história do tempo presente: quando o jornalismo se ... · pdf filehistória do...

12
História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia 1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando) 2 Universidade Federal do Espírito Santo /ES Resumo: Durante anos, Jornalismo e História mantiveram um distanciamento recíproco, mesmo ambos compartilhando um mesmo objetivo de análise: o acontecimento. Enquanto aquele analisava um determinado fato com a pressão do deadline diário, o segundo dispunha de maior tempo de análise e pesquisa. Mantiveram-se, assim, reservados cada qual a seu campo por anos. Porém, um movimento de aproximação entre os dois campos ocorreu na segunda metade do século XX. Ocorriam as primeiras discussões sobre a História do Tempo Presente, motivadas pelo advento dos meios de comunicação de massa e pela proposta de rediscussão dos preceitos históricos por meio do resgate da História Política e da História Cultural. Este artigo pretende debater a chamada “história imediata” discutindo também a relação entre os dois campos acadêmicos – a partir de conceitos compartilhada pelas duas áreas, como os estudos de Junger Habermas sobre as esferas pública e privada – e os questionamentos decorrentes dela, como a utilização de jornais e periódicos como fontes históricas e como potenciais mecanismos de resgaste da memória de uma sociedade Palavras-chave: História, Jornalismo, Habermas, Tempo Presente “Está começando o Repórter Esso: a testemunha ocular da história”. Era esse o slogan de um dos programas de rádio mais emblemáticos da história do jornalismo brasileiro. Transmitido pelas Rádios Record, Tupi e Nacional, o programa Repórter Esso cumpriu a função de informar aos brasileiros as últimas notícias durante três décadas. Mas a tão famosa frase, dita ao vivo tantas vezes por jornalistas como Heron Domingues e Roberto Figueiredo, nos leva a uma reflexão: seria realmente o jornalista uma testemunha dos acontecimentos históricos? No convívio dos grandes líderes populares, a par das coberturas econômicas, acompanhando as articulações políticas e na busca por cumprir a missão profissional de informar à população, é inquestionável que o jornalista acaba por vivenciar, muitas vezes, acontecimentos importantes para uma geração ou para a história de um povo. Afinal, ele busca, por meio do seu olhar, levar 1 Trabalho apresentado no GT de História do Jornalismo, integrante do IV Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016. 2 Jornalista, graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de Vila Velha (UVV/2010), colunista de Política do jornal A Tribuna, licenciado em Língua Portuguesa e Literatura (Centro Universitário São Camilo–ES/2012), mestrando em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail:[email protected]

Upload: lamthuy

Post on 20-Feb-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1

BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

Universidade Federal do Espírito Santo /ES

Resumo: Durante anos, Jornalismo e História mantiveram um distanciamento recíproco, mesmo ambos

compartilhando um mesmo objetivo de análise: o acontecimento. Enquanto aquele analisava um

determinado fato com a pressão do deadline diário, o segundo dispunha de maior tempo de análise e

pesquisa. Mantiveram-se, assim, reservados cada qual a seu campo por anos. Porém, um movimento de

aproximação entre os dois campos ocorreu na segunda metade do século XX. Ocorriam as primeiras

discussões sobre a História do Tempo Presente, motivadas pelo advento dos meios de comunicação de

massa e pela proposta de rediscussão dos preceitos históricos por meio do resgate da História Política e

da História Cultural. Este artigo pretende debater a chamada “história imediata” discutindo também a

relação entre os dois campos acadêmicos – a partir de conceitos compartilhada pelas duas áreas, como

os estudos de Junger Habermas sobre as esferas pública e privada – e os questionamentos decorrentes

dela, como a utilização de jornais e periódicos como fontes históricas e como potenciais mecanismos de

resgaste da memória de uma sociedade

Palavras-chave: História, Jornalismo, Habermas, Tempo Presente

“Está começando o Repórter Esso: a testemunha ocular da história”. Era esse o slogan de um dos

programas de rádio mais emblemáticos da história do jornalismo brasileiro. Transmitido pelas

Rádios Record, Tupi e Nacional, o programa Repórter Esso cumpriu a função de informar aos

brasileiros as últimas notícias durante três décadas. Mas a tão famosa frase, dita ao vivo tantas

vezes por jornalistas como Heron Domingues e Roberto Figueiredo, nos leva a uma reflexão:

seria realmente o jornalista uma testemunha dos acontecimentos históricos?

No convívio dos grandes líderes populares, a par das coberturas econômicas, acompanhando as

articulações políticas e na busca por cumprir a missão profissional de informar à população, é

inquestionável que o jornalista acaba por vivenciar, muitas vezes, acontecimentos importantes

para uma geração ou para a história de um povo. Afinal, ele busca, por meio do seu olhar, levar

1 Trabalho apresentado no GT de História do Jornalismo, integrante do IV Encontro Regional Sudeste de

História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016.

2 Jornalista, graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de Vila Velha (UVV/2010),

colunista de Política do jornal A Tribuna, licenciado em Língua Portuguesa e Literatura (Centro Universitário

São Camilo–ES/2012), mestrando em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do

Espírito Santo (UFES). E-mail:[email protected]

Page 2: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

ao leitor, ouvinte ou telespectador uma noção ou até mesmo uma explicação sobre determinado

fato. Isso, não é muito diferente das atribuições de um historiador. Afinal, este também tem no

acontecimento seu principal objetivo de análise.

Na busca pela apuração de um fato, podendo tanto ser pelo historiador quanto pelo jornalista,

algumas ferramentas são de uso comum. Uma delas é a entrevista ou a história oral. Esta aposta

na memória de um indivíduo para recapitular um determinado período ou um acontecimento,

que pode, inclusive, ser recém-ocorrido. Neste ponto que se estabelece a intercessão entre

História e Jornalismo por meio da História do Tempo Presente.

Le Goff (2014) conceitualiza a memória, ferramenta de ambas as áreas, como sendo “um

conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou

informações passadas, ou que ele representa como passado”3. O historiador francês frisa que

antes mesmo da linguagem falada ou da escrita, há uma linguagem do armazenamento de

informações na memória, que pode ser tanto individual quanto coletivo.

Porém, o historiador também atribui à escrita uma profunda transformação no conceito da

própria memória, dividindo-a em duas formas. A primeira delas é a comemoração, quando

ocorre, por exemplo, as celebrações anuais pela Independência do Brasil. A segunda é o

documento escrito, que tem a função de “armazenar informações através do tempo e do espaço”.

É neste ponto que memória, história e jornalismo se cruzam.

A imprensa revoluciona, embora lentamente, a memória ocidental.

Revoluciona-se ainda mais lentamente na China, onde, apesar de a imprensa

ter sido descoberta no século IX da nossa era, ignoraram-se os caracteres

móveis, a tipografia; até à introdução, no século XIX, dos processos mecânicos

ocidentais, a China limitou-se à xilografia, impressão de pranchas gravadas em

relevo. A imprensa não pôde agir de forma massiva na China, mas os seus

efeitos sobre a memória, pelo menos entre as camadas das cultas, foram

importantes, pois imprimiram-se sobretudo tratados científicos e técnicos que

aceleram e alargaram a memória do saber (LE GOFF, 2012, pag. 438)

O estabelecimento da imprensa amplia o leque de textos publicados e, com isso, há um aumento

das memórias individuais que se exteriorizam. A partir daí, há uma evolução na prática da

memória até o apogeu da fotografia, que consistiu em um novo marco. Afinal, a memória passou

a ser guardada dentro de uma gaveta.

Alicerce do jornalismo ao lado da escrita, a fotografia teve sua adesão completa pela população

de forma gradativa. De início, as pessoas não ousavam olhar diretamente para as imagens que

3 LE GOFF, 2012, pag. 405

Page 3: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

retratavam a presença humana, temiam poder ser vistas por aqueles pequenos rostos, devido à

tamanha qualidade e nitidez das fisionomias no processo daguerreotipo4. Após esse período de

temor, a fotografia assumiu um posicionamento diferente dentro da sociedade, sendo vista como

memória visual de uma pessoa ou uma família, perpetuando um momento, um indivíduo ou

uma fase da vida.

Fotografia é memória enquanto registro da aparência dos cenários,

personagens, objetos, fatos, documentando vivos ou mortos, é sempre memória

daquele preciso tema, num dado instante de sua existência/ocorrência. É o

assunto ilusoriamente retirado de seu contexto espacial e temporal, codificado

em forma de imagem (KOSSOY, 2007).

Assim, fotografia e escrita, serviram e servem ao jornalismo como ferramenta de sua

composição. Este, por sua vez, desempenha uma relação direta com a história e a memória

coletiva de uma sociedade, registrando em tempo presente a percepção inicial de determinados

acontecimentos.

O advento da história do tempo presente e o jornal como fonte

Além de algumas vezes compartilharem o mesmo objetivo de análise, o Jornalismo e a História

desenvolveram pontos de interseção que abrangem também a análise teórica dos dois campos

acadêmicos. Um exemplo são os estudos do filosofo alemão Jürgen Habermas5, membro da

Escola de Frankfurt, pilar do conceito de indústria cultural e do jornalismo moderno, que ao

mesmo tempo refletiu em sua obra “Mudança estrutural da esfera pública”, conceitos

imprescindíveis aos historiadores.

Sendo um dos principais pensadores da segunda fase da escola de Frankfurt – a qual teve sua

primeira fase marcada pelos estudos de Theodor Adorno, Max Horkheimer, Erick Fromm e

Herbert Marcuse – o filósofo se debruçou sobre a instituição imprensa, e as gradativas

mudanças desde a criação até a mercantilização, para balizar alguns dos seus principais

conceitos, como o da “esfera pública”, pessoas privadas relacionando-se como público.

A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das

pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública

regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade

4 Desenvolvido em 1837 por Louis Jacques Mandé Daguerre, foi apresentado publicamente em 1839. O governo

francês declarou o invento como domínio público. É um equipamento responsável pela produção de uma

imagem fotográfica sem negativo. 5 Nasceu na cidade de Dusseldor, Alemanha, em 1929, durante a crise econômica de Nova York e se dedicou a

estudar o homem em sociedade, abordando temas como direito, política, história, ética e comunicação.

Page 4: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

(HABERMAS, 2003, pag. 42)

Segundo Habermas (2003)6, a separação entre o “público” e o “privado” passou a ocorrer nas

sociedades inglesas, francesas e alemãs, graças à pressão exercida pelo capitalismo burguês

sobre as respectivas monarquias e parlamentos. O setor público limita-se ao poder público e a

corte. O setor privado abrange a “esfera pública” propriamente dita, afinal ela é a esfera pública

de pessoas privadas.

Em termos mais palpáveis, as esferas privadas, que o filósofo define, são aquelas de convívio

familiar, de troca de mercadorias ou do trabalho social. A título de exemplificação, Habermas

chega a citar o “status do homem privado” que “combina o papel de dono de mercadorias com

o pai de família, o de proprietário com o de ‘homem’ simplesmente”7.

Já a esfera pública tem entre suas facetas os herdeiros da aristocracia em contato com a camada

intelectual da própria burguesia. O cenário desses encontros eram os cafés entre 1680 a 1730 e

os salões posteriormente. Esses locais assumiam, gradativamente, funções sociais. Eram onde

poderiam ter acesso mais fácil aos círculos da moda, mas, acima de tudo, promover a interação

entre as camadas mais amplas da classe média e até mesmo artesãos. Damas da aristocracia e

da burguesia circulavam com príncipes, condes, bem como relojoeiros. A sociedade pretendia

“encontrar, assim, uma igualdade e sensibilidade entre pessoas de classes desiguais”8.

Por mais que se diferenciam entre si comunidade de comensais, salões e cafés,

no tamanho e na composição de seu público, no estilo de seu comportamento,

no clima de raciocínio e na orientação temática, todos tendem sempre a

organizar a discussão permanente entre pessoas privadas (HABERMAS, 2003,

pag.51)

Nos salões e cafés havia regras e critérios. O primeiro deles seria uma espécie de sociabilidade

que pressupunha algo como a igualdade de status; o segundo, questionamento a setores que até

então eram considerados inquestionáveis; e o terceiro seria o não fechamento ao público. Nesse

ambiente, propício à interação social, também se tornaram mais acessíveis obras filosóficas e

literárias que antes eram restritas apenas à intelectualidade.

As revistas logo aumentaram sua periodicidade e encontraram nestes cenários uma função

efetiva: divulgar para aquele público dos salões e cafés as críticas de arte, música e literatura.

6 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto à uma

categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiros, 2003 7 Idem 15, pág. 44 8 Idem 15, pág. 50

Page 5: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

Habermas (2003) considera como um fenômeno chave os hebdomadários9 moralistas, que

também eram distribuídos nos ambientes de esfera pública e pautavam discussões. Com o

aumento na quantidade de cafés, a eficiência das revistas mensais como forma de manter a

coesão entre os grupos passou a ser questionada, o que abriu precedente para a instauração dos

jornais. Os artigos publicados nestes periódicos passaram a manter uma interação com os

frequentadores dos cafés, estabelecendo uma forma de diálogo muito próxima da palavra falada.

Essa reflexão de Habermas (2003) sobre a imprensa introduziria uma maior análise sobre o

papel desempenhado por ela na esfera social. Segundo Rudiger (2001), Habermas mostrou que

uma parcela importante de conquistas e liberdades que desfrutamos hoje se deveu a formação

de uma esfera pública, em que sujeitos em princípio livres se reuniam para discutir e deliberar

sobre interesses comuns. A reflexão se faz indispensável principalmente quando se trata da

trajetória da mídia na dualidade entre ferramenta de cidadania e arma de consumo (jornalismo

x publicidade). Nesta vertente, o filósofo alemão também toca em um ponto sensível da

imprensa: as pressões exercidas tanto pelo mercado quanto pelo Estado.

Em comparação com a imprensa da era liberal, os meios de comunicação de

massa alcançaram, por um lado, uma extensão e uma eficácia

incomparavelmente superiores e, com isso, a própria esfera pública se

expandiu. Por outro lado, assim, eles também foram cada vez mais desalojados

dessa esfera e reinseridos na esfera, outrora privada, do intercâmbio de

mercadorias, quando maior se tornou sua eficácia jornalístico-publicitária,

tanto mais vulnerável eles se tornaram à pressão de determinados interesses

privados, sejam individuais, sejam coletivos. (HABERMAS, 1984, p.221)

Recorrendo constantemente à mídia para conceitualizar seu estudo sobre os limites do público

e do privado, Habermas frisa sobre a prática do jornalismo: “Mesmo o jornalismo político deve,

como todas as instituições que exercem uma influência privilegiada de modo demonstrativo ou

manipulativo, na esfera pública, por sua vez estar subordinada ao mandamento democrático de

ser abertamente público”10. Com toda essa capacidade de influência, a media passa a exercer

um papel importante sobre a memória coletiva, pois:

Toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata

em grande parte fabricada ao acaso pela media, caminha em direção a um

mundo de memórias coletivas, e a história estaria, muito mais que antes ou

recentemente sob a pressão dessas memórias coletivas (LE GOFF, pag.453,

2012).

Na passagem acima, Le Goff (2012) ainda toca em um tema imprescindível quando se analisa

9 Periódicos publicados semanal ou mensalmente. 10 Idem 15, pág. 244-245

Page 6: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

História e Jornalismo: a história do tempo presente. Mais do que um modismo, este ramo de

análise dos fatos mais contemporâneos se fortaleceu nos últimos anos ao ritmo da popularização

dos meios de comunicação de massa. Rioux (2011) atribui a um movimento do final da década

de 1970 na França os primeiros avanços acadêmicos da História do Tempo Presente, por meio

da criação do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP)11, que conduziu pesquisas específicas

sobre esse esboço.

Bédarida (2002) classificou como penoso o “parto” da História do Tempo Presente, assim como

“agitada” a sua “primeira infância”. O motivo era a desconfia do ramo histórico perante nova

proposta, o que pesava principalmente sob os ombros de quem se arriscava no HTP. Apenas

com o passar dos anos, o navio, “afastando-se das zonas tempestuosa, ingressou em águas mais

tranquilas”, como pontua Bédarida (2002).

Duas questões se fazem necessárias quando se reflete o presente sob a ótica da História: como

distinguir a fronteira cronológica que separa uma história do presente e uma história do

passado? E mais: pode o presente ser objeto de análise da História?

Sobre a primeira, Bernestein e Milz a (2011) elucidam que “a fronteira é mutável e não há uma

separação porque não há entre elas nenhuma solução de continuidade”12. O que não significa

que não tenha especificidade. Ela se situa na “emergência do fenômeno” no “seio do presente”.

Bédarida (2002) frisa que a HTP é uma história inacabada, ou seja, em constante movimento e

sendo renovada constantemente, o que reforça a percepção de fronteira mutável.

Já sobre a segunda indagação, autores como Jean Lacouturer e Charles Albert Ageron, aquele

jornalista-historiador e este historiador-jornalista, sustentaram o intercâmbio ou a

interdisciplinaridade da História com outras áreas de conhecimento e em uma “mestiçagem

ideológica” na tentativa de ampliar os horizontes historiográficos e da própria História do

Tempo Presente.

Jean Laccouturer (2005) se debruça sobre essa nova área historiográfica e registra a

convergência entre as duas disciplinas, que nem sempre foi amigável, mas trabalham, de formas

11 Liderado desde 2014 por Christian Delage, a Institut d’Histoire du Temps Présent é uma unidade própria do

Centre National de la Recherche Scientifique CNRS, cujas linhas de pesquisa da história cultural da guerra

no século XX principal para o estudo dos sistemas autoritários, totalitários e coloniais de dominação através

da história de produções culturais nas sociedades do século XX (site: http://www.ihtp.cnrs.fr/ acessado em 05

de novembro de 2011) 12 Bernestein e Milza, 2011, pag. 128

Page 7: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

diferentes, com a mesma ferramenta: o acontecimento. “O jornalista-camundongo rói

gulosamente suas avelãs. O historiador-esquilo as acumula. ‘O imediatista’ acumula roendo”,

exemplifica, diferenciando o historiador tradicional do historiador imediatista.

Resende (2011) elucida a reflexão do autor. “O jornalismo faz uma escuta mais localizada, o

historiador mais abrangente. O primeiro capta o momento. O segundo, a duração”13. Laccouture

(2005), ao analisar a história imediata, ainda mira suas críticas na escola de Annales14. Segundo

ele, após o estabelecimento dos meios de comunicação de massa – imprensa, rádio e televisão

– e o desencadeamento de “acontecimentos monstros”, a escola de Annales se posicionou

contrária à ditadura do factual. Chauveau e Tétart (2011) classificaram a História Imediata

como um “gênero híbrido” devido à interdisciplinaridade já citado, e pontuaram a quase

inexistência de citações do ramo nas principais obras de sustentação da Escola da Annales.

Por sua vez, Bédarida (2002) recorrer a dois dos criadores da mesma Escola de Annales, Lucien

Febvre e Marc Bloch, para elucidar a necessidade de intercâmbio entre o presente e passado na

busca da verdade histórica e reforçar seus argumentos sobre a necessidade do aprofundamento

das pesquisas sobre a História do Tempo Presente.

De fato da união e a interação do presente e do passado constituem a principal

inovação trazida pelo projeto IHTP. A bem dizer, o CNRS (Centre National de

la Recherche Scientifique) estava assim reatando laços com instituições

fecundas como havia sido as dos fundadores dos Annales, Lucien Febvre e

Marc Bloch. É famosa a palavra de ordem do primeiro ‘compreender o

presente por meio do passado e sobretudo o passado por meio do presente’.

Para o segundo, “a solidariedade do presente e do passado é a justificativa da

história (BÉDARIDA, 2002, pag.221)

Seguindo na mesma vertente de defesa da HPT e da intercessão entre Jornalismo e História, em

sua dissertação de doutorado, Kushnir (2001) cita os estudos de Jean-Pierre Rioux para salientar

os dois olhares sobre o presente exercidos pelas duas atividades acadêmicas e aponta que

“jornalistas e historiadores estão lado a lado na construção dessa história do tempo presente”.

A diferença estaria no tempo exercido por cada função. Enquanto os profissionais da notícia

têm que lidar com a “angústia da pequena morte diária”, o que os obriga a reunir fatos sem

tempo de tratar as fontes; os historiadores, por sua vez, “inserem o acontecimento na cadeia de

um tempo significativo”, pontuou Rioux (2011).

13 Resende, 2011, pag.74 14 Movimento historiográfico que emergiu na França, na primeira metade do século XX. Em suas diversas fases,

contou com historiadores como Marc Bloch, Jacques Le Goff e Pierre Nora.

Page 8: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

Ao citar as diferenças das pesquisas jornalísticas e históricas, Rioux (2011) pondera que o

diálogo entre as áreas é essencial, mesmo com uma trajetória de indiferença recíproca que

marcou a relação entre as duas em âmbito acadêmico.

A visão cotidiana (do jornalista) consiste em forçar a atenção do leitor ou do ouvinte

para o ‘papel’, em mergulhar sem enfado na torrente ininterrupta de acontecimentos

confusos que faz a atualidade, em vencer a angústia da pequena morte diária. (RIOUX,

2011, pag.120)

Ele (o historiador) mantém uma discussão permanente com seus confrades em ciências

sociais, constrói e erige a distância seu objetivo de estudo e lhe dá assim um estatuto

cientifico, procura sempre inserir o acontecimento singular na cadeia do tempo

significativo, tenta distinguir o perdurável do efêmero, relata os fatos sem ser

perseguido pela hora do ‘fechamento”. (RIOUX, 2011, pag.120)

A tênue linha que separava drasticamente a trajetória acadêmica das duas áreas começou a ceder

de forma gradativa, porém respeitando a independência de cada uma. Vozes acadêmicas, como

o próprio Laccouturer (2001), passaram a registrar em seus artigos que os jornalistas “não se

contentariam em registrar apenas o eco da atualidade, que saberia utilizar material elaborado e

exercer seu olhar crítico”. Para alcançar essa ambição, os meios de comunicação de massa

tiveram papel determinante, principalmente na “representação e produção de acontecimentos e,

portanto, na respiração da História, depois na implantação de uma cultura de massa”, assim

como estudou Harbermas.

De qualquer forma, as duas áreas estabeleceram uma intercessão frutífera a partir da história

imediata. Laccouturer (2001) chega a pontuar que ela não se configura como uma futilidade do

século atual, mas como uma tendência. Afinal, a sociedade, alucinada por informação, tem

exigido cada vez mais ficar a par dos fatos. Jeanneney (1996) pontuava: “Na vida cotidiana de

um jornal, de uma rádio, de uma televisão, se reflete constantemente a vida política de um

País”15.

Porém, ainda há outras questões no debate sobre a HPT que merecem reflexões, principalmente

quando se elege produtos midiáticos como objetos e fontes. Algumas delas são: tendo

conhecimento dos interesses provenientes das empresas midiáticas, as notícias devem ser

tratadas como pura verdade dos fatos? Os jornais e seus conteúdos efetivamente podem ser

utilizados como fontes históricas?

Conte (2004), recorrendo a Lage (2001)16, pontua o que seria o conceito de notícias jornalísticas

15 Jeanneney, 1996, pag. 225 16 LAGE, Nilson. Ideologia e Técnica da Notícia. Florianópolis: EdUFSC, 2001.

Page 9: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

reforçando a ideia que são formas de informar sobre um determinado fato de interesse público

àqueles que não o presenciaram.

A notícia é ‘a articulação simbólica que transporta a consciência do fato a quem

não o presenciou’ e que ela é composta de uma organização relativamente

estável que vem a constituir seu componente lógico e componentes

ideológicos, que são representados pelos elementos escolhidos segundo

critérios de valor essencialmente cambiáveis que se organizam na notícia

(CONTE, 2004,

https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/viewFile/2079/1822)

Ao discutir a notícia, a pesquisadora toca em um ponto importância que mais uma vez abarca

o ramo do Jornalismo e da História: o “Mito da Objetividade”. Conte (2004) destaca que, entre

os pensadores da mídia, este conceito vem sendo discutido desde o século XIX, embalado por

questões como isenção e imparcialidade nas informações.

Segundo ela, aqueles que defendem a subjetividade da cobertura jornalística alegam que o

profissional da notícia sofre pressão do cotidiano da profissão, dos interesses da empresa, da

falta de tempo e espaço, das ideologias próprias e de seus empregadores e que a simples escolha

das fontes já se configura como obstáculo à objetividade.

Bédarida (2002), ao tratar da busca da verdade nas apurações históricas, também cita o difícil

empecilho da objetividade. “Certamente todos reconhecem que a objetividade absoluta não

existe”, pondera. Mesmo se referindo às pesquisas históricas, tal afirmação poderia facilmente

ser utilizada para ilustrar o motivo pelo qual os historiadores receavam em utilizar jornais como

fonte, ou seja, a falta de objetividade da cobertura.

Luca (2011) faz coro reforçando que o motivo da resistência dos historiadores era devido à

influência de interesses, compromissos e paixões por parte daqueles que produziam os

periódicos. Outra alegação era que os jornais registram o presente de forma fragmentada, não

tendo espaço para análises mais amplas e aprofundadas.

Ao mesmo tempo que a desconfiança pesava, os jornais passavam a se firmar como principal

fonte de informação de vários grupos sociais, crescendo sua credibilidade. Capelato (1980)

destaque que era inegável a capacidade da imprensa de “modelar” dos pensamentos políticos e

estimular atitudes de seus leitores de acordo com valores impressos nas entrelinhas de suas

reportagens.

Apenas com as renovações das abordagens políticas na História, em especial a “revolução

documental”, e em seguida o retorno da História Política e Cultural, que a desconfiança para

Page 10: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

com a imprensa escrita diminui. Sua utilização, entretanto, necessitava de precauções, não

diferentes do tratamento dos documentos na pesquisa histórica. Deveria, portanto, ser

submetida à crítica.

(...) para um tipo de utilização da imprensa periódica que não se limita a extrair

um ou outro texto de autores isolados, por mais representativos que sejam, mas

antes prescreve a análise circunstanciada do seu lugar de inserção e delineia

uma abordagem que faz dos impressos, a um só tempo, fonte e objeto de

pesquisa historiográfica, rigorosamente inseridos na crítica competente

(LUCA, 2011, pag.141)

O primeiro ponto destacado por Luca (2011) é considerar que a imprensa e consequentemente

a notícia sofrem influência de interesses políticos e de lucros. Isso ocorre no simples ato de

selecionar, ordenar, estruturar e narrar um acontecimento de determinada maneira. O segundo

está em definir o público para o qual aquela publicação se direciona. Por fim, o contexto

histórico e a estrutura social dos objetos analisados.

Vale destacar que, mesmo com todo o potencial de análise histórica, quanto se elege as

informações de um periódico para uma análise científica é necessário promover alguns

questionamentos, como: qual a motivação que levou àquela publicação? Quem era o grupo

responsável pela linha editorial? Quem eram os colaboradores? A qual público pretende atingir?

Qual a relação com os Poderes, os interesses financeiros e o caráter publicitário? Existe

interferência na autonomia para a veiculação de informações? Este último ponto se mostra de

expressa importância, afinal, na longa história da imprensa mundial não são raros os episódios

manchados pelas censura, um mal que vem maculando o intuito da imprensa a séculos.

Conclusão

O historiador Boris Fausto17 chegou a pontuar uma vez que o “presente para historiador, por

mais que se diga ao contrário, é sempre um terreno pantanoso”. Mas isso não significa que seja

um terreno impossível. Afinal, a História Imediata ou História do Tempo Presente vem

ganhando adeptos há cada ano e propõe uma análise do passado próximo por meio de uma

intercessão entre as atuações e métodos utilizados por jornalistas e historiadores. No âmbito

acadêmico são diversas as fontes sobre o tema. Jean-Pierre Rioux (1999) se debruçou sobre o

intercâmbio entre as áreas pra elaborar seu artigo “Entre História e Jornalismo”, Kushnir (2001)

17 Trecho retirado da epigrafe da obra “Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de

1988” de Beatriz Kushni

Page 11: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

chegou a citá-lo para salientar os dois olhares sobre o presente exercidos pelas duas atividades

acadêmicas e apontar que “jornalistas e historiadores estão lado a lado na construção dessa

história do tempo presente”. Além disso, os estudos de Jean Laccouture também representam

um considerável avanço.

Ou seja, a História do Tempo Presente passou a galgar um espaço dentro dos estudos históricos

contando com uma impulso importantíssimo dos jornalistas. A intercessão foi mais do que

frutífera já que até mesmo os mecanismos próprios dos profissionais da comunicação foram

adotados pelos historiadores, a exemplo do gravador.

Uma das ferramentas para a construção da HTP é a história oral (pelo lado dos historiadores) e

a entrevista (jornalismo), que tem uma ligações intrínseca com a memória. Mesmo

representando risco – Kushnir (2001) chega a apontar o risco das “teias de memória”, que nada

mais é do que “possíveis armadilhas que a narrativa memorialistas podem construir” -, a

memória é fundamental para resguardar as percepções de acontecimentos recentes que

marcaram uma geração ou uma cidade e é alvo tanto dos jornalistas quanto dos historiadores,

que buscam registrar, divulgar a analisar os acontecimentos. Estes, inclusive, sempre foram

objetos de análise que aproximou as duas áreas acadêmicas.

Além disso, nas últimas décadas, os trabalhos históricos cada vez mais se debruçam sobre o

jornais tanto como fontes como também como objeto. De início, como ficou evidente, houve

certa resistência por parte dos historiadores, temendo que as influências políticas e econômicas

das empresas de comunicação e até as ideologias pessoais dos jornalistas influenciassem demais

na cobertura. Porém, com o advento dos novos estudos da historiografia, passou-se a adotar a

mesma técnica utilizada na crítica aos documentos para com os jornais. Algumas das questões

necessárias na análise de um periódico passaram a ser primordiais, como: qual o público

destinado a reportagem em análise, qual o veículo, quem são os colaboradores, entre outras.

Por fim, como ficou evidente, jornalistas e historiadores cresceram separados e mantiveram

uma “indiferença reciproca” por décadas. O que só veio a mudar a partir da década de 1960 a

partir da advento da História do Tempo Presente. Hoje este é um campo frutífero para

aprofundamento acadêmico tanto por parte de pesquisadores da área de comunicação quanto da

área da história.

Page 12: História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se ... · PDF fileHistória do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1 BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2

Referências bibliográficas

BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA, Marieta de M.;

AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 5.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002

BERNSTEIN, Serge, MILZA, Pierre. Conclusão. In CHAUVEAU, Agnès. Questões para a História do

Presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999

CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.

CHAUVEAU, Agnès. TÉTART, P. (orgs.) Questões para a História do Presente. Bauru, SP: EDUSC,

1999

CONTE (2004), A impossível pureza humana: um estudo da objetividade da notícia,

https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/viewFile/2079/1822 - acessado

em 18 de maio de 2016

HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto à uma categoria

da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiros, 2003

JEANNENEY, Jean-Noel, A Mídia. In: RÉMOND, R. Por uma história política.

KUSHNI, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Tese de

Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2001.

LACCOUTURE, Jean. A História imediata, In LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo, Martins

Fontes, 2001

LE GOFF, Jacques. “História e Memória” – 6ª ed. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2012

LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. BASSANEZI, Carla Pinsky

(Org.). Fontes históricas. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2011

RESENDE, Lino Geraldo, A Censura Contra a cidadania. Vitória: Editora

RUDIGER, Francisco. A escola de Frankfurt. In: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO (org), Luiz C.,

FRANÇA, Vera Veiga. Teorias da comunicação: conceito, escolas e tendências. Petrópolis, RJ: Vozes,

2001

RIOUX, Jean-Pierre, “Entre História e Jornalismo” In CHAUVEAU, Agnès. TÉTART, P. (orgs.)

Questões para a História do Presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999