempo e para entender e interpretar seus textos, sugiro queprecisamos reconhecer a fora da mxima segundo a qual as palavrastambm so atos (p. 15) como j havia indicado Wittgenstein, emquem o autor se apoia.

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    Para ele, embora estudos mais recentes tenham apontado smudanas argumentativas de Hobbes, no que tange liberdade, deuma obra para outra, esses no se questionaram por que houve essatransformao. Vale notar ainda que, para Skinner, Hobbes foi o maisformidvel inimigo da teoria republicana da liberdade e seus esforospara desacredit-la constituem um momento que faz poca na histriado pensamento poltico de lngua inglesa. (p. 13).

    Para demonstrar seus argumentos, o autor explora, alm das obrasacima indicadas, as correspondncias trocadas no perodo e o catlogoda biblioteca Hardwick, da qual Hobbes foi um constante leitor epesquisador de seus textos. Ao refazer parte das leituras que Hobbesteria feito, ele acredita ser possvel reconstituir alguns dos momentos deproduo dos textos e as reviravoltas em seus argumentos. Destarte seresse um ponto alto no texto, tambm essa tentativa tem l suasfragilidades, porque, como o prprio autor observar, no h comoreconstituir todos os momentos de produo do texto, tampouco suasmudanas de roteiro, interpretao e anlise, efetuadas ao longo da vida.Por outro lado, no h como sugerir adequadamente todas as suasintenes, porque os atos a serem visados so vrios, e o que predispe mudana analtica pode muito bem ser aquele menos provvel. Nissotambm o texto de Skinner rico em hipteses.

    Da ser to complexo o itinerrio escolhido, tanto ao passar emrevista as obras: Os elementos da lei natural e poltica, Do cidado e Leviatquanto ao sugerir comparar o contexto lingustico e sociocultural daInglaterra (e indiretamente tambm da Europa), de 1630 a 1660, comas possveis formas de apropriao escolhidas por Hobbes para aelaborao de seus textos.

    Leitor voraz e tradutor dos clssicos gregos e romanos, Hobbes noapenas conhecia os debates de sua poca, como tambm sabia de quemaneira estavam sendo usados os autores antigos. De acordo com Skinner,apesar de seu alto prestgio, a Histria de Tucdides desempenhouprovavelmente um papel marginal na difuso das ideias gregas sobre osEstados livres na Inglaterra do incio do sculo XVII, mas importnciamuito maior teve a Poltica de Aristteles, especialmente depois de suaprimeira traduo completa para o ingls, em 1598. (p. 76-77). Da,para o autor, a importncia dos debates sobre escravido e servido noperodo, cujo fim no passaria de um ressentimento aristocrtico. E foijustamente na dcada de 40 (1600), que aumentaram as tentativas deinsurreio, que Hobbes tomou subitamente conscincia do fato de

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    que suas prprias ideias sobre a soberania absoluta poderiam coloc-loem perigo grave (p. 93), em funo dessas circunstncias revolucionrias.Se ele teve a oportunidade de ler, ao menos em parte os panfletos quecirculavam no perodo, apenas isso no seria o suficiente para responder sua sbita tomada de conscincia. Mas refletindo sobre o que poderialhe acontecer se tais opinies [contidas nos Elementos] se tornassempblicas, deixou-se tomar pelo pnico (p. 94), e esse deve ter sido umdos motivos das reformulaes que faria no texto, convertendo-o empartes dos captulos dO cidado, quando esse seria publicado em meadosde 1642. No por acaso,

    Hobbes comea indicando que o que esteve ausente em sua discusso,e o que a seguir prope fornecer, uma abrangente definio doconceito geral de liberdade. Como sua anlise subseqente deixaimediatamente claro, o que ele procura uma definio suscetvel deenglobar no apenas a liberdade dos que deliberam, com base naliberdade caracterstica do estado de natureza, mas ao mesmo tempo aliberdade dos corpos naturais tais como (para citar seu prprio exemplo)os volumes de gua e sua capacidade de se mover sem impedimento.[...] Portanto, [...] o conceito de liberdade humana precisa ser tratadoessencialmente como uma subespcie da ideia mais geral do movimentono entravado. (p. 110-111).

    Porque, entre outras coisas, a liberdade era entendida como a ausnciade impedimento ao movimento. Da ele se volta para o mundo daliberdade humana, continuando a tratar as aes humanas essencialmentecomo movimentos fsicos que podemos executar vontade ou sermosimpedidos de faz-lo por obstculos externos. (p. 112). O que o teriafeito reformular seus argumentos dos Elementos para Do cidado, nessecaso, esteve relacionado tanto com o contexto tenso e revolucionrio daInglaterra no perodo quanto suas novas leituras e informaes, bemcomo seu medo sobre o desenrolar daqueles acontecimentos, que opoderiam colocar em risco. Por essas evidncias, ficam parcialmenteindicadas as razes de ele tomar partido com um estilo mais conciliadordo que inflamado, ao tratar da defesa da soberania absoluta. Mas umaausncia entre esses textos foi a de estabelecer uma perspectiva clarasobre a relao entre possuir liberdade de agir e possuir o poder deexecutar a ao em causa. (p. 129). Por isso,

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    quando, em Do cidado, definira o conceito de liberdade, haviaargumentado que a liberdade humana pode ser tirada quer porimpedimentos absolutos que nos impossibilitavam exercitar nosso poder vontade, quer, tambm, por impedimentos arbitrrios que inibem aprpria vontade. Mas no Leviat o conceito de um impedimentoarbitrrio silenciosamente abandonado. Os nicos impedimentosque tiram a liberdade, -nos dito agora, so os que tm o efeito dedeixar um corpo fisicamente impotente. (p. 126-27).

    Assim, enquanto os impedimentos intrnsecos tiram o poder,somente os impedimentos externos tiram a liberdade. (p. 130). Mas,ao fazer esse movimento, Hobbes teria deixado alguns pontosdesamarrados, entre os quais, o equvoco aparente [...] sobre a questode saber se preciso distinguir entre agir sob compulso e agirvoluntariamente. (p. 131). Alm disso, para impor suas posies,Hobbes foi obrigado a elaborar sua interpretao, com a conscincia deque precisava enfrentar os tericos da liberdade republicana em seu prprioterritrio (p. 143), tendo em vista que

    o que esses autores no conseguem fornecer uma explicao sobre oque h de precisamente errado na afirmao republicana do simplesfato de a dependncia tirar a liberdade do homem livre. Quem conseguefornec-la Hobbes, no Leviat, tornando-a um marco na evoluodas teorias modernas da liberdade. Antes dele, ningum havia oferecidouma definio explcita sobre o que significa ser homem livre emcompetio direta com a definio avanada pelos pensadores daliberdade republicana e suas referncias clssicas. Mas Hobbesestabelece to claramente quanto possvel que ser um homem livrenada tem a ver com o ter que viver [...] ou o ter que viverindependentemente da vontade de outrem; isso significa simplesmenteno estar incapacitado por impedimentos externos a agir segundovontade e poderes prprios. Ele , portanto, o primeiro a responderaos tericos republicanos oferecendo uma definio alternativa na quala presena da liberdade inteiramente construda como ausncia deimpedimento e no como ausncia de dependncia. (p. 149).

    Desse modo, ser livre simplesmente estar desimpedido paramover-se de acordo com os prprios poderes naturais, de tal sorte queagentes humanos carecem de liberdade de ao se, e somente se, algumimpedimento externo tornar impossvel a eles executar uma ao que,no fosse isso, estaria em seus poderes. (p. 193).

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    Constituindo-se numa anlise pormenorizada dos desdobramentosdo conceito de liberdade operado na obra de Hobbes, entre 1640 e1650, dos Elementos para o Do cidado e desses at Leviat, este livrotambm nos oferece uma bela e interessante aplicao do mtodoproposto por Skinner, desde os anos 60 (sc. XX). Para reformular seuspressupostos, alm de conhecer profundamente os clssicos dopensamento poltico grego e romano e seus contemporneos, esse o fariaem contraposio s presses polticas de sua poca e aos debates dosrepublicanos. Ao dar subsdios para a compreenso das metamorfosesque se operaram sobre o conceito de liberdade em Hobbes, Skinnertambm supe dar maior consistncia aos seus pressupostos tericos emetodolgicos, amplamente enraizados numa interpretao lingusticae contextualista das obras e dos autores, para as quais os atos e as intenesde um autor podem muito bem ser rastreadas em seus escritos. Se hfragilidades nesse tipo de anlise (qual no possui?), por no ser possvelse verificar todas as condies de produo, leituras e apropriaes queso feitas por um autor, nem tampouco alcanar todos os motivos que olevaram a ter certas intenes e no outras, no quer dizer que taisprocedimentos no forneam contribuies significativas aoentendimento de autores, obras e pocas, como j demonstrou a prpriaobra de Skinner. No quer dizer, muito menos, que tal abordagem noseja um instrumento a mais para que a histria intelectual possa forjarsuas bases, para um estudo sistemtico da histria dos iderios e dopensamento poltico moderno na Europa (e, quem sabe, se aferidosadequadamente tambm para outros perodos e espaos).

    Recebido em 8 de julho de 2011.Aprovado em 13 de julho de 2011.

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